OBRA

ÁLBUNS

Chico Buarque de Hollanda - vol.4

Chico Buarque de Hollanda - vol.4

Chico Buarque de Hollanda - Nº4 é um álbum do músico brasileiro Chico Buarque. Foi lançado no ano de 1970.
O álbum foi gravado por Chico Buarque inicialmente na Itália, durante seu exílio naquele país, e completado após sua volta ao Brasil, no Rio de J...

Escute o disco

MÚSICAS

  • 01

    Essa moça tá diferente
    Chico Buarque
  • 02

    Não fala de Maria
    Chico Buarque
  • 03

    Ilmo. sr. Ciro Monteiro ou Receita pra virar casaca de neném
    Chico Buarque
  • 04

    Agora falando sério
    Chico Buarque
  • 05

    Gente humilde
    Garoto/Vinicius de Moraes/Chico Buarque
  • 06

    Nicanor
    Chico Buarque
  • 07

    Rosa-dos-ventos
    Chico Buarque
  • 08

    Samba e amor
    Chico Buarque
  • 09

    Pois é
    Tom Jobim/Chico Buarque
  • 10

    Cara a cara
    Chico Buarque
  • 11

    Mulher, vou dizer quanto te amo
    Chico Buarque
  • 12

    Tema de Os inconfidentes
    Chico Buarque/Cecília Meireles

FICHA

TÉCNICA

Estúdios: CBD - Rio/Glob Record - Roma
Técnicos: Ari Carvalhaes, Célio Martins, Didi/Domenico Panzeri, Aldo amici
Foto: Gentiliza da Editora Abril
Lay-out: Lincoln
Direção da Produção: Manoel Barenbein



CURIOSIDADES

Todas as composições de Chico Buarque com exceção de: Gente Humilde, com Vinicius de Moraes para música de Garoto; Pois é, com Tom Jobim e o Tema para os Inconfidentes, música para O Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles.


A situação só desanuviou no fim o ano, quando Chico, que estava sem contrato -- depois do fracasso do disco na Itália, a RGE resolvera não renovar --, assinou com Philips. "Foi a salvação da lavoura", rememora. Recebeu um adiantamento de 90 mil cruzeiros novos, que correspondiam a 21 400 dólares. Em compensação teve que fazer um disco a toque de caixa. Manuel Barenbein, que havia produzido seu dois primeiros LPs, foi para a Itália preparar mais um. Chico se lembra da correria que foi: "Manuel Barenbein ali, eu aqui com o violão, fazendo as músicas. Depois ele trazia para o Brasil, fazia as bases, levava de volta para a Itália e eu colocava a voz", conta. O sufoco da produção não explica todo o seu desgosto diante desse LP. Diz que aceitou fazê-lo porque "era mesmo o leites das crianças". Ele o vê como um disco de transição e impassse, o que lhe parece estar um pouco implícito na faixa Agora falando sério: Agora falando sério, Eu queria não cantar.

 


Entrevista O Pasquim - 1975


Diversos
O som do Pasquim

Quando Chico Buarque soube que a entrevista que deu pro PASQUIM ia sair neste livro, bronqueou: "De jeito nenhum, aquilo está completamente desatualizado!" "Mas como é que o livro vai sair sem você, Chico?", ripostamos. O jeito era fazer nova entrevista; Chico teve que interromper os ensaios da "Gota d'água" e nós largamos a redação no dia do fechamento de edição, numa sexta-feira. Antes passamos num armazém pra comprar a bebida predileta do Chico, uma garrafa de Fernet Branca, e fomos nos encontrar com ele no Comidinhas e Bebidinhas ali na Lagoa. Tudo às carreiras, numa verdadeira reprise da "Roda Viva". Mas valeu: pra nós que papeamos com o Chico durante 3 horas e bebemos com ele o Fernet, muito chope e caipirinha e pra vocês que ganharam uma entrevista zero quilômetro, inédita e exclusiva.

Jaguar - (A entrevista começa com Ziraldo brindando os presentes com uma magnífica interpretação de "Carolina" em espanhol, batucando o bolero com os dedos na mesa).

Ziraldo - Quando você era adolescente, sacava que música iria ser a sua?

Chico - Até receber meu primeiro cachê - e até mesmo depois - nunca imaginei que fosse viver de música. Não tava nos meus planos. Sempre gostei muito de música, escutei muita música na minha infância, inventava músicas de brincadeira na escola...

Ziraldo - Você lembra de algumas dessas músicas?

Chico - Não. Mas havia colaborações no nosso jornalizinho de escola, escrevia versos, bobagens mesmo.

Ziraldo - Antes de compor, você gostava de escrever?

Chico - Sim. Tudo que era jornalzinho de escola...

Jaguar - Quais escolas?

Chico - Fiz ginásio e científico numa escola de padres em São Paulo, Santa Cruz, com uma saidinha pra Cataguases, onde fiquei interno seis meses. Também escrevi para um jornal de Cataguases. Jornalzinho era comigo.

Ziraldo - Em Cataguases contam com grande orgulho que você foi aluno do colégio de lá. Parece até que você passou a vida toda lá.

Jaguar - É aquele colégio que tem o painel do Tiradentes?

Chico - É. Tem muita coisa lá.

Ziraldo - Você é paulista, né?

Chico - Não, sou carioca, mas me formei em São Paulo.

Ziraldo - Que maternidade você nasceu?

Chico - Na São Sebastião, no Largo do Machado.

Ziraldo - Foi garotíssimo pra São Paulo?

Chico - Com dois anos de idade. Mas não me considero muito paulista. Minha família toda era do Rio, e passava o tempo todo, as férias, no Rio. Meu apelido em São Paulo era "Carioca". Fiquei meio equidistante entre paulista e carioca.

Ziraldo - Você é desses Hollandas todos que desceram do Nordeste?

Chico - Meu pai é paulista. Minha mãe é carioca.

Ziraldo - Que que o Aurélio é seu?

Chico - Nada. Deve ser parente lá nessas lendas.

Jaguar - (decepcionado) Eu pensei que fosse seu tio.

Ziraldo - Ele não é primo do Sérgio Buarque de Hollanda?

Chico - A bem da verdade ele não é Buarque de Hollanda. Esses nomes as pessoas vão montando. Quem inventou "Buarque de Hollanda" foi meu avô. Juntou "Buarque" com "Hollanda". O pai do Aurélio é Buarque Ferreira, tem um "Hollanda" noutro lugar, e juntou. Aí criou essa confusão.

Jaguar - Você conheceu o Paulo Duarte?

Chico - Muito. Ia lá em casa, ele, Juanita.

Ziraldo - (começando a misturar os Buarque e os Hollanda): Teu pai é o Sérgio, né?

Chico - Sérgio Buarque de Hollanda.

Ziraldo - Você fez vestibular pra alguma faculdade?

Chico - Pra Arquitetura. Larguei a FAU no terceiro ano.

Ivan Lessa - Aí já tava indo de música?

Chico - O violão baixou com a bossa-nova. Foi aí que comecei a me interessar por música, pra valer.

Jaguar - Alguma pessoa te levou pra fazer música?

Chico - Vinícius era muito amigo lá de casa. Moramos dois anos em Roma, e Vinícius era cônsul. Era meio um mito, chegava lá com o violão, cantava as músicas dele. Lembro exatamente o dia em que saiu o disco do João Gilberto. Dizia-se lá em casa: "Saiu um disco com músicas do Vinícius". Naquele tempo ele tinha poucas coisas de sucesso, e "Chega de Saudade" tava pintando. O pessoal lá em casa comprou o disco pelas músicas do Vinícius. Quando eu ouvi me bateu na hora. "Chega de Saudade" bateu... (bate na mão) pa! Negócio de ficar ouvindo dez, vinte vezes seguido.

Ziraldo - Você tinha tocado violão, aquele negócio de duas posições?

Chico - Não. A minha irmã tinha tentado me ensinar, mas eu não tinha me ligado. Quando comecei a aprender tinha aquele negócio de bossa-velha e bossa-nova. Minha irmã estudava bossa velha. Eu não queria saber mais... Eu e um amigo meu começamos a tirar, de ouvido, imitar, a batida de bossa-nova no violão.

Ziraldo - Pegou com facilidade?

Chico - Não. A minha mão... (olha para os dedos) não tem habilidade manual nenhuma. Sou mau violonista até hoje.

Ziraldo - Mas dá pra quebrar o galho?

Chico - Dá inclusive pra compor. Dá pra tocar. Mas em gravação minha não ouso tocar violão. Nunca toquei violão em gravação minha. A não ser na primeira, "Pedro Pedreiro". Toco mal, por deficiência motora. Faço nada direito com as mãos.

Ziraldo - Música também você nunca estudou?

Chico - Mais tarde tomei aulas com a Dona Graça. Aprendi alguma coisa de teoria. Depois, com o contato com o violão, sei o que estou fazendo. Sei fazer cifra.

Jaguar - Você escreve música?

Chico - Muito mal.

Ziraldo - Mas se não tiver um gravador, você escreve pra não esquecer?

Chico - Sim, acontece. Mas é quase impossível esquecer, porque na hora que a gente faz, fica repetindo, repetindo. Quando tenho que sair, um negócio que não pssoo desmarcar, aí gravo ou escrevo.

Ivan - Foi "Chega de Saudade" que te despertou, te levou pro trabalho. Então você é filho da bossa-nova.

Chico - Sem dúvida nenhuma. Claro que depois voltou toda uma carga que eu tinha. Mas antes da bossa-nova não tinha me interessado em pegar no violão.

Ziraldo - Isso foi em Roma ou em São Paulo?

Chico - São Paulo. Volta de 60, 61.

Ziraldo - Tava na faculdade?

Chico - Não. Antes da faculdade já tinha cantado em showzinhos de escola, de formosura.

Ivan - Cantava o quê?

Chico - Aí comecei a fazer minhas musiquinhas. Queria ser bossa-nova, queria cantar igual João. As melodias eram bossa-nova, a harmonia procurava ser... tudo imitação.

Jaguar - Com aquela voz bem desmilinguida.

Ziraldo - Você é um cara criativo demais, tem uma inquietação criativa, mania de ficar bolando coisas. Inventa jogo, escreve verso, escreve peças. Você tem essa criatividade desde garoto?

Chico - Sim

Ziraldo - E a poesia? Pintou antes da música?

Chico - Fazia poeminhas, na escola.

Jaguar - Sonetinhos?

Chico - Sempre.

Ziraldo - E acrósticos?

Chico - Acrósticos! Pra namorada, a Liliana!

Tarik de Sousa - Não teve uma influência também do Vinícius anterior ao João Gilberto?

Chico - Tinha, mas nunca me estimulou a tocar violão. Minha irmã, a Miúcha, seu violão chamava Vinícius, cantava aqueles negócios. Mas eu pegava o violão pra ouvir João Gilberto.

Jaguar - Obrigado, João Gilberto! Olha, muitas vezes acontece comigo de estar quase dormindo e bolar um cartum. Aí penso: "Porra, amanhã eu anoto a idéia". E aí, no dia seguinte, fico puto da vida, dando voltas, e não consigo me lembrar. Isso acontece com você? Você já perdeu uma música,

Chico - Perder, não.

Jaguar - (enchendo o copo) Isso acontece muito com a gente que toma Fernet Branca.

Chico - (enchendo o seu também) Tem um negócio que experimentei em Nova Iorque. Existe um estágio que chamam de alfa. Através de um treino com eletroencefalograma, você aprende a entrar, por vontade sua, nesse estado alfa. É o estado logo antes do sono, meio letárgico.

Ricky - Muita gente diz que é o estado mais criativo, as coisas sobem à tona.

Chico - Mas quando acontece de pintar uma idéia, não consigo dormir mais não. Aí: (estala os dedos). Agora acontece também de no dia seguinte eu olhar e achar uma merda.

Ziraldo - Eu sonho cartuns. Com música não dá pra sonhar um acorde, mas cartuns já sonhei uns 30.

Chico - Dá pra sonhar uma idéia de letra pra uma música.

Ziraldo - Você já sonhou uma coisa, achando uma perfeição, e no dia seguinte, acordado, não acha nada? "No sonho era uma beleza..."

Chico - Isso acontece muito.

Ivan - Aconteceu com o poema "Kubla Khan", do Coleridge. Ele tinha tomado Laudanum, e adormeceu. No sono provocado pelo Laudanum compôs o poema, todinho.

Jaguar - Acordou e passou a limpo.

Ivan - Viu o poema inteiro, todo. De repente bateram na porta e disseram: "Há uma pessoa de Porlock que quer falar com o senhor". Cortou o poema. E ele esqueceu o resto. Até hoje em inglês, a "person from Porlock" é o sujeito que cortou essa. E é um dos poemas mais sérios da língua inglesa.

Jaguar - Depois desse toque erudito, continuamos com a entrevista.

Redi - Você sente um tema, vai fazendo letra e música sobre ela, na inspiração, ou pensa: "Vou fazer um samba sobre esse tema", passando a meditar sobre ela?

Chico - As duas coisas. Na maioria das músicas as idéias vêm de fora, espontaneamente. Mas também há as músicas de encomenda. Por exemplo, músicas para uma peça, um filme.

Ziraldo - Trabalhar sob encomenda te machuca? Não tem grilo nenhum?

Chico - Não. Tenho que ter liberdade total. Não é uma encomenda que te restringe, mas uma sugestão, quase. Filme do Hugo Carvana, por exemplo. Te mostram uma cena. Uma vila do Catete, as pessoas, aquela promiscuidade, coisa meio italiana. Aquilo me sugeriu uma música que não tem nada a ver com o filme, mas tem a ver com aquilo que o Carvana me mostrou. Inclusive "Com Açúcar, Com Afeto". A Nara pediu uma música assim.

Tarik - Foi sugestão da Nara?

Chico - Ela cantava uma música... não me lembro se era "Meu Moreno fez Bobagem". Uma música nessa linha. E me pediu uma música assim, na linha da "Amélia". Não lembro, foi um pedido dela.

Ziraldo - Você bola a letra primeiro e vai encaixando a música nela; ou vai cantando a música e depois bota uma letra na melodia que inventou? Como é o seu processo criativo?

Chico - Isso também varia muito. As mais bem sucedidas são feitas quase que pau-a-pau. Tenho músicas que terminei e não pintou letra nenhuma.

Ziraldo - Você faz como o Caymmi: uma letra monstro pra depois arrumar?

Chico - Faço quando é de parceria.

Ivan - Nunca entendi como funciona a parceria.

Chico - É outro processo completamente diferente. Varia de compositor pra compositor.

Ziraldo - Parceria é muito menos inspiração e mais transpiração. Fica a noite inteira conversando com o cara: "Não é por aí não, vamos por aqui".

Chico - Acho um exercício ótimo.

Tarik - Quando eu te conheci em São Paulo, você estava com o pessoal da FAU, e tinha o Sambafo. Era um negócio muito mais ligado ao samba do que à bossa-nova. Qual foi o intermediário pra você passar de João Gilberto ao samba?

Chico - Assisti a um show no Mackenzie onde apareceu Vinícius com Baden. Tinham acabado de chegar, cantando sambas novos. Eram sambões, "Formosa". Me lembro de um comentário de uma cantora que eu conhecia: torceu o nariz e falou: "Aquilo é meio bossa-velha". Havia esse preconceito. Mas comecei a gostar daquilo de novo. Negócio de ir pra butiquim e cantar todo mundo junto. Não dava mais. A bossa-nova já tinha uns cinco anos.

Ziraldo - Você tinha 19 anos?

Chico - É. Estava na FAU.

Ziraldo - Mas você sabia fazer projetos?!

Chico - (rindo) Sabia nada. Fui por exclusão. Gostava de mil coisas, tinha muita criatividade, mas nada de prático.

Jaguar - Você tava fosseado estudando arquitetura? Estudava por estudar, achando que tava numa errada?

Chico - Não, fiz o primeiro ano direitinho.

Ziraldo - Você copiou aquelas retículas e sombras de desenho artístico?

Chico - (sorri) Fiz aquilo tudo. Tinha 3 desenhos: esse aí, de fazer textura, que aprendi no cursinho; o geométrico; e um que era livre. Dava um tema: Ferrovia. (risos) Aí fiz um trilho assim... (desenha com o dedo na mesa) uma família de retirantes assim... fiz como se fosse um X... (ri) achei essa idéia genial. Mas passei com quatro, quatro e meio.

Ziraldo - Seu negócio era esperar o trem em "Pedro Pedreiro" e não na faculdade.

Chico - Consegui a média pra passar com Matemática, que eu gostava.

Jaguar - Você era bom em Matemática?

Ziraldo - Equação do terceiro grau?

Chico - Sabia essas coisas todas.

Jaguar - É raro um artista gostar disso.

Ziraldo - Mas músico em geral pensa como um matemático.

Ricky - O Serialismo, por exemplo, era baseado em princípios matemáticos. As letras do Chico, também, são matematicamente precisas e construídas em série.

Ziraldo - Eu saquei isso imediatamente com "Sonho de um Carnaval" que foi a primeira coisa sua que pintou num festival. (canta) "Carnaval, desengano..."

Chico - Foi classificada num festival, foi pra final, e aí não aconteceu nada. Vandré que cantava.

Ziraldo - Seu primeiro sucessão foi esse, não?

Chico - Saiu um compacto, com "Pedro Pedreiro" e "Sonho de um Carnaval". Depois veio "Olê, Olá".

Jaguar - Você tem alguma organização de trabalho, um sistema? Só trabalhar de manhã, de tarde...?

Chico - Com música não. Quando me meto a fazer uma peça de teatro aí tenho uma certa estrutura.

Jaguar - Música é aonde pinta.

Chico - Música você pode fazer em cinco minutos. Às vezes se leva dois meses. Não adianta impor uma disciplina pra música.

Ivan - E a bossa-velha? Como é que você encontrou ela?

Chico - Nunca procurei nada.

Ziraldo - Mas a sua casa era muito musical. Você ouvia disco pra burro. Sabe 40.000 letras de música.

Chico - Sei bastante.

Jaguar - O Tom tem uma memória prodigiosa.

Chico - Tom sabe muito mais que eu. Caetano também sabe.

Ziraldo - Tom sabe muito mais?

Chico - Sei bastante.

Ziraldo - Caetano é impressionante. Você também andou com ele naquele programa?

Ricky - "Essa Noite se Improvisa".

Chico - Quando ele começou eu tava meio saindo.

Ivan - Eu via todos esses programas!

Ricky - Os prêmios para o primeiro lugar eram Gordinis.

Chico - Uma vez eu inventei a música.

Ziraldo - (rindo) Apertou e não sabia...

Chico - Vinícius era engraçadissímo. Sempre distraído, na hora de apertar o botão nunca chegava a tempo "A palavra é: 'Garota"'. Aí o Vinícius pããã! Foi cantar, felicíssimo. "Olha que coisa mais linda, mais cheia..." (Chico não consegue cantar mais de tanto rir). Não tem "garota"! Era "Garota de Ipanema"... "olha que coisa mais linda..."

Ziraldo - Não tem garota! (risos gerais)

Chico - Tava ao meu lado, aquela felicidade. Conseguiu apertar o botão antes de todo mundo!

Ziraldo - Agora eu pergunto a você: garota?

(Chico pensa).

Ivan - (rapidamente): "Só tem garota na guarnição..."

Ziraldo - (lembrando-se) Ah é: "Eu sou o pirata da perna de pau..."

Ivan e Jaguar - "Só tem garota na guarnição..."

Chico - Essas brincadeiras dependem de treino.

Ivan - Mas essa eu ganhei.

Ziraldo - Ponto para Ivan Lessa! (aplausos)

Redi - Ganhou a "garota".

Jaguar - (hesitando e escolhendo as palavras) Seus fãs... acham suas letras sensacionais... Mas sua música...

Ziraldo - ... é uma merda! (risos)

Jaguar - (ficando vermelho) Não, não é merda não! Mas o forte é a letra. Agora, tem um amigo meu, o Bobby Moover que casou com uma aeromoça e andou aqui pelo Brasil. Um cara do cacete, tocou com Chet Baker, fez um show com Lúcio Alves. Esse cara, no fim, tocava Pixinguinha perfeitamente. E na opinião dele o maior músico em termos de criação era você. Eu mesmo fiquei surpreso com isso. (risos)

Chico - Eu também.

Jaguar - "Mas não é o Milton Nascimento?" "Não. Chico Buarque." Aí começou a tocar no seu saxofone a variedade de coisas que você faz.

Ivan - A riqueza harmônica e melódica.

Jaguar - Puxa vida, o que seria de mim sem você, Ivan!

Chico - Meu trabalho habitual, de fazer música e letra, acho meio furado. Tanto é que o Ênio Silveira tá querendo publicar o livro das letras e eu tô resistindo. Não acho que seja poema. Pra mim a letra e a música são juntas. Vão juntas.

Ivan - Ler "Chão de Estrelas" sem a música...

Ziraldo - A letra de uma música não tem nada a ver com poesia. É uma coisa que não se pode separar da música.

Chico - Não pode. Assim como ouvi agora no dentista uma música minha tocada em FM. Não gosto daquilo. (Cantarola "Januária" rapidamente e com desdém). Não acho legal.

Ivan - Mas tem umas letras que são poesias, apenas pela inversão, pelo malabarismo, pela riqueza. Cole Porter tem umas... Aquela sua: "Vem a noite mais um copo / Sei que alegre ma non troppo", é sensacional.

Chico - Prefiro ouvir com a música. Tenho a impressão que publicar uma letra é metade do meu trabalho. É um negócio filmado a cores exibido em branco e preto.

Ivan - E é um livro só pra sair depois de morto.

Ziraldo - Você faz o verso da palavra. E faz o verso melódico. E um não parece com o outro. Tem que mudar.

Chico - Isso acontece demais.

Redi - Nesse caso muda a palavra ou muda a música?

Chico - Eu acho mais fácil mudar a palavra. Já mudei música também. Esse processo de criação é muito...

Tárik - Momentâneo.

Ivan - Graças a Deus continua um mistério

Ziraldo - Sempre fui preocupado em separar o poeta que faz letra pra música do poeta-poeta.

Chico - É completamente diferente.

Tárik - Você tava lá no Sambafo começando a fazer uns sambas. Conta um pouco dessa fase. O hino era o "Bafo da Onça", aquele samba do Osvaldo Nunes.

Ziraldo - (canta) "Olha o bafo da onça / que acabou de chegar.

Tárik - O negócio era mais um tipo de batucada.

Chico - Na época do Sambafo eu não funcionava muito como compositor. Cantava as músicas. Era "O Bafo da Onça", aquela do Sérgio Ricardo: (canta) "nasceu uma rosa na favela". Era música de circunstância. Tinha uma que fiz de parceria com um amigo meu: "Todo povo tem um osso / O nosso é um presidente sem pescoço". Uma gozação, nada sério, coisa de butiquim.

Tárik - Mas foi praticamente dali que você começou a fazer os shows.

Chico - Mas não era o Sambafo, era uma coisa paralela.

Ziraldo - Isso foi antes de aparecer?

Tárik - Foi. Teve aquela coisa para o Arena, onde você já tinha feito "Marcha para um Dia de Sol".

Chico - O Sambafo era mais uma transa de todo mundo cantar junto. Eu não fazia música pra lá. Só essas de sacanagem.

Ziraldo - Na sua família, não havia uma necessidade de formar? Teve grilo pra sair da faculdade?

Chico - Volta e meia ela fala: "Você não vai voltar"? (risos)

Ziraldo - Que coisa chata: você não é o Dr. Francisco Buarque. Como é que chama sua mãe?

Chico - Maria Amélia.

Ziraldo - Vocês são quantos?

Chico - 7.

Ivan - Dá um coral.

Chico - E era um coral. A gente cantava junto, música americana, Miúcha minha irmã tocava violão.

Ivan - Música americana?

Chico - Tipo The Platters.

Jaguar - Eram uns Garotos de Ébano Branco. (risos)

Ivan - (imita as vocalizações dos Garotos de Ébano)

Ziraldo - A sua primeira experiência de musicar letra foi com João Cabral?

Chico - Foi a primeira e única.

Ziraldo - Você não musicou mais nada?

Chico - Só Cecília Meireles: "O Romanceiro da Inconfidência". Para um espetáculo feito por Flávio Rangel.

Ziraldo - Das suas músicas, tem algumas com letras de outras pessoas?

Chico - Tem parcerias, mas aí não é bem "letra de outra pessoa". Faço a letra junto com outros. Trabalhei com Ruy Guerra, com Vinícius.

Ziraldo - A quatro mãos.

Chico - Tem letras que não consegui desenvolver, parei no meio. Em geral parceria que faço é letra pra música. Com Tom, Francis Hime, Toquinho, Edu...

Ziraldo - Vocês sentam juntos, ou levam a música pra casa?

Chico - Em geral é junto. Fica a fita, a gente trabalha sozinho. Mas trabalhar só com fita, à distancia, é difícil.

Ziraldo - Eu queria saber como foi sua experiência com João Cabral. Tem aquele negócio da métrica: às vezes precisa de mais uma palavrinha no verso pro acorde ficar igual, aí tem que segurar a ponta do acorde. Como foi?

Chico - Era uma luta.

Ziraldo - Saiu um negócio direito pra burro.

Chico - Existiu uma malandragem no meio. Me lembro de um verso que não coube de jeito nenhum. O trabalho era de equipe. Roberto Freire é que estava dirigindo o negócio. Mesmo no começo os atores participavam desse processo. Lembro de uma música no final, quando nascia a criança: "De sua formatura / deixai-me que diga / é belo como um coqueiro... Bom como caderno novo" Um verso não cabia de jeito nenhum. Convenci eles colocarem de uma atriz correndo de repente e dizendo o verso. (falando rapidamente) "Da sua formosura deixai-me que diga!" (risos gerais).

Ziraldo - Colou! Criatividade é isso.

Chico - E outras coisas que fomos cortando porque não cabia na letra. Uma delas fiquei chateado, depois porque cortei sem pensar. Não tinha pensado mesmo. Era uma brincadeira, uma crítica, ao Gilberto Freyre. E eu não tava sabendo. Depois o João Cabral me perguntou porque eu tinha tirado. Realmente era porque não cabia na música. "...um mocambo modelar / como dizem os sociólogos do lugar." Mas eu não tinha ligado sociólogos a Gilberto Freyre. E "so-ció-lo-gos"... não dá.

Ziraldo - Livrou a cara do Gilberto sem querer. Se soubesse, não tinha livrado.

Chico - Botava "SOCIÓLGOS":

Jaguar - Adoro fazer perguntas de estagiário! Qual a sua música predileta?

Chico - Não tenho.

Ivan - Que achas do "Beijo"? Ë uma música?

Jaguar - Não tanto, né Ivan.

Chico - A música que se está fazendo na hora é a paixão absoluta.

Jaguar - E qual é?

Chico - No momento não estou fazendo nenhuma. Segundo, a que se acabou de fazer. Depois, ouvir a música pela primeira vez no rádio.

Jaguar - E dos seus clássicos?

Chico - Não escuto. Não tenho predileção nem gosto por nenhuma delas.

Jaguar - Você é que nem o Robert Mitchum, que não vê os próprios filmes.

Tárik - Qual foi a coisa que fez você sentir que ia virar um profissional de música e largar a faculdade?

Chico - Não houve um momento. Foi aos poucos e sem me dar conta.

Ivan - E você sempre lendo muito?

Chico - Eu lia muito. Agora tem fase que eu leio.

Jaguar - E sempre escrevendo, como uma atividade paralela?
Chico - Não sei se é paralela ou se está me absorvendo mais do que antes. Paralela não é. Quando estou fazendo uma coisa não consigo fazer a outra.

Jaguar - Jornalismo infelizmente parece que só quando batia um banzo da pátria e você escrevia pr'O PASQUIM

Ziraldo - Encerrou sua carreira de jornalista? Não quer voltar?

Chico - Não tenho projeto de fazer nem isso nem aquilo. De repente pode ser... Não quero é me comprometer.

Ivan - "Entrega na quarta-feira", aquele negócio.

Ziraldo - Você se considera um cara de muita leitura, ou de muita informação por intuir?

Chico - Sou muito mais intuitivo. 90% do que li, li cedo demais, e pra dizer que tinha lido. Aquele negócio, de gostar de ter lido, um pouco do meu pai. Meu pai, Sérgio Buarque de Hollanda, é um culto. Foi historiador, crítico literário.

Ziraldo - Você freqüentava muito a biblioteca dele?

Chico - Transava seus livros todos.

Tárik - Até que página você chegou de "Ulysses"?

Chico - Confesso que não li.

Ivan - Não leu, mas escreveu seu próprio "Ulysses".

Chico - Fiquei com "Ulysses" muito tempo na cabeceira, queria ler no original, cara.

Ziraldo - Lê em inglês?

Chico - Razoavelmente.

Ziraldo - Parla italiano?

Chico - Falo, morei lá.

Ziraldo - Quantas peças você tem, publicadas?

Chico - Duas. E agora essa, "Gota d'água", vai sair.

Ziraldo - As outras duas são "Roda Viva" e "Calabar".

Jaguar - Por que essa nova chama "Gota d'água"? Será que é aquela gota que tou pensando? Ai, ai ai.

Chico - Por aí...

Ziraldo - Li "Fazenda Modelo" e achei muito inventivo. Inclusive muito engraçado. Tem algumas coisas lá que não cabe aqui discutir.

Jaguar - Cabe sim.

Ziraldo - Pegar coisas factuais e meter na obra sem necessidade. Como obra literária, ficava melhor sem isso. Mas não vem ao caso.

Jaguar - Vem sim.

Ziraldo - Negócio de violência necessária e desnecessária.

Chico - Fui acusado disso que você está me acusando, e do contrário também. "Muito barroco. Você tinha que ser mais claro."

Ziraldo - Mas aí seria loucura!

Chico - Não fazer é pior.

Ziraldo - Seria melhor se fosse projetado, fora do tempo, como "1984", do Orwell. Não precisa ficar fazendo pequenas referências factuais, fazendo humor com uma coisa menor.

Ivan - Isso é opinião sua. Ele fez o livro que queria fazer, não o livro que você queria que ele fizesse.

Ziraldo - Não é isso que quero discutir.

Chico - Em todo o caso eu discordo. Não concordo que sejam piadas factuais. O negócio da Copa não entrou nesse livro com essa intenção. Inclusive, se fosse pra disfarçar, teria evitado. Mas inconscientemente tava me marcando muito no momento. O cara não pode se libertar do seu momento pra fazer um livro sem nada de factual.

Ziraldo - Mas podia ficar melhor acabado. Em literatura dá pra você voltar 40 vezes em cima do período.

Chico - Mas eu voltei 50 vezes, Ziraldo. Uma crítica que não se pode fazer é de eu ter soltado coisas sem correia.

Ziraldo - Mas não podia ter deixado.

Chico - Passou assim pra você. Pra mim, que olhei de fora 50 vezes, não apareceu.

Ziraldo - Não quero diminuir seu livro. Acho muito brilhante. Brilhante até demais. Podia ser menos brilhante. O livro peca por excesso de brilhantismo.

Ivan - Você está fazendo uma crítica literária aqui que...

Ziraldo - É uma crítica literária. Pensei até em escrever isso.

Chico - Eu aceito você entrar nesse negócio, porque a crítica literária que se fez foi descuidada.

Ziraldo - Muito ruim.

Chico - Passando por cima. De sacanagem.

Ziraldo - É muito comum uma certa implicância com o eclético. Não admitem que um sujeito seja um gênio numa atividade, e depois venha pra sua atividade. O crítico não resiste à tentação de achar que o cara tá invadindo uma área que não devia. Mas o cara pode ser genial em tudo, pô!

Chico - Quando o sujeito larga tudo, como eu fiz, durante 9 meses, pra editar um livro... Não fazer aquilo de que você vive... Então não está querendo a glória, faturar dinheiro. Tá cagando. É uma necessidade biológica do homem. Pra valer.

Ziraldo - O livro foi uma necessidade biológica?

Chico - Não foi brincadeira. O que me irrita não é o que você está falando, mas o livro ser levado como uma brincadeira, com pouco caso.

Ivan - Teve pouco caso?

Ziraldo - Um pouco caso enorme!

Chico - No Globo saiu uma besteira, um cara dizendo que é um desabafo. Desabafo a puta-que-pariu! Na Veja, talvez por eu ser um romancista estreante, convocam um critico estreante. No Jornal do Brasil saiu um trabalho sério no Suplemento do Livro. Em seguida: pá! aquele Hélio Pólvora gozando.

Ziraldo - Mas o Hélio é um excelente escritor. Só que não admite o eclético.

Chico - Tem que levar em consideração o trabalho da pessoa. A "Última Hora de São Paulo também foi de sacanagem. A crítica foi muito boa mas o tal de Gibaúna não deixou sair. Aí é fogo, né"?

Jaguar - Todo mundo acha que o Chico, sendo compositor, não tem que escrever.

Ziraldo - Tem que escrever sim, ué!

Ivan - Eu acho que o Chico foi de uma coragem enorme ao escrever esse livro. Está exposto a essas coisas todas. Sabe como funciona o mercado.

Chico - No próprio meio teatral há um ressentimento da crítica quanto ao fato de eu escrever teatro. É fogo. Com esse livro tava me candidatando a outra cacetada.

Ziraldo - Eu sofro isso também. A única coisa que não faço é música.

Jaguar - Ainda bem.

Ziraldo - Mas eu quero fazer tudo! Tudo que faço é com o maior zelo. Os caras dizem aí: "Devia se limitar a fazer..." Tem que limitar nada! A pergunta que eu ia fazer era em cima da coincidência que fazem com o "Animal Farm". Ouvi que você tinha dito que nunca tinha lido esse livro.

Chico - Não li mesmo. (ri) Agora não vou ler. Eu conhecia o Orwell de nome, de "1984".

Ziraldo - Esse cê leu, né?

Chico - Também não li.

Ivan - Não precisa ler não. Já tá por aí.

Chico - Vi um negócio no Jornal do Brasil sobre o Orwell. Falava de "Animal Farm" e tinha a capa do livro. "Puta-que-pariu, Essa capa podia ser do meu livro." O livro já estava pronto. Mas nã li "Animal Farm". Nem tinha ouvido falar.

(Chegada do editor argentino do Chico, que informa, em primeira mão para O PASQUIM, que "Fazenda Modelo" será lançado na Argentina.)

Ziraldo - Acho "Calabar" melhor do que "Fazenda Modelo".

Ivan - São dois gêneros.

Ziraldo - Então vamos mudar de assunto. Chega de livro.

Ivan - Só quero estabelecer essa diferença. "Calabar" é uma peça. "Fazenda Modelo" não é.

Chico - Não consigo compará-los.

Jaguar - O que você acha mais burra: a crítica literária ou a crítica musical?

Chico - (franze o nariz)... Páreo duro. Eu não gosto muito também de ficar mostrando ressentimento com crítica. Me queixo só do pouco caso com o trabalho de um autor novo. Com música é diferente, tenho 10 anos de experiência.

Ivan - Não acho pouco caso, acho má vontade. "Vou deixar pra lá, pra que mexer nisso? Ele faz música."

Ziraldo - Quero registrar nesse momento a presença de minha mulher Wilma, e minha cunhada.

Ricky - Por isso não. Registro também a presença de minha mulher, Wilma, e minha cunhada.

Jaguar - Quero aproveitar a ocasião para cumprimentar meus familiares.

Ivan - Gostaria de enviar um beijo para minha filha Juliana, que faz seis meses na próxima quarta-feira.

(Anoitece. A lagoa fede. O Cristo brilha. Pela janela as luzes acendem. Os garçons desviram as cadeiras, ruidosamente, e passam panos na mesa.)

Ziraldo - Chico, quando você começou a incomodar e a se sentir incomodado?

Ivan - Ou seja: quando é que ficou moça?

Chico - Minha primeira experiência assim foi com a música do Tamandaré. No fim, deixa pra lá, a música não era grandes coisas. Mas o Tamandaré era patrono da Marinha.

Tárik - Isso foi 66.

Chico - O negócio começou a engrossar mais com "Roda Viva". Espancaram os atores e destruíram tudo em São Paulo e Porto Alegre. Aí proibiram a peça de vez, em todo o território nacional. Foi a primeira engrossada maior.

Ivan - Porque entenderam ou porque não entenderam?

Chico - A história que me contam é a seguinte: em São Paulo, o CCC - Comando de Caças aos Comunistas ia empastelar outra peça. Iam acabar com a "Feira de Opinião". Chegaram lá, já armados, preparados, e a peça já tinha acabado. Aí aproveitaram... (risos) Pra não perder a viagem, esculhambaram o "Roda Viva".

Ivan - São desorganizados pacas.

Chico - Mais tarde, numa espécie de interrogatório, uma autoridade perguntou o que tinha na peça. A peça não tinha absolutamente nada, era sobre o meio artístico

Jaguar - Sobre "A Máquina".

Chico - A engrenagem que nos tritura. Aí ele diz: "Se você acha que não tinha nada, porque é que fomos obrigados a fazer o que fizemos"?

(silêncio geral)

Ivan - Tenho medo de fazer a pergunta seguinte. Façam aí! Eu não faço!

(Ziraldo, coragem súbita, fala.)

Ziraldo - Antes do Zé Celso entrar na jogada, em vi o seu texto. Era outra idéia. Depois de montada, considerei "Roda Viva" muito mais Zé Celso do que você.

Ivan - O que era "Roda Viva"?

Chico - "Roda Viva" texto, não era nada.

Ziraldo - O espetáculo não era o que você tinha proposto na sua cuca. Zé Celso entrou no meio do caminho. Botou aquela loucura na peça. Ela tinha aquela loucura proposta?

Chico - Não, mas eu acompanhei a loucura.

Jaguar - Avalizou.

Chico - Entrei mesmo e assumi. Tava presente durante a montagem toda. Fiz música, durante os ensaios.

Ziraldo - Você mudou o final.

Chico - Fui burilando.

Ziraldo - Você queria levar a peça de qualquer jeito ou foi porque o que o Zé Celso propôs se aproximava mais da sua intenção?

Chico - Porque a peça, assim que ficou pronta, era muito vazia. Não tinha nada.

Ivan - Dê um resumo.

Chico - Negócio de empresário, público, de IBOPE, de televisão.

Ivan - Era simplesmente sobre a máquina e a engrenagem.

Ziraldo - Não tinha o teor político que passou a ter.

Ivan - Tudo é político.

Chico - Não sei se ficou mais política. Ficou mais polêmica, mais forte, brutal.

Tárik - Ficou política no sentido visceral, das vísceras.

Ziraldo - Isso, tava no estômago do problema do país.

Chico - Apareceu o Zé Celso pra montar. Eu conhecia "O Rei da Vela". Na hora pensei: "Vai ser uma barra". Topei a barra, inclusive me anulando como autor. O espetáculo montado é praticamente dele. Só ele teria imaginado aquilo a partir do texto escrito.

Tárik - A "carpintaria teatral" foi dele.

Chico - Eu tava lá. Não fui traído. Reconheci, conscientemente, que a peça era fraca, e que só o trabalho dele daria uma dimensão melhor.

Ivan - A agressividade direta... Vou eu com meu pai ver "Roda Viva". Antes vejo o Peréio na porta, bato papo, "Oi, tudo bem?". Tem uma parte que o Peréio fica sentado do lado, e dependendo de quem tá na platéia ele dá uma agressão. Como fez com Flávio Rangel e Paulo Francis "Ei, Flávio Rangel é boneca!"

Jaguar - Comigo também.

Chico - Comigo também.

Ivan - Com todo mundo.

Ziraldo - Você queria essa agressividade?

Chico - Ficou combinado que aquele personagem, do Peréio, ficaria por conta dele. Tinha liberdade pra xingar quem quisesse, como me xingou todas as vezes que fui assistir. Não me livrou a cara. Era a participação do Peréio dentro do negócio.

Ivan - Perfeito. Dava ódio: "Aquele é mau caráter. Bom caráter é o pai dele, o Orígenes". Fiquei puto da vida. Agora que sei que é coisa do Peréio, acho ótimo.

Ziraldo - Se a gente pegar toda a sua obra, que faz parte do mais importante que estamos vivendo, vemos que é profundamente agressiva e criativa. O que não é, de jeito nenhum, é grossa. Mesmo a engrossada da "Fazenda Modelo" é meio contida. Você não bate com os dois pés no peito. Mas bate bem. É aquele boxeur que não viu onde a porrada pegou. Mas a "Roda Viva" era um pé na cara. Isso não te violentou?

Chico - Na hora que dei o espetáculo pra ele montar, tava sabendo que ia ser um espetáculo do Zé Celso. É um criador genial. Agora, não tem texto. Essa peça, "Gota d'água", não entregaria não! É uma peça que prezo, faço questão que as palavras sejam aquelas. "Roda Viva" não existia. Foi um ensaiozinho de quem nunca tinha feito teatro. Agora, porra, sou 10 anos mais velho. Tenho mais experiência e confiança no que tô fazendo. Se você falar que a peça é uma merda, vou discutir contigo. Vou brigar. "Roda Viva", antes que você fale, digo: "É uma merda".

Jaguar - Qual é a mensagem de "Gota d'água"?

Chico - (pensa e vai falando devagar marcando as palavras com as mãos) É a "Medéia", de Eurípedes, adaptada para o subúrbio carioca. Toda a tragédia grega é essa tragédia carioca. O Layout da peça é a Luta Democrática. Medéia mata as crianças, aquele clima da Fera da Penha. Nessa base.

Ivan - Luta Democrática é perigoso. Vai de O Dia. Um conselho que lhe dou: nome que tem democrática...

Tárik - Você já tinha feito a música "Roda Viva". E a peça foi uma ampliação. Como é que surgiu a idéia da peça?

Chico - Não, quando fiz a música já tava fazendo a peça. Saiu da peça e foi pro festival.

Ziraldo - A música é o resumo da peça.

Tárik - Porque a idéia de ir pro teatro, fazer peça?

Chico - Desde o começo tenho ligação com o teatro. "Morte e Vida Severina". Fiz músicas pro Oficina, "Os Inimigos". Acompanhei teatro, farta parte do negócio a que estava ligado.

Jaguar - E cinema?

Chico - Faço músicas pra cinema. Inclusive tô fazendo agora.

Ziraldo - Você já foi ator num filme.

Ricky - "Quando o Carnaval Chegar", de Cacá Diegues.

Ziraldo - Te acho um cara muito acordado. Percebeu a Roda Viva, sentiu que era uma parada, correu o risco. Você corre o risco. Fez sucesso ganhou dinheiro, e é um homem realizado. E um cara cuidadoso com sua própria vida. Mas porque você deixou sair aquele livro com manuscritos seus, esse tipo de coisa? Infantilidade?

Chico - Claro.

Ivan - Desculpa ótima: "Ha! eu era garoto e não sabia o que fava fazendo."

Chico - Não é só isso não. A gente entra em várias. No começo... Tem mil besteiras que hoje eu não faria. Hoje sou cuidadoso. Mas não era. Porra, de repente, sucesso, "A Banda", o cacete, viagem pra cima e pra baixo.

Tárik - Lembra do Mug?

Chico - Porra, o Mug! Você entra... É um universitário, cheio de amigos. De repente fica famoso. A maioria são grandes amigos, mas tem aquela meia dúzia que pinta: "Pô, tenho uma idéia genial. Lançamos as Roupas Calhambeque pra Roberto Carlos. Agora vamos lançar o Mug". O Mug dava sorte, e tal. Agora vou livrar a cara e explicar porque eu entrei nessa. Pô, um dos caras era o Simonal. Mas outro era Sérgio Porto. Um cara em que sempre confiei. "Vamos lá, qualquer coisa." Topar tudo. Entra aí: o Mug, esse livro, o cara da TV te convidar pra ser Júri do Festival da Canção. Não tá ganhando dinheiro nenhum. Mas de repente tá lá, no Maracanãzinho, entra, tá tocando "A Banda". Tudo de graça. Por nada. (Bate as mãos, displicentemente.)

Ziraldo - É o clima, a loucura.

Tárik - É a Roda Viva.

Chico - Era o porra-louca do quarteirão, e agora é o porra-louca nacional. Fazendo besteira em todo lugar.

Ivan - E tudo que fizer vira acontecimento.

Chico - Júri de Escola de Samba! Ricardo Cravo Alvim: "Vem aqui". "Não entendo nada disso." "Não faz mal. Tamos aí." O sonho da minha vida, durante anos, era vir morar no Rio. Queria morar no Rio e ser amigo de todo mundo, do cara que escreve em jornal. Tá naquela baratinação. Não acha que alguém vá jogar contra. Depois passa a ficar o cara chato, que não dá entrevista. Até encontrar o meio-termo... Tem que dar porrada e fazer besteira.

Ziraldo - Tem que amadurecer.

Ivan - Resumindo: a Máquina, mesmo que ela não saiba, existe.

Chico - A televisão agora tem mais novela. Mas no meu tempo era mais ligado à música. E era imediato. Então a gente não tinha estrutura. Não é um negócio que aos poucos vai-se criando um nome. Não tem como ter discernimento do que vai fazer. O que aconteceu comigo na Itália: estava lá e não sabia como era. Lá, te mandam, você vai. Meus orientadores na vida profissional aqui foram Hugo Carvana e Antônio Carlos Fontoura, pô. (risos) Carvana me levou pra TV Globo: "Tenho um negócio maravilhoso pra você! Um programa! Você vai ganhar 2 milhões por mês! Chama "A Banda". Assinei na hora. Cara assina, pô. Carvana falou que é bom... (ri) Se eu continuasse fazendo aquela merda... O programa era tão ruim... sempre terminava com "A Banda" cantada por um coro de meninos. No terceiro programa simplesmente não fui. Por intuição. Uma intuição que me valeu um processo mas que me valeu uma vergonha a menos.

Jaguar - Olha, vou te contar uma coisa: sempre odiei "A Banda". (protestos gerais) Odiei! Eu ia em Minas, Ouro Preto, aquela burguesada toda cantando. "Nhém nhém nhém nhém nhém nhém nhém". Essa música é insuportável! (risos) Eu posso dizer isso porque sou fã do Chico. Agora, realmente, "A Banda"... Começou muito mal, Chico.

Ivan - Vá à merda, Jaguar.

Jaguar - Você não acha "A Banda" insuportável?

Chico - Eu tenho que achar, depois de ter cantado ela 1.500 vezes.

Jaguar - É uma música sentimentalóide!

Ziraldo - Você viu a sua cara de menino nesse programa "25 Anos de TV" cantando "A Banda" ? Que loucura! Parecia escoteiro!

Chico - Todo mundo arrumadinho. A platéia era um sarro.

Ziraldo - Parecia negócio de 1912. Você ficou quanto tempo na Itália?

Chico - Quase dois anos.

Ziraldo - Esse distanciamento deu pra amadurecer uma porrada de coisas na tua cuca?

Chico - Muito.

(Enquanto Ziraldo faz essas perguntas, Jaguar e Ivan cochicham e morrem de rir).

Ziraldo - (indignado) Os entrevistadores estão ficando de porre.

Jaguar - (rindo) Quando estive em Ouro Preto, como empresário de Nelson Cavaquinho e Zé Keti, era o auge de "A Banda". Os mineiros adoram cantar. Já imaginou 50 Ziraldos cantando "A Banda"? (risos gerais) Que ódio que eu ficava!

Ziraldo - Ele tem ódio é de mim, Chico.

Ivan - 50 mineiros! E nenhum deles acertando uma nota!

Ziraldo - Essa entrevista é para livro, e livro é eterno.

Ziraldo - Daqui a 30 anos essa entrevista será lida.

Jaguar - Espero que o livro esgote antes.

Ivan - Livro é eterno ? Isso é slogan? Vai vender isso pro Instituto Nacional do Livro?

Ziraldo - Ai cacete! (esconde o rosto no braço. Desfalece. Risos vitoriosos do Jaguar.)

Ivan - (com pena) Continue, Ziraldo.

Ziraldo - De 66 a 68 pintou a passeata dos Cem Mil, aquela transa toda. O que você fez na música que levou o pessoal, na hora do AI-5, a te incluir entre os inimigos públicos n.° 1? A gente tava mandando ver, gritando alto, reclamando pra cacete. Foi a última fase em que se reclamou.

Chico - Engrossou por muito pouco. Não dá pra entender. Engrossou mesmo, negócio de acordar com polícia dentro do quarto.

Jaguar - Dentro do seu quarto?! Como entraram pela porta principal do seu apartamento?

Chico - Não é muito difícil.

Ziraldo - Foi aí que você chamou um ladrão?

Chico - Acordei com aquelas cara ali e o zelador atrás.

Ziraldo - Chegaram a te levar? Você ficou recluso?

Chico - Não, soltaram no mesmo dia.

Jaguar - Houve alguma violência específica?

Chico - Física não.

Ziraldo - Quanto tempo depois você saiu pra Itália?

Chico - Dias depois.

Ziraldo - Conta-se que foi sugerido a você.

Chico - Não, eu ia sair mesmo. Ia fazer o MIDEM. Aí aconteceu esse negócio. Pra mim, isso muda a cabeça de qualquer um. Acordar com a polícia dentro do quarto...

Ivan - Você só se politiza depois que for acordado às três da manhã com a polícia batendo na sua porta. Bertold Brecht.

Chico - Brecht falou por mim, (para o garçon) Traz uma caipirinha de vodca, pouco açúcar.

Jaguar - Dois! Pouco açúcar!

Ziraldo - Registro: o Chico já tomou Fernet Branca, chope e agora vai de vodca.

Chico - O chope é pra quebrar o Fernet, que sozinho dá dor de barriga. Tem que tomar os dois.

Ziraldo - E o passaporte pra sair?

Chico - Quando fui lá, fiquei com aquele negócio de prisão domiciliar. Mas afinal, tudo bem, "você é um bom rapaz". Eu tinha simplesmente que avisar toda vez que saísse do Rio. Nessa hora mesmo coloquei que estava com a passagem comprada, pra daí a 10 ou 15 dias. Tudo bem.

Ziraldo - Aí você achou melhor não voltar.

Chico - Já conhecia Roma, adoro. "Tudo bem. Vou com coisa pra fazer, disco pra gravar, trabalho e tal, dinheiro." Fiquei hospedado no Hilton.

Tárik - Você fez uma excursão com a Josephine Baker.

Chico - Isso já foi na fase de horror.

Ziraldo - Explica isso aí.

Chico - Isso foi depois. Vou chegar lá. Bom, iam lançar Chico Buarque na Itália. Os caras da RGE tavam me esperando lá, eu ia ser um grande sucesso na Itália. Fui pra TV italiana e comecei a fazer os programas que me mandavam fazer. Aí começaram as besteiras de novo. Fazia os programas pra divulgar o disco. Estavam esperando certo tipo de coisa e chegou outro cara.

Ziraldo - Esperavam um Domenico Modugno, e chega um cara todo enrustido, falando baixinho.

Chico - Pois é, "A Banda" tinha feito sucesso recentemente lá. Pra mim já tinha 3 anos, não agüentava mais "A Banda".

Ivan - Tava que nem o Jaguar.

Jaguar - (conciliador) Hoje sou capaz de gostar da Banda. Mas sem o apoio da classe média.

Chico - O resultado é que não fiz sucesso porra nenhuma. O pessoal começou a maltratar. No começo era Hilton Hotel, flores pra Marieta, uísque pra mim, almoços, jantares.

Ziraldo - Marieta grávida.

Chico - Não aconteceu nada, começou a esfriar tudo. O segundo disco já não foi gravado. o show prometido já não pintou. Aí começou o horror.

Ivan - O que que foi esse horror?

Chico - Começou o negócio de ter que trabalhar.

Ivan - Cabou o dinheiro.

Chico - Ninguém te conhece. Fiz shows que... Uma hora Toquinho foi me dar uma mão lá. Fizemos um show pra 20 pessoas, na casa de uma marquesa. Começamos a cantar e vimos que não tinha nada a ver, ninguém tava sabendo nada. "Vamos mandar um carnaval!" (ricos) Apelamos pro carnaval. Depois "A Banda". Aí o pessoal cantava. Depois da "A Banda", não tinha outra marcha... Aí ia de "Mamãe eu Quero". Levamos muitos canos também.

Jaguar - Pra nós essa época foi ótima. Você virou até correspondente d'O PASQUIM.

Chico - Não tinha mais que fazer! Ficava formando parte de um terceiro time. É aquele nível que ninguém conhece, daqueles que gravaram o primeiro disco, ou não gravaram ainda. Ou artista velho, que já refudeu. Pra ficar na cerca mesmo. Tinha aqueles também pra que nada tinha dado certo, o que era o meu caso. Com esses tavam putos, porque investiram uma nota, pagaram a minha passagem. Tive que me rebolar mesmo. Ficava mais apavorado do que aqui. Ia sozinho, com meu violão, ou só com o Toquinho. Cantando aquelas coisas que ninguém entendia, olhavam com aquela cara séria. É um troço horroroso!

Ziraldo - E a saudade adoidada do Brasil.

Chico - Minha filha nasceu e tive que fazer mais shows.

Tárik - "Samba de Orly é dessa época, né?

Chico - É. Eu e Toquinho, fizemos uma temporada de 45 dias pela Itália inteira, fazendo o final da primeira parte do show da Josephine Baker. Tinha vários artistas. Tinha uma cantora canadense, um conjunto não sei de onde, e terminava com eu e Toquinho cantando músicas brasileiras.

Ivan - Mas conseguiam fazer alguma coisa?

Chico - Nada, porra, o pessoal ia ver Josephine Baker! Média de idade pelo menos 75 anos.

Ivan - Ma que! Ma cosa fare il brasilliani?

Chico - Foi uma merda! A gente cantou num negócio que parecia sede do Partido Monarquista. Tinha retrato do Rei Umberto. (risos) Não era teatro, era um salão.

Ziraldo - Dava pra pagar suas dívidas lá?

Chico - A gente fazia que dava. Mais 200 dólares que vinha do Brasil. Só podiam mandar 200.

Ziraldo - Ah sim, sua família mandava.

Chico - O PASQUIM também me ajudou nesse horror.

Jaguar - Me lembrei de uma sacanagem que fizeram com você, não só te envolvendo mas também uma porção de pessoas maravilhosas. Foi aquela Escola de Samba que teve como tema Chico Buarque". Era uma escola super simples.


Tárik - De samba mesmo. Lá de Niterói.

Jaguar - O enredo foi simplesmente proibido, por motivos não esclarecidos

Chico - Liberaram uma semana antes do carnaval. Aí já tava esculhambado. Não tinham ensaiado.

Ziraldo - Isso aí, Jaguar, não tem nada a ver com o que estamos falando. Estamos em Roma.

Ivan - Eu não. Tô na Lagoa Rodrigo de Freitas

Ziraldo - A sua volta foi gloriosa e apoteótica.

Chico - Pra voltar, tem que ser fazendo barulho.

Ziraldo - Você voltou pra quê?

Chico - Pra voltar.

Ivan - Porque ele voltou? "Minha terra tem palmeiras..."

Chico - Para um Especial na TV Globo. Voltei na base do "Cheguei!".

Ziraldo - Teve problema pra voltar?

Chico - Não. Mas dá medo.

Ziraldo - No Galeão tinha gente te esperando?

Chico - Tinha a TV Globo inteira. Fui pra casa tranqüilo.

Ivan - Em que ano estamos?

Chico - 70. Cheguei, lancei um disco, fiz esse especial na televisão.

Ziraldo - A única música que você gravou e não é sua é aquela... (cantarola).

Chico - "Menino Jesus".

Ziraldo - De quem é?

Chico - De um italiano, Lúcio Dalla, e de uma mulher, professora, que faz essa letra.

Ziraldo - Por que você gravou essa música? Numa outra gravação, com Nélson Ned, por exemplo, virava uma bosta.

Chico - Não...

Ziraldo - O fato de você gostar dessa música não é o que lhe dá a qualidade?

Chico - Gravei essa música na Itália. Depois de um ano e meio, saudade do Brasil, a gente perde muito a noção das coisas. Fica completamente desnorteado. Quando cheguei no Brasil fiquei completamente desorientado. Esse ano e meio que passei lá, pra mim, pessoalmente, foi maravilhoso. Como artista foi uma merda. Esse disco que gravei lá foi o mais errado que já fiz. Gosto de algumas músicas... Mas tem coisas que não perdôo, que não gosto mesmo. As que gosto são... só quase... São como as mulheres da Argentina: quase maravilhosas. (para o editor argentino) Desculpa. (risos) Não acoplam... (mão direita resvalando na esquerda).

Ziraldo - Vocês conhecem "Dolores Sierra"? (canta) "Dolores Sierra / de mi Barcelona..." (Jaguar tampa os ouvidos). E a mesma história de "Menino Jesus". E é cafona. Se o Chico gravasse uma música de Nélson Gonçalves, venderia.

Jaguar - O leitor adora esse tipo de pergunta: quais os livros que você leu e achou maravilhoso?

Ziraldo - Que pergunta embaraçosa! (para Ricky) Jaguar é o rei da cuia. Sempre enfiando no assunto.

Jaguar - Dostoievsky, por exemplo.

Ivan - Como Dostoievsky?! Um epilético russo!

Jaguar - Vá à merda. Pode falar, Chico.

Ivan - Se falar "Pequeno Príncipe", vou embora.

Chico - Guimarães Rosa... Tem livros que eu adoro que não tem nada a ver com isso: "Jorge, Um Brasileiro", de Oswaldo França Lima.

Ziraldo - A história começa em Caratinga, bicho!

Ivan - (desesperado) Mineirou!

Jaguar - Mas é um senhor romancista.

Chico - Outro mineiro bom é Sérgio Sant'Anna, esse contista.

Tárik - Rubem Fonseca?

Jaguar - Não admito sugestões. Quero ouvir o Chico

Chico - Gosto de "A Coleira do Cão". Li também "O Caso Morel".

Tárik - E "Feliz Ano Novo"?

Ziraldo - É aquele romance.

Jaguar - (ameaçador) Vou desligar, hein! Olha, vou desligar!

Ivan - Vocês estão querendo testar a cultura do Chico Buarque, o que é desagradável.

Jaguar - Não, eu quero que diga o que gosta sem preocupação de cultura. Eu, por exemplo, gosto de "Winetou".

Chico - Quando eu era garoto tinha mania de ler em francês.

Ziraldo - Tu parle français?

Chico - Não, esqueci tudo quando aprendi italiano. Eu lia os russos em francês também. Não li nada de literatura inglesa ou americana. De uns tempos pra cá só li brasileiros.

Jaguar - O que você leu aos 18 anos? Os livros dos 18 é que formam o cara.

Chico - Comecei a ler Mário de Andrade, Graciliano Ramos...


Jaguar - Poesia? Quem são os poetas?

Ivan - (de saco cheio) Tenho ódio de poesia. Todos os poetas entubam.

Chico - Nunca li poesia em língua estrangeira.

Ziraldo - Nunca leu Yeats, Keats?

Chico - Pra ler poesia em outra língua tem que dominar paca.

Jaguar - Que você leu de poesia brasileira?

- Bandeira, Drummond, Jorge de Lima. Ferreira Gullar...

Ziraldo - Chico Buarque, a chamada conjuntura, o sistema, o capitalismo, o Ocidente, a organização social que conhecemos, te deu tudo. Individualmente você não pode se queixar do sistema. Foi um menino que teve uma infância feliz, protegida, rica. Rica no sentido de coisas, aventuras. Então de onde vem a sua indignação social?

Chico - Indignação, mesmo, é um pouco forte.

Ivan - Exatamente.

Chico - Mas é um termo certo. Só que isso se colocou mais recentemente. É uma história comprida pra cacete.


Ziraldo - Sammy Davis Jr. escreveu um livro chamado "Yes, I Can". É um livro canalha. Se o cara tiver talento fura o bloqueio da injustiça social. O fato de você ter vencido te coloca como privilegiado. Mas isso não significa que o mundo seja bom, justo. E você sabe disso. A sua obra prova isso. Por que essa indignação é a tônica da sua obra?

Chico - (pensa bastante e trança os dedos) Meus pais não eram burgueses. Meu pai era um intelectual. Estudei nas boas escolas, e tal. Mas foi sempre mais da molecagem. Quando era garoto, 16, 17 anos, fui preso umas três vezes. Gostava de transar meio...

Ziraldo - Marginalmente.

Chico - Nunca gostei da outra transa. Eu estudava num colégio de gente bem em São Paulo. Onde eu era um dos mais pobres da classe. Meus colegas iam à aula de Mercedes, chofer. Eu era aquele que apanhava ônibus e carona. Ficava no caminho. Pinheiros, aquele bairro meio fuleiro. Aquele clima de São Paulo. Aí... comecei a roubar automóvel. Roubei automóveis... (ri e fica vermelho).

Jaguar - Como assim?

Ivan - Roubava pra dar uma voltinha.

Chico - Comecei a transar muito com essa gente. Pra farra, né. Tinha a polícia... Polícia sempre teve atração por mim. Chegou aquele guarda ali, penso: "É comigo". Eu era de menor, então livrava a cara. Apesar disso, uma vez fui preso. Eu e um amigo meu, aquele que transava bossa-nova comigo. Tinha roubado carro. Chegou aquele carro da Rádio-Patrulha, parou a gente no Pacaembu. Parou ao lado: "Flagrante, não sei o que"! Tomamos porrada pra burro. Mas porrada pra valer. Não tinha documento nem nada. "Menor de idade que nada! Quê isso! Vamos levar pro DI." Veio a gente no banco de trás, algemado, eu e ele. Só que eu tava no meio. Então eu tomava mais porrada do que ele, que tava mais longe, fora do alcance. Quando um dava porrada os outros todos davam também. Achavam que pegando a gente tinham apanhado a maior rede de puxadores de carros. E a gente mal sabia, tinha feito um erro primário; roubamos o mesmo carro pela segunda vez. Parece que o cara tinha tirado o cachimbo do carro. Era um Peugeot, um carrinho velho daqueles. Perto de onde moravam meus pais, tinha aquelas ladeiras do Pacaembu. A gente descia com o carro na maciota, abria o vidro... Isso eu sei até hoje. Se alguém esquecer a chave dentro do carro, eu sei abrir. Descia, e na descida... (faz barulho de carro acelerando).

Tárik - Aproveitava o embalo.

Chico - Fazia a ligação. Mas esse não dava nada. A gente, tchoc. tchoc, até lá embaixo. Aí os caras pegaram a gente. Fomos pro DI.

Ivan - Departamento de Investigações.

Chico - E era porrada de ascensorista... A gente parou na casa do dono do carro. O dono do carro: "Esses é que são os ladrões". Saímos do carro. Na hora de voltar, dei um jeitinho de ficar com as mãos cruzadas e entrar no fundo. E assim, da casa do dono do carro até o DI, meu colega tomou mais porrada do que eu. (risos) Até o que cara que tava guiando: pá! dava porrada. Acabou que passamos a noite numa cela com um garoto que tinha roubado um burro. Esse tipo de transa é que foi a minha formação de adolescência.

Ivan - Um pouco James Dean.

Ziraldo - Quer dizer que você deu muito trabalho pra papai e mamãe?

Chico - Mas era barra pesada. Enfim, tivemos contato com esse garoto que roubou o burro.

Jaguar - E seu pai? Foi à delegacia depois?

Chico - Não, por esses dias estavam comemorando bodas de prata em Ouro Preto. Foi minha irmã, a Miúcha, que foi lá, no dia seguinte. Ficou fula da vida.

Ziraldo - "Esse menino não me dá sossego!" Eu achava que você era comportadíssimo. Mas você teve uma vivência que te permitiu viver, além da cuca, o mecanismo do mundo.

Chico - Essa história faz parte de outras histórias assim. Coloquei essa aqui pra quebrar um pouco essa distância que você está colocando. Não foi um negócio visto de cima pra baixo.

Ivan - Um tapa na cara é o começo. A indignação leva muito tempo.

Chico - Eu já tinha muitos casos, criando confusão em casa. Fui interno pra Cataguases.

Ziraldo - Já não te agüentavam mais?

Chico - Não, aí foram problemas religiosos.

Ivan - Teve problemas religiosos?

Chico - Tive. Dentro dessa escola que a gente estudava, pintou um negócio de um grupo ultra-católico. Que mais tarde inclusive foi dar na TFP, que não existia naquela época. Comungar todo dia.

Ziraldo - Você chegou a comungar?

Chico - Comungava pacas. Era muito católico. Ao mesmo tempo... (risos)

Ziraldo - Você resolveu esse problema na sua cabeça?

Chico - Não tenho mais.

Ziraldo - Qual foi a última vez que você comungou?

Chico - Deve ter sido por aí, essa época, fui pra Cataguases, 15 anos.

Tarik - O que aconteceu no grupo ultra-católico? Por que você foi parar em Cataguases?

Chico - Eram os Ultramontanos. Negócio medieval. Diziam eles que vinham aí abalar, que iam sobrar só os bons predestinados. E os garotos bons predestinados vão ser criados pro novo mundo que vai surgir. Garotos de 14 anos, 15, embarcam nessa. Até que as pessoas atinam.

Tárik - Você era contra o pessoal?

Chico - Não, entrou todo um grupo.

Ziraldo - Você chegou a ser dos Ultramontanos?

Chico - Quando era admitido começava a usar o escudinho. Não cheguei a entrar nessa. Mas tava sendo preparado. Barra pesadíssima. Acontece que o pessoal, os pais, sacaram qual era. No começo achavam muito bom: as crianças de repente quietinhas, estudando, rezando, comungando todo dia. Mas antes que o negócio engrossasse, dissolveu.

Ziraldo - Isso é interessante pra conhecermos a sua vivência.

Chico - Não é questão de tomar uma porrada na cara quando garoto, porque foi preso, e ter que devolver o negócio. É como o Ivan falou, mais tarde... Leva tempo. Tem que ter as duas coisas. A vivência e um conhecimento existencial. Junta as duas coisas e dá uma indignacão maravilhosa. (ri) Com base de corpo inteiro.

Ziraldo - No momento em que o artista fala não só pro cara ali na sua frente, mas pra muita gente, se soube da coisa, tem como obrigação comunicar isso pra todo mundo. É fundamental. Por que você faz isso? Por que toda obra sua é quase um aviso?

COCO - Não coloco como obrigação pra ninguém porque não tô aqui pra ditar regra.

Ziraldo - A tônica do seu trabalho é a busca da felicidade. A felicidade social, humana, do convívio. Qual é a consciência que o Chico tem disso? Sai naturalmente? Ou você, achando a obra vazia, enxerta? Até mesmo "Valsinha" não é solta, tá preocupada com o ser humano.

Chico - Tudo isso que você falou, e a minha dificuldade em responder, está nisso: porque sai naturalmente.

Ziraldo - Porque não podia sair outra coisa.

Chico - Vou ter que parar pra pensar porque fiz tal coisa, quando ao fazê-lo não pensei. Minha resposta pode soar falso.

Ivan - Todo homem é o resultado daquilo que fez, de onde esteve e com quem falou.

Ziraldo - Esse tipo de colocação te preocupa de vez em quando?

Chico - Que tipo?

Ziraldo - "Porque estou fazendo isso?"

Chico - (faz que não com a cabeça...) O que estou fazendo, como criação, não posso parar pra pensar. Esse tipo de explicativa procuro para as minhas atitudes fora da criação. Faço isso ou não... isso é certo ou errado. Apesar de na minha vida ser também intuitivo. Ir fazendo as coisas porque pintou, porque é legal ou não é legal fazer.

Ivan - E Julinho de Adelaide? O PASQUIM ia fazer uma matéria a respeito, mas foi cortada.

Tárik - Foi enterrado.

Chico - Mataram.

Ziraldo - Quando foi que descobriram que Julinho de Adelaide era você?

Chico - Não sei. Foram descobrindo aos poucos. Começou a sair, em jornal. A única informação que podiam ter era na UBC, a arrecadadora.

Ziraldo - "Acorda Amor" é Julinho de Adelaide?

Chico - É.

Ziraldo - Não sairia com teu nome de jeito nenhum, né?

Chico - Acho que não. E agora não pode mais.

Ivan - Por que não?

Chico - Depois dessa história de Julinho de Adelaide, pintou um negócio que pra mandar a música pra Censura, tem que mandar carteira de identidade, CPF, o cacete. Tem que explicar direitinho.

Ziraldo - O que você achou do Glauber ter te chamado de nosso "Errol Flynn"?

Chico - Acho o Glauber muito engraçado.

Ziraldo - Você entendeu o que quis dizer?

Chico - O que você acha que quis dizer?

Ziraldo - Que você virou um pouco o herói que tá fazendo as coisas pra gente. Muita gente quieta em casa, puta da vida, que diz: "Isso Chico! Dá-lhe Chico"! E não faz nada.

Chico - É. Pode ser colocado assim.

Ziraldo - Porque você sabe do negócio de catarse do teu trabalho.

Chico - Situado diante do Gláuber é outra conversa. Mas quanto a esse problema, porra, tenho muita consciência dele. Vivo com esse problema e tenho falado sobre, respondido a isso. Acho que tenho consciência de já ter reagido a isso. Deu mil mal-entendidos. Fui interpelado por estudantes que entenderam errado.

Ziraldo - Isso te incomoda, as pessoas te passarem o bastão e exigirem um comportamento?

Chico - É claro: fui xingado por isso. Tava me referindo ao show do Casa Grande e ao Circuito Universitário. Falei "Não vou fazer mais não. Do jeito que tá não dá". Os Diretórios Acadêmicos começaram a fazer um show atrás do outro, e deu aquele delírio que eu não te a fim de endossar. Deô ser o Errol Flynn desses estudantes. Tenho muita coisa mais importante do que isso a fazer. Apesar de que, de vez em quando, o fato de manter uma chama acesa é bom. Viver disso é que não é legal.

Ricky - E Canecão?

Chico - "Tá fazendo isso pra ganhar dinheiro." Ganho a mesma coisa que ganhava no circuito Universitário. Agora estou um pouco mais tranqüilo quanto a isso. "Tô fazendo esse show pra classe média que tá vindo aí."

Ziraldo - É a sua profissão, pô.

Chico - Tá legal. Isso acabou. Mas o outro negócio cria um conflito. Há um ano, mais ou menos, sem querer, estou sendo sustentado por essa imagem de Errol Flynn. As pessoas achando que era despojamento. Não é não. É o mesmo trabalho de sempre. Não vou botar uma máscara pra fazer aquilo. Também não pode ficar com essa mistificação, essa catarse em cima, que aí eu acho uma merda. (para o garçom) Outra caipirinha com vodca, pouco açúcar e um maço de Charme.

Todos - Charm?

Ivan - Não fumas o cigarro do Kojak?

Wilma - Ainda precisa pedir mais um maço de Charme...?

(Chico sorri, abrindo o bigode sobre os dentes brancos, perfeitos, franzindo os olhos profundamente verdes... Daí pra frente o papo degenerou na noite carioca.)

 


Entrevista Rádio Eldorado - 27/09/89

Geraldo Leite

  
Semana Chico Buarque
Pra começar, pedimos ao Chico para falar sobre a música popular e por que é tão expressiva no Brasil?

Olha, eu, como estou dentro da música, nem me sinto muito à vontade de fazer uma comparação desse tipo.
Fora daqui, na Europa, nos Estados Unidos, a música brasileira, a música popular brasileira tem consumo. Ela goza de um conceito muito alto. Eu não poderia comparar com outras artes para não ficar indelicado. Mas se chegou até a um casamento feliz, como aliás, eu tenho impressão que só acontece nos Estados Unidos e em Cuba. O casamento, quer dizer, a mestiçagem que gera a música brasileira, que é semelhante à mestiçagem que gera o jazz e toda música caribenha. O casamento entre a música e a letra, a formação européia dos nossos letristas, isso vem de muito tempo. A formação européia dos nossos melodistas, mas basicamente o ritmo. Os ritmos brasileiros é que dão um cunho muito especial à música popular. Acontece, como eu disse, aqui como lá nos Estados Unidos, como no Caribe. Você não vê esse mesmo casamento, essa mesma harmonia em músicas onde há menos presença do negro. Nos países andinos, por exemplo, tem a música popular, mas, ao nível internacional, ela não tem o pique que tem a música brasileira.

Na música brasileira esse elemento negro é fundamental. E a forma como ele entra, como ele se casa com os outros elementos que compõem a música. Eu vejo por aí.

No Brasil, a música popular... se você quiser considerar a música como música pura, vai levar desvantagem em relação à música mais elaborada, à música de vanguarda, à música erudita, porque recolhe elementos dessa música e assimila esses elementos, e produz junto com a letra, que também não é uma poesia, produz uma obra de arte única.

Eu não sei se as pessoas, tanto os criadores como os críticos, têm consciência disso. É uma opinião minha, pessoal. Em relação ao meu trabalho e de outros compositores, sempre falam muito nisso: "Ah, precisa publicar as letras e tal." Eu resisti sempre a isto porque me parecia sempre que era mutilar o resultado final que é a procura desse casamento entre música e letra.

Esse casamento já está na tradição da música brasileira. Na música brasileira dos anos 30, 40, aquela que eu ouvia quando era garoto, nos anos 50 com Dorival Caymi, sem falar em Noel Rosa, Ari Barroso, isso já existia. Tanto assim que eu acho que o pai da minha geração é o Vinícius de Moraes, o poeta do nosso pai é o Vinícius, que a certa altura renunciou um pouco à poesia erudita e foi fazer música popular, e foi muito criticado por isso. Mas, eu acho que ele tinha essa visão, não estava renunciando a uma coisa maior em troca de uma coisa menor. Não, estava, simplesmente, se dedicando a uma outra tarefa, tarefa não é a palavra boa, mas a outra arte.

Chico fala agora de suas primeiras preferências musicais.

Engraçado, eu fui descobrir Dolores Duran, o samba-canção, essa coisa toda, não exatamente na época que isso fazia muito sucesso. Eu nem gostava tanto assim, não. Eu gostava mais que tudo da música americana.
E gostava da música brasileira... gostava de música de carnaval, gostava de ritmo. Era um garoto. Queria pular, queria dançar. Então, o samba-canção e muito bolero que tocava nos anos 50 não me dizia muito não. Eu fui recuperar isso um pouco mais tarde, porque... até harmonicamente têm coisas muito interessantes nessas músicas, nas canções dos anos 50. O próprio Tom Jobim, que eu não conhecia, fui conhecer o Tom a partir da bossa-nova. Mas a época dele pré bossa-nova também é muito interessante. Mas a mim não dizia grande coisa não. Eu adorava rock, adorava Elvis Presley.

Na música brasileira eu gostava, sobretudo, das músicas de carnaval, das marchinhas e dos sambas de carnaval. Porque naquela época tinha isso, as músicas de carnaval tocavam só na época do carnaval, depois o que se tocava era isso, samba-canção e bolero. Havia um contraste muito grande entre o que se executava em rádio entre dezembro e o carnaval. A partir daí, a quaresma era uma quaresma musical mesmo. Você só ouvia canções lentas.

A seguir Chico fala de seus compositores prediletos.

Noel Rosa, sem dúvida, Ismael, Wilson Batista, Geraldo Pereira. Em outra linha: Custódio Mesquita, Ari Barroso e outros que estou me esquecendo agora.

Conheço, por exemplo, muitos críticos que sempre te alinharam mais ao lado do Noel e nem sei se de tua parte ou da parte do próprio Ismael Silva muita gente te... você mesmo indicava o Ismael como uma das maiores influências. Tinha alguma?

Não, o que havia era uma (riso), uma tentativa até de dizer: olha também do Ismael, porque eu fiquei muito marcado como uma espécie de um novo Noel, até porque havia algumas coisas. Havia até citações. Eu citava Noel no samba A Rita. Eu fiz algumas canções à maneira de Noel. Claro que Noel me marcou muito.
Mas eu queria dizer: também tem o Ismael. Eu gosto tanto de Ismael quanto de Noel. Mas eu não posso negar que Noel, pra mim, representou uma influência mais forte até do que o Ismael. Mas eu queria fazer justiça: Ismael estava aí vivo e esquecido. Ismael eu conheci muito, era um grande personagem. Noel era uma lenda pra mim.

Conviver mesmo eu não diria. Porque a vida que eu levava, a chamada roda-viva, pra cima e pra baixo. Eu me encontrava com eles muito naqueles programas da TV Record que juntava essa gente. Eu convivi bastante com o Ciro Monteiro, com o Ismael. Mas principalmente com o Ciro Monteiro. Aí entram motivos extra-musicais. A gente ia junto pro Maracanã. Ele era flamenguista, eu era tricolor. Motivos gastronômicos também, porque tinha um feijão que a mulher dele fazia, a Lu, que era uma maravilha. Ele tinha isso de reunir muita gente na casa dele. Vinícius era muito amigo dele também. Com o Ciro eu convivi bastante. Os outros não. Eu cruzava muito com Ataulfo Alves, que era outra antiga admiração minha. Tenho músicas feitas a la Ataulfo, pelo menos uma claramente, que é Quem te viu, quem te vê. A gente se cruzava nos bastidores do Teatro Record.

Influências

Chico fala sobre sua relação com o poeta Vinícius de Moraes.

Eu tinha já um carinho pessoal por ele. Mas isso não interferiu tanto. Eu conheci Vinícius quando eu era criança. Mas eu passei a ser fã de Vinícius a partir da bossa-nova. Foi aí que eu me interessei... Eu não lia muita poesia. Acho que eu não conhecia o poeta Vinícius de Moraes. Eu conhecia o boêmio e compositor Vinícius de Moraes, amigo lá de casa, e a partir de Chega de saudade passei a conhecer. A bossa-nova foi que desencadeou a minha paixão pela música popular e a paixão da minha geração inteira. É um ponto comum de referência de todos nós. É João Gilberto, é Tom Jobim e é Vinícius. Virou uma página mesmo. Foi a partir daí que eu comecei a me interessar pelo violão e querer fazer música mesmo. Eu gostava muito de musica. Mas eu seria talvez um arquiteto que gostasse de música.

Conheci João acho que em Nova Yorque. Depois ele voltou pro Brasil e aí tive mais contato com ele. O João vive um pouco isolado e eu respeito esse isolamento dele. Ele gravou Retrato em branco e preto bem mais tarde. Não faz tanto tempo. Há menos de 10 anos. Acho que já faz dez anos que eu não vejo o João Gilberto.

Chico fala sobra a possível influência dos Beatles.

Era, mas não tanto. Eu conversei isso outro dia com o Djavan, que é pouco anos mais novo que eu, apesar daquela cara de garoto, não é tão mais novo assim. Os Beatles pra ele representaram o que a bossa-nova foi pra mim. Existe uma idade, 15, 16 anos, quando você está aberto pras novidades musicais. Quando apareceram os Beatles eu já estava fazendo minha música. É claro que eu gosto dos Beatles, mas não teve o mesmo impacto que teve pra mim a bossa-nova. Ela me pegou veia, no momento certo, na idade exata da definição até profissional minha. Foi João Gilberto, foi a bossa-nova. Os Beatles já me pegaram dentro do bonde. Eu já estava fazendo música.

Chico fala agora sobre a presença da música estrangeira no Brasil e do fértil período da bossa-nova.

Nos anos 50 eu ouvia, sobretudo, música estrangeira, e gostava de música estrangeira. Você não pode recriminar o jovem de hoje por gostar de rock. E não poderia fazer isso porque eu só gostava de rock até o aparecimento da bossa-nova. Agora, também não foi de graça que apareceu a bossa-nova. Não por coincidência, bossa-nova apareceu num momento em que estavam germinando o Cinema Novo, os novos movimentos de teatro no Brasil, a arquitetura de Oscar Niemeyer, Brasília. Foi numa época em que havia uma euforia, um sentimento, não vou dizer ufanista porque essa palavra foi descaracterizada mais tarde, mas havia um sentimento nacional de orgulho bastante forte. Você era brasileiro e gostava de ser brasileiro, e queria construir uma nação. Isso foi abafado mais tarde, por motivos que todo mundo conhece. Vai ser difícil, hoje, forçar, através de um decreto-lei, de uma proteção de mercado, criar o mesmo espírito que resultou no aparecimento da bossa-nova e dos outros movimentos de que eu falei em todos os setores da cultura brasileira.

Chico fala agora da dificuldade do trabalho após 64 e de suas esperanças.

A partir de 64 a cultura brasileira esteve cerceada. Houve dificuldades em dar continuidade aos projetos. Os movimentos eram encarados com suspeitas. Acho que está na hora de aparecer gente nova. Inclusive porque tem gente com muito talento, às vezes desperdiçado, querendo fazer coisas. Eu tenho esperança, é claro, não sou pessimista. Tenho quase a certeza que mais cedo ou mais tarde essa página toda da bossa-nova vai ser uma página viradíssima. A bossa-nova existe até hoje. Volta e meia ela renasce porque ainda é uma música moderna. Foi criada em cinqüenta e poucos. Eu fico torcendo pra bossa-nova ser uma coisa do passado mesmo.

Antecipamos a solução de um problema que era esdrúxulo: a ausência de relações diplomáticas entre Brasil e Cuba. São dois países muito ligados atavicamente, culturalmente. Os mesmos escravos que foram dar na Bahia foram dar em Havana. Isso gera uma miscigenação muito parecida. E gera uma simpatia imediata entre os dois povos. Havia motivos políticos até pra eu me manifestar por isso, porque havia uma perseguição a tudo que dissesse respeito a Cuba. Mas a minha aproximação foi mais até com os artistas do que outra coisa. Havia a necessidade de se conhecer a cultura cubana, mesmo porque eles também tinham muito interesse pela cultura brasileira e havia essa barreira intransponível, ou quase. Eles conheciam tudo via Paris. Conheciam os discos de música brasileira que eram editados em Paris. Essas coletâneas misturando fulano e fulano. Chegava lá ele sabiam mais ou menos quem era quem, não sabiam exatamente.

Era uma barreira danada. E vice-versa. As relações foram cortadas em 64 e a visão que se tinha da música cubana aqui remontava àquela época. Era o cha-cha-cha. Não se conhecia nada do que foi feito depois. Eu acho que ajudei a trazer essa música pra cá. Não só a música. Depois houve um intercâmbio muito rico em termos de teatro, de cinema. Hoje em dia a cultura cubana é muito conhecida aqui.

Perguntamos ao Chico sobre as canções feitas de encomenda para alguns intérpretes.

É você tem que partir de alguma coisa. É um velho tema: o papel em branco..." O que que eu vou escrever?

Pra que que eu vou escrever? Se você tem pelo menos "pra quem que eu vou escrever", isso já ajuda. "Vou compor uma música pra GAL." É estimulante. Sou apaixonado por ela. É uma cantora maravilhosa. Aliás, tenho que fazer uma música pra ela nesses dias. Você acabou de me lembrar que eu tenho que terminar a música. Pensando na maneira dela cantar, isso sempre ajuda, estimula. Como é que eu vejo a Gal? Eu sinto a Gal tão claramente aqui, na minha cabeça, que eu sei que tem uma música com cara de Gal. Mas não sei te traduzir.

A Nara mais de uma vez até me ajudou um pouco mais. A Nara me encomendava temas. Pelo menos uma vez ela encomendou. Por exemplo: Com açúcar, com afeto foi uma canção que eu fiz pra ela sob encomenda. Ela pediu: "Eu quero uma canção que fala que a mulher sofre, a mulher espera o marido etc. e tal." Eu fiz pra Nara e pro tema exato que ela pediu. Uma canção sob encomenda mesmo. Mas, normalmente, não acontece isso não. As cantoras deixam a gente à vontade. O que ajuda e não ajuda.

A Bethânia é a mesma coisa que a Gal. Quer dizer, inteiramente diferente, mas eu também sei o que que é uma canção pra Bethânia. A Bethânia tem uma coisa teatral. Eu fiz muitas músicas para teatro, as famosas canções no feminino que eu fazia pra determinados personagens. Mas o personagem, às vezes, pra mim, não era tão claro quanto quem iria cantar. Então, às vezes, eu pensava no ator ou na atriz que iria cantar. Mas, às vezes, a atriz que iria cantar, iria cantar só teatro, porque não era uma cantora profissional. Então, misturava, na minha cabeça, a encomenda do personagem, a atriz e a cantora que eu gostaria que gravasse aquela música. Então saíram canções como Folhetim, que tinha a cara de Gal, que servia pro personagem, mas que eu já compus pensando que a Gal iria cantar lindamente; Olhos nos olhos, que não foi pra teatro nem encomenda pra ela, mas quando eu terminei eu falei: "Essa música tem a cara da Maria Bethânia."

Pedimos, a seguir, para o Chico falar sobre a versão de Cauby para Bastidores.

Bastidores eu fiz pra minha irmã Cristina.

Mas ele encarnou.

É. Ele encarnou. Eu lembro que eu estava pra viajar e um jornalista amigo meu, Tarso de Castro, me pediu uma música para um disco do Cauby que ele estava produzindo. Eu disse: "Não tenho nenhuma música nova. O que eu tenho é isso aqui, que a Cristina gravou. Se ele quiser gravar..." Mas o disco dele atropelou, acabou saindo antes e ele encarnou, como você disse. Ficou sendo a música do Cauby.

Quando chegava na hora do disco, muita vezes eu não tinha o material pra completar um disco. E então eu era obrigado a pegar de volta canções que eu tinha dado. Por exemplo, Olhos nos olhos eu gravei num disco meu; O meu guri eu gravei, regravei na verdade nos meus discos. Isso não responde a um projeto. Tenho a música, eu dou. Fulano está gravando, eu não estou gravando, eu dou pro cantor gravar. Eu só seguro pra mim, quando estou, realmente, em cima da gravação. Durante os dois três meses em que eu estou gravando um disco eu tenho que ser um pouco egoísta. Aquela músicas que eu compus ali, são pra mim, eu vou gravar no meu disco, são pra mim, e eu não dou pra ninguém. Senão meu disco só sai com regravação, com repeteco. E eu tenho a impressão que as pessoas compram o meu disco pensando no compositor. Eu ainda sou considerado um compositor que canta as suas músicas. E é natural que as pessoas esperem encontrar músicas inéditas.

Eu não posso dizer que eu me apresente em público com naturalidade. Tenho muito a sensação de super-exposição. Eu tenho a impressão, a impressão não, eu tenho certeza de que os grandes intérpretes usam uma espécie de uma máscara. Eles são intérpretes. Na hora que ele estão no palco eles são personagens. Eu cantei com Bethânia durante cinco meses no Canecão. É impressionante a transformação da Bethânia quando ela entrava em cena. Eu estava com ela até cinco minutos antes no camarim e era uma pessoa. Daí a pouco ela encarnava o personagem e entrava. E eu não. Eu levava pro palco os meus problemas todos. Era uma extensão de quem estava no camarim pouco antes.

A seguir, Chico comenta a nova mulher dos anos 70 e sua produção para teatro.

Nos anos 70 a mulher deu um salto incrível em direção a sua própria liberdade. Quando a Nara me pediu uma canção em 66, era da mulher submissa, não é à toa. Mais tarde a mulher começou a sair e vieram os movimentos feministas etc. Mas eu acho que essas canções são mais conseqüência do meu trabalho pra teatro, onde por algum motivo as mulheres sempre foram muito fortes. Desde a Joana que a Bibi Ferreira fazia no Gota d´água, até as personagens de Calabar. Calabar é a história de Calabar contada, na verdade, pela sua mulher, sua viúva, que é a grande personagem da peça. Na Ópera do malandro a Teresinha é a personagem que dá a volta na história. As mulheres são muito fortes nesse meu trabalho pra teatro. E eu compus para essas personagens femininas. Então era natural que as canções refletissem essa força da mulher, da mulher independente.

Caso Calabar 1973.

O episódio foi bem significativo do período que a gente estava vivendo. Aconteceu o seguinte: havia uma censura prévia (parece uma coisa tão distante: uma censura prévia). Você mandava o texto pra ser examinado pela censura federal. Esse texto era aprovado ou reprovado, ou aprovado com cortes. Ele foi aprovado com cortes. Alguns palavrões aqui, uma coisa ali, que a gente não podia levar ao palco. O resto estava aprovado. Quer dizer: sinal verde para montagem da peça. Então, nos reunimos, o Ruy Guerra, que é meu parceiro na peça e eu, mais o Fernando Torres, produzimos a peça. O espetáculo estava pronto. A estréia marcada. Aí tinha a segunda censura, a censura ao espetáculo, que é pra conferir se o que está em cena corresponde ao que foi aprovado no papel. Ou seja, ver se estão respeitando os cortes, se os palavrões foram realmente cortados, se não há um nu proibido, enfim, essas coisas que não eram possíveis na época.
A estréia é marcada. O ensaio geral pra censura é marcado e a censura não foi assistir ao espetáculo. Não foi, adiou, adiou...não foi, não foi, não foi... e aconteceu o quê? Chegou uma hora em que não havia como manter aquela produção em pé, então, falimos. Eles não proibiram. Eles obrigaram os produtores a jogar a toalha. A gente recorreu e meses mais tarde ela foi proibida pelo general Bandeira, que era o chefe do serviço de censura. Ele era superior ao chefe que tinha aprovado anteriormente. A peça foi proibida dessa forma esdrúxula, e foi proibida a divulgação da proibição na imprensa. E a palavra Calabar foi proibida na imprensa.
O resultado é que a gente não podia dizer que a peça havia sido proibida, ou falida. O disco que se chamava Chico canta Calabar teve o nome Calabar proibido. Então retiraram as capas que estavam impressas e que tinham um muro pixado com Calabar, e publicaram capas brancas mantendo Chico canta. A capa era a mesma do livro, mas com álbum que abria e tinha fotos dentro. Uma capa toda incrementada, muito bonita. E foi isso: foi uma proibição branca.

Como eram feitas as proibições da censura?

Havia proibição de músicas integralmente, e havia proibição de palavras dentro do texto. Ou você era obrigado a mudar essas palavras ou simplesmente não podia pronunciá-las. Você podia optar. Em algumas músicas eu desisti. Outras eu troquei palavras. Não só em Calabar como em outras músicas desse período. Por exemplo, em Partido alto, onde estava brasileiro, eu botei batuqueiro, onde estava titica eu botei coisica. Ou, então você cortava simplesmente a palavra. Ou como no disco ao vivo com Caetano na Bahia, o recurso foi aumentar os aplausos na hora das palavras proibidas. Atrás da porta tinha: "me agarrei nos seus cabelos, nos teus pêlos". Pêlos foram proibidos. Já a Elis quando gravou eu mudei para no teu peito. Já, aí, eu não podia mudar porque eu tinha cantado. Por um descuido eu cantei a letra correta no dia do show. Então o quê que a gente fez no disco? Aumentou o volume dos aplausos. Na hora dos teus pêlos sobe um aplauso assim, ah!!!!

Como era o esquema de funcionamento da censura para liberar as músicas?

A censura prévia que valia pra teatro valia para letras de músicas também. Antes de gravar qualquer música tinha que mandar a letra pra censura federal. E espera até a volta dessa letra, com carimbo e assinatura do chefe de censura. O que, aliás, provocava problemas graves porque gerava uma burocracia muito grandes, atrasos... E às vezes não era nem implicância. As letras se perdiam no meio do caminho. Os produtores ficavam desesperados. Era um atraso de vida danado.

É evidente que, uma vez proibido, ficava marcado. Eu e outros autores que tinhamos uma ou outra música proibida, ficávamos numa espécie de index da censura. Então a música que chegava com o meu nome chamava a atenção. E eu comecei a sofrer uns cortes bastante arbitrários. Tinha uma música que eu fiz pro Mário Reis e que não era nada, era brincadeira, e eles proibiram alegando que era uma ofensa à mulher brasileira. Chamava-se Bolsa de amores. Era uma brincadeira que eu fiz com o Mário Reis porque ele gostava muito jogar na bolsa, tinha mania dessas coisas... Era a época em que só se falava em bolsa...

Tem dupla leitura. Caberia no Naji Nahas hoje, pela letra que eu li...

Poderia até caber no Naji Nahas hoje, mas eu não estava prevendo isso não.

É que naquela época tudo tinha outro sentido...

As pessoas atribuíam às vezes outros sentidos que eu mesmo não tinha atribuído. Era uma brincadeira pro Mários Reis, sem nenhuma implicação política, mesmo porque o Mário era uma pessoa absolutamente distanciada da política. Ele ficou tão revoltado com esse caso... Ele morava no Copacabana Palace, e vivia com os grã-finos. Ele ia pra esses lugares, ele cantava a música nos cabeleireiros, pra madames...

Enfim, aí eu senti que a barra estava pesada e aí falei: vamos experimentar com outro nome que pode ser que melhore. E realmente melhorou. As três primeiras músicas que eu mandei, onde eu assinava como Julinho da Adelaide, passaram. Se fossem com o meu nome, provavelmente, não passariam. Foi um artifício que funcionou durante pouco tempo. Depois ficou meio marcado, porque só se gravava esse tal de Julinho da Adelaide, e começou a correr a suspeita de que o Julinho da Adelaide seria um pseudônimo, até que o Jornal do Brasil publicou uma matéria falando sobre a censura e divulgou a verdade: que o Julinho da Adelaide era realmente um pseudônimo.

O quê você mais gosta da obra do Caetano?

Eu gosto de tudo que o Caetano faz. Não tem o que eu gosto mais. Inclusive, porque ele continua fazendo e me surpreendo. Tenho uma relação pessoal com ele muito boa. Sempre tive.

O que que você acha que tem de mais diferente dele?

Eu sou inteiramente diferente dele. Por isso mesmo que a gente se entende bem. Essa história desse Fla-Flu que se criou... Eu até comentei com ele esses dias... é uma coisa artificial. Vai ser difícil me jogar contra ele. Apesar dos esforços que são feitos nesse sentido continuamente. Mas eu acho bobagem esperar que eu faça as músicas do Caetano ou que o Caetano faça as minhas músicas. Acho bom que ele faça as dele e que eu faça as minhas, que têm até uma origem comum, como eu disse no começo. A nossa formação é comum: a bossa-nova. Mas a cabeça dele é.... da minha. Eu me entendo com ele e acho que a minha música se entende com a dele também.

O que você acha que mais aproxima vocês, além da relação pessoal?

Eu não diria que é a música não. Diria o tempo. A gente tem uma história comum. Nós começamos juntos. E na relação pessoal é difícil você separar isso. Nós temos muita história vivida juntos. Essa geração toda, com Caetano, com Gil, com Milton, com Edu. Tem tanta coisa em comum que quando a gente se encontra não tem muito o que falar não.

Em 1979, num ensaio intitulado O minuto e o milênio, registrado no recém lançado songbook de Chico pela Companhia das letras, o crítico e músico José Miguel Wisnick dizia: "As correspondências, afinidades e diferenças entre Chico e Caetano precisam ser acompanhadas de perto. Não é a toa que, freqüentemente, um é jogado contra o outro. Sabe-se que são, realmente, duas forças. No entanto, temos a mania maldita de só enfrentar a complexidade da cultura brasileira na base da exclusão: de Emilinha ou Marlene, a Mário de Andrade ou Oswald de Andrade, e daí, a Chico Buarque ou Caetano Veloso."

Autocrítica

Para começar este quinto programa da semana Chico Buarque, pedimos ao Chico para falar sobre seu início de carreira.

Esses primeiros discos que eu gravava,(vou confessar uma coisa) eu gravava entre um show e outro. Eu fazia muito show. Durante onze anos não fiz outra coisa senão cantar e às vezes em condições precárias pelo Brasil a fora. Hoje em dia você tem todo um aparato que te permite mil comodidades. Naquele tempo era difícil. Às vezes eu chegava num lugar, sozinho, com o violão e um microfone só, e auto-falantes daqueles do tempo do onça. Hoje em dia é mais fácil. Eu fazia show pelo Brasil inteiro e entrava no estúdio os arranjos já estavam feitos, já estavam gravados, eu chegava lá, botava minha voz em cima. Hoje quando vou gravar um disco me dedico só a gravar o disco. Então eu estou lá trabalhando junto com arranjador, fazendo o que eu quero. Hoje eu assino inteiramente. Naquele tempo não. E ia conhecer a capa dum disco (aliás, umas capas horrorosas) quando já estavam impressas, prontas. Não posso nem culpar tanto a gravadora, porque era um pouco displicência minha também. Porque eu estava viajando, porque eu estava fazendo show pra cima e pra baixo e não era muito cuidadoso com relação aos discos. Esse ano andei trabalhando em cima desse songbook, o que me dá uma perspectiva do que foi meu trabalho esse tempo todo. Eu comecei a perceber coisas que na época eu não percebi. Eu estava fazendo as coisas sem perceber o que estava fazendo. Eu tenho a impressão que eu gravava esses discos sem a menor idéia que vinte anos depois eu iria ter que falar sobre eles. Eram produtos inteiramente descartáveis.

Chico aceita nossa proposta e analisa sua carreira através de seus próprios discos.

Eu tenho três discos que são praticamente iguais. São discos que reúnem as músicas que eu fiz ainda quase não profissionalmente. Eu era um estudante de arquitetura que fazia música e tomava cachaça. No meu terceiro disco tem músicas que eu já tinha composto na época do meu primeiro disco. Um disco é continuação do outro. São de uma fase (hoje eu falo de carreira), mas na época eu não tinha a menor idéia de que estava criando pra mim uma profissão, uma carreira. Era uma brincadeira. Uma extensão da minha vida de estudante.

Chico continua avaliando sua obra.

Já o quarto disco é um disco complicado, porque eu gravei na Itália, eu morava na Itália. É o disco mais irregular que eu tenho. Eu gravei esse disco, que chama-se Chico Buarque de Hollanda nº 4, quando eu morava na Itália. Eu mandei as fitas com as canções pro Brasil. Aqui no Brasil foram gravados os arranjos todos, as bases. O produtor, que se chamava Manuel Berimbau, voltou pra Itália com essas bases e eu coloquei a voz em cima. Eu não podia voltar pro Brasil, ou não devia voltar pro Brasil. Compus as músicas também a toque de caixa porque eu tinha que gravar, eu estava morando na Itália e vivendo com uma certa dificuldade. Esse disco é um disco de transição. É o disco da minha maturidade, não como compositor, mas como ser humano. Eu estava morando na Itália, com problemas pra voltar pro Brasil, com uma filha pequena... Virei um homem. Eu era moleque. Virei um homem e não sabia o que dizer. Então, as músicas estavam com um pé ali e outro aqui. Um pé no Brasil e outro na Itália. E eu sem saber exatamente o que ia fazer da minha vida: Ah! Bom...vou ser compositor? Vou viver disso... vou ter que encarar isso a sério... vou ter que encarar a vida a sério. Uma série de circunstâncias me levaram a isso. A estar morando fora do Brasil e estar casado e com uma filha, e a ter que pensar pra valer na vida. Eu tive dificuldade. São as músicas mais arrancadas a fórceps que eu tenho. Essa fitinha que eu falei que mandei pra cá, o Manuel Barenbein, que eu chamava de Manuel Berimbau, ficou lá, eu me lembro, durante uns quinze dias em Roma, sentado diante de mim a dois metros de distância, e eu terminando a música e dizendo: espera aí Manuel, estou terminando aqui essa música... Tem músicas que eu terminei nas coxas porque eu tinha que gravar esse disco. Tinha obrigação profissional de gravar esse disco senão... Eu tinha assinado contrato com a gravadora. Esse contrato profissional foi que me permitiu através de um adiantamento continuar vivendo na Itália, porque eu não tinha condições financeiras de me sustentar na Itália. Então eu tinha que cumprir esse contrato. Tinha que gravar as músicas pra pagar o dinheiro que eu tinha pedido emprestado. A história é essa. É um disco feito por necessidade. Os outros três discos anteriores são desnecessários (ri). Eu precisei passar por isso pra chegar ao disco seguinte, que é Construção, que já é um disco maduro como compositor. Aqui é um disco em que eu estou maduro como homem, como ser humano. Pera aí. Sou gente grande. Tenho uma filha pra criar. Acabou a brincadeira. Mas eu não sabia ainda como exprimir essa perplexidade.

Tua idéia seria os três primeiros discos, depois o Chico 4, gravado na Itália, e a partir de Contrução você entrou no teu padrão.

Eu não sei se daqui a vinte anos, quando eu olhar pra trás, eu não vou ter outra visão do que eu estou fazendo hoje, do que eu fiz há pouco tempo atrás. A gente não tem essa perspectiva. Eu fui obrigado a fazer essa revisão e entender o que se passava comigo há vinte e cinco anos, que foi quando eu comecei, há vintes anos, que foi quando eu gravei esse disco na Itália. Consegui entender isso agora.

Perguntei, a seguir, sobre um possível alívio de produção, a partir do disco branco, com ilustração de Elifas Andreatto. Como era um momento de conflito com a gravadora, ele discordou.

Parecia que aquele disco branco marcava já um Chico mais sereno...

Já vejo diferente. Vejo um disco bastante angustiado. Sem dúvida, isso que você está dizendo, agora, é outra história. Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde Construção até Meus caros amigos, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto... eu nem acho que eu faça música de protesto... mas existem músicas aqui que se referem imediatamente à realidade que eu estava vivendo, à realidade política do país. Até o disco da samambaia, que já é o disco que respira, o disco onde as músicas censuradas aparecem de novo. Não havia mais a luta contra a censura. Enfim, a luta contra a censura, pela liberdade de expressão, está muito presente nesses cinco discos dos anos 70. São discos com a cara dos anos 70. Construção, Quando o Carnaval Chegar, Caetano e Chico ao vivo, Calabar, que nem se chamou Calabar, ficou sendo só Chico Canta, Sinal fechado, onde eu canto só músicas de outros compositores, e Meus caros amigos. Disco por disco, você vai ver isso. Fica bastante claro que a partir de 78 minha música está respirando melhor.

Processo de criação.

Não existe um processo. Se houvesse me facilitava muito a vida. Às vezes eu tenho vontade de fazer, tenho a música encomendada, ou mesmo pra eu fazer um disco, e a coisa não aparece com tanta facilidade. A gente vai acabar chegando na história da encomenda. De repente, eu consigo trabalhar mais sob pressão. De onde vem eu não sei te dizer. Normalmente elas vêm em série. Uma puxa a outra. Há períodos em que não acontece nada. Posso passar 4, 5, 6 meses sem compor uma única canção. Tentando e não conseguindo. Já desistindo de tentar. Já pensando que não dá mais pé. Pensando que tem que partir pra outra. Quando eu comecei a gravar tinha na gaveta 40 músicas. Gravei meu primeiro disco, gravei o segundo e ainda gravei o terceiro com resto de músicas que estavam na gaveta. Há aquele entusiasmo juvenil, quando não se tem nenhuma autocrítica. Vai dizendo qualquer coisa. Mais adiante começam as dificuldades porque você não quer se repetir. Os caminhos começam a ficar mais estreitos. Você sabe exatamente o que não quer fazer. O que você quer fazer, às vezes, a gente perde de vista.

Quando eu aceito uma encomenda, assim como quando eu assino contrato pra gravar um disco, eu assino com a consciência de que estou blefando, que estou assinado um cheque sem fundo, porque eu não sei de onde é que eu vou tirar aquilo. Isso mais adiante vai me criar problemas. "Por que que fui aceitar tal encomenda? Por que que eu fui aceitar fazer esse disco? Por quê que eu fui aceitar escrever pra essa peça?" Mas tem funcionado. É claro que isso gera uma angústia muito grande. Uma insegurança. Você sofre.

Perguntamos ao Chico se essa paúra da encomenda, no fundo não é proposital. Se isso não torna a coisa mais quente.

Realmente se você me pedir uma música pro seu programa de rádio do ano que vem eu vou dizer: "OK. Pode deixar." Quando chegar uma semana antes eu vou lembrar: "Ih! Eu tenho que terminar essa música." Você perguntou pelo processo de criação, pra mim é um mistério. Eu não sei porque que existe isso. Eu não gostaria de ficar me criando essas angústias. Trabalhar em cima da hora não é nem saudável, porque quando você vai trabalhar vira a noite, se desgasta. Se eu pudesse ter uma disciplina de trabalho, uma organização de vida que me permitisse fazer as músicas uma por mês, direitinho, guardar ali no escaninho e amanhã apresentar, entregar sempre no prazo, seria formidável, acho. Mas não é assim. Não sei trabalhar assim.

E quando as composições não são sozinhas, são composições em parceria. Eu vi que na estante da sua casa você tem fitinhas com músicas. São músicas tuas ou de outros compositores?

Eu guardo músicas minhas que ficaram incompletas e que eu posso mais tarde retomar, como já fiz. Agora, mais do que tudo o que eu tenho lá é acervo imenso de outros compositores. Quando eu comecei a fazer letras pra outros autores... no começo eu não fazia. Depois comecei a fazer, pro Tom, uma coisa ou outra. Depois comecei a incrementar esse tipo de trabalho que é um trabalho bastante diferente do trabalho de música e letras. É outra coisa. Outro departamento. Talvez até por uma certa carência de letristas, porque a gente tem muito mais músicos do que letristas, e um pouco talvez pra suprir a falta de Vinicius. Eu herdei vários parceiros do Vinicius. O próprio Tom, Francis Hime, Edu, tinham o Vinicius como seu principal letrista... Toquinho... Então eu fiquei sendo o letrista dessa gente e de outros. Eu comecei a gostar. Eu gosto de fazer letras. Eu recebo muita encomenda. Não é tudo que eu consigo fazer. Também não é fazer porque gosta ou não gosta. Aí entra outro mistério. Você não consegue às vezes encaixar uma letra. É difícil. Tudo é difícil.

Chico fala agora sobre seu trabalho como letrista.

Você tem que entrar na cabeça do compositor. Tentar adivinhar. Se você fosse ele, o que você estaria dizendo com aquela música. Às vezes você adora uma música... eu tenho músicas lindíssimas do próprio Tom, do Piazzola, do Baden Powel, que eu não consegui fazer letra. Eu faço questão de respeitar cada nota do meu parceiro. Faço exatamente como ele quer. O fato de eu fazer música ajuda, evidentemente, porque eu fico conhecendo melhor o som das palavras, a musicalidade das palavras. Se não soubesse música eu não saberia fazer letras pra música. Mas eu respeito cada nota musical que o parceiro me manda.

O tema agora são os parceiros do Chico. Adivinhe quem é o primeiro.

O Tom é o que mais interfere. O Tom, às vezes, entrega a música, já com uma idéia do que ele quer como letra. Então, às vezes, isso cria dificuldades. Agora mesmo tem uma, que se chama Bate-boca. Ele já me entregou a música com a letra quase toda pronta. Eu falo: "Tom, essa letra você mesmo vai terminar." Mas ele quer que eu mexa ali, pra ele remexer, por sua vez. O Tom é um caso muito especial porque ele é, além de tudo, um grande letrista. Eu digo pra ele: "Tom, você é o seu melhor letrista." E ainda tem mais um agravante: eu não consegui me libertar do culto ao Tom, que é muito forte desde Chega de saudades. Eu tenho intimidade com o Tom de sentar com ele lá na Plataforma, onde ele está almoçando sempre, e conversar com ele como um amigo. Mas quando chega a coisa profissional eu fico um pouco intimidado, além de ele não me ajudar (risos), ele me intimida. Ele não me ajuda por isso, porque eu fico intimidado. "Poxa!! Fazer uma música pra Tom!!"

Chico fala agora sobre Francis Hime.

Acho que o Francis nunca escreveu uma letra. Aí é o contrário do Tom. Ele não me dá nem sugestão. Nem título nem nada. Deixa comigo e está lá... em aberto.

Chico continua falando sobre seus parceiros musicais (Milton).

Cada música tem uma história. Cada parceiro tem uma história. Quando faço eu música pro Milton, eu quero fazer com a cara do Milton. As músicas que eu fiz pro Miltom, foram pro Milton cantar. Procurei fazer uma letra que eu achasse com cara de Milton Nascimento cantar.

SIVUCA

Cada música tem uma história. Eu tenho uma parceria com o Sivuca que é engraçada. Ele fez a música, que ficou se chamando João e Maria. Ele mandou uma fita com uma música que ele compôs em 1944, por aí. Eu falei: "Mas isso foi quando eu nasci." A música tinha a minha idade. Quando eu fui fazer, a letra me remeteu obrigatoriamente pra um tema infantil. A letra saiu com cara de música infantil porque, simplesmente, na fitinha, ele dizia: "Fiz essa música em 47." Aí pensei: "Mas eu criança...". e me levou pra aquilo. Cada parceria é uma história. Cada parceiro é uma história.

Trabalho de dança e de teatro com Edu Lobo.

O Edu é diferente porque quase todas as músicas que eu fiz com ele, senão todas, foram compostas pra projetos. Pra peças de teatros e dois balés, O grande circo místico e Dança da meia-lua, do Teatro Guaíra. Então, tanto ele quando faz a música e me manda, como eu quando faço a letra, nós temos um objetivo: fazer a música pra um determinado tema, personagem. Não é em aberto como é com Francis. O que apareceu desses trabalhos, em disco, é a parte das canções. E tem todo um trabalho dele que não foi gravado porque há pouco interesse por música instrumental no Brasil hoje, mas é um trabalho muito bonito. O desenvolvimento dessas canções instrumentais é uma coisa preciosa. Ele tinha idéia de lançar em disco, mas estava difícil. Não há muito interesse por música instrumental.

Trilhas para filmes.

No caso do Cacá, Joana Francesa, ele me mostrou o roteiro. Eu li e gostei muito. E eu tinha que compor a música antes dele filmar porque a Jeanne Moreau ia cantar a canção-tema no filme. E em Quando o carnaval chegar foi a mesma coisa. Mas, normalmente, essas músicas entram quando o filme já está pronto. Eu vou compor em cima das imagens que eu assisto em banda dupla ou na moviola. É o caso do próprio Cacá, em Bye, bye, Brasil; do Bruno bsarreto, em Dona Flor e seus dois maridos, Miguelzinho Farias em República dos assassinos. Normalmente eu faço em cima das imagens.

Como é que é a tua vida hoje? Você continua tendo tempo pra ouvir?

Tenho. Agora eu estou saindo do estúdio. Praticamente saí há um mês. Fiquei durante quatro meses sem ouvir nada. Mesmo porque você tem medo até da interferência de fora. Então não vai ao cinema, não ouve música, não vai ao teatro, não faz nada disso. Agora eu vou entrar num período de alimentação. Aí vou ouvir coisa que eu deixei de ouvir ou ouvi com menos cuidado na época do lançamento. Vou ouvir isso tudo. Faço questão de ouvir. Faço questão de me informar.

Hoje, seu tempo de lazer ou profissional é um tempo mais de leitura?

Depende da época. Em período de eleição eu leio os jornais de cabo a rabo. Leio tudo. Leio todos os jornais. Vou à banca comprar jornais de outras cidades, de outros Estados. Tem épocas que eu leio desbragadamente, um livro atrás do outro. Depois fico um tempo sem ler. Mas geralmente no período em que não estou criando.

Perguntamos a seguir ao Chico se a celebridade o incomoda.

Não. Não me incomoda. Eu não assumo ares de celebridade nem ando por aí vestido de celebridade. Ando por aí normalmente pela rua. Ando um pouco depressa pra não ter que ser interrompido. Mas convivo naturalmente com isso.

Mas quando você viaja pra fora você se sente mais livre?

Eu confesso que às vezes eu gosto de dar um pulinho... Vou a Paris. Gosto muito de andar pela ruas e não ser reconhecido, ninguém perguntar nada. Às vezes preciso desse descanso. Também de ser tratado normalmente, como um ser humano comum. Aqui sempre tem aquela coisa....te fazem muita festa. Faz falta você dar um pulo aí fora e às vezes ser maltratado por aquele motorista de táxi ou aquele cara do café que joga aquela xícara de qualquer jeito....Você sente o maior prazer. "Opa!!! Sou anônimo."

Chico segue falando sobre sua rotina de vida.

Eu gosto muito de andar. Eu sou um andarilho contumaz. No Rio, apesar da ladeiras, eu ando bastante. Mas me param muito na rua e oferecem carona, pensando que eu estou com o carro quebrado. Ninguém anda nessa cidade! "Olha o Chico!!! O que está fazendo aí?" "Eu tô andando." As pessoas ficam com pena de mim subindo a ladeira e tal... Eu ando, se puder, duas, três horas seguidas. Adoro cidades. Adoro entrar num buraco e me perder num bairro. Isso aqui fica um pouco difícil.

Lá fora você faz mais isso?

Faço sem parar. Só gasto sapato. Aqui eu faço também. Eu procuro não me incomodar. Como eu disse, não saio por aí com ares de celebridade.

A seguir, Chico fala sobre morar no exterior.

Com a Itália, mais especificamente com Roma, eu tenho mais intimidade. Eu morei lá dois anos quando era criança e morei um ano e meio agora adulto. É uma cidade que eu domino perfeitamente. Conheço meus cantos. Minhas querências. Gosto de Paris também. Mas pra morar fora, nunca!

Aí perguntamos ao Chico qual é o país dos seus sonhos.

Eu sonho um Brasil onde todo mundo tenha satisfeitas as suas necessidades básicas. Isso me incomoda profundamente. A miséria nas ruas me incomoda profundamente. A falta de oportunidade de trabalhar, de estudar, de ter acesso à saúde. É um país incompleto enquanto não resolver isso. Enquanto não resolver a questão básica. Isso me incomoda porque é um absurdo um país como o Brasil estar no estágio que está. Também acho, e isso não é novidade, que a solução para o Brasil tem que ser uma solução brasileira. A gente não vai importar modelo nenhum. Quando eu falava de Cuba, e continuo falando, é um país tropical que resolveu seus problemas básicos. Então, a partir daí tem muita coisa pra ser discutida. Mas em primeiro lugar, todo mundo tem que er acesso à educação, à saúde, à moradia, transporte, enfim, viver dignamente. Eu estou falando de Cuba porque é um exemplo latino-americano. A Europa tem outra história. E a história do Brasil é a nossa história. A gente vai ter que resolver isso à nossa maneira. Não estou querendo importar nem o modelo social-democrata da Europa, nem o modelo socialista cubano. Eu não sou político, não sou candidato a nada, mas sonho com isso.

Sobre o futuro que queremos. Ele descarta a existência de modelos ideais.

O que me assusta é que o Brasil não tem nada em termos satisfação de necessidades básicas... não chega aos pés nem da Europa Ocidental, nem da Oriental. Quando ficam falando da ditadura, da falta de liberdade lá fora, eles colocam isso como empecilho pra luta pela justiça social no Brasil, isso é que me deixa um pouco irritado. Vamos resolver os problemas básicos daqui! Assustar com essa história do comunismo não cola mais. Muito menos agora. Vai-se caminhar pro socialismo, se for o caso, tendo em vista o socialismo democrático, que pra mim é o sistema ideal. Durante a época da ditadura se falava sempre no comunismo como sendo um monstro que come criancinhas, e se falava isso como justificativa para não se lutar por nada. A greve era sempre considerada subversiva e tentavam assustar as pessoas com o fantasma do comunismo. Não é por aí! A gente não podia deixar de lutar porque o comunismo devora criancinhas.

Iniciamos agora a última hora da semana Chico Buarque. Continuamos conversando sobre a vida.

Você já falou que gostaria que as condições básicas de vida fossem preenchidas para a maioria da população. Mas o que você acredita que vá acontecer nesse tempo?

Isso virá mais cedo ou mais tarde. Por bem ou por mal. Porque não é possível que continue assim. Não sou eu que estou achando. Isso salta aos olhos. A desigualdade social, a violência que isso gera. A gente vive nas cidades com uma série de muros de Berlim. Eu mesmo, vivo num condomínio, onde quem está fora não entra e quem está dentro não sai.

É a história da gafieira.

É a história da gafieira. Está se criando isso no Rio de Janeiro, São Paulo... são uns núcleos de riqueza cercados de miséria. Isso vai ter que ser resolvido, mais cedo ou mais tarde. Tomara que mais cedo e tomara que por bem!

 Vamos entrar agora num terreno de dificílimo acesso: o ato de criar.

Humberto Werneck: Um dia eu cheguei na casa dele e ele falou: "Olha tem uma coisa aqui que você vai gostar." E me mostrou uma fita. E nessa fita que ele me mostrou ele está tentando arrumar, dar uma forma final a um refrão do samba Dr. Getúlio, que ele tinha feito com o Edu Lobo pra peça de mesmo nome, do Ferreira Gullar e do Dias Gomes. Então você vai ouvindo aquele refrão. Ele cantando e tocando violão, e de repente você percebe. Daquela música nasce uma outra. Feita um galho. Mas é um galho de uma outra árvore. Com uma emoção extraordinária, eu percebi que era o Vai passar. Que estava começando a nascer aquela coisa muito informe, aquela coisa meio fetal ainda, mas já se percebia a música ali. Foi uma experiência absolutamente emocionante pra mim. Você percebia que ele ia tocando aquele pedacinho de música, caía outra vez no refrão do Dr. Getúlio, voltava pro Vai passar, ainda sem letra, sem nada. Eu percebia ele se acercando da música como se a música estivesse pronta fora dele e ele estivesse tentando pegar aquilo com a mão.

Essa história não terminou aí. O Chico explica a nova idéia.

Eu tinha até o registro de eu fazendo essa música. Eu estava terminando uma música com o Edu e comecei a ter idéia desse samba. Comecei a ter a idéia musical e algumas pinceladas do que eu queria como letra. Foi na época daquela euforia das diretas. Eu imaginei que podia se fazer um samba composto a vinte mãos. Juntei lá em casa um dia uma porção de amigos e mostrei o samba como estava sendo feito. A música não estava pronta. Tinha um problema, que eu não conseguia chegar ao tom original. A música ia modulando e eu não conseguia voltar. E foi o Francis que, no fim, virou meu parceiro, concertou a melodia. Aí começamos a cantar. É claro que foi uma bebedeira e não saiu letra nenhuma. Eu acabei chegando à conclusão de que a música só pode ser feita no máximo por duas pessoas. A não ser esses sambas de carnaval. Cada um começou a dar um palpite mas não saiu nada. Era uma idéia bonita. Fiquei depois um ano com ela parada e falei: "Um dia vou fazer ainda." Aí desisti e acabei retomando um ano depois e terminei sozinho a letra.

Só agora Chico tem editado o seu songbook. O nome é Letra e música, editado pela Companhia das Letras, em dois volumes, com histórias, letras e partituras. O texto do primeiro volume é de Humberto Werneck, e é ele quem faz um balanço do trabalho.

Humberto Werneck: Uma coisa que me agrada muito de ter feito esse trabalho é ter podido devolver ao Chico uma série de memórias dele mesmo. Ouvindo mais de 50 pessoas, como a mãe, irmãs, colegas de ofício como Caetano, Gil, Milton Nascimento, Tom Jobim, a colegas de faculdade, de colégio, pessoas que testemunharam episódios diferentes da trajetória dele, eu recolhi muita coisa de que o Chico não se lembrava mais. Vou dar um exemplo: ele, numa certa altura, na época da jovem guarda, se divertia muito fazendo uns rocks. Pra tirar um sarro em cima da jovem guarda, pra rir um pouco daquilo, bem dentro do espírito moleque dele. Eu consegui reconstituir, com o Toquinho, algumas passagens dessas letras. À medida em que eu ia fazendo os capítulos eu ia mandando pro Chico. Não pra que ele avalisasse, ou desse o nihil obstat. Mas pra que ele ajudasse a filtrar algumas incorreções. A minha esperança era que ele viesse a acrescentar, como fez, algumas coisas. Eu percebi que ele se divertiu muito.

E a vida também, com o passar do tempo, a vida vai mudando. Suas filhas estão crescendo. Uma filha já casou. Pode ser que mais dia menos dia você seja avô. Com a possibilidade de ser avô, você prevê de novo uma possibilidade de um disco infantil?

É engraçada essa história de disco infantil. Na época eu tive uma dificuldade muito grande pra lançar esse disco (Saltimbancos) porque não havia o menor interesse por parte das gravadoras em lançar um disco infantil. Eu batalhei esse disco e praticamente fiz sozinho. Eu só fiz esse disco porque eu tinha um contrato com a gravadora que permitia tomar algumas liberdades. Eles não tinham interesse em lançar esse disco. Hoje em dia acho que há um excesso de música infantil. Descobriram a criança como mercado comprador de disco. Isso me incomoda um pouquinho. Então, eu não tenho muita vontade de gravar um disco infantil. Agora, se você me ameaça com essa perspectiva de ser avô, talvez o avô, daqui a uns tempos, ceda sentimentalmente ao apelo e componha pra criança de novo.

Quais são teus planos?

Autobiografia, com certeza, não. Dirigir um filme, também não. O que eu sinto no momento é uma total ausência de planos. Terminei esse disco. Depois veio a questão da eleição e eu tirei um tempo. Não tenho a menor idéia do que eu vou fazer. Não tenho essa rotina. Até gostaria de ter, já falei, talvez fosse mais saudável. Mas não. Eu estou com aquela folha de papel branco na frente agora pra fazer qualquer coisa, que não vai ser uma autobiografia, mas pode ser um disco novo, pode ser uma peça de teatro, um livro, qualquer coisa. Não estou com plano nenhum pela frente.




Chico Buarque

Chico

Em 58 anos de carreira, compôs centenas de canções, aqui apresentadas por título, data, compostas em parcerias, versões e adaptações, compostas para teatro, cinema e aquelas que só aparecem em discos de outros intérpretes. Suas músicas foram gravadas em cerca de 40 álbuns, organizados por data, projetos, discos solo, gravações ao vivo, coletâneas e discos de outros intérpretes dedicados a ele. A obra completa do artista é uma das maiores riquezas que a cultura brasileira produziu até hoje.

CHICO BUARQUE

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