SANATÓRIO
GERAL
"...Ai, que vida boa, olerê , Ai, que vida boa, olará , o estandarte do sanatório..."
"...Ai, que vida boa, olerê , Ai, que vida boa, olará , o estandarte do sanatório..."
Quando Chico era nosso homem na Itália toda semana a gente publicava matéria dele. Era um correspondente aplicado. Me lembro de umas fotos que mandou, posando ao lado de nosso ancestral, o temível Pasquino.
Agora... Liguei para ele pedindo para escrever alguma coisa para o primeiro número do Pasquim paulista. "Minha agenda estourou. Tô enlouquecido, ensaiando o show com Bethânia para o dia 2 em Paris." "Pô, Chico, tremenda sacanagem nos deixar na mão!" "Fazer matéria nem pensar, mas se vocês quiserem um palíndromo..." Palíndromo, como talvez só o Houaiss saiba, é uma frase que significa literalmente o mesmo, seja lida de cá pra lá, como de lá pra cá, da direita para a esquerda. "Levei 5 horas fazendo", disse Chico. "Insônia." Era pegar ou largar. Peguei. E, outra vez por acaso, eis o Pasquim inovando ao publicar o primeiro palíndromo ilustrado. Por outro Chico. (Jaguar)
Pasquim São Paulo Ano XVIII número
13 a 10 de julho de 1986
"Até reagan sibarita tira bisnaga ereta"
Chico Buarque volta ao samba e rememora 30 anos de carreira
Chico Buarque volta ao samba e rememora 30 anos de carreira. Ele fala de música e literatura, diz que tentou conhecer o irmão alemão e afirma que está "mais leve"
Chico Buarque de Hollanda está de volta, em CD, videoclip e show. Depois de cinco anos sem gravar - o que não quer dizer sem produzir - e de ter se aventurado pelas águas da literatura, com "Estorvo", um romance de qualidade surpreendente, Chico retorna ao samba com o disco "Paratodos". A volta tem um sabor de reencontro do músico com o seu público e assinala um momento de maturidade de um artista que sempre soube conciliar tradição e inovação, erudição e cultura popular, trabalho cerebral e intuição. Nesta entrevista, realizada em duas etapas, na casa do compositor, no Rio, ele fala sobre sua formação literária, sobre suas ligações com a música e sobre sua família. Filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, autor do clássico "Raízes do Brasil", Chico comenta a relação com o pai e revela a existência de um irmão alemão, por ele desconhecido. Dizendo-se um "homem cordial" (conceito cunhado por seu pai), Chico também fala sobre seus amigos, seus parceiros e, apesar da timidez, não evitou temas delicados, como vícios e manias. Quase um cinquentão, Chico comemora 30 anos de carreira em plena forma e diz que hoje se sente mais leve do que na época das cobranças políticas.
Durante seu exílio na Itália, entre 1969 e 1970,
Chico criou um jogo inspirado no futebol e batizou
a brincadeira de Ludopédio.
Mais tarde, o jogo foi lançado pela Grow, no mercado
brasileiro, com o nome de Escrete.
Chico assinou a apresentação do seu brinquedo:
"Este jogo foi criado na Itália, numa época em que seu autor, evidentemente, não tinha mais o que fazer. O jogo passou impune pela alfândega e ficaria restrito a um pequeno grupo, se o pessoal da Grow não se atrevesse a publicá-lo com o nome de Escrete.
Os mais familiarizados com o jogo acrescentaram novidades como, por exemplo, a loteria esportiva, a lei do acesso, o campeonato nacional, o cartão amarelo, vermelho, verde e outras mumunhas mais.
Inventaram também a premiação "estrelas" extras aos artilheiros, goleiros invictos e demais jogadores que se destacaram nas partidas do campeonato, assim como a anulação das "estrelas" aos craques indisciplinados, aos de perna quebrada ou pernas de pau.
Prefiro, porém, deixar Escrete à vontade e à imaginação do freguês. Cada qual que o curta como bem entender. Ou não. Aliás, as regras estão aí mesmo para serem desrespeitadas."
Chico Buarque de Hollanda
Veja abaixo um dos times que podem ser escalados para jogar
Ludopédio e a descrição, de Chico, para cada jogador
Julinho da Adelaide nasceu quando Chico Buarque passou a ser muito conhecido entre os censores do regime militar, na década de 70. Suas músicas eram proibidas somente porque levavam sua assinatura. A saída para burlar a censura foi a criação de um heterônimo. E deu certo. Acorda amor, Jorge maravilha e Milagre brasileiro passaram pela censura sem maiores problemas. Julinho chegou até a dar uma entrevista para o jornal Última Hora sobre sua carreira em ascensão. O jornalista e escritor Mário Prata, que o entrevistou em 1974, relembra esse episódio no artigo abaixo. A entrevista publicada contém apenas parte do que você pode ler na transcrição integral da fita que a originou.
Leonel Paiva - Julinho da Adelaide/1974
Notas Partituras
Acorda, amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão
Acorda, amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
São os homens
E eu aqui parado de pijama
Eu não gosto de passar vexame
Chame, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão
Se eu demorar uns meses convém, às vezes, você sofrer
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo e pode me esquecer
Acorda, amor
Que o bicho é brabo e não sossega
Se você corre o bicho pega
Se fica não sei não
Atenção
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa, não reclame
Clame, chame lá, clame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão
(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão)
1974 © Marola Edições Musicais
Todos os direitos reservados. Copyright Internacional Assegurado. Impresso no Brasil
Julinho da Adelaide/1974
Notas
Há nada como um tempo
Após um contratempo
Pro meu coração
E não vale a pena ficar
Apenas ficar chorando, resmungando
Até quando, não, não, não
E como já dizia Jorge maravilha
Prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais voando
Você não gosta de mim
Mas sua filha gosta
Você não gosta de mim
Mas sua filha gosta
Ela gosta do tango, do dengo
Do Mengo, domingo e de cócega
Ela pega e me pisca, belisca
Petisca, me arrisca e me enrosca
Você não gosta de mim
Mas sua filha gosta
Há nada como um dia
Após o outro dia
Pro meu coração
E não vale a pena ficar
Apenas ficar chorando, resmungando
Até quando, não, não, não
E como já dizia Jorge maravilha
Prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais sobrevoando
Você não gosta de mim
Mas sua filha gosta
1974 © Marola Edições Musicais
Todos os direitos reservados. Copyright Internacional Assegurado. Impresso no Brasil
Julinho da Adelaide/1975
Notas
Cadê o meu?
Cadê o meu, ó meu?
Dizem que você se defendeu
É o milagre brasileiro
Quanto mais trabalho
Menos vejo dinheiro
É o verdadeiro boom
Tu tá no bem bom
Mas eu vivo sem nenhum
Cadê o meu?
Cadê o meu, ó meu?
Eu não falo por despeito
Mas, também, se eu fosse eu
Quebrava o teu
Cobrava o meu
Direito
1975 © Marola Edições Musicais
Todos os direitos reservados. Copyright Internacional Assegurado. Impresso no Brasil
Nos bares do Rio de Janeiro, nas praias badaladas, na favela da Rocinha e mesmo na casa de alguns milionários e ainda em algumas delegacias de polícia, Julio Cesar Botelho de Oliveira talvez não seja muito conhecido. Mas Julinho da Adelaide é figura das mais notórias, simpáticas e comentadas do momento. Não se admite mais uma festa ou rodada de samba sem a presença de Julinho da Adelaide.
Seu nome passou das crônicas policiais para as sociais quando cantores famosos começaram a se interessar pelo seu samba. Chico Buarque gravou Jorge Maravilha, o MPB-4, O milagre e Nara Leão deverá gravar uma música nova.
Como começou a ficar conhecido em São Paulo, esteve aqui no começo da semana para tentar mostrar o seu trabalho nas casas de samba. Não lhe deram muita chance. Três dias depois encontrei em cima da minha mesa um bilhete assinado por Julinho e que terminava assim: "e como a barra não está dando por aqui, eu e Leonel vamos amanhã para Portugal. Parece que a barra lá tá melhor pru meu samba". Junto ao bilhete a fotografia de sua mãe, nos áureos tempos do Orfeu Negro, no Teatro Municipal do Rio.
Julinho da Adelaide - Eu não estou acostumado com o clima de São Paulo. Devo dizer que esta é a segunda vez que venho. A primeira vez faz muito tempo, foi na época dos festivais. Inclusive, tenho um fato interessante para contar: eu estava na platéia quando o Sergio Ricardo jogou aquele violão. Acertou aqui, ó.
Mário Prata - Esta cicatriz é do violão?
JA - É. Inclusive eu pedi para não fotografar, por isso.
MP - Mas são duas cicatrizes.
Chico Buarque - É que pegou o cabo aqui e a caixa aqui deste outro lado. Eu tenho a pele quelóide, entende?
MP - Quer dizer que você é um sujeito marcado pela música popular brasileira?
JA - Sou. Foi aí que eu despertei para a música, inclusive. Eu não tinha ainda muita vocação musical. Quer dizer, eu já tinha feito a letra do Juca que o Chico Buarque de Hollanda gravou. Juca foi autuado em flagrante, como meliante, lembra? Foi um caso que aconteceu comigo. Mas foi no festival mesmo que eu despertei. Eu vim de ônibus.
MP - Nesta época, você ainda não estava nem pensando em construir casa na Gávea, não é?
JA - Não, isto é um pouco de confusão que estão fazendo. Quem está construindo é meu irmão, o Leonel. Meu irmão é procurador.
MP - E esta segunda vinda a São Paulo? Você está aqui profissionalmente? Eu soube que você está com três músicas novas.
JA - Três não, tenho muito mais que três, devo dizer isso. Não tenho culpa se as pessoas pedem sempre as mesmas. Em geral pedem Chama o Ladrão, Jorge Maravilha e O Milagre. Mas eu tenho muito mais músicas. Chama o Ladrão teve um problema com a Censura e O Milagre teve também. Eu queria, inclusive, aproveitar e dizer que eu não quero criar nenhum problema com a Censura, porque, através do Leonel, eu tenho um diálogo muito bom com eles, entende? O Leonel sendo meu procurador, me quebra todos os galhos em todos os sentidos.
MP - Qual a profissão do Leonel?
JA - Na carteira tá comerciário, mas ele não exerce a profissão não. Ele trabalha mais como meu procurador, tem boas relações e tal. Tem, inclusive, boas relações na polícia. Então, em relação à Censura, eu tenho esta posição: eu acho bobagem as pessoas falarem que a Censura prejudica, quando eu acho que o negócio de fazer samba, tem que se fazer muito samba. Eu faço muito samba, entende? Faço vários por dia, mesmo. O sujeito que trabalha lá, o trabalho dele é censurar música. Eu respeito muito o trabalho do cara. Quando termina o dia, perguntam: quantas músicas você censurou hoje? O meu trabalho é fazer música. Quantos sambas você fez hoje? Oito, nove. O dia que eu faço dez eu vou dormir em paz com a minha consciência. Cada um no seu ramo.
MP - Mas você realmente faz oito ou nove sambas por dia?
JA - Faço. E faço samba duplex, também.
MP - Antes de falar sobre samba duplex, por que você só foi descoberto agora? Porque só agora que estão cantando as suas músicas?
JA - Porque eu estou profissionalmente na jogada tem pouco tempo. O autor jovem é difícil, meu. Eu, por exemplo, andei em todas as fábricas e não consegui nada. É claro que minha voz não é muito boa pra cantar. Eu não sou cantor e hoje em dia todos os compositores são cantores. Eles que defendam a matéria-prima deles. Eu não posso fazer isto, então tenho que procurar as fábricas. Mas ficavam me empurrando de um cara pra outro. Um dia, na Phillips, eu acabei no Departamento Gráfico, lá no Rio. Fui de porta em porta. Cheguei até a falar com o Roberto Menescal, autor do Barquinho, conhece?
MP - E estas cicatrizes, atrapalham muito?
JA - Embora eu não seja cantor, um dia eu pretendo gravar um disco. Você vê, gente que não canta bem como o Chico Buarque, o Vinícius de Moraes, o Antonio Carlos Jobim, estão cantando. Quer dizer,a minha voz não é muito boa mas outro dia eu ouvi o disco do Nelson Cavaquinho e ele é mais rouco do que eu e gravou um disco. Eu posso ter que gravar um dia, entende? Aí a minha foto vai atrapalhar a vendagem do disco, não é? É claro que eu não vou pôr na capa a minha foto. Assim, uma destas menininhas bonitas da Rua Augusta pode comprar pensando que é um sujeito bonito e vende mais o disco, não é? Com a minha cara eu acho que vai vender menos. Então, é melhor não ter a cara do que ter a cara que eu tenho.
MP - Não vamos falar nisto.
JA - Eu fico muito nervoso quando eu falo nisto. Se quiser, tira a fotografia de costas. Ou então tira do meu irmão. O Leonel se ofereceu, inclusive, para aparecer na capa, se um dia eu fizer um disco.
MP - O Leonel está com você aqui em São Paulo?
JA - Não. Vem amanhã. Ele me mandou porque disse que leu nos jornais - ele lê muito jornal - que aqui em São Paulo tem muita casa de samba, que lá no Rio não tem. Lá só tinha uma, o Sucata, mas era um show já montado e que não podia entrar e cantar no meio. Aqui, me parece, as pessoas podem chegar e pedir a vez para cantar. Vou lá e já vou logo avisando antes para me desculparem por não ser um bom cantor. Tenho muita música para mostrar. Fiz uma chegando aqui, hoje.
MP - Você faz a música e a letra, junto?
JA - Faço tudo junto, claro. É claro que eu faço samba duplex. Quase todos os meus sambas são duplex.
"Minha mãe casou mais de uma vez, mas casou sempre"
MP - Samba duplex o que é?
JA - São sambas que você pode mudar. Este que eu fiz agora você pode mudar. É sobre o problema da meningite, porque o Leonel me avisou: vai para casa de samba, mas cuidado com a meningite. Me explicou o que era, porque eu não leio muito jornal. Aí eu fiz o samba pelo caminho que diz assim: "eu fui para São Paulo com a Judith e só saí de lá com a meningite". Eu sei que tem agora umas propagandas de vir pra São Paulo nos fins-de-semana e eu não quero prejudicar ninguém. Então, se der problema, eu mudo "eu fui para São Paulo com a meningite e só saí de lá com a Judith". Fica, inclusive, como se São Paulo tivesse curado a minha meningite. Faço também adaptações de sambas antigos. Eu tenho umas idéias para o Vinícius de Moraes, que eu admiro muito, aliás.
MP - Você conhece ele?
JA - Pessoalmente, não. Eu estou procurando um contato com ele porque eu fiz uma adaptação daquele samba dele, Formosa, conhece? Mudei pra China Nacionalista. Já estou com bastante tarimba neste negócio.
MP - Mas você diz que não lê jornal, como é este negócio de China Nacionalista?
JA - Eu leio só o que o Leonel manda. Ele já dá o serviço todo, entende? Se eu ficar o tempo todo lendo, eu acho que eu não vou poder me expressar bem. Eu sou um criador, entende?
MP - Quer dizer que o Leonel é uma figura importante na sua vida?
JA - Eu devo toda a minha carreira e minha vida a duas pessoas. A minha mãe Adelaide, a quem devo inclusive o meu nome - meu sobrenome é Oliveira, mas Oliveira todo mundo é. Então eu sou Da Adelaide. Aqui ela pode não ser muito conhecida, mas no Rio é, e muito. E devo ao Leonel que é quem me orienta agora a minha carreira.
MP - Fala um pouco da Adelaide.
JA - Adelaide foi a pessoa que me orientou a minha vida inteira.
MP - Existe um boato de que ela teria sido uma das mulheres do Vinícius.
JA - Eu não posso falar assim da minha mãe, não é? "Uma das mulheres do Vinícius", o que é isto? Em todo o caso, que ela conheceu o Vinícius, conheceu. A minha mãe é uma mulher muito honesta. Ela casou mais de uma vez, mas casou sempre, viu? Quando ela viajou para a Alemanha, ela casou com um luterano. O Leonel é luterano por causa disto. É loiro e é luterano. Ele agora alisou o cabelo e está dizendo que ele é parecido com este tal de Roberto Redford. Mas ele não é muito parecido, não. O nariz dele é igual ao da minha mãe, grossão. Ele é loiro sarará, sabe? Parecido, fisicamente, com o Ademir da Guia. Só que agora alisou o cabelo e tá achando que é artista de cinema.
MP - E a Adelaide?
JA - Mamãe esteve lá na Europa, com a Brasiliana. Ela é casada na Igreja Católica Apostólica Romana, na igreja Católica Brasileira, é casada na Igreja Luterana e tem mais uns três casamentos aí. Eu sou filho da Igreja Católica Brasileira.
MP - Do primeiro casamento?
JA - Terceiro.
MP - Se a sua mãe foi com a Brasiliana, ela é mulata mesmo?
JA - Mulata retinta, quase preta. Quase sangue puro.
MP - Mas e você com esta cor mais clara?
JA - Meu pai, que eu não cheguei a conhecer. Ele morreu pouco depois de eu nascer. O nome dele era F. Botelho. Este F. nem minha mãe sabe o que é.
MP - Ele fazia o quê?
JA - Meu pai? Meu pai trabalhava em jornal. Era copydesk, naquele tempo.
MP - Então você teve uma origem assim já um pouco cultural. Você recebeu uma certa formação.
JA - Eu sempre tive muitos livros, apesar de morar na favela. Mas eu não tenho nenhuma vergonha disto. Tem muita favela lá no Rio que é melhor que estas coisas que estão fazendo agora. Se bem que eu aluguei um cantinho pra escritório da firma que tenho com o Leonel. Eu vi até um anúncio agora, no intervalo daquela novela, o "Espigão", onde eles anunciam muito estes novos apartamentos de sala e quarto. Menor que o barraco onde me criei, entende?
MP - Quer dizer que já está pintando um dinheirinho?
JA - Diz o Leonel que sim. Eu ainda não pus a mão neste dinheiro porque o Leonel acha que não é legal pegar o dinheiro e fazer alguma coisa agora. É melhor empregar, entende? E ele empregou. Parece que o dinheiro já vai dar uns dividendos. É isso, né?
"O Chico Buarque está faturando em cima do meu nome"
MP - E aquela casa que você está fazendo lá na Barra? É com dinheiro da vendagem?
JA - Não sou eu que estou construindo. Quem comprou um terreno lá foi o Leonel e vai construir uma casa agora. Mas isto é problema dele. Ele tem os bicos por fora, além da participação nos meus lucros.
MP - Aqui em São Paulo ainda não, mas no Rio você é muito conhecido. No Degrau, no Antonio's, no Final do Leblon. Como é que se deu esta transposição da favela para as colunas sociais e de músicas? Quem é que te deu esta força?
JA - Isso eu devo ao Leonel. Ele é muito ligado ao pessoal do Rio. O Zózimo Barroso do Amaral é como se fosse irmão dele, do Jornal do Brasil. O Carlos Imperial, da revista Amiga. Ele vive me falando dos amigos dele de jornais. Tem muita gente aí que é amigo dele. Bloch, um negócio assim. Então, eles me promovem. O Leonel é um cara cem por cento. Você precisa conhecer ele.
MP - Mas mesmo assim você ainda é uma figura pouco conhecida no Brasil.
JA - Ainda sou, devo confessar isto. Confio em Deus que, com a ajuda Dele e do Leonel eu vou chegar lá.
MP - Você não seria uma criação da imprensa carioca? Como é que você vê isto?
JA - Por algum tempo eu fiquei meio magoado com isto.
MP - Seu pai foi um copydesk no Rio. Você não estaria sendo lançado pela imprensa carioca que tem penetração nacional?
JA - É claro que a imprensa carioca me ajuda muito, mas eu tenho o meu trabalho. Eu vim aqui para mostrar o meu trabalho, entende? Não é só badalação, não. Este negócio de só badalação em jornal não dá camisa a ninguém, já me dizia o Leonel. Tem que se fazer as coisas. Eu vou lançar o meu primeiro compacto duplo que vai ser gravado agora, finalmente. Eu tenho feito uma média de cinco a seis sambas por dia. Com este trabalho eu acho que vou levar um grande empurrão na minha carreira e daí por diante eu acho que todo mundo vai se interessar em gravar música do Julinho da Adelaide.
MP - Quem é que está cantando música sua, hoje, Julinho?
JA - O Chico Buarque cantou num show que ele fez no Rio. Foi muito bom porque deu dinheiro na SBAT, o Jorge Maravilha. Tem também o MPB-4 e a Nara Leão. Eu entreguei umas outras músicas aí, que eu não sei se estão cantando, pra uma porção de gente. Eu tenho vários estilos, sabe? Mandei música para o Tim Maia, para a Angela Maria. Não sei se estão cantando porque eu não tenho muito controle. O Leonel que sabe.
MP - Mas você tem realmente uma produção muito boa ou está se utilizando de nomes como Chico e MPB-4?
JA - Mas, ô cara, escuta. Você vai me desculpar, mas eu já disse que não sou cantor. Eu preciso dos cantores pra lançar meu nome, entende? O Chico Buarque eu não devo nada a ele e nem ele deve nada a mim. Ele tá faturando em cima do meu nome e eu estou faturando em cima do nome dele. Acho que isto é normal. Não acho que seja aético da minha parte, entende? Eu sou é pragmático.
MP - Aético?
JA - Parece que a origem desta palavra é luterana.
MP - Julinho, aqui em São Paulo, o pouco que se sabe de você são histórias mirabolantes. O próprio Chico falou no show dele, não sei se você sabe, que você é uma figura das crônicas policiais que passou para as crônicas sociais. O seu passado...
JA - Vou lhe explicar isto. Eu sou muito tímido, conforme você deve ter percebido, e o Leonel, com esta história dele ser procurador e sendo uma pessoa descontraída, muitas vezes ele faz coisas impensadas. E aí, quando vão perguntar o nome dele, ele diz: Julinho da Adelaide. Só porque tem procuração minha. Então, é justo que eu pague pelas coisas boas e ruins que ele faz. E olha que não acontece muita coisa ruim com ele porque ele tem relações muito boas na polícia.
"Adelaide era amiga íntima do Vinícius, do Jobim e do Oscar Niemeyer"
MP - E você já foi preso?
JA - Algumas vezes. Eu conto isto, inclusive, no samba Chama o ladrão.
MP - Na medida que você mesmo diz que é muito pragmático, este negócio de carregar o nome da mãe não é uma jogada oportunista da sua parte? Pra sensibilizar uma parte do público?
JA - Não, de maneira nenhuma. Eu me chamo Julinho da Adelaide porque todo mundo só me chama assim lá no morro. Acontece que a minha mãe é mais famosa do que eu lá no Rio. Ainda é. Minha mãe é célebre. Eu vou te contar o que ela já fez. Minha mãe estava no primeiro elenco do Orfeu Negro. Foi amiga íntima de Vinícius de Moraes, Antonio Carlos Jobim e Oscar Niemeyer, que fazia o cenário do Orfeu no Municipal. Do Haroldo Costa, também. Ela conheceu mais intimamente o Oscar. Tanto é que há cinco ou seis anos atrás a gente morava ali na Favela da Rocinha quando começaram a erguer o Hotel Nacional. Aquele redondo. Mamãe dizia pra mim: "Tá vendo, filho? Tá vendo, Julinho? Aquilo é homenagem do Oscar para mim." Inclusive agora botaram uma porção de homenagens na Barra. Ela lembra dele muito bem. É claro que ela está mais velha agora e não pode receber muita homenagem. Eu estou sabendo que não é homenagem do Oscar Niemeyer pra ela, mas não vou tirar esta ilusão dela, né? É bonito ela ficar pensando assim. Mamãe tem muita imaginação. Mas continuando, depois ela viajou com a Brasiliana, casou com o luterano, foi presa na fronteira do Tibet por causa de um monge, aprendeu a fazer cassulé e a feijoada branca. O feijão branco dela é conhecido lá no morro. Então todo mundo perguntava assim: qual Julinho? O Julinho da Adelaide.
MP - Mas a própria imprensa carioca está achando que você está usando o nome da sua mãe para se promover. Tanto é que o Leonel não se chama Leonel da Adelaide.
JA - Leonel Kuntis. Mas pode ser que daqui uns tempos a Adelaide passe a ser a Adelaide do Julinho. Não tenho nada contra isto.
MP - Como vai ela?
JA - Mamãe está muito bem. Fazendo aquele feijão cada vez melhor. Ela tem um quiosque. A casa dela, uma vez por semana, enche de gente.
MP - Ela é neta de escravos, não é?
JA - Neta de escravos. A mãe dela foi beneficiada pela Lei do Ventre Livre. A gente tem uma gratidão muito grande pelo José Bonifácio, o Moço.
MP - Como foi o seu primeiro contato com o Chico?
JA - EU trabalhava na Phillips. Na fábrica, lá no Alto da Boa Vista, na Phonogram, na prensagem de disco. Lá eles tinham um time que dia de sábado jogava contra os compositores, contra esta gente assim, e eu estava sempre nesta pelada e fui conhecendo o pessoal. Fiquei conhecendo o Silvio Cesar, fiquei conhecendo o Maestro Erlon Chaves, fiquei conhecendo o Paulo Sérgio Valle.
MP - Mas, como foi? Você chegou para o Chico e mostrou a música, deu uma fita, cantou para ele, como é que foi?
JA - Não, eu não falei direto com ele. Falei antes com um rapaz integrante do conjunto vocal MPB-4. Eu estava entrando na área e aquele mais baixinho, gordinho, chamado Rui, me deu uma pancada por trás e o juiz não deu pênalti. Na hora que eu estava caindo no chão ele foi legal. Me pediu desculpas. Eu aproveitei que ele tinha puxado conversa e falei: eu sou compositor. Ele não deu muita bola e ainda marcou o gol. Mas, como eu tenho amizade e o primeiro contato já estava feito, eu consegui prensar um acetato por camaradagem do pessoal da Phonogram. Este acetato tinha duas músicas, o Jorge Maravilha e Chama o Ladrão. Parece que eles gostaram, mostraram para o Chico e cada um gravou uma.
MP - O Chico tem cantado a sua música e tem dado a entender que a música é dele. Ele se refere a você como se você fosse uma figura mitológica.
JA - Não sei, rapaz. Este pessoal que tem o nome feito, pode fazer muita coisa e não adianta eu ficar aqui reclamando, entende? Como eu já disse, eu sou pragmático. Eu preciso dele e ele de mim. Então eu não vou me colocar contra ele como você está querendo. Talvez o dia que eu for mais conhecido eu faça a mesma coisa. As pessoas têm que tirar proveito do que lhe cai nas mãos, não é? O Leonel que me disse isso.
MP - Eu queria que você se definisse, já que usa tanto a expressão pragmática.
JA - Eu não sei. Pra falar a verdade, o Leonel que mandou eu dizer que eu sou pragmático. Quando perguntassem coisa mais complicada, pra dizer isto. Por exemplo: "O que você acha da Censura?" Sou pragmático. Ele falou ecumênico, também. Disse que quando me perguntassem o que eu acho de Cuba, para eu responder que sou pragmático e ecumênico. Senão eu me meteria em complicações. Mas eu não posso definir exatamente como eu sou. Eu sou pragmático, pô!
Última Hora - Mário Prata - 07 e 08/09/74
Leia também a transcrição da fita na íntegra
Última Hora- Não ia fotografar?
Julinho da Adelaide - O que?
UH - Você tá com duas cicatrizes?
(Referindo-se ao episódio em que Sérgio Ricardo, tendo sido vaiado durante a apresentação de sua canção Beto bom de bola, num dos festivais de MPB, atirou o violão contra a platéia.)
JA - Não, pegou assim, o cabo pegou assim aqui e a caixa desse outro lado.
UH - Quer dizer que você é um sujeito marcado pela música popular brasileira? (risos)
JA - Sou marcado pela música popular brasileira. Foi aí que eu despertei para a música, inclusive foi nesse momento que eu despertei para a música popular.
UH - Certo. Ô Julinho, é essa 2ª vez que você... Essa primeira vez que você veio para São Paulo, você estava passeando. Só.
JA - Tava. Eu, inclusive,não tinha vocação nenhuma musical, foi...
UH - Como foi?
JA - Aí que eu despertei realmente para a música popular.
UH - Como é que você veio? Veio de ônibus, trem, como foi?
JA - Vim de ônibus.
UH - Nessa época, você estava construindo casa na Gávea?
JA - Não, isso é um pouco de confusão que estão fazendo. Quem está construindo casa na Gávea é meu irmão Leonel.
UH - Leonel?
JA - É.
UH - Mas o...
JA - Meu irmão e procurador.
UH - Certo. Depois a gente fala do Leonel... Mas, Julinho é essa a 2ª vez que você está em São Paulo. Você está aqui profissionalmente? Eu soube que você está com 3 músicas novas aí, você tá pra...
JA - Três não, têm muito mais de três! Devo dizer isso. Agora, não tenho culpa se pessoas pedem sempre as mesmas. As pessoas pedem, em geral, o Chama o ladrão, o Jorge maravilha e O milagre, são as 3 que pedem mais. Agora têm muito mais músicas que isso. Olha, o Chama o ladrão teve um problema com a censura e O Milagre teve também. Inclusive, eu queria dizer que eu não quero criar nenhum conflito com a censura, entende? Porque eu tenho, através do Leonel, um diálogo muito bom com eles, entende?
UH - O Leonel faz o quê?
JA - Eu entendo que.. O Leonel é meu procurador, é ele que quebra todos os galhos, em todos os sentidos, entende?
UH - Mas ele tem... Qual a profissão dele?
JA - Na carteira, é comerciário, mas ele não exerce muito a profissão de comerciário. Ele trabalha mais mesmo como meu procurador e tem assim boas relações. Ele vive disso. Inclusive tem boas relações com a polícia. Então com relação à censura eu tenho essa posição. Eu acho bobagem a pessoa falar que a censura prejudica, quando eu acho que o negócio é fazer samba, tem que fazer muito samba mesmo, entende? Eu faço muito samba, quer dizer, faço vários por dia mesmo. Tanto que o sujeito que trabalha lá, o trabalho dele é censurar música, eu respeito muito o trabalho do cara, quer dizer, ele terminou o dia... quantas músicas você censurou hoje? Ele fala: 7. O cara que disser 17, por exemplo, vai ser promovido logo. Eu também, meu trabalho é fazer samba, quantos samba você fez hoje? Oito, nove? No dia que eu faço dez vou dormir em paz com a minha consciência, entende? Cada um no seu ramo.
UH - Mas você realmente faz oito, dez sambas por dia?
JA - Faço e faço samba duplex também.
UH - Espera aí, antes de falar sobre samba duplex, por que você só foi descoberto agora, por que só agora que estão cantando suas músicas?
JA - Porque eu, relativamente há pouco tempo que estou fazendo mesmo, profissionalmente. E estou divulgando, e tem um grande problema... O autor jovem tem um grande problema: eu andei em todas as empresas e não consegui nada.
UH - Sei...
JA - É claro que minha voz não é muito boa. Eu não sou cantor. Hoje em dia, quase todos os compositores são cantores, entende? Eles que defendem o material, a matéria-prima deles, eles que se lançam. Eu não posso fazer isso, tenho que procurar. Tenho que procurar as fábricas. Aí o sujeito me empurra pro outro. Um dia, eu fui parar na Phillips e acabei no departamento gráfico, (risos) eu fui de porta em porta..."Não, você fala com o fulano... Isso lá no Rio, na Phillips.
UH - Sei. Agora esse negócio...
JA - Cheguei até a falar com Roberto Menescal, autor do Barquinho.
UH - ...da cicatriz te grila muito também, não é?
JA - Embora eu não seja cantor, um dia, pretendo gravar um disco. Você vê, gente que canta bem como Chico Buarque, o Vinícius de Moraes, o Antonio Carlos Jobim, essa gente toda canta também, entende? A minha voz não é muito boa. Outro dia, eu vi o disco do Nelson Cavaquinho, ele é mais rouco do que eu. E grava um disco. Eu posso até gravar um disco um dia, entende? Aí a minha foto vai atrapalhar a vendagem do disco, não é? É claro que eu não vou botar na capa do disco a minha foto. Mas se já estiver a minha foto ligada a minha pessoa, amanhã, sei lá, menininhas dessas bonitas aí da Rua Augusta e tal que... podem comprar pensando que é um sujeito bonito e vende mais o disco, acho, não é? Pelo menos com a minha cara ligada a minha pessoa vende menos. Então, é melhor não ter cara do que ter a cara que eu tenho.
UH - Não vamos nem discutir isso...
JA - Eu fico meio nervoso quando falo nisso, eu fico meio nervoso, viu?
UH - Não. Aí é um problema pessoal, a gente não vai forçar. O Bosco pode inclusive...
JA - Quem?
UH - O Bosco, o fotógrafo, ele vai entender isso, não tem problema nenhum.
JA - Se quiser tirar, tira de costas ou então tira do meu irmão Leonel, é claro. O Leonel já se ofereceu, inclusive, para se eu fizer um disco ele aparecer na capa. (risos) O Leonel é um quebra galho.
UH - O Leonel está aqui com você, agora?
JA - Não, ele me mandou... porque disse que leu nos jornais, o Leonel lê muitos jornais.
UH - O que ele está fazendo aqui?
JA - Aqui em São Paulo, tem muita casa de samba, uma coisa que lá no Rio não tem. Lá tinha uma só. Era o Sucata. Mas um show já montado e não podia entrar e cantar no meio. E aqui parece que as pessoas podem chegar e... Eu não sei porque cheguei agora, eu quero até pedir um conselho, quais são as casas melhores. Vou lá e vou pedir minha vez pra cantar, já avisando antes e pedindo desculpas que não sou bom cantor, mas acho que tenho muita música, já fiz uma chegando aqui hoje.
UH - Você já fez música e a letra?
JA - Faço tudo junto. É claro que eu faço samba duplex. E quase todos são duplex.
UH - Samba, duplex, o que que é?
JA - São sambas que você pode mudar, entende? Por exemplo, esse que eu fiz agora pode mudar... é sobre o problema da meningite que o Leonel falou que tinha isso aí. Falou: "Olha, vai para lá e cuidado com a meningite". Ele me explicou o que significava, porque eu não leio muito jornal. Ele é que lê mais. Aí eu fiz o samba no meio do caminho que diz assim: "Eu fui para São Paulo com a Judite, só saí de lá com meningite." Agora, do jeito que é feito a música, dá pra cantar.... porque eu sei que tem umas propagandas de vir para São Paulo nos fins-de-semana e tal. Eu não quero prejudicar ninguém. Pode dar problema isso. Se der problema: "Eu fui para São Paulo com meningite e sai de lá com a Judite", Inclusive, fica como se São Paulo tivesse curado a meningite.
UH - A Judite é paulista?
JA - Não, o samba é duplex. Se eu tivesse chegado com a Judite, cheguei de algum lugar, da Bahia, pode ser que ela seja baiana. Se eu tivesse chegado com a baiana e saísse com a Judite, então a Judite é paulista. O samba é duplex. Inclusive eu faço adaptação de samba. Tenho umas idéias pra contar agora para o Vinícius de Morais, que admiro muito.
UH - Você vai gravar com ele?
JA - Não, eu não conheço ele pessoalmente. Estou procurando um contato com ele, porque eu fiz uma adaptação daquele samba dele: "Formosa" que fica assim "China nacionalista". Quer dizer, eu já estou com bastante tarimba nesse negócio.
UH - Julinho, você lê muitos jornais?
JA - Não, só que o Leonel manda ler... Agora, em geral, ele já dá o serviço todo em vez de mandar ler. Porque sou o criador, entende? Se eu ficar o tempo todo lendo, não vou poder me expressar bem.
UH - O Leonel é uma figura importante em sua vida?
JA - Acho que devo tudo na minha carreira... Bom, devo a criação. Devo minha vida à duas pessoas. À minha mãe, Adelaide, à qual devo inclusive o meu nome. Meu sobrenome é Oliveira, mas Oliveira todo mundo é. Então eu sou da Adelaide, que aqui pode não ser muito conhecida, mas no Rio é. E devo ao Leonel, que me orienta agora, na minha carreira.
UH - Fala um pouco da Adelaide.
JA -Adelaide foi a pessoa que me orientou a vida inteira, entende?
UH - Existe um boato, que li numa revista, que Adelaide teria sido uma das mulheres do Vinícius? Desculpe (risos).
JA - Não se pode falar assim da minha mãe (risos). Minha mãe é muito honesta. Ela casou mais de uma vez, mas casou sempre. Quando ela viajou para a Alemanha, casou com um luterano. O Leonel é luterano por causa disso, loiro e luterano. Inclusive agora ele alisou o cabelo e está dizendo que é parecido com esse Robert Redford (risos). Mas ele não é muito parecido, não, que o nariz dele é igual o da minha mãe. É grossão, assim.
UH - Mas é loiro?
JA - Loiro sarará. Aquele negócio, parecido assim com o Ademir da Guia. É bem parecido. Tipo físico do Ademir da Guia, só que agora ele alisou o cabelo e está achando que é artista de cinema. A minha mãe casou com esse alemão. Ela esteve na Europa com a Brasiliana. Ela era casada na igreja Católica Apostólica Romana, na igreja Católica Brasileira, na Luterana e tem mais 3 casamentos aí. Eu sou filho da Igreja Católica Brasileira.
UH - Você é filho do primeiro casamento?
JA - Não, do terceiro.
UH - Como a gente não sabe nada da sua mãe, então se ela foi com a Brasiliana, ela é mulata mesmo?
JA - Mulata retinta. Quase preta, quase sangue puro.
UH - Mas e essa sua cor mais clara?
JA - É que meu pai, eu não cheguei a conhecer, entende? Ele morreu pouco depois de eu nascer (risos).
UH - Ele fazia o quê?
JA - Meu pai? (pena, hesitação) Meu pai trabalhava em jornal (risos). Era copy-desk (risos). Naquele tempo...
UH - Então quer dizer que você já teve uma origem um pouco mais cultural, você teve uma certa informação?
JA - Sempre tive muitos livros, apesar de morar sempre em favela. Não tenho nenhuma vergonha disso, de ter sido criado em favela, porque tem muita favela lá que é melhor do que essas coisas que estão construindo agora no Rio, que são casas de tijolo e cimento armado, mas eu não trocava a favela onde eu me criei por esses empreendimentos que estão fazendo. Eu vi até um anúncio, no intervalo daquela novela "O Espigão", eles anunciam muito esses novos apartamentos, sala e quarto... Eu fui ver um porque o Leonel disse que tinha um dinheirinho para mim que talvez desse. Fui ver, um quartinho menor que o barraco onde eu me criei...
UH - Então já está pintando um dinheirinho?
JA - Diz o Leonel que sim. Eu ainda não pus a mão nesse dinheiro porque o Leonel tem procuração minha para fazer tudo. Ele acha que não é bom pegar o dinheiro e fazer logo alguma coisa. É melhor empregar e ele empregou meu dinheiro. E parece que o dinheiro já vai dar agora um dividendo, uma coisa assim...
UH - Mas, e aquela casa que você está construindo lá na Barra? É com dinheiro de vendagem?
JA - Não sou eu que construí... Quem comprou um terreno na Barra foi o Leonel e vai construir uma casa lá. Mas isso é problema do Leonel, ele tem os bicos dele por fora. Leonel tem participação nos meus lucros e ele faz com o dinheiro dele o que ele bem entende.
UH - Julinho, essa transposição do anonimato... Aqui em São Paulo não, que você está chegando aqui agora, você teve só um incidente aqui, mas lá no Rio você é muito conhecido, pelo menos no Degrau, no Antônio's.... Como é que foi essa transposição do anonimato - com o devido respeito - da favela para as colunas sociais, colunas de música? Quem é que te deu essa força? Porque é muito difícil para compositor novo.
JA - Isso eu devo ao Leonel, porque ele é muito ligado ao pessoal do Rio de Janeiro, Zózimo Barroso do Amaral, que trabalha no Jornal do Brasil. Ele é ligadíssimo. É como se fossem irmãos. Tem amigo que é dono de jornal, já falou de muita gente que ele é amigo... do Doc... Ele me promove, me promove muito. Ele é um cara 100%. Vocês precisam conhecer ele.
UH - Eu te conheço recentemente, e, convenhamos, você é uma figura pouco conhecida no Brasil.
JA - Ainda sou, infelizmente, mas eu confio em Deus e que com a ajuda dele e a do Leonel eu...
UH - Você não seria uma criação da imprensa carioca? Como você entende isso?
JA - Por algum tempo eu fiquei magoado com isso...
UH - Seu pai foi um copy-desk de jornal. Você acha que está sendo lançado pela imprensa carioca, que tem repercussão nacional? Como você se sente?
JA - Claro que a imprensa ajuda muito, mas eu tenho o meu trabalho também. Eu vim aqui para mostrar o meu trabalho, não é badalação só. Esse negócio de badalação de jornal, não dá dinheiro a ninguém. Não dá camisa a ninguém. Minha primeira música vai ser gravada agora, finalmente! Só agora, mas eu tenho feito, em média, de quatro a cinco músicas por dia. Com essa primeira música, acho que vai ser um grande empurrão que vou receber na minha carreira. E, daqui por diante, acho que todo mundo se interessa em gravar música do Julinho da Adelaide.
UH - Quem já cantou música tua até agora, ou já gravou?
JA - O Chico Buarque cantou num show que ele fez no Rio. E, aliás, foi muito bom. Leonel diz que daí que deu mais dinheiro porque teve dinheiro de SBAT e tal
UH - Qual?
JA - O Jorge maravilha. E o MPB-4, a Nara Leão. Eu entreguei outras músicas aí, mas não sei se estão cantando. Pra uma porção de gente: Tim Maia, Ângela Maria, vários estilos inclusive, entende? Não sei se estão cantando também, não tenho controle, o Leonel que sabe.
UH - Estou curioso pra saber o seguinte: o nome Julinho da Adelaide começou a se projetar, é inegável isso...
JA - Você quer saber da onde vem o nome?
UH - Eu estou preocupado em saber se você realmente tem uma produção muito boa ou se você está se utilizando do Chico Buarque, do MPB-4, Tim Maia e todo esse pessoal pra quem você mandou música, para se projetar...
JA - Desculpe, mas como já disse antes, eu não sou cantor. Eu preciso dos cantores para lançar o meu nome. Acho que é um interesse recíproco. Eu não devo nada a ele e ele também não. Ele tá faturando em cima do meu nome e eu estou faturando em cima do dele. Acho que isso é normal. Não acho que seja ético da minha parte. Eu sou pragmático.
UH - Julinho, aqui em São Paulo, o pouco que se sabe de você são histórias mirabolantes, inclusive o Chico Buarque - não sei se você soube - em um show falou que Julinho era figura das crônicas policiais que passou para as crônicas sociais. Ele tem (Prata corrige) Você tem, realmente, um passado que o denigra...
JA - Eu sou muito tímido, você pode perceber que eu sou tímido. O Leonel, com essa história dele ser procurador, é uma pessoa muito descontraída e ele faz muitas coisas, inclusive "impensadas", e quando vão perguntar o nome dele, ele diz (ri) que tem procuração minha. Então, é justo que eu pague as coisas boas e ruins que ele faz (risos). Às vezes ele faz coisas ruins. E depois não acontecem muitas coisas com ele, porque quando o sujeito tem relações muito boas na polícia, coisa que eu não tenho...
UH - Coisas ruins, como? Por exemplo?
JA - Ah! Ele faz muita bagunça, entende? Esses negócios de forró...
UH - Ele já foi preso alguma vez?
JA - Já. Algumas vezes. Eu conto isso, inclusive num samba: Chama o ladrão.
UH - Eu quero lembrar o seguinte: à medida que você mesmo disse que é muito pragmático, esse negócio de carregar o nome da mãe, não é uma jogada oportunista da sua parte para sensibilizar uma faixa do público?
JA - Não, de jeito nenhum. Mais uma vez eu queria repetir que não sou aético. Eu me chamo Julinho da Adelaide porque todo mundo só me chama assim lá no morro. Minha mãe é mais famosa do que eu, lá no Rio. Ainda é! (Alterado) Minha mãe é séria!
UH - O que é que ela fez?
JA - (quase gritando) Vou te contar o que ela fez! Ela estava no primeiro elenco do Orfeu Negro. Foi amiga íntima de Vinícius de Moraes, Antonio Carlos Jobim e Oscar Niemeyer. E fazia o cenário do.... (perde-se um pouco) Não... o Haroldo Costa. Ela conheceu intimamente o Oscar, tanto é que há cinco, seis anos atrás, eles moravam na Favela da Rocinha e quando começaram a erguer o Hotel Nacional ela dizia pra mim: "Está vendo filho? Está vendo Julinho? É homenagem do Oscar para mim." Inclusive, brotou uma porção de homenagens na Barra e ela lembra dele assim, entende? É claro que ela está mais velhinha agora e ela falando isso, eu estou sabendo que não é homenagem do Oscar Niemeyer pra ela. O Oscar talvez nem se lembre dela. Mas ela viajou com a Brasiliana, casou com o luterano, não é pouca coisa, não! Aprendeu a fazer caçulé, e a feijoada branca dela, no morro, é conhecidíssima,. Então eu fiquei sendo o Julinho. Qual Julinho?, Julinho da Adelaide. Não sou o Julinho de Oliveira.
UH - Você está consciente de que está faturando a sua mãe com esse negócio de Julinho da Adelaide. Tanto que o Leonel não se chama Leonel da Adelaide...
JA - Leonel é Leonel Kuntz. (Confusão. Todos falam ao mesmo tempo)
UH - Pode ser que doravante a sua mãe seja conhecida como Adelaide do Julinho (risos)
JA - Não tenho nada contra isso.
UH - A Adelaide mora com você ainda?
JA - Eu não tenho moradia muito fixa, mas, sempre que posso, passo uma noite com ela.
UH - Mas você mora aonde, atualmente, no Rio?
JA - Atualmente eu estou morando na Selva de Pedra. O Leonel alugou um apartamento para mim.
UH - Está dando um dinheirinho?
JA - Está dando para comer e...
UH - Morar na Selva de Pedra?
JA - ,É morar na Selva de Pedra e pegar ônibus pra São Paulo.
UH - O que é Selva de Pedra?
JA - Selva de Pedra é um conjunto que fizeram lá no Rio. Iam fazer um parque, quando derrubaram a favela do Pinto. Eu tenho origens lá, inclusive já morei na Favela do Pinto.
UH - Você nasceu em que favela?
JA - Eu nasci na favela da Rocinha, mudei para várias favelas. Tenho mais raízes na favela da Rocinha, mas também tenho na favela do Pinto. E hoje eu moro lá, que não deixa de ser uma volta as raízes. Destruíram a favela do Pinto, no fizeram muito bem. Iam fazer um jardim lá. Depois mudaram de idéia e fizeram uma Selva de Pedra, que são vários prédios com janelas pequenas, mas perto da praia.
UH - Você mora sozinho, sem tua mãe?
JA - Lá, eu moro sozinho.
UH - E a Adelaide, como é que está?
JA - A Adelaide está muito bem, fazendo aquele feijão dela, cada vez melhor.
UH - Pra fora?
JA - Pra fora como?
UH - Ela...
JA - Ela tem um quiosque, não é? A casa dela, uma vez por semana, enche de gente e o pessoal...
UH - Tua mãe é do Rio mesmo?
JA - É, é carioca.
UH - Neta de escravos, não é?
JA - É. Ela conheceu a avó dela e a mãe dela foi beneficiada com a Lei do Ventre Livre. A gente tem uma gratidão muito grande com José Bonifácio.
UH - O que você acha dessa música feita aqui no asfalto sobre a música do morro? Você acha que é autêntico?
JA - Olha, eu não quero me comprometer, eu sei que aqui em São Paulo estão fazendo muito samba. Eu não posso dizer para vocês que não é boa música, se não, a entrevista pode sair e eu vou ficar muito mal com meus colegas aqui e é capaz que eu nem arranje emprego. Só vou dizer que prefiro a música autêntica.
UH - O que é música autêntica?
JA - É música da favela feita na favela, música da cidade, feita... por exemplo, eu gosto muito do Charles Mingus.
UH - Mas qual a relação do Charles Mingus com a música da favela?
JA - Charles Mingus é Americano, então ele faz música americana, entende? Esse negócio de morar aqui e fazer música de outro lugar, eu não gosto. Agora, eu gosto também. Às vezes são boas...
UH - Essa é a segunda vez que você vêm pra São Paulo?
JA - Em São Paulo é a 2ª vez. Encontrei muito mudada. De 67, 68. pra cá, quando eu vim pro Festival.
UH - Esse Festival foi interesse musical ou você estava...
JA - Não, eu mandei... Claro, foi quando eu despertei para a música... mas antes de despertar, eu fiz umas músicas... mas não havia despertado pra música. Eu fazia quase que como se a minha mão fizesse e eu não soubesse delas. Quando eu tomei aquela pancada na cara (risos)... Eu rio mas eu fico muito nervoso com esse negócio de novo.
UH - Como foi o seu contato com o Chico, com o Vinícius, com o Tim Maia?
UH - O Chico, principalmente, está divulgando sobremaneira.
JA -. Isso é o seguinte: há um ano atrás eu estava trabalhando na fábrica lá no Rio de Janeiro, no Alto Boa Vista, na Phonogram. Na fábrica, entende? Prensagem de disco e tal. E lá eles tem um time que aos sábados joga contra compositores, contra essa gente assim. Eu estava sempre nessa pelada. E aí que fui conhecendo esse pessoal. Fiquei conhecendo o Silvio César, Maestro Erlon Chaves, Paulo Sérgio Valle, uma porção de artistas...E o Chico Buarque, e o MPB 4.
UH - Mas como é que foi? Você chegou para o Chico e mostrou a música, deu uma fita, cantou para ele?
JA - Eu não falei direto com ele, falei antes com um dos integrantes do conjunto vocal MPB-4. Foi justamente quando eu estava entrando na área e, sabe aquele baixinho, o Rui? Me deu uma porrada por trás. O juiz não deu pênalti. E na hora que eu estava caído no chão, ele foi legal: "desculpa". Eu aproveitei que ele tinha puxado conversa comigo (risos) e daí: "eu sou compositor"(mais risos). Ele não deu muita bola, mas o contato já tava feito, e como eu trabalhei na fábrica e tem prensagem de disco, consegui prensar um acetato, camaradagem do pessoal lá. Eu prensei um acetato com duas músicas, com "Jorge maravilha" e "Chama o ladrão". Aí parece que gostaram e mostraram pro Chico Buarque. Depois eu fiz "O milagre" e achei que era melhor ainda, para mim é a música mais forte. Gravei de novo no acetato para eles. Parece que a Nara Leão se interessou pelo "Chama o ladrão" mas aí houve um problema com a música.
UH - Há um problema, Julinho, sem querer dedar ninguém, que o Chico tem cantado essa música e tem dado a entender que a música é dele. Ele fala de você como se fosse uma figura mitológica, mas no fundo parece que é dele. Acho que você tinha que tomar uma certa providência.
JA - Olha eu não sei... Esse pessoal que têm nome feito pode fazer muita coisa, não adianta eu ficar aqui reclamando desse pessoal. Como disse, sou pragmático. Eu preciso dele, ele precisa de mim. Não adianta você me dizer isso, parece que está me colocando contra ele. No dia em que eu for conhecido e famoso talvez eu faça dele a mesma coisa, entende? As pessoas tem que tirar proveito do que lhe cai na mão. O Leonel que me disse isso.
UH - Agora, eu queria que você se definisse. A expressão "pragmático" foi utilizada o tempo todo. Faça uma definição de você.
JA - Não sei. Pra falar a verdade, o Leonel que mandou eu dizer que sou pragmático (risos). Quando perguntassem alguma coisa, o que eu achava disso ou daquilo, coisa mais complicada, entende? O que que você acha da censura? Pragmático?. Ele falou outra também, ecumênico (risos). Isso foi a propósito da versão que fiz pro negócio da China.
UH - Eu não sei disso.
JA - Eu não contei da "Formosa" que eu mudei a letra pra China nacionalista? Disse que quando perguntarem se você gosta da China ou de Cuba? Se falarem, se você gosta de Cuba, você fala: que é pragmático e ecumênico. Se não, você se mete em complicação. Então eu digo, mas não posso definir exatamente a expressão: sou pragmático. (Acho que essa foi uma definição pragmática) (risos).
UH - Assim encerrou a entrevista, mas prossigamos.
JA - Hein, Quem deu a revista?
UH - Você encerrou, mas prossigamos...
JA - Só não quero ficar muito tempo aqui, porque tenho que fazer a ronda da noite, agora.
UH - Você vai aonde?
JA - Eu quero, inclusive, um roteiro de vocês, porque eu tô aí pronto pra...
UH - Fala Avenida Ibirapuera.
JA - Fala o quê?
UH - Fala Avenida Ibirapuera.
JA - Avenida Ibirapuera. (risos)
UH - Na Avenida Ibirapuera tem boas Casas de Samba, você vai se dar bem.
JA - É lá que é a boca, é?
UH - É lá.
JA - Então é para lá que eu vou. Fala com um taxi aí... Avenida Ibirapuera?
UH - Eles conhecem, não tem problema nenhum.
JA - E qual a melhor casa? Eles pagam bem?
UH - Tem o Bambu, o Sambão.
JA - O Leonel só me deu um nome, foi um tal de Catedral do Samba, é lá também?
UH - A Catedral não, Catedral é samba de Benito de Paula. Conhece?
JA - Conheço.
UH - O que você acha?
JA - Eu acho legal (risos). Acho que todo mundo deve fazer o que pode, o que sabe. Eles dão chance aos novos? Ou tem que ter contrato?
UH - Não.
JA - Vou falar a verdade do que eu quero. Eu quero entrar num lugar desse, cantar um samba meu e se possível arrebatar o pessoal. Aí o dono da casa vem lá e.... como eu vi num filme...
UH - Porque o Leonel não veio? Ele tá sempre com você ou te dá as dicas?
JA - Às vezes ele dá as dicas e me manda pro lugar. Ele não sai do Rio porque tem muitos afazeres lá.
UH - Mas ô Julinho, com o maior respeito a você e sua família, o que eu ouço falar do Leonel é que ele é um tremendo mau caráter, que ele não paga conta, pede aval...
JA - (irritado) Bom eu... Se vocês estiverem querendo me irritar... Acabei de falar... Vocês são de jornal, meu pai foi de jornal, eu não quero me irritar com ninguém. É meu irmão, se você quiser falar isso...
UH - Tem uma história... deixa só eu completar, um parêntesis só, Julinho. Tem uma história que ele alugou um apartamento lá onde era a favela do Pinto e depois mudou do Rio. O compromisso caiu em cima de você, ele sumiu, tem umas histórias assim... Não sei, não sei se é boato, mas corre. Corre à boca pequena.
JA - É normal.
UH - A respeito de ... de.... de...Leonel...(gagueja. ESQUECE O NOME DO IRMÃO) tudo é possível.
JA - Eu quero ver você dizer isso na frente dele. Eu não vou te responder, diga a ele (risos, confusão). Eu devo tudo ao meu irmão.
UH - Você não acha um, problema?
JA - Irmão a gente só tem um, apesar de ter vários. Mas cada um é único para mim.
UH - Como apesar de ter vários?
JA - Eu tenho outros irmãos que eu não vejo, quase. Mas eu estou mais ligado ao Leonel, estou ligado não só afetivamente, mas profissionalmente. Devo tudo da minha carreira ao Leonel. Ou você acha que não?
UH - Não sei, estou te conhecendo hoje. Estou dizendo o que ouço falar.
JA - Certo! Você está me conhecendo porque o Leonel me mandou para cá.
UH - Foi.
JA - E eu dando a minha primeira entrevista para um jornal de São Paulo. No Rio dei muitas entrevistas, viu?
UH - Eu sei, pra onde?
JA - Dei pra Notícia, pra Última Hora do Rio de Janeiro, e dei uma para Manchete, que até agora não saiu, mas deve sair daqui a pouco.
UH - Julinho, eu só levantei esse problema, porque o Leonel é um... inclusive você poderia corrigir isso, se defender, porque falam que ele assina contrato com e você não aparece, e que ele está vivendo, atualmente, em função do teu nome. Inclusive, ele já está dizendo: sou Leonel da Adelaide, coisa que ele nunca disse.
JA - Leonel Kuntz. (Começa a enrolar um pouco a língua) Ele não é Leonel da Adelaide porque ele saiu cedo de casa. Ele não era conhecido como Leonel da Adelaide, era Leonel. Tem gente que pensa que ele é meu primo, um parente próximo ou um amigo que vai lá de vez em quando. Outro dia, veio um cara e disse que tinha feito um contrato leonino comigo (risos). Isso é trocadilho, porque o cara chama Leonel e o contrato leonino. E só porque ele ganha 50%. E dizem que os empresários normalmente têm 20 só. Aqui no Brasil, porque diz que lá fora tem dez. Agora, ele não é só um empresário. Se fosse só um empresário, tá legal, ganhava 20%. Ele não é meu empresário. Ele é meu conselheiro e meu irmão, entende? Então, a gente divide irmamente as partes. Acho justo isso. E tem mais, ele ainda aplica nos mercados de capitais os meus lucros.
UH - Julinho, uma pergunta de ordem econômica. Vocês que estão no Rio de Janeiro, onde o mercado de música é muito maior, por que você está agora em São Paulo tentando...
JA - Não, o mercado da música não é maior no Rio. Pelo que me informaram, pro tipo de música que eu faço, São Paulo está muito melhor agora. Aliás, casa de samba, no Rio não tem, entende?
UH - Você é mais um cantor da noite do que um compositor? É isso?
JA - É como eu disse para você. Para falar a verdade eu tenho bastante autocrítica, eu não sou bom cantor. Então eu só posso cantar depois da meia-noite (risos). Porque lá pras oito ou nove horas, horário de teatro, ninguém me atura, não. Não canto muito bem. Mas depois da meia-noite, como todo mundo canta, está todo mundo mais alegre, as pessoas nas mesas cantam. Eu sou um cara que canta no microfone como se estivesse cantando na mesa. Agora, o que eu estou vendendo ali não é minha voz, é meu material, minhas composições. Eu sou compositor.
UH - Aqui em São Paulo você não fez nenhum show, ainda?
JA - Não, se eu tiver sorte, começo hoje. (risos)
UH - No Rio você não tem promoções, não é?
JA - No Rio eu já fiz promoções naquelas noites de samba de opinião, segunda-feira, já apresentei lá. Mas não pagam, entende? Lá é mais pra prestígio, ganhei muito prestígio com isso. A gente canta em troca do prestígio. Agora, eu acho que já tenho um certo prestígio.
UH - Você está achando que seu nome está crescendo aqui?
JA - O Leonel disse que estavam falando muito em mim aqui, quando mandou eu vir.
UH - Realmente estão.
JA - A prova é que vocês estão aí. Jornalistas me entrevistando aqui. Não fui eu que fui até a redação do jornal, como era antigamente.
UH - Agora, você acha que essa facilidade de adaptação da tua música ao gosto do momento, que existe e você reconhece, não te aproxima assim de Dom e Ravel, por exemplo, na música brasileira? Apesar de pobre, assim completamente diferente....
JA - Não... Eu admiro essa dupla, Dom e Ravel, pela oportunidade que eles aproveitaram em determinado momento de fazer uma música determinada. E é mais ou menos esse tipo de trabalho que eu faço.
UH - Já que você está na vanguarda nesse sentido de adaptação ao gosto da sociedade brasileira hoje, o que eu acho muito importante... você não acha que tem uma influência direta de Dom e Ravel?
JA - Não citaria só eles. Tem muita gente boa está fazendo esse trabalho agora, e acho isso uma coisa muita boa. É um trabalho quase parente do "jingle" e parente do samba-crônica, samba que o sujeito lê no jornal e no dia seguinte tem um negócio oportuno, tem um assunto fervendo. Aquele samba que talvez não vai se eternizar, mas que no momento...
UH - O samba pragmático, o que você está fazendo. Por exemplo a TV Globo não se interessou ainda em publicar nenhuma novela, usar como tema esse seu alto sentido pragmático?
JA - Eu fui contatado, já estive lá nos corredores da TV Globo. Um dia vi até o Boni.
UH - Falou com quem?
JA - Falei com um rapaz lá que eu não sei o nome. Disse que era Walter. Mas não sei o sobrenome, nem sei bem qual é a função dele lá.
UH - Você acha válido ou você teria qualquer tipo de objeção? Você acha válido? Acho que essa é a palavra certa.
JA - Acho que tudo é válido, desde que a gente esteja fazendo, entende? Desde que a gente esteja criando. O importante é criar, não é mesmo? (confusão) Eu faço qualquer coisa, entende? Faço até para novela se me pedirem. E acho que vou fazer muito bem.
UH - Julinho, você estudou até que ano?
JA - Eu fiz até o 1º ginásial.
UH - Primeiro. Parou por quê?
JA - Depois eu fui tomar aula particular.... na escola da vida! (risos)
UH - Mas enfim e daí?
JA - E daí que eu sei ler e escrever e acho que me exprimo muito bem. Você não está me entendo?
UH - Mas as suas músicas, das seis que eu conheço, denotam uma certa cultura, assim não de vivência, mas uma cultura geral, daonde teria vindo?
UH - Você incorpora uma série de coisas que realmente não são normais em pessoas assim do teu nível
JA - Eu tenho explicação para isso: a minha origem. Vamos dizer, eu tenho parceiros pela vida. (risos)
UH - Seu pai é copy-desk?
JA - Meu pai é copy-desk, então eu faço copy-desk do cotidiano do morro (risos). Vamos dizer assim. Muitas das músicas que eu faço são...
UH - Interessante não é, porque você não mora mais no morro.
JA - Mas eu vou sempre lá, porque eu tenho que voltar às raízes. Apesar de eu estar nas minhas raíze, porque eu estou em cima da favela do Pinto, como eu disse pra vocês, pelo menos uma vez por semana eu durmo na casa da minha mãe, na Rocinha, na casa da Adelaide.
UH - Você está com quantos anos?
JA - Vinte e cinco.
UH - Teu nome inteiro como é?
JA - Tem gente que me chama de Gato. Mas não é verdade não.
UH - Teu nome todo como é?
JA - Julio César de Oliveira.
UH - ... você tem uma figura assim bem popular, uma figura física; você acredita que poderia fazer uma experiência de androginia? Você acha que daria pé? Nunca pensou nisso? Acha interessante o movimento andrógino brasileiro? Te interessa?
JA - É esse negócio de Secos e Molhados, não é? Olha meu amigo, não (risos) Com todo respeito, eu não ia fazer uma coisas dessas. Eu acho aquilo uma viadagem, entende? Agora, eu respeito o trabalho deles.(risos) Eu respeito o trabalho deles. (risos) como eu respeito todo mundo. Como já disse antes. Mas eu não ia fazer uma coisa daquelas, não (risos)
UH - Mas por quê? É um problema de formação cultural, familiar ou é apenas um pragmatismo?
JA - Bom, aí é que tá... me entenda... se me dessem um cachê muito bom na TV Globo para fazer um número musical que tivesse que ficar com o corpo pintado, bom, então aí talvez eu fosse pragmático, entende? Mas assim falando de fora... A experiência que ensina à gente muita coisa, não é? Eu estou falando sem experiência porque eu nunca tive uma experiência andrógina, entende?
UH - Eu só perguntei isso, porque o Caetano Veloso, você deve conhecer, obviamente...
JA - Conheço e admiro muito.
UH - Caetano Veloso, num show que está em cartaz aqui em São Paulo, ele fica o tempo todo passando a mão no cabelo e tem brinco na orelha esquerda. Você usa esses recursos?
JA - Não, não uso brinco, não senhor, de jeito nenhum. E nem passo a mão no cabelo, porque o meu cabelo do jeito que é, pode passar a mão quanto quiser que ele fica... já é difícil é passar a mão dentro (risos). só passa por fora.
UH - Me falaram uma coisa, tudo que eu sei de você é o que me falaram...
JA - Porque eu sou muito falado e realmente eu acho isso muito bom. É bom sinal. O Leonel me disse: isso mesmo: está todo mundo falando de você.
UH - O Leonel deu uma entrevista para a rádio Marconi.
JA - É mesmo? Quando? Aqui em São Paulo?
UH - É, há duas semanas atrás. Perguntaram para ele se o Julinho seria a favor ou contra o black power. Aí ele contou uma história do Julinho, que antigamente, quando o Julinho tinha uns 15, 16 anos, ele alisava o cabelo. E depois quando começou o black power ele começou a alisar o cabelo, é verdade isso? Você teve uma fase assim de ocidentalização no cabelo?
JA - Tive sim, agora ele não está black power, ele está...
UH - Normal.
JA - Pragmático, desculpe abusar... (risos)
UH - Agora eu queria que você desse nota de zero a dez a três pessoas: Nara Leão, Ibraim Sued e Gerald Ford.
JA - Dez para todos. Alguns com louvor, outros...
UH - Garrincha?
JA - Garrincha.... Garrincha eu não dou nota dez pra ele...Se bem que ele é casado com a Elza Sores, amanhã ela pode querer gravar um samba meu (risos), é bom a gente estar sempre... É isso que eu falei: Nara Leão vai gravar um samba meu, O Gerald Ford, o presidente, nota 10. Ele pode fazer um arranjo muito bom. O Ibraim Sued pode dar uma nota a meu respeito, não é? Nota 10. Agora, não publica isso que eu estou falando, as explicações das notas que estou dando não. Só põe as notas.
UH - Outra figura. Wilson Simonal.
JA - Nota 10.
UH - Eu estou achando você muito condescendente.
JA - Como?
UH - Você me perdoe, não me leve a mal, mas você não me parece ter uma posição política definida. Você me parece muito preocupado em colocar sua música no mercado...
JA - Você vai me obrigar a dizer que eu sou pragmático de novo (risos). Eu não só sou pragmático como sou descontraído, entende? Você está querendo me contrair, me deixar...
UH - Em absoluto. Não, de maneira nenhuma.
UH - Ainda dentro daquela linha do nosso amigo aqui eu vou te pedir pra você dar notas pra três personalidades, Sabu...
JA - Sabu morreu, não é? Eu não achava ele muito bom ator, não. Nota quatro.
UH - Ainda mais agora, morto. (risos)
UH - Golbery
JA - Golbery, nota dez.
UH - Caetano Veloso
JA - Caetano Veloso, nota dez.
UH - Perfeito
JA - Eu não sou como aquela moça da televisão que dá 10 pra todo mundo. Você viu que pro Sabu eu dei nota 4. Eu lembro de ter visto um filme dele do tapete voador, negócio do tapete mágico e tal, do gênio da lâmpada, e eu não achei ele muito bom ator não.
UH - A gente só tem visto você pessoalmente, nunca na televisão, por quê?
JA - Eu sou cantor de rádio, esse é um problema que já falei antes. O problema da fotografia - eu não posso... Eu tenho uma imagem a preservar (risos). É uma imagem que não deve aparecer a preservar. Eu tenho uma falta de imagem a preservar (risos). Eu tenho esse probleminha... tem Pitanguy pra essas coisas. Por enquanto, não dá. Se eu colocar umas quatro ou cinco músicas de sucesso eu faço... Então fica aqui um alô ao Pitanguy: se por acaso pintar alguma coisa e quiser fazer um trabalho de solidariedade... ou se a ordem dos músicos financiar... não sei... a idéia fica lançada... pode haver um show em benefício... eu não vou pedir nada...
UH - Julinho, você gostaria de dizer o que para esse pessoal todo?
JA - (alto) Aquele abraço pro povo paulistano.
UH - Antes disso, Julinho. É que a gente está com um jornal aqui, eu te trouxe três exemplares pra você dar uma olhada
JA - Logo três?
UH - Você gostou, né? A gente tem uma liberdade para dizer o que quiser. Então, o grupo Frias está lhe oferecendo uma página para você dizer o que quiser. O que o Julinho da Adelaide quer dizer hoje, quer passar hoje? Agosto 74? O que você quer dizer? Não, eu não digo uma mensagem assim. Pragmático, mas nem tanto.
JA - Mas não entendi. Uma página inteira para dizer o quê?
UH - É que eu tenho uma página inteira para a matéria. Fala o que você quiser, pedir asfalto na favela, pedir ao Leonel que tire o alisamento do cabelo... para ser mais honesto com você.
JA - Não, eu não tenho queixa nenhuma de ninguém. Como eu falei. Eu estou chegando aqui em São Paulo, eu quero mandar aquele abraço pro povo paulistano. E se alguém ler, imagino que vá ler a sua coluna, me disseram que ela é muito lida. Qual o jornal, mesmo? (risos)
UH - Diário de Notícias.
JA - Diário de Notícias é muito lido aqui em São Paulo. O Leonel disse mesmo que era o mais lido. Então, se alguém se interessar, alguém que tem uma casa de samba, eu estou aí.
UH - Você está em que hotel?
JA - Eu não estou em hotel, eu cheguei agora, estou aqui, como você está me vendo, aqui na...
UH - Na redação.
JA - Na redação. Eu não quis dizer que vim à redação, eu não conheço nenhum jornal. Isso eu não sei como é que você vai resolver. Porque fica meio chato o artista que vai à redação.
UH - Não, todo mundo honesto faz isso. Você não deve se envergonhar... (confusão)
JA - Então, eu tive uma idéia... Aproveitando o fato do meu pai ter sido copy-desk e de eu ter esse vínculo muito estreito com a imprensa, diga na sua entrevista que, se alguém se interessar pelo meu concurso, entende, pelo meu trabalho nessas casas de samba, pra enviar para qualquer redação de jornal, que eu recebo (risos).
UH - Mas no fundo no fundo, seja pragmático, faça uma frase nessa linha. Pra despedida
JA - Com é? Seja pragmático? (Confusão)
UH - O Caetano Veloso, dando numa entrevista, num jornal de São Paulo, disse, pessoalmente, que, pra ele, a censura não tem causado grandes problemas. Você poderia dizer a mesma coisa de você?
JA - Eu disse isso no começo da entrevista. Vou repetir. Eu digo abertamente tudo. Não tenho pêlos na língua. Disse tudo no começo da entrevista. É que você... o senhor não estava aqui. Eu disse mesmo, entende? E....
UH - Eu gostaria que o senhor respondesse a pergunta dele...
JA - Já disse tudo.
UH - Esqueceu... (risos)...
UH - Pelo seguinte. Eu não sei se você sabe, Julinho, mas a censura hoje, isso na minha parca opinião, ela tem, eu não diria tesourado, mas ela tem bloqueado o trabalho criativo dos criadores. Frase bonita, não? (risos). Eu quero saber se essa mesma censura - que tem, inclusive, perturbado um colega teu, um rapaz que eu acho que tá dando uma força pra você, que é o Chico Buarque de Hollanda - se ela tem também te prejudicado. Porque uma das história que Leonel divulgou na Rádio Marconi é que você teria já uma música proibida e pelo fato (inclusive eu acho que Leonel foi um pouco sacana com você, ele falou que bastou você ter uma música proibida, você começou a construir uma casa no bairro da Tijuca), então eu queria saber se você realmente tem alguma coisa proibida, algum problema com a censura.
JA - Eu tenho, já te falei que tenho, mas eu tenho mais diálogo do que problema. Cada vez que surge um problema, para isso que eu fiz o samba duplex, que eu pretendo, inclusive, patentear, porque é uma idéia minha que se puder patentear, eu não sei como que é esse negócio de patente. ... E depois eu acho que quem faz um samba, faz dez. Se proíbem um... Então é o tal negócio. O rapaz que trabalha na censura é um homem, pai de família e tem que trabalhar, (todos falam) como eu. Ele está lá cumprindo seu trabalho. Se ele parar de proibir, vai perder o emprego, porque fica um trabalho inútil. Assim como se eu parar de fazer samba, eu deixo de ser sambista. Então, o censurador deixa de ser censor quando ele parar de proibir. Então, vamos nos unir, né, num grande abraço. Então, o censor censura e a gente faz música e o censor censura e a gente faz música. (todos falam)
UH - ...se o Julinho tem consciência de que isso pode realmente inaugurar até uma vanguarda no Brasil. Esse samba duplex, que eu acho que é uma obra aberta, que é o samba que o ouvinte completa em casa. Você tem uma oportunidade de atingir uma faixa muito grande de ouvintes... É um samba que dá várias leituras, em qualquer nível.
JA - Não, aí é diferente. O samba duplex não se propõe isso. Não uma obra aberta. É uma obra aberta até passar pelo filtro. Quer dizer, ele é duplex, quando eu componho. Quando chega nos canais competentes, o samba assume uma das duas versões. Se eu pudesse, eu faria samba duplex de um lado e outro. Tem que agradar gregos e troianos. Quem me falou isso foi o Leonel (risos). Então eu tenho que fazer em primeiro lugar para gregos e troianos, depois vai ver se o censor é grego ou é troiano e vê o quê que ele acha bom. Porque muitas vezes eu não sei mesmo se devo falar a favor ou contra a meningite. Eu sou contra a meningite, mas eu devo dizer que a meningite está brava aqui em São Paulo, porque é um fato que parece que é real, ou devo dizer que a meningite não está brava aqui em São Paulo? Então eu faço samba duplex. Um dizendo que a meningite está terrível, está uma péssima epidemia grassando por aí. (Cantarola). Eu fui pra São Paulo com a Judite, saí de lá com meningite, ou Eu fui pra São Paulo com a meningite e saí com a Judite. Quer dizer, pra secretaria de sáude, tudo bem tudo bag, a secretaria da saúde pode inclusive se basear nisso pra, se não curar a meningite, pelo menos pra fazer um slogan, né? Eu fui pra São Paulo com a meningite e saí com Judite. Ao mesmo tempo se ele quiser alertar a população contra o perigo da meningite, ela vai usar o outro. Aí que eu tenho que ver se o sujeito, na hora, é a favor da meningite ou contra.
UH - E ao mesmo tempo, se no próprio filtro for bloqueada as duas versões, sobre a mesma base melódica, você acredita que é válido ainda criar, sempre existe...
JA - Você está lançando o samba triplex, né? É aquele que a terceira letra fala de futebol (risos), de um jogo que termina empatado (mais risos), que é um samba que eu tenho em que cabem todas as letras. (risos), que conta uma história de futebol que termina empatado. E tem muito gol dos dois lados pra não dizer que é só retranca. É 4 a 4 que termina o jogo, se não for 5 a 5.
UH - Eu tenho a impressão que o samba duplex vai ser muito bem recebido no seio da família brasileira.
UH - Você está interessado apenas em fazer música para boate, para shows, ou você quer tentar teatro, cinema? Ou coisas paralelas?
JA - Coisas paralelas. Todas as paralelas interessam. Música para novela, música para teatro, música pra cinema, para boate, música para teatro, música música, entende?.
UH - Julinho, eu queria que você cantasse, pra encerrar, uma quadrinha do samba do ladrão.
JA - (Cantarola. Pára no fim da primeira parte. Se perde.) É que é uma musica que precisa de violão. Precisa da harmonia pra acompanhar. A segunda parte é muito romântica e diz assim... Não, deixa eu cantar a segunda parte (cantarola)
UH - Põe em palavras
JA - O pedaço todo da letra? Pra falar a verdade não tá pronta.. (diz um pedaço da letra)
UH - Só para encerrar, você tem alguma coisa para dizer?
JA - Aquele abraço ao povo paulistano (risos), um abraço amplo, descontraído, aético e pragmático, aético não.
UH - Você gosta de São Paulo?
JA - Gosto demais de São Paulo. Todos falam!
Ultima Hora - 09/74
Veja entrevista publicada
Mario Prata, Melchíades Cunha Jr
Eu me lembro até da cara do Samuel Wainer quando eu disse que estava pensando em entrevistar o Julinho da Adelaide para o jornal dele. Ia ser um furo. Julinho da Adelaide, até então, não havia dado nenhuma entrevista. Poucas pessoas tinham acesso a ele. Nenhuma foto. Pouco se sabia de Adelaide. Setembro de 74. A coisa tava preta.
- Ele topa?
- Quem, o Julinho?
- Não, o Chico.
O Chico já havia topado e marcado para aquela noite na casa dos pais dele, na rua Buri. Demorou muitos uísques e alguns tapas para começar. Quando eu achava que estava tudo pronto o Chico disse que ia dar uma deitadinha. Subiu. Voltou uma hora depois.
Lá em cima, na cama de solteiro que tinha sido dele, criou o que restava do personagem.
Quando desceu, não era mais o Chico. Era o Julinho. A mãe dele não era mais a dona Maria Amélia que balançava o gelo no copo de uísque. Adelaide era mais de balançar os quadris.
Julinho, ao contrário do Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a criatura também bebia e fumava. Falava pelos cotovelos. Era metido a entender de tudo. Falou até de meningite nessa sua única entrevista a um jornalista brasileiro. Sim, diz a lenda que Julinho, depois, já no ostracismo, teria dado um depoimento ao brasilianista de Berkely, Matthew Shirts. Mas nunca ninguém teve acesso a esse material. Há também boatos que a Rádio Club de Uchôa, interior de São Paulo, teria uma gravação inédita. Adelaide, pouco antes de morrer, ainda criando palavras cruzadas para o Jornal do Brasil, afirmava que o único depoimento gravado do filho havia sido este, em setembro de 1974, na rua Buri, para o jornal Última Hora.
Como sempre, a casa estava cheia. De livros, de idéias, de amigos. Além do professor Sérgio Buarque de Hollanda e dona Maria Amélia, me lembro da Cristina (irmã do Julinho, digo, Chico) e do Homerinho, da Miucha e do capitão Melchiades, então no Jornal da Tarde. Tinha mais irmãos (do Chico). Tenho quase certeza que o Álvaro e o Sergito (meu companheiro de faculdade de Economia) também estavam.
Quem já ouviu a fita percebeu que o nível etílico foi subindo pergunta a resposta. O pai Sérgio, compenetrado e cordial, andava em volta da mesa folheando uma enorme enciclopédia. De repente, ele a coloca na minha frente, aberta. Era em alemão e tinha a foto de uma negra. Para não interromper a gravação, foi lacônico, apontando com o dedo:
- Adelaide.
Essa foto, de uma desconhecida africana, depois de alguns dias, estaria estampada na Última Hora com a legenda: arquivo SBH. Julinho não se deixaria fotografar. Tinha uma enorme e deselegante cicatriz muito mal explicada no rosto.
Naquelas duas horas e pouco que durou a entrevista e o porre, Chico inventava, a cada pergunta, na hora, facetas, passado e presente do Julinho. As informações jorravam. Foi ali que surgiu o irmão dele, o Leonel (nome do meu irmão), foi ali que descobrimos que a Adelaide tinha dado até para o Niemeyer, foi ali que descobrimos que o Julinho estava puto com o Chico:
- O Chico Buarque quer aparecer às minhas custas.
Para mim, o que ficou, depois de quase 25 anos, foi o privilégio de ver o Chico em um total e super empolgado momento de criação. Até então, o Julinho era apenas um pseudônimo pra driblar a censura. Ali, naquela sala, criou vida. Baixou o santo mesmo. Não tínhamos nem trinta anos, a idade confessa, na época, do Julinho.
Hoje, se vivo fosse, Julinho teria 55 anos. Infelizmente morreu. Vítima da ditadura que o criou.
Há quem diga porém que, como James Dean e Marilyn Monroe, Julinho estaria vivo, morando em Batatais, e teria sido ele o autor do último sucesso do Chico, A foto da capa. Sei não, o estilo é mesmo o do Julinho. O conteúdo então, nem se fala.
Depoimento de Mário Prata
A idéia desta entrevista surgiu quando eu falava com um amigo sobre este site. Ele me disse que seu pai havia sido censor. Mesmo sem saber se ele tivera ou não alguma relação com as tesouradas na obra de Chico, pensei em entrevistá-lo. Surgiam dois problemas: um, se o Chico toparia. Ele topou. O outro, mais difícil no entender do meu parceiro Miltão, da CPC, era se Lúcio, o próprio censor toparia. Ele também topou e a entrevista foi feita no dia 2 de novembro de 1998, por telefone.
Carlos Lúcio Menezes, 69 anos, aposentou-se como censor em 1981. Casado, dois filhos, cinco netos, formou-se em Jornalismo, Relações Públicas e Pedagogia. Fez curso de extensão universitária em Cinema, na Universidade Católica de Minas Gerais e iniciou, mas não concluiu, o curso de Direito. Trabalhou na Assessoria de Imprensa dos presidentes da República Médici e Geisel.
Depois de ser entrevistado, Lúcio deu o seguinte depoimento:
"Esse trabalho que vocês estão fazendo é muito importante para que nossos filhos e também nossos netos, no futuro, possam conhecer a obra de um artista brilhante, de garra, e com muita personalidade."
Antes de ser censor o que você fazia?
Eu era jornalista e radialista.
Em qual jornal você trabalhava?
No Rio de Janeiro, eu trabalhei no Jornal do Brasil. Depois fui para o Diário da Noite e Jornal. Também, trabalhei com a Rádio Tupi, do Rio.
E você cobria que área?
Geral, social e reportagens do dia-a-dia.
E como você resolveu entrar para a censura? Existia um concurso?
Aqui em Brasília, quando eu cheguei em 1960, fui trabalhar no Correio Brasiliense e na Rádio Nacional. Fazia cobertura dos ministérios, Câmara dos Deputados, praticamente tudo, porque eram poucos os jornalistas e as atividades de Brasília ainda estavam começando. Também trabalhei na Gazeta de São Paulo, da Fundação Cásper Líbero, na área de reportagens gerais, fazendo a cobertura, inclusive, do Congresso e da Câmara. E nesses contatos que eu mantive fui convidado para ter acesso à censura. Em Aracaju, trabalhei na Rádio Liberdade, onde eu fazia um programa de crítica de cinema. Eu via, examinava os filmes para fazer comentários para o público. Sempre gostei muito de cinema e gostei muito de teatro também. Inclusive, conheci a minha mulher em um teatro. Começamos a namorar fazendo teatro amador. Nos ensaios surgiu o namoro...
Você lembra o nome da peça?
Lembro. Os transviados, de Amarel Gurgel, também chamada A Trágica noite de natal. Inclusive, quando nós fomos levar os convites para o governador, o secretário perguntou como era o nome da peça. Nós éramos três. Eu, o diretor artístico e o responsável pelo elenco. Três para levar o convite, uma comissão.
"Qual é o nome da peça?"
"Os transviados."
"Os três?"
"Não! Os TRANS."
De modo que naquela época eu já tinha uma ligação com a parte artística. Trabalhei em rádio fazendo também rádio-novela, que naquela época era rádio-teatro, uma coisa muito incipiente na minha terra e ....
Você disse que foi convidado a integrar a censura. Isso me leva a crer que não havia, então, concurso. Ou havia um concurso?
Na época não havia concurso. A capital estava transferindo-se do Rio para Brasília.
Desde que ano a censura prévia existiu, de maneira institucionalizada? Não vamos falar do velho DIP. Vamos falar do pós-revolução.
Isso que eu ia dizer... Primeiro, ela surgiu com o DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda - em 1929, 1930, com a chegada do Getúlio. Quando ele saiu e entrou a República, a democracia, então terminou a censura política dos jornais, pois naquela época não existia ainda a televisão, rádio era uma coisa muito difícil, mas tinha muitos espetáculos de teatro. Cinema também já estava surgindo com muita força. Aí criaram um serviço de censura de diversões públicas. Não era censura política. Era censura de diversões públicas.
Isso foi em que ano, Lúcio?
Em 1945. Em 44, 45, quando terminou o período do Estado Novo e aí surgiu o Serviço de Censura de Diversões Públicas, a missão era apenas classificar os espetáculos e, naturalmente, proibir algumas coisas que transgredissem uma legislação existente na época. Depois foi aperfeiçoada.
A censura prévia, em que era obrigatório todo mundo mandar todos os textos antes, após a revolução de 64, foi institucionalizada quando?
Bom, depois que nós fomos convidados (no grupo, tinha outros jornalistas, tinha até psicólogos, professores, pedagogos), fomos submetidos a um curso intensivo na Academia Nacional de Polícia, para podermos verificar a legislação e nos prepararmos para exercer a censura. Quer dizer, não éramos censores. Então, fomos convidados para exercer esse cargo, nos deram a legislação vigente e, em seguida, nos colocaram na Academia de Polícia para fazermos cursos. Aí foram vários cursos sucessivos. Durante o período que eu estive lá, sempre tinha cursos de reciclagem. A institucionalização veio, praticamente, nesta época da criação da censura aqui em Brasília. Fizemos uma coletânea da legislação e verificamos que havia necessidade de uma institucionalização para que ela pudesse ter o amparo da Constituição. Aí foi feita a lei, tranqüila...
Em que ano foi isso, Lúcio?
Isso aí já foi em 1960, aqui em Brasília. Aí nós começamos a trabalhar com base nessa legislação.
Mas ainda não havia uma obrigatoriedade de se mandar tudo para o Serviço de Censura?
Não, não.
Eu pergunto, este fato, quando é que ele começou a acontecer?
Daí em diante, na hora em que a censura foi criada, institucionalizada...
Em 60?
60. Aí é que começaram a vir para cá as peças de teatro para o exame do texto. Primeiro se examinava o texto. Depois de aprovado o texto, a peça era liberada com a classificação que a censura arbitrava e, em seguida, quando o elenco preparava o espetáculo, chamava a censura para verificar o ensaio geral. Este ensaio geral é que dava, praticamente, a liberação plena do espetáculo.
Quer dizer que isso ocorria mesmo antes de 1964?
Ah! Muito antes. Muito antes já existia isso. Já existia censura.
E você ficou na censura até que ano? Me parece que você se aposentou na censura.
Eu me aposentei na censura em 1981. Fiquei desde 1960 até 1981.
Ainda hoje existe alguém que tenha esse cargo de censor, se é que ele existe e que esteja no Governo Federal?
Com relação ao cargo de censor, ele foi extinto com a nova constituição, em 1988. E daí para cá o cargo ficou praticamente inexistente. Os censores que estavam nele foram convidados a fazer cursos de adaptação para outras carreiras dentro da repartição, pois não poderiam ficar sem fazer nada. Então, quem tinha curso de Direito foi fazer curso para delegado. Os que tinham curso de Relações Públicas, Pedagogia, Psicologia e outros cursos congêneres, foram levados para fazer o curso de perito criminal. Não existe mais o cargo de censor.
Volto a perguntar. Em um determinado momento você foi convidado a integrar o serviço de censura. E depois você participou até da reformulação da lei da censura, pelo que eu entendi, no sentido de tentar institucionalizá-la, etc. Existia, depois dessa época, algum requisito para pessoa ser censor? Veio a existir concurso para censor?
Primeiro, passou-se a exigir o curso superior, de nível universitário.
Então deixa eu fazer mais um parênteses. O Augusto, que foi zagueiro na copa de 50...
Exatamente. No dia em que o Brasil perdeu...
Ele tinha curso superior? Porque ele era censor...
Eu não sei, porque quando eu entrei na censura o Augusto já trabalhava no departamento, era secretário e controlava todo o expediente, todo o material, todo o trâmite processual das peças, dos filmes..
Você sabe que num show com a Bethânia, acho que quando a letra de uma música do Chico chamada Tanto mar foi proibida, o Augusto é que foi proibir. Aí, dizem que o Chico falou: Porra, além de você perder a copa de 50, ainda vem me aporrinhar...
Eu não sei se Augusto tinha curso superior. O que eu sei é que ele tinha muita vivência, muita experiência na censura, porque foi um dos elementos que participou da sua criação aqui em Brasília. Mas eu não sei o nível cultural dele. Nunca me preocupei em saber disso.
Hoje em dia, é relativamente comum um jogador de futebol ter nível superior. O cara vai e faz Educação Física, faz alguma coisa... Eu também não sei.. Vou tentar descobrir.
O próprio Augusto poderá lhe dizer.
Um censor - se tinha ou não esse nome não importa - depois que o cargo foi institucionalizado, ganhava bem? Dá para você lembrar mais ou menos, comparando com a média salarial?
No início, ele era um funcionário praticamente como qualquer outro. Não tinha vantagem, não tinha regalia nenhuma. Era um funcionário do mesmo padrão de qualquer outro...
A não ser a regalia dos Avant première... de poder ver os espetáculos em primeira mão.
(risos) Ah! Aí era uma coisa que a pessoa ia trabalhar. Ia mesmo.
Depois desse trabalho de institucionalização existia realmente um manual com regras muito claras, do tipo, "isso pode, aquilo não pode; a palavra tal pode, palavra tal não pode: pode-se citar fulano, não se pode citar fulano". Eu volto a insistir, a gente está falando mais do período pós 66, que é o período que a gente abrange no site do Chico.
O que existe é uma regulamentação básica. Agora, eu te pergunto: Você gosta de feijoada?
Eu gosto. Muito.
Qual tipo de feijoada? Baiana ou carioca?
Aí você me apertou...
É uma feijoada só. Agora a feijoada nordestina, de minha terra, por exemplo, é feita colocando dentro todos os ingredientes, maxixe, quiabo...
É como em Santa Catarina. Em Santa Catarina é assim também.
Já no Rio, não. O Rio cozinha o charque, a carne de sol, cozinha essas verduras fora do feijão. Não mistura. Quer dizer, é uma feijoada só. Isso depende muito do critério de cada pessoa. Existe a norma básica: Isso aqui é feijoada. Na hora da interpretação a pessoa tem que usar o bom senso e procurar ver se isso se enquadra dentro daquela regulamentação. Pra isso nós fazíamos cursos de reciclagem permanentes. E não era um só censor que examinava. Uma peça, um filme, passava geralmente por uma equipe, normalmente de três censores.
Eu vou dar um exemplo com uma música do Chico. Lá pelas tantas a personagem fala "me agarrei nos teu cabelos, nos teus pêlos". Num determinado momento a palavra pêlo foi proibida.
Não me lembro disso.
A música se chama Atrás da porta.
É. Não me lembro disso.
Isso aconteceu em 72 ou coisa que o valha. Existiam algumas outras palavras como pentelho, isso foi proibido. Proibições desse tipo eram da alçada do censor. Não estavam em regra básica?
Especificamente essas palavras não existiam na regulamentação porque senão teríamos que fazer um dicionário, não é? É aquilo que eu disse. Vai do bom senso e do regionalismo. Se você chegar em Fortaleza e chamar um camarada de baitola, aí você apanha na rua. Aqui, não faz sentido nenhum. Mas baitola no Ceará é um xingamento muito pesado. Então isso vai da interpretação e do regionalismo. O Brasil é grande demais. O regionalismo, naquela época, era muito atuante. Hoje não. Hoje, o Brasil, praticamente, com os meios de comunicação já globalizados e com uma dinâmica muito grande, já se nivelou. Antigamente, uma menina, uma mocinha do interior lá de Minas, lá do Piauí, lá do Mato Grosso, não tinha a mesma vivência que uma carioca ou que uma paulista. Então, muitas vezes, ela se chocava com uma coisa que para a carioca e para a paulista era a coisa mais normal do mundo. Aí é que está: o maior problema da censura era a diversificação terrível que existia na cultura brasileira. Hoje, praticamente, tudo está igual. A novela aí transmitindo para o Brasil todo, modificou o comportamento cultural.
Um dos episódios mais marcantes da censura em relação a obra teatral do Chico Buarque foi o caso da peça Calabar. Você tem alguma notícia disso? Participou? Soube? Saber, seguramente você soube disso, não é?
Eu apenas ouvi comentários, mas não fui acionado para examinar, ou participar, ou dar algum palpite ou parecer sobre o Calabar.
Parece que no Calabar, houve um desrespeito, segundo se lê nas diversas entrevistas sobre isso, um desrespeito às próprias regras da censura. Porque a peça passou por todos os rituais da censura, ou seja: manda o texto, discute, tira ali, corta aqui etc. A peça estava pronta para ser encenada e a censura não compareceu ao espetáculo destinado à apreciação...
Era o ensaio geral.
Ensaio Geral. Simplesmente não apareceu ninguém uma pessoa da censura avocou o texto para exame superior e a coisa morreu por aí. Só oito anos depois é que a peça foi liberada. Os produtores faliram etc. Então, até o próprio ritual da censura teria sido desrespeitado nessa altura, segundo o Chico, os diretores e os produtores. E ainda aconteceu um outro episódio: foi proibido divulgar a proibição.
É... Sinceramente, disso não tenho noção, não tenho conhecimento sobre isso. De maneira alguma.
Existia alguma espécie de marcação homem a homem? Por exemplo: fulano de tal marca o Caetano Veloso, ou se especializa nas letras de Caetano Veloso; fulano de tal se especializa nas letras do Chico Buarque, ou coisa que o valha?
(ri muito) Isso é uma coisa folclórica porque é impossível fazer um negócio desses. Só quem não conheceu o volume de letras musicais, o volume de peças teatrais, o volume de filmes! Naquela época, inclusive, tinha aqueles jornais cinematográficos semanais. Porque o filme, pelo menos, tem maior durabilidade de projeção. Os jornais cinematográficos eram semanais. Só quem não conhece o volume de trabalho é que pode imaginar uma coisa dessas.
Então, fazendo um gancho com volume de trabalho, o Chico deu uma entrevista para o Jô Soares, falando exatamente do volume de trabalho. Ele disse mais ou menos o seguinte: "O negócio tava meio feio e eu imaginava aqueles censores entupidos de trabalho, com a mesa cheia de coisas e eu já era um cara meio marcado. Então, se eu inventar um outro nome, as coisas passam." Foi aí que ele inventou o tal do Julinho da Adelaide. Então, o pressuposto de Chico estava certo? Volume de trabalho tinha.
Volume de trabalho tinha, realmente. Isso é inegável. Nós nos desdobrávamos e trabalhávamos muitas vezes sábado, domingo, feriado. Levávamos o material para casa para examinar. Enquanto todo mundo estava no clube ou na praia, nós estávamos lendo os textos, lendo as letras musicais para não deixar a coisa acumular. Porque na hora que um compositor, um artista, um autor, apresenta um material para censura, a nossa recomendação sempre foi, desde o início, agilizar ao máximo a sua liberação, ou a sua interdição, se fosse o caso, para que o autor pudesse tomar conhecimento o mais rápido possível. Nós julgávamos muito importante a liberação imediata do material que chegasse em nossas mãos. Cansei de trabalhar sábados, domingos e feriados. Minha família se divertindo e eu em casa trancado, trabalhando. Aliás, todos os nossos colegas.
O episódio do Julinho da Adelaide ficou muito famoso. O Chico inventou aquele heterônimo, chegou até a dar entrevistas, e esse heterônimo teve três músicas aprovadas pela censura. Tempos depois, em 75, a coisa foi desmascarada e todo mundo sabia que era o Chico Buarque. Alguém deve "ter pago o mico" por conta disso dentro da censura. Ou não?
Não sei. Nunca tinha ouvido falar.
Esse Julinho da Adelaide fez três músicas. E era o Chico Buarque. E com isso ele conseguiu driblar, segundo ele, a censura. Lúcio, se alguém pergunta a qualquer pessoa se gosta do seu trabalho, a pessoa diz que tem hora que sim, tem hora que não. Tem prazer, tem desprazer. Quais teriam sido os seus prazeres e os seus desprazeres nessa função de censor?
Eu tenho a creditar muitos mais prazeres do que desprazeres.
Você pode exemplificar?
A alegria. Eu trabalhava realmente com muito gosto. Me dedicava a fundo procurando desempenhar a minha função com o máximo de responsabilidade e procurando sempre humanizar aquilo que estava fazendo. Na hora em que me era dada uma missão para examinar ou censurar um espetáculo de televisão ou de rádio, ou peça teatral, ou letra musical, eu procurava ver naquilo apenas uma obra de arte. E não procurava... "bom eu vou ver isso aqui, se tem alguma coisa que eu possa cortar". Não! Eu não examinava assim. Procurava ver o que tinha de bonito ali dentro do trabalho. Então, eu sempre tive muito mais prazer no meu trabalho do que desprazer.
E o desprazer? Tem algum de que você se lembre especificamente? Você me contou, ontem, um episódio interessante, que eu gostaria que você repetisse e que é a história que aconteceu em Brasília.
Por uma imposição da lei, a censura se via obrigada a dar toda cobertura não só à ECAD como à SBAT, SBACEM, a uma porção de siglas que existiam...
As sociedades arrecadadoras de direitos, não é?
Arrecadadoras dos direitos autorais. Eu reconheço a importância de uma entidade que possa fazer essa arrecadação para os artistas, para os compositores. Porque, afinal de contas, eles sobrevivem graças a essa arrecadação. Mas, às vezes, havia algumas divergências entre o meu modo de agir e o modo dessas sociedades. Porque eu não aceitava, por exemplo, que qualquer uma delas, fosse cobrar do Wagner, que ia apresentar lá um espetáculo, chegasse no local e dissesse: "Ah! É música mecânica? É. Muito bem, então a taxa vai ser 1, Ah! Não vai ser música mecânica, vai ter um camarada cantando. Bom, então nesse caso é música ao vivo. Então a taxa é 2. Ah! Mas ali, naquela prateleira, tem garrafa com bebida estrangeira. Então a taxa é 3." Eu não podia admitir essa diversificação. Porque a música, para mim, ia ser apresentada e valia aquilo que... A sociedade arrecadadora deveria ter uma taxa única, no meu entender, para poder facilitar o trabalho de todo mundo. Do empresário, que fosse montar o espetáculo, do artista, que fosse cantar, e da censura, que fosse dar a cobertura à entidade arrecadadora. E essas taxas variáveis é que me davam alguma preocupação. Muitas vezes, eu tive bons relacionamentos com estas sociedades, mas tive muitas divergências na hora da cobrança de algumas taxas.
E esse episódio de Brasília? Como é que foi? Eles queriam cobrar do Chico para ele poder cantar as próprias músicas. Queriam que o espetáculo fosse censurado, é isso?
O Chico veio apresentar aqui um show na boate do Brasília Palace Hotel, que por sinal não existe mais, pegou fogo. E foi uma coisa louca, todo mundo interessado nesse show. E o empresário levou a programação lá para a censura para fazer a liberação:
- "O Chico vai cantar essas músicas que são da autoria dele."
Muito bem. A entidade foi e arbitrou uma taxa. Mas depois ele quis aumentar a taxa. Eu disse:
Não! Espera aí. Vamos com calma. O rapaz vai cantar as músicas dele. E ele vai pagar para cantar as músicas dele?
Se vocês não interditarem, eu vou tomar outras providências. Vou representar contra (e nessa ocasião, eu estava como chefe da censura em Brasília). Eu vou representar contra a chefia da censura, que não deu cobertura.
Muito bem. Mas eu vou liberar o espetáculo.
E liberei. Assumi a responsabilidade. O Chico nem sabe disso.
Mas vai saber.
Assumi a responsabilidade e como a sociedade arrecadadora disse que iria tomar outras providências, eu fiquei com receio deles chegarem lá e quererem criar problemas com os músicos e empastelar o espetáculo do Chico. Aí eu peguei minha equipe e disse: "Vamos para lá e vamos ficar somente observando para que nada prejudique o espetáculo do Chico". Aí nós fomos e ficamos espalhados em volta do recinto observando se iria haver alguma coisa que pudesse prejudicar o brilho do espetáculo. E graças a Deus, graças ao bom Deus, o pessoal cooperou. Viu que eu estava pelo menos com alguma razão, e não apareceu, não criou dificuldades. Porque eu sugeri a eles: "Vamos fazer o seguinte: Vocês mandam para lá um representante e todas as músicas que o Chico cantar, vocês anotam. Se ele cantar alguma que não seja dele, aí então vocês depois entram com uma petição na censura, que ela vai providenciar a cobrança dessas músicas junto ao seu empresário." Graças a Deus tudo correu bem. O Chico cantou. Eu nem estive com ele. Não tive a oportunidade de estar, mas gostaria de ter estado com ele. Não queria que ele soubesse do que estava acontecendo. Queria que ele ficasse tranqüilo, porque o artista nessa hora precisa estar relaxado para se apresentar e não saber que existe a perspectiva de problema, pois aí ele entra preocupado para o espetáculo. Eu não queria dar preocupação nenhuma.
Como é que você via, naquela época, e como é que você vê hoje a obra do Chico? Tem alguma música do Chico de que você goste e que você, de vez em quando, se surpreende assobiando por exemplo?
Tem várias. Tem Carolina, tem A banda e outras que agora não me ocorrem. Mas eu gosto muito. Tem algumas que eu não gosto.
Por exemplo....
Ele como cantor, a mim não me agrada muito não. Agora como artista, como compositor, pela sua inteligência, pela suas imagens literárias nas músicas, eu gosto.
Fala uma de que você não gosta. Você foi muito enfático quando falou "tem algumas que eu não gosto". Então, essa você deve saber exemplificar...
Geni.
Geni?
Inclusive, eu fiz o possível para liberá-la. O pessoal tava lá na dúvida eu disse: "Não! Vamos liberar essa música. Vamos liberar". Depois o próprio Chico pediu para tirar, não foi?
(O Chico diz que isso nunca lhe passou pela cabeça. Nota do editor)
(com cara de bobo, perplexo) Eu não sei. Posso até tentar descobrir... Mas onde que pegava a Geni? Era na palavra "bosta" ou no fato de ser uma narração de um homossexual?
"Bosta na Geni"... Porque eu achava uma palavra muito grosseira para o tipo do Chico. O Chico não era desse tipo. Não, esse camarada, nessa hora não estava bem, não estava tranqüilo. Ele devia estar meio agitado, meio preocupado, meio zangado com alguma coisa para fazer isso. Inclusive, têm muitas senhoras Geni pelo mundo que podem se sentir magoadas com isso. E não deu outra.
Deve ter causado um belo rebuliço.
"Vamos liberar com essa palavra, mas vamos mesmo. É uma palavra assim inconveniente, não é palavrão, não é pornografia, não é nada. É uma palavra apenas deslocada de um texto artístico do nível de Chico Buarque. Mas já que ele colocou, vamos liberar. Eu achava que haveria uma reação do povo contra a censura." E, de fato, houve. A censura foi muito criticada por ter liberado essa música.
A censura recebia muitas cartas de gente pedindo para censurar isso ou aquilo?
Muitas, muitas. Cartas, telefonemas, pedidos. Mas isso aí não chegava nem aos censores. A própria chefia procurava desviar, para não criar um clima de apreensão com o volume de cartas e reclamações.
A pessoa que nos aproximou, que foi o Zé Carlos, me disse que você gostava muito do Glauber Rocha e, agora entre aspas, "pena que ele era subversivo".
Pena que ele era subversivo, não. O problema do Glauber Rocha é que ele era um excelente cineasta, era um camarada que tinha um desempenho muito bom, tinha uma carreira brilhante pela frente. Só que as idéias dele, quando chegavam a ser expostas, se confrontavam com a minha missão. Não era porque ele fosse subversivo. É que se confrontava. Eu tinha uma missão a cumprir, uma missão do governo. Uma missão que estava estabelecida por normas e por diretrizes governamentais. O problema é esse. Quando a gente ia ver alguma coisa do Glauber Rocha, tinha que examinar onde ele queria chegar. É como se você fosse do Flamengo e eu fosse do Botafogo e nós fôssemos jogar. Eu gosto do jogador Wagner, como tem muitos times que são adversários em campo, mas os próprios jogadores são amigos. Na hora de fazer gol, eles têm que fazer o gol mesmo. Contra o adversário, contra o amigo. Então, eu gostava do Glauber Rocha com a capacidade maravilhosa da sua cinematografia, mas, muitas vezes, eu tinha que desempenhar o meu papel: fazer o gol.
Voltando um pouco à questão da censura de palavras, ao caso do "joga bosta na Geni"... Hoje, a coisa tá muito mais liberada. Você vê esses conjuntos todos aí, com um gestual muito mais insinuante, com palavras muito mais fortes etc. A minha pergunta é a seguinte: Qual é sua opinião? Deveria haver censura prévia hoje? Não deveria? A coisa tá muito liberal? Não tá? O tempo mudou e tem que ser assim? Como é que você vê isso hoje?
Acho que deveria continuar a censura de diversões públicas, sem o aspecto político de censura a jornais, revistas, sem a censura política a imprensa.
Censura classificatória.
Censura classificatória. Acho que deveria existir porque há excesso de liberalidade. Acho que estão confundindo liberdade com libertinagem.
Alguns episódios relacionados ao Chico, como invasão de teatro, eram coisa de grupos paramilitares. Óbvio que isso não tinha á nada a ver com o serviço de censura...
Invasão de teatro?
Invasão de teatro. Roda viva, aqui em São Paulo. O grupo paramilitar CCC invadiu o teatro, espancou atores etc. Isso, com o espetáculo liberado, pois o espetáculo só podia estar sendo encenado, se estivesse liberado. Sobre o episódio de Roda viva, você tem alguma informação?
Não, não. Desconhecia esse detalhe.
Não só aqui em São Paulo. No Rio Grande do Sul, o espetáculo estreou e não teve a segunda apresentação porque seqüestraram até atores.
Mas não foi a censura, foi?
Não... Obviamente... eu acredito que não. Eram grupos paramilitares mais ou menos comuns na época, o chamado CCC.
Não... Isso foge totalmente ao meu conhecimento. Eu desconheço plenamente isso aí.
O Editor
Conheça o que este time de personalidades da cultura brasileira falou sobre Chico Buarque...
"Chico Buarque é uma grande consciência inserida em um enorme talento."
Chico de Hollanda, de aqui e de de alhures
"Parceiro de euforias e desventuras, amigo de todos os segundos, generosidade sistemática, silêncios eloqüentes, palavras cirúrgicas, humor afiado, serenas firmezas, traquinas, as notas na polpa dos dedos, o verbo vadiando na ponta da língua - tudo à flor do coração, em carne viva... Cavalo de sambistas, alquimistas, menestréis, mundanas, olhos roucos, suspiros nômades, a alma à deriva,
Chico Buarque não existe, é uma ficção - saibam.
Inventado porque necessário, vital, sem o qual o Brasil seria mais pobre, estaria mais vazio, sem semana, sem tijolo, sem desenho, sem construção."
"Compositor, dramaturgo, escritor, poeta e laureado por todos estes dons, escreve a mais importante obra da dramaturgia brasileira que é Gota d'água, com os mais impressionantes diálogos da realidade brasileira. Situa solilóquios que são verdadeiras jóias para a representação de um ator. Sem contar as músicas e letras que expressam e contam de forma absurdamente concreta a história de Gota d'água. Chico Buarque, além de tudo é um homem belo e bom."
"Algumas coisas me chamaram a atenção no trabalho com o Chico:
- a facilidade e rapidez com que ele topou fazer o filme (Ed Mort), só tendo visto um curta meu, se dispondo a trabalhar num filme de pobre e ainda por cima, cedendo uma música;
- a emoção das mulheres da produtora, secretárias, telefonistas, todas, enfim, quando ele ligou e o tempo que levou para a "poeira" baixar depois do telefonema;
- a leveza do andar, o pisar macio no set, coisa de profissional. Indo e vindo da locação ao trailler, do trailler para a locação, só quando necessário à filmagem. Certamente, herança de Quando o carnaval chegar.
- a sensação desagradável de não ter podido parar, nem por uns minutos, para conversar, pelo delírio absoluto de fazer um filme maior que as pernas, 18 horas por dia;
Por fim, um ano e meio depois, num lançamento de livro, não consigo me aproximar. O Chico, cercado de fãs e jornalistas, consegue me ver e, por sobre as cabeças, pergunta: "Como está o nosso filme?" Não deu tempo de explicar, mas espero ter correspondido a confiança depositada."
"É um dos casos
onde o roteiro
é melhor que
o filme. A adaptação
feita por Chico,
da obra de Vinícius, para
o filme Para viver um grande
amor, é ótima. A trilha é
maravilhosa, uma história baseada
na pobre menina rica.
O Chico soube fazer isto muito bem."
Sobre a trilha e o roteiro (de Chico Buarque) do filme
Para viver um grande amor, de Miguel Faria Jr
.
"O Chico é um príncipe da Música Popular Brasileira e é mais do que um privilégio, é uma honra, poder trabalhar com ele. As trilhas musicais dos três filmes que eu produzi e que tiveram a contribuição dele, Bye bye Brasil, Quando o carnaval chegar e Joana francesa tiverem um resultado excepcional. São músicas que ficaram para sempre. Trabalhar com o Chico é muito fácil e gratificante porque ele compreende muito rapidamente as propostas apresentadas. É um homem muito inteligente e realiza maravilhosamente bem o que lhe é solicitado. Eu só posso é agradecer ao Chico de ter sempre aceito os meus pedidos e me sentir honrado com isto."
© Copyright Chico Buarque - Todos os direitos reservados