Chico Buarque, na Brazuca: “Podendo, vou até os 95
“Se tiver bola, eu dou a entrevista”. Essa foi a única exigência do nosso companheiro de pelada, Chico Buarque, numa caminhada entre o metrô e o campo. Uma bola. E eu acabara de informar que o dono da redonda não viria à pelada de quarta-feira. Éramos dez amantes do futebol, órfãos.
Sem saber se esse era um gol de letra dele para fugir da solicitação de seus parceiros jornalistas, ou uma última esperança, em forma de pressão, de não perder a religiosa partida, eu, que não creio, olhei para o céu e pedi a Deus: uma pelota!
Nada de enigma, oferenda ou golpe de Estado. Ele estava ali, o cálice sagrado da cultura brasileira, que sucumbiu ao ver não uma, mas duas bolas chegarem à quadra pelas mãos de Mauro Cardoso, mais conhecido como Ganso. A partir daí, nada mais alterou o meu ânimo e o da minha dupla de ataque-entrevista, Daniel Cariello. Apesar de termos jogado no time adversário do ilustre entrevistado, tomado duas goleadas consecutivas de 10 x 6 e 10 x 1, tínhamos a certeza de que ele não iria trair dois dos principais craques do Paristheama, e sua palavra seria honrada.
Mas o desafio maior não era convencer o camisa 10 do time bordeaux-mostarda parisiense a ceder duas horas de sua tarde ensolarada de sábado. O que você perguntaria ao artista ícone da resistência à ditadura, parceiro de Tom Jobim, Vinicius de Morais e Caetano Veloso, escritor dos best sellers “Estorvo”, “Benjamin”, “Budapeste” e “Leite Derramado”, autor de “A banda”, “Essa moça tá diferente”, “O que será”, “Construção” e da canção de amor mais triste jamais escrita, “Pedaço de mim”?
Admirado e amado por todas as idades, estudado por universitários, defendido por Chicólatras, oráculo no Facebook, onipresente nas manifestações artísticas brasileiras – sua modéstia diria “isso é um exagero”, mas sabemos que não é –, sua reação imediata ao ser comparado a Deus foi “em primeiro lugar, não acredito em Deus. Em segundo, não acredito em mim. Essa é a única coisa que pode nos ligar. Então, pra começo de conversa, vamos tirar Deus da mesa e seguir em frente”.
Enfim, ainda não creio que entrevistamos Deus, quase sem falar de Deus. Mas foi com ele mesmo que aprendi uma lição, talvez um mandamento: acreditar em coisas inacreditáveis.
(Thiago Araújo)
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Você assume que não acredita em Deus, mas existem trechos nas suas músicas como “dias iguais, avareza de Deus” ou “eu, que não creio, peço a Deus”. No Brasil, é complicado não acreditar em Deus?
Eu não tenho crença. Eu fui criado na Igreja Católica, fui educado em colégio de padre. Eu simplesmente perdi a fé. Mas não faço disso uma bandeira. Eu sou ateu como o meu tipo sanguíneo é esse.
Hoje há uma volta de certos valores religiosos muito forte, acho que no mundo inteiro. O que é perigoso quando passa para posições integristas e dá lugar ao fanatismo. O Brasil talvez seja o pais mais católico do mundo, mas isso é um pouco de fachada. Conheço muitos católicos que vão à umbanda, fazem despacho. E fica essa coisa de Deus, que entra no vocabulário mais recente, que me incomoda um pouquinho. Essa coisa de “vai com Deus”, “fica com Deus”. Escuta, eu não posso ir com o diabo que me carregue? (Risos). Tem até um samba que fala algo como “é Deus pra lá, Deus pra cá – e canta – Deus já está de saco cheio” (risos).
Você já foi em umbanda, candomblé, algo do tipo?
Já, eu sou muito curioso. A mulher jogou umas pipocas na minha cabeça, sangue, disse que eu estava cheio de encosto. Eu fui porque me falaram “vai lá que vai ser bom”. Passei também por espíritas mais ortodoxos, do tipo que encarnava um médico que me receitou um remédio para o aparelho digestivo. Aí eu fui procurar o remédio e ele não existia mais. O remédio era do tempo do médico que ele encarnava (risos).
Já tive também um bruxo de confiança, que fez coisas incríveis. Aquela música do Caetano dizia isso muito bem, “quem é ateu, e viu milagres como eu, sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar.” Eu vi cirurgias com gilete suja, sem a menor assepsia, e a pessoa saía curada. Estava com o joelho ferrado e saía andando. Eu fui anestesista dessa cirurgia. A anestesia era a música. O próprio Tom Jobim tocava durante as cirurgias. Eu toquei para uma dançarina que estava com problema no joelho. Ela tinha uma estreia, mas o ortopedista disse “você rompeu o menisco”. Ela estreou na semana seguinte, e na primeira fila estavam o ortopedista e o bruxo (risos).
Uma vez, estava com um problema e fui ao médico. Ele me tocou e não viu nada. Aí eu disse “olha, meu bruxo, meu feiticeiro, quando ele apertava aqui, doía”. Ele começou a dizer “mas essa coisa de feitiçaria…” e atrás dele tinha um crucifixo com o Cristo. Daí eu perguntei “como você duvida da feitiçaria, mas acredita na ressurreição de Cristo?”. Eu acho isso uma incongruência. Gosto de acreditar um pouco nisso, um pouco naquilo, porque eu vejo coisas inacreditáveis. Eu não acredito em Deus, acredito que há coisas inacreditáveis.
De vez em quando você dá uma escapada do Brasil e vem a Paris. Isso te permite respirar?
Muito mais. Eu aqui não tenho preocupação nenhuma, tomo uma distância do Brasil que me faz bem. Fico menos envolvido com coisas pequenas que acabam tomando todo o meu tempo. Aqui, eu leio o Le Monde todos os dias, e fico sabendo de questões como o Cáucaso, os enclaves da antiga União Soviética, que no Brasil passam muito batidos. O Brasil, nesse sentido, é muito provinciano, eu acho que o noticiário é cada vez mais local.
Meu pai, que era um crítico literário e jornalista, foi morar em Berlim no começo dos anos trinta. Foi lá, onde teve uma visão de historiador, de fora do país, que ele começou a escrever Raízes do Brasil, que se tornou um clássico. A possibilidade de ter esse trânsito, de ir e voltar, eu acho boa. É como você mudar de óculos, um para ver de longe e outro para ver de perto.
Nesse seu vai e vem Brasil-França, o que você traria do Brasil para a França, e vice-versa?
Eu traria pra cá um pouquinho da bagunça, da desordem. Os nossos defeitos, que acabam sendo também nossas qualidades. O tratamento informal, que gera tanta sujeira, ao mesmo tempo é uma coisa bonita de se ver. Você tem uma camaradagem com um sujeito que você não conhece. Aqui existe uma distância, uma impessoalidade que me incomoda.
Para o Brasil, eu gostaria de levar também um pouco dessa impessoalidade. Da seriedade, principalmente para as pessoas que tratam da coisa pública. Não que não exista corrupção na França.
Outra coisa que eu levaria pra lá é o sentimento de solidariedade, que existe entre os brasileiros que moram fora. Isso eu conheci no tempo que eu morava fora, e vejo muito aqui através das pessoas com as quais convivo. Eles se juntam. Como se dizia, “o brasileiro só se junta na prisão”. Os brasileiros também se juntam no exílio, na diáspora.
Falando em exílio, tem uma história curiosa de Essa moça tá diferente, a sua música mais conhecida na França.
É. A coisa de trabalho (N.R.: na Itália, onde Chico estava em exílio político, em 1968) estava só piorando e o que me salvou foi uma gravadora, a Polygram, pois minha antiga se desinteressou. A Polygram me contratou e me deu um adiantamento. E consegui ficar na Itália um pouco melhor. Mas eu tinha que gravar o disco lá. Eu gravei tudo num gravador pequenininho. Um produtor pegou essas músicas e levou para o Brasil, onde o César Camargo Mariano escreveu os arranjos. Esses arranjos chegaram de volta na Itália e eu botei minha voz em cima, sem que falasse com o César Camargo. Falar por telefone era muito complicado e caro. Então foi feito assim o disco. É um disco complicado esse.
Você acabou de citar o Le Monde. Para nós, que trabalhamos com comunicação, sempre existiu uma crítica pesada contra os veículos de massa no Brasil. Você acha que existe um plano cruel para imbecilizar o brasileiro?
Não, não acredito em nenhuma teoria conspiratória e nem sou paranoico. Agora, aí é a questão do ovo e da galinha. Você não sabe exatamente. Os meios de comunicação vão dizer que a culpa é da população, que quer ver esses programas. Bom, a TV Globo está instalada no Brasil desde os anos 60. O fato de a Globo ser tão poderosa, isso sim eu acho nocivo. Não se trata de monopólio, não estou querendo que fechem a Globo. E a Globo levanta essa possibilidade comparando o governo Lula ao governo Chavez. Esse exagero.
Você acha que a mídia ataca o Lula injustamente?
Nem sempre é injusto, não há uma caça às bruxas. Mas há uma má vontade com o governo Lula que não existia no governo anterior.
E o que você acha da entrevista recente do Caetano Veloso, onde ele falou mal do Lula e depois acabou sendo desautorizado pela própria mãe?
Nossas mães são muito mais lulistas que nós mesmos. Mas não sou do PT, nunca fui ligado ao PT. Ligado de certa forma, sim, pois conheço o Lula mesmo antes de existir o PT, na época do movimento metalúrgico, das primeiras greves. Naquela época, nós tínhamos uma participação política muito mais firme e necessária do que hoje. Eu confesso, vou votar na Dilma porque é a candidata do Lula e eu gosto do Lula. Mas, a Dilma ou o Serra, não haveria muita diferença.
O que você tem escutado?
Eu raramente paro para ouvir música. Já estou impregnado de tanta música que eu acho que não entra mais nada. Na verdade, quando estou doente eu ouço. Inclusive ouvi o disco do Terça Feira Trio, do Fernando do Cavaco, e gostei. Nunca tinha visto ou ouvido formação assim. Tem ao mesmo tempo muita delicadeza e senso de humor.
A música francesa te influenciou de alguma maneira?
Eu ouvi muito. Nos anos 50, quando comecei a ouvir muita música, as rádios tocavam de tudo. Muita música brasileira, americana, francesa, italiana, boleros latino americanos. Minha mãe tinha loucura por Edith Piaf e não sei dizer se Piaf me influenciou. Mas ouvi muito, como ouvi Aznavour.
O que me tocou muito foi Jacques Brel. Eu tinha uma tia que morou a vida inteira em Paris. Ela me mandou um disquinho azul, um compacto duplo com Ne me quitte pas, La valse à mille temps, quatro canções. E eu ouvia aquilo adoidado. Foi pouco antes da bossa nova, que me conquistou para a música e me fez tocar violão. As letras dele ficaram marcadas para mim.
Eu encontrei o Jacques Brel depois, no Brasil. Estava gravando Carolina e ele apareceu no estúdio, junto com meu editor. Eu fiquei meio besta, não acreditei que era ele. Aí eu fui falar pra ele essa história, que eu o conhecia desde aquele disco. Ele disse “é, faz muito tempo”. Isso deve ter sido 1955 ou 56, esse disquinho dele. Eu o encontrei em 67. Depois, muito mais tarde, eu assisti a L’homme de la mancha, e um dia ele estava no café em frente ao teatro. Eu o vi sentado, olhei pra ele, ele olhou pra mim, mas fiquei sem saber se ele tinha olhado estranhamente ou se me reconheceu. Fiquei sem graça, pois não o queria chatear. Ele estava ali sozinho, não queria aborrecer. Mas ele foi uma figuraça. Eu gostava muito das canções dele. Conhecia todas.
Falando de encontros geniais, você tem uma foto com o Bob Marley. Como foi essa história?
Foi futebol. Ele foi ao Brasil quando uma gravadora chamada Ariola se estabeleceu lá e contratou uma porção de artistas brasileiros, inclusive eu, e deram uma festa de fundação. O Bob Marley foi lá. Não me lembro se houve show, não me lembro de nada. Só lembro desse futebol. Eu já tinha um campinho e disseram “vamos fazer algo lá para a gravadora”. Bater uma bola, fazer um churrasco, o Bob Marley queria jogar. E jogamos, armamos um time de brasileiros e ele com os músicos. Corriam à beça.
Vocês fumaram um baseado juntos?
Não. Dessa vez eu não fumei.
E essa sua migração para escritor, isso é encarado como um momento da sua vida, já era um objetivo?
Isso não é atual. De vinte anos pra cá eu escrevi quatro romances e não deixei de fazer música. Tenho conseguido alternar os dois fazeres, sem que um interfira no outro.
Eu comecei a tentar escrever o meu primeiro livro porque vinha de um ano de seca. Eu não fazia música, tive a impressão que não iria mais fazer, então vamos tentar outra coisa. E foi bom, de alguma forma me alimentou. Eu terminei o livro e fiquei com vontade de voltar à musica. Fiquei com tesão, e o disco seguinte era todo uma declaração de amor à música. Começava com Paratodos, que é uma homenagem à minha genealogia musical. E tinha aquele samba (cantarola) “pensou, que eu não vinha mais, pensou”. Eu voltei pra música, era uma alegria. Agora que terminei de escrever um livro já faz um ano, minha vontade é de escrever música. Demora, é complicado. Porque você não sai de um e vai direto para outro. Você meio que esquece, tem um tempo de aprendizado e um tempo de desaprendizado, para a música não ficar contaminada pela literatura. Então eu reaprendo a tocar violão, praticamente. Eu fiquei um tempão sem tocar, mas isso é bom. Quando vem, vem fresco. É uma continuação do que estava fazendo antes. Isso é bom para as duas coisas. Para a literatura e para a música.
Tanto em Estorvo quanto em Leite derramado o leitor tem uma certa dificuldade em separar o real do imaginário. Você, como seus personagens, derrapa entre essas duas realidades?
Eu? O tempo todo, agora mesmo eu não sei se você esta aí ou se eu estou te imaginando (gargalhadas).
Completamente. Eu fico vivendo aquele personagem o tempo todo. Entrando no pensamento dele. Adquiro coisas dele. Você pode discordar, mas chega uma hora que tem que criar uma empatia ou uma simpatia. Você cria uma identificação. E alguma coisa no gene é roubado mesmo de mim, algumas situações, um certo desconforto, não saber bem se você é real, se você está vivendo ou sonhando aquilo. Por exemplo, agora que ganhamos de 10 a 1 (referência à pelada que jogamos três dias antes), eu saí da quadra e falei: “acho que eu sonhei. Não é possível que tenha acontecido” (risos).
Você é fanático por futebol?
Não sou fanático por nada. Mas eu tenho muito prazer em jogar futebol. Em assistir ao bom futebol, independentemente de ser o meu time. Quando é o meu time jogando bem, é melhor ainda, pois eu consigo torcer. Agora mesmo, no Brasil, tinha os jogos do Santos.
Mas eu vou menos aos estádios. Eu não me incomodo de andar na rua, mas quando você vai a alguns lugares, tem que estar com o cabelo penteado, tem que estar preparado para dar entrevistas. Aqui, eu estou dando a minha última (risos). Aqui, é exclusiva. Fiz pra Brazuca e mais ninguém. Eu quero ver o pessoal jogar bola. Então eu vejo na televisão. E quando não estou escrevendo, aí eu vejo bastante.
É verdade que um dia o Pelé ligou na sua casa, lamentando os escândalos políticos no Brasil, e disse “é, Chico, como diz aquela música sua: ‘se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão’”?
É verdade (risos). Eu falei “legal, Pelé, mas essa música não é minha”. O Pelé é uma grande figura. Nós gravamos um programa juntos. Brincamos muito. Conheci o Pelé quando eu fazia televisão em São Paulo, na TV Record, e me mudei para o Rio. Os artistas eram hospedados no Hotel Danúbio, em São Paulo. O mesmo onde o Santos se concentrava. Então, eu conheci o Pelé no hotel. E sempre que a gente se encontra é igual, porque eu só quero falar de futebol e ele só quer saber de música. Ele adora fazer música, adora cantar, adora compor. Por ele, o Pelé seria compositor.
E você, trocaria o seu passado de compositor por um de jogador?
Trocaria, mas por um bom jogador, que pudesse participar da Copa do Mundo. Um pacote completo. Um jogador mais ou menos, aí não.
Você ainda pretende pendurar as chuteiras aos 78 anos, como afirmou?
Não. Já prorroguei. Tava muito cedo. Agora, eu deixei em aberto. Podendo, vou até os 95 (risos).
O Niemeyer está com 102 anos e continua trabalhando. Aliás, não só trabalhando como ainda continua com uma grande fama de tarado (risos).
Ele me falou isso. Eu fui à festa dele de 90 anos e ele me disse: “o importante é trabalhar e ó (fez sinal com a mão, referente a transar)”. Aí eu falei “é mesmo?” e ele respondeu “é mesmo”.
Falando nisso, o Vinícius foi casado nove vezes. Você acha a paixão essencial para a criação?
Sem dúvida. Quando a gente começa – isso é um caso pessoal, não dá pra generalizar – faz música um pouco para arranjar mulher. E hoje em dia você inventa amor para fazer música. Se não tiver uma paixão, você inventa uma, para a partir daí ficar eufórico, ou sofrer. Aí o Vinícius disse muito bem, né? “É melhor ser alegre que ser triste… mas pra fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não”.
Quando eu falo que você inventa amores, você também sofre por eles. “E a moça da farmácia? Ela foi embora! Elle est partie en vacances, monsieur!”. E você não vai vê-la nunca mais. Dá uma solidão. Eu estou fazendo uma caricatura, mas essas coisas acontecem. Você se encanta com uma pessoa que você viu na televisão, daí você cria uma história e você sofre. E fica feliz e escreve músicas.
Pra finalizar. Se você fosse escrever uma carta para o seu caro amigo hoje, o que você diria?
Volta, que as coisas estão melhorando!
Papo cabeça pra pensar
O REDATOR DO MEU PRIMEIRO ALMANAQUE
Para celebrar a centésima edição do ALMANAQUE, decidimos convidar queridos amigos que, de um jeito ou de outro, estiveram presentes ao longo dessas 100 edições. E eis que na lista pintou o Chico. Afinal, foi com ele que fiz o meu primeiro almanaque, em forma de capa e encartes de seu disco de 1981. Era, de certo modo, o embrião desta revista que o leitor tem em mãos. Mas o que fazer se o sujeito é tão avesso a entrevistas? Vamos então de papo-rápido, por e-mail, em que ele se lembra de histórias, dá palpites sobre a composição ministerial e, como sempre, dá um jeitinho de se gabar de seu dito “futebol vistoso”.
Entre as principais influências artísticas de muita gente da música brasileira está Vinicius de Moraes. Ele, amigo de seu pai, foi também importante na sua formação, na escolha de sua carreira?
Vinicius foi um grande amigo meu, mas no fundo nunca deixei de vê-lo como uma extensão do meu pai. Era uma espécie de meu pai mais doido que me acompanhava por aí, um papai de noitadas, bebedeiras e confissões exau
stas. Era às vezes o meu pai em versão criança. E acabou sendo um meu pai mais íntimo. Mas muita coisa que vi no Vinicius já tinha aprendido com meu pai. Como achar graça de quem se dá importância, de quem se leva muito a sério.
Qual a sua primeira imagem de Vinicius?
Minha primeira lembrança do Vinicius vem de Roma, em 1953 ou 1954. Era o Vinicius lá em casa, cantando e tocando o violão da Miúcha, um violão chamado Vinicius. Eu me lembro dele cantando Quando Tu Passas por Mim e Cem por Cento. Depois que ele ia embora, o assunto Vinicius ficava mais uns dias rodando lá em casa. Minha mãe dizia que Cem por Cento tinha sido feita para a Tati, primeira mulher dele. E eu achava que o Vinicius tinha de casar de novo com a Tati.
O que te levou à música, em detrimento de tantas escolhas que se apresentavam?
Um compacto simples chamado Chega de Saudade, de João Gilberto, lançado em 1958.
Ao longo de seus mais de 40 anos de carreira, dezenas de discos, você se arrepende de alguma música que escreveu? Dizem que há um certo desgosto com as canções do Volume 4, de 1970...
Não passo muito tempo relembrando minhas canções antigas. Mas algumas me dão certa aflição, porque claramente feitas às pressas, desperdiçadas. Outras me parecem obscuras, não sei bem o que eu queria dizer com elas.
E, por outro lado, há alguma música da qual você mais se orgulha? Ou um álbum inteiro?
Não tenho muito isso, não. Na verdade, tenho gosto pelas músicas e pelos álbuns durante o processo de criação, em fase de ensaios, nas gravações.
Lembrança minha: nós em um carro, indo talvez para uma partida de futebol, e você deu um jeito de parar o carro, arranjar um telefone e ligar para o seu pai, perguntando quem, afinal, tinha chegado a uma ilha e queimado os navios para não mais poder sair dali. A história acabou entrando em Eu Te Amo, sua e do Tom, de 1980 (Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios / Rompi com o mundo, queimei meus navios / Me diz pra onde é que inda posso ir). Mas o fato é que aquela idéia era tão avassaladora, tão urgente... É sempre assim seu processo de criação?
Não me lembro desse telefonema, mas é bastante crível. Só que a história de queimar os navios, que eu saiba, se passou com Pizarro na chegada ao Peru, para evitar que seus soldados pensassem na possibilidade de uma retirada. Se estou com uma idéia que me parece boa, fico assim mesmo, meio irrequieto. O Drummond dizia que, quando começava a escrever um poema, sentia um pouco de febre.
Uma confissão de inveja: há alguma música de alguém que você gostaria de ter feito?
Isso sim. Gostaria de ter feito milhares de músicas que outros fizeram. Quando estou distraído, só canto e assobio as músicas dos outros. Outro dia, num avião de volta ao Brasil, fiquei mole só de ouvir o Caymmi: Quem vai pra beira do mar, ai/ nunca mais quer voltar, ai.
Qual o seu próximo trabalho, um livro ou um disco?
Gostaria de escrever um novo romance, mas ainda não encontrei o caminho.
Como você interpreta as duas fases mais visíveis da sua produção, como músico e como escritor? Elas formam um conjunto ou são, realmente, duas facetas distintas?
São distantes, nem se falam.
O seu LP Almanaque, de 1981, foi o primeiro almanaque que fiz. É, de certo modo, um embrião deste almanaque que completa 100 edições...
Acho que o projeto gráfico ficou todo por sua conta. Que eu me lembre, colaborei com os textos, mas alguns textos como os de As Vitrines, espelhados, já sugeriam a solução gráfica que você encontrou.
Na sua infância você costumava ler almanaques?
Não me lembro muito de ler almanaques. Do que eu gostava mesmo era de álbum de figurinhas.
Mas tem algum gosto tipo almanaque?
Talvez criar palíndromos seja um gosto de almanaque.
Há muitos boatos relacionados a você, como o de que teria feito a música Jorge Maravilha, de 1974 (Você não gosta de mim / Mas sua filha gosta), para a filha do então presidente Ernesto Geisel. De todas essas lendas, qual você considera a mais divertida?
Nunca fiz música pensando na filha do Geisel, mas essas histórias colam, há invencionices que nem adianta mais negar. Durante a ditadura, de um lado ou de outro, as pessoas gostavam de atribuir aos artistas intenções que nunca lhe passaram pela cabeça. Achavam que a maioria dos artistas só fazia música pensando em derrubar o governo. Depois da ditadura, falam que o artista só faz música para pegar mulher. Mas aí geralmente acontece o contrário, o artista inventa uma mulher para pegar a música.
É verdade que, na Itália, você serviu de motorista para o Garrincha?
Eu morava em Roma, quando o Garrincha chegou com a Elza Soares, que foi fazer uma temporada de shows. Eles foram esticando por lá, fizemos amizade. Fiquei mais próximo do Garrincha, mesmo porque, ao contrário da Elza, ele não tinha muito o que fazer. Ele já não podia atuar profissionalmente, mas era muito popular e ganhava algum dinheiro para jogar bola nos arredores de Roma. Eram pequenos estádios, cujas arquibancadas lotavam para ver o Garrincha. Eu tinha muito orgulho de levá-lo para cima e para baixo no meu pequeno Fiat. E passávamos horas no meu apartamento, bebendo grappa e falando de música, mais que de futebol. O Garrincha era fã de João Gilberto.
Outra que não sei se é verdade é que muitas vezes, no exterior, você teria se dito jogador aposentado da seleção brasileira... Que história é essa?
Aposentado, não, simplesmente jogador da seleção, quando me perguntam se sou brasileiro. É para impor respeito.
Lembro que, numa manhã, há muito tempo, enquanto nos preparávamos para uma daquelas peladas, falei do meu filho Bento, que, apesar de levar todo o jeito para o esporte, tinha desistido por conta do preconceito que sofria. Você disse que havia passado pela mesma situação. Como foi isso?
Talvez não fosse exatamente preconceito. Mas ouvi, sim, rudes ameaças de alguns zagueiros adversários, aborrecidos com meu futebol vistoso.
Agora, política. Você foi o idealizador do Ministério do Vai dar Merda, desgraçadamente não implantado pelo governo federal. Ainda é tempo? Como seria a atuação dele?
Um pessimista mais radical poderia sugerir que esse ministério tivesse poderes retroativos, até 500 e tantos anos atrás. Com o argumento do “vai dar merda”, D. Manuel seria convencido a não financiar a expedição de Cabral.
E já que a palavra de ordem é criar novos ministérios, alguma outra idéia para tratar das questões do País? Ou quem sabe uma nova instituição?
Sim, proponho que se acabe com esse negócio de “este país é uma merda”. Além de ciclotímico, brasileiro é muito auto-referente. Uma vez um italiano me perguntou por que é que aqui há tanta música falando em Brasil, Brasil, Brasil. Drummond já dizia que o Brasil precisa descansar de nossas terríveis carícias.
Qual o seu partido? Ainda está para ser criado?
Nunca tive partido, nem pretendo ter. A entrevista da edição passada foi com Hermínio Bello de Carvalho, que disparou a idéia de uma seção de epitáfios. O dele: “Não vim ao mundo para fazer gracinhas!” Lembrou também o de Eneida de Moraes: “Essa mulher nunca topou chantagem”. E o seu, qual é?
Não quero epitáfio, não. Mas, para a sua sessão, sugiro aquele do Aretino: Qui giace l’Aretin, poeta tosco / Che disse mal d’ogni un, fuorché di Cristo / Scusandosi col dir: non lo conosco [em português: Aqui jaz Aretino, poeta toscano / Que falou mal de todos, menos de Cristo / Desculpou- se dizendo: não o conheço].
Aos 62, Chico diz que debate sobre esquerda é conversa boba e de direita Publicidade
Despojado com camiseta branca e calça jeans, Chico Buarque, 62, pediu ontem respeito aos seus cabelos brancos, respeito ao seu direito de pedestre e respeito a poder discordar "quase sempre" de Caetano Veloso.
No ensaio do show "Carioca", que estréia no dia 4 no Canecão, em Botafogo, zona sul do Rio, questionado pela Folha, Chico comentou a frase do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: "Se você conhecer uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque ela tem problemas; se você conhecer uma pessoa muito nova de direita, é porque também tem problemas".
"Isso é uma bobagem. Como bobagem não precisa ser levada tão a sério. Esse assunto não rende mais não. Essa conversa é muito antiga de incendiário e bombeiro. Essa é uma conversa de direita sem dúvida. Eu não mudei porque tenho cabelos brancos. Não sei se botox é de direita ou de esquerda", disse o cantor e compositor.
Ainda se acha de esquerda, Chico? "Acho que sim", respondeu seco. No dia seguinte ao ataque de traficantes que causou 18 mortes, deixou 23 feridos e provocou a destruição de dezenas de ônibus, carros e prédios públicos, Chico se mostrou tranqüilo. "Pessoalmente não me sinto mais inseguro, porque na verdade era de se esperar. Quando aconteceu em São Paulo, as pessoas mais atentas perguntavam quando aconteceria no Rio. Não é nenhuma surpresa para mim."
Disse que não é alarmista nem estava disposto a viver a "paranóia" da insegurança. "Todas as grandes cidades pioraram. Não sou saudosista. Não tenho saudades do Rio. Tenho boas lembranças. Não tenho saudades de mim. Tenho boas lembranças. Hoje é uma cidade mais violenta, mais deteriorada."
O compositor criticou também a violência de classe média. "O sujeito aqui corre risco de ser atropelado mesmo na faixa da segurança. Ficam falando em violência e violência, mas é violência também quem dirige um carro e avança o sinal. Outro dia estava lá andando, atravessando na faixa, o sinal aberto para mim, o cara quase me atropela. Podia ter quebrado a perna ou ter morrido. E o cara tinha um adesivo: "Basta!" Basta de violência. Violência também é isso", disse em referência à campanha de organização não-governamental liderada por grupos de classe média que pede mais segurança.
Chico elogiou o novo disco de Caetano Veloso, mas disse discordar dele "quase sempre". "Eu adoro o disco do Caetano. É interessante isso. Ele é o contrário do meu. A gente convive há 40 anos, às vezes por caminhos paralelos, às vezes por caminhos diferentes, mas é bom que seja assim. É bom que seja assim para todo mundo: para mim, para ele, para a música. Durante estes 40 anos já tentaram criar algum tipo de conflito entre nós. E não dá certo porque a gente se gosta, sou amigo dele, sou admirador dele. "Também discorda na política, Chico?" "Também. Não preciso concordar em tudo com o Caetano. Aliás, discordo quase sempre. Isso é bom. A gente discorda amigavelmente. Acho o disco muito forte, muito bom. Está procurando uma coisa que não é o que eu estou fazendo. Ele foi por um caminho, eu fui por outro. Pode ser que daqui a alguns anos eu me interesse também por outra coisa e ele... Na raiz está tudo lá. Meu disco sem dúvida é mais rebuscado harmonicamente. Foi uma preocupação que eu tive. São caminhos que o Caetano pode trilhar. Eu posso querer fazer um disco mais cru. O rock não é a minha linguagem . É muito mais dele do que minha."
Chico Buarque e suas novas namoradas
"Quando pego o violão, é como começar um caso amoroso, uma mulher que você não conhece. No começo você faz muita cerimônia"
Há alguns meses, Chico Buarque iniciou um novo "caso amoroso". As palavras são dele para descrever seus próprios sentimentos. Após ter finalizado o romance Budapeste, lançado em 2003, o escritor abandonou o teclado do computador para, com vagar, se dedicar à paixão do músico: o violão e a composição. Os dois anos dedicados exclusivamente à literatura, no entanto, dificultaram a transição:"Quando volto a compor, não sei mais como se faz para escrever uma música. Quando pego o violão de novo, é como se não tivesse domínio do instrumento. É um pouco como começar um caso amoroso, uma mulher que você não conhece, não sabe como lidar, no começo você faz muita cerimônia. E o violão ficava ali, arredio. Mas, quando a música começa a aparecer, ela é inteiramente nova. É mesmo uma nova namorada", disse em entrevista em Paris, no apartamento que mantém na capital francesa. Desse namoro, nasceu, em abril passado, o CD Carioca, o primeiro em oito anos depois do lançamento de Cidades [1998].
Desde que passou a alternar a música com a literatura, seus discos e shows se tornaram mais raros e espaçados, mas o desejo de criar algo musicalmente novo na sua obra, construída em 42 anos de carreira, permanece: "Você já seguiu muitos caminhos, mas quer fazer o que ainda não fez, uma vontade de procurar algo original e, portanto, mais difícil. Às vezes, você tem a impressão de que já falou sobre tudo, todos os assuntos, já tocou todas as notas, já harmonizou de todas as formas possíveis. Mas você sempre pode descobrir coisas novas. As músicas que eu compus agora têm pouco a ver melódica e harmonicamente com o que eu fiz antes".
INSPIRAÇÃO FRANCESA
O novo disco traz doze canções, suas novas namoradas, com tratamento orquestral diferente para cada uma. Em "Subúrbio", a última a ser composta, foi incluída uma seqüência harmônica tipo espanhola. "Eu ficava fazendo aquele desenho harmônico mil vezes por dia. Mudava uma coisinha no dia seguinte e regravava. É sempre uma coisa obsessiva para mim. Eu trabalho obsessivamente", diz. Já "Outros Sonhos" surgiu a partir de versos anônimos que seu pai costumava cantar: Soñé que el fuego heló/Soñé que la nieve ardía/Y por soñar lo imposible, ay, ay/Soñé que tú me querías . "Meu pai cantava muito isso quando eu era garoto, lembro muito disso e, depois, sumiu. De repente, volta, e aquela idéia começa a ficar te perseguindo, "tenho de fazer essa música", conta. Apenas duas canções são relacionadas, por tratarem do mesmo tema, "As Atrizes" e "Ela Faz Cinema". "Uma é a continuação da outra. Mas assim mesmo são diferentes, uma é um choro canção, outra é uma bossa nova", nota.
A inspiração para "As Atrizes" apareceu durante as gravações realizadas em Paris para a recente série de DVD sobre a vida e a obra do compositor. A capital francesa foi escolhida como cenário para o DVD À Flor da Pele, sobre a temática feminina de suas canções. Em 1954, quando a família Buarque de Hollanda morava na Itália, o menino Francisco, de apenas 10 anos de idade, desembarcou pela primeira vez na Cidade Luz acompanhado dos pais. Foi a descoberta dos jogos de fliperama e, principalmente, de mulheres nuas. Em imagens penduradas nas bancas de jornais e pôsteres colados nas paredes, as mulheres se exibiam num despudor até então desconhecido aos seus olhos. Foi o seu primeiro "alumbramento", disse, numa referência aos versos do poeta Manuel Bandeira em Evocação do Recife: "Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo /Ela se riu /Foi o meu primeiro alumbramento". "Eu nunca tinha visto nada parecido, nunca tinha visto peito na minha vida. Na verdade, só os das minhas irmãs, mas isso não contava, elas não tinham peito, eram mais novas do que eu. Então, aquele menino ficou deslumbrado com aquela coisa. E logo depois tinha aqueles filmes franceses, proibidos para menores de 18 anos, mas que a gente, às vezes com jeitinho, conseguia, com 15, 16 anos, entrar no cinema para ver Martine Carol e aquelas atrizes francesas - e mais tarde a Brigitte Bardot - nuas. Então, escrevi essa música em cima dessas reminiscências de infância, pré-adolescência e de adolescência, das atrizes nuas que eu via e ficava de boca aberta", conta.
Na sua música, as mulheres costumam ser despidas em versos. Já se tornou lugar-comum dizer que, pelas letras de suas canções, Chico Buarque é um profundo conhecedor da alma feminina. Modestamente, ele discorda: "A alma feminina é um grande mistério. Sinto-me um voyeur diante das mulheres, gosto de observá-las, e não de ser observado por elas. Acho uma contradição isso de dizer todo tempo que eu expresso muito bem o sentimento feminino, pois, para mim, as mulheres são um enorme mistério", confessou no depoimento feito para o DVD à Flor da Pele. Já Paris, reconhecida como cidade de alma feminina, há muito tempo não lhe é mais misteriosa. "Hoje, o fruteiro já me reconhece e sabe que gosto de papaia. Tenho minha casa aqui e minhas referências na cidade." Embora sua residência permanente seja o Rio de Janeiro, as temporadas passadas na capital francesa são freqüentes, sobretudo em período de criação literária. "Num mês aqui escrevo quase o dobro do que escreveria no Rio. Você fica mais isolado", diz. O Rio, no entanto, é o seu porto seguro: "Eu gosto do Rio de Janeiro, cidade onde nasci e moro, mesmo, há 40 anos. Fui com 2 anos para São Paulo, estive um tempo em Roma, mas com 21 anos voltei para o Rio para fazer um show e fiquei. É a cidade onde sei morar melhor. Cidade não é só gostar, tem de saber morar."
"Eu não sou tímido na minha vida normal. Mas eu não acho que seja normal você subir no palco e cantar."
SEXAGENÁRIO ASSUMIDO
A turnê nacional do show Carioca estréia no dia 30 de agosto, no Tom Brasil, em São Paulo, e se estenderá até junho de 2007, por mais sete cidades. Para Chico Buarque, no entanto, subir no palco ainda provoca uma certa angústia: "Eu não sou tímido na minha vida normal. Mas eu não acho que seja normal subir no palco e cantar. Ali, realmente, travo um pouco. Não se como vai ser o próximo show, espero não sofrer. Eu gosto dos ensaios, gosto de viajar com os músicos, essa coisa toda é muito boa, a gente se diverte muito. Mas entrar no palco, uma estréia, quando penso agora fico um pouquinho apreensivo. Às vezes, a boca fica seca. Sei lá, acontece mesmo de esquecer tudo, de dar tudo errado. Mas ao logo da temporada vai melhorando".
Aos 62 anos, completados no último dia 19 de junho, Chico Buarque é um pai avô que curte a família, "Eu me dou bem muito bem com as minhas filhas, e gosto de crianças, de netos. É aquela corujice normal. Nem sou muito curtidor de bebê, mas, quando começa a falar e fazer comentários, a definir a personalidade, isso é muito interessante. Tudo tão diferente um do outro. Fico provocando para saber como cada um vai reagir." Para o sexagenário assumido, a velhice se insinua cada vez mais, mas não é uma de suas preocupações cotidianas: '"Ela vai chegando, vai se instalando aos poucos. Tem umas coisinhas que você vai percebendo, uma mazelazinha ali que não tem jeito, é mesmo assim. Mas não estou me queixando'". Sua sempiterna paixão pelo futebol confirma: três vezes por semana joga pelada no seu campo no Recreio, vestindo a camiseta número 9 de seu time, o "imbatível" Politheama. Quando não está com a bola nos pés, caminha à beira-mar, no calçadão do Leblon e de Ipanema. "Eu não jogo futebol para ficar em forma, eu fico em forma para jogar futebol. Então, tenho de fazer minha caminhada'",diz. Seu footing também é um laboratório de criação, pois ele só consegue criar em movimento. Quando é interrompido no meio do caminho por um fã em busca de uma foto ou de um autógrafo, já tem a resposta pronta: "Não posso dizer que estou trabalhando, porque aí ninguém vai acreditar. Então, digo que estou me exercitando, que meu personal trainer está vindo lá atrás e não me deixa parar'", diz, rindo.
Às vésperas de enfrentar a nova turnê e já preparando o espírito para, mais tarde, começar a escrever um novo livro, Chico Buarque diz não temer a morte: ' "Gosto muito da vida, não quero morrer, não. Quero viver, viver bastante. E viver bem. Acho que com saúde, fazendo as coisas direito, dá para viver um bocado mais. Gostaria de viver com saúde e com imaginação, com vontade de criar coisas. Aos noventa e tantos anos e virando a noite por causa de uma música, por causa de um livro. Formidável".
"Gostaria de viver com saúde e vontade de criar coisas. Aos noventa e tantos anos e virando a noite por causa de uma música, de um livro"
A dupla vida de Chico
Ele mostra mais uma vez que se move com desenvoltura de craque nos campos paralelos da música e da literatura
Chico flutua no campo de futebol, a bola colada aos pés, como se reencarnasse Pagão, o refinado centro-avante que jogou ao lado de Pelé antes que surgisse Coutinho. Por alguns toques e deslocamentos, lembra outro atacante que admira, Hidegkuti, da magnífica seleção húngara de 1954. E em certos momentos, por alguns toques e passes sutis, poderia ser confundido ora com Zico, ora com Ronaldinho Gaúcho.
São coisas do futebol e da história do futebol, uma das paixões a que Chico se entrega três vezes por semana, sempre que possível. Almoça frugalmente em seu apartamento no Leblon e segue com o amigo, produtor e escudeiro, Vinicius França, para seu campinho no Recreio dos Bandeirantes, quando está no Rio. Quando não está, procura um campo para matar a insopitável fome de bola.
Pois o futebol que Chico gostaria de jogar, com o tempero desses craques históricos e lampejos de Pelé, lembra sempre o refinamento e a sutileza das letras de suas canções, essas, sim, de craque consumado.O maior dos craques.
Tal habilidade, sutileza e refinamento aparecem de novo no recém-lançado disco, Carioca, que pode ser acompanhado do DVD Reconstrução, sobre os bastidores da gravação. Seu disco anterior, As Cidades, é de 1998. Entre um e outro disco, lançou em 2003 o romance Budapeste, depois de ter escrito Estorvo, Benjamim e algumas peças e musicais.
É nesse campo, o artístico, que ele de fato desliza suave, às vezes flutua, magistral como ninguém. Esse é seu melhor campo. Nele circula feliz e se move com facilidade, apesar das agruras da criação. Move-se com tanta facilidade que, pelos resultados, nem parece ter tido o trabalho exaustivo de depuração que confessa ter. Trabalho de pesquisa, de mergulho interior, da busca permanente da melhor forma: "... reescrevo tudo inúmeras vezes". É de seu trabalho, de sua maneira de escrever e de suas preocupações que fala nesta entrevista.
Francisco Buarque de Holanda nasceu no Rio em junho de 1944 e passou a juventude em São Paulo, depois de uma estada e estudos em Roma, quando garoto, levado pela família: o pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, foi adido cultural e professor em Roma em 1954 e 1955.
Em São Paulo, cursou colégios da cidade e o primeiro ano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi em São Paulo também que se iniciou musicalmente ao participar dos festivais da década de 60. Era conhecido como "carioca", porque passava as férias no Rio, na casa de parentes, e tinha (e tem) sotaque carioquês. É o Rio que homenageia com seu último disco. Não só o Rio da zona sul, que sempre freqüentou e onde mora, mas o da periferia. O Rio humilde pouco conhecido dos que visitam a cidade, que talvez continue maravilhosa. O Rio que não está nos mapas turísticos.
Língua — Desde o lançamento de seu disco anterior, você voltou a ter contato com o público em shows e, agora, no novo trabalho. O jovem de hoje recebe bem os artistas de sua geração?
Chico — Muita coisa mudou. As pessoas mais velhas relacionam as canções com momentos da própria vida, com fatos da época. Festivais, perseguições políticas, diferenças entre tendências musicais. Para os jovens, isso não existe. Um dia um deles disse que gostava muito de uma de minhas canções, Com Açúcar, com Afeto, que já tem 40 anos! Tenho impressão de que para a maioria deles sou um músico de um passado talvez sem nuances. Mas eles gostam das músicas. A maioria gosta. E olha que em certo momento já fui considerado completamente ultrapassado por alguns. Depois o interesse voltou. Pode ser que daqui a algum tempo percam de novo o interesse. Mas eu sou teimoso. E, a esta altura, não preciso me preocupar com o sucesso imediato.
Você ficou famoso como músico, letrista. De vez em quando pára e dedica-se a livros. O que o leva a uma coisa e outra? São dois Chicos?
Comecei a escrever Estorvo após mais de um ano sem conseguir trabalhar com música. Provavelmente, o livro já estava se escrevendo desde algum tempo na minha cabeça. Imagino que a cabeça esteja sempre a trabalhar, mesmo ou sobretudo em períodos de aparente bloqueio criativo. Estorvo trata da questão da linguagem, da palavra. Resulta um pouco da minha curiosidade pela palavra, pela linguagem.
Nos tempos de escola, você já desenvolvia essa curiosidade? Interessava-se muito pelo idioma? Estudava além das obrigações escolares?
Sim. Mas nunca estudei além das obrigações escolares. Sempre tive bons professores e não fui péssimo aluno.
E agora? Consulta dicionários ou livros de referência sobre o idioma quando escreve?
Sempre. Consulto o Caldas Aulete, o Houaiss, o Dicionário de Verbos e Regimes e o de Regimes de Substantivos e Adjetivos, ambos de Francisco Fernandes, e o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo.
E o Aurélio, de seu tio, não?
(Rindo) Também, claro.
Tem alguma dificuldade com a língua? Grafia, regência, concordância...?
Não tenho especial dificuldade, mesmo porque me socorro sempre dos dicionários. Mas um deslize ou outro sempre aparece, quando da revisão de meus livros.
Suas músicas e livros não tomam liberdade com a língua oficial. A exceção talvez seja "quem te viu, quem te vê", pronome paulistês descontraído misturado com "quem não a conhece...", "quem jamais a esquece...". E depois, "Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe, de dourado lhe vestia...". "te" paulista e "lhe" carioca. Compôs assim só porque lhe pareceu a melhor forma?
Quando comecei a gravar minhas canções, em meados dos anos 60, era não só aceitável como, às vezes, bem-vindo o uso de coloquialismos, o desrespeito à norma culta. Havia uma idéia mais ou menos disseminada, talvez desde a época dos CPCs da UNE, de que as letras de música popular deviam se aproximar do linguajar comum.
Qual é o seu método de trabalho? É sistemático? Tem horários, disciplina? Trabalha todos os dias? Recolhe-se? Viaja para ter sossego?
Quando escrevo um livro, trabalho sem parar, até dormindo. Às vezes, viajo para ter sossego, às vezes, fico por aqui mesmo, mas mando dizer que estou na fazenda, embora não tenha fazenda.
Alguns autores começam a escrever e não sabem o que vai acontecer depois. Que a história se conduz sozinha. Era o que dizia Georges Simenon. Como é no seu caso?
Quando começo a escrever sei exatamente o que vai acontecer depois. Só que depois acontece outra coisa.
Rascunha, desenvolve a idéia primeiro na mente ou faz um esboço escrito? Ou escreve diretamente ao computador, sem escalas?
Escrevo rascunhos, esboços, idéias esparsas, no computador ou em qualquer papel ao alcance da mão. Quando o livro já está encaminhado, escrevo no computador, imprimo, leio, risco, rasuro, anoto, volto ao computador, imprimo, leio e assim sucessivamente. Reescrevo tudo inúmeras vezes.
Ernest Hemingway trabalhava de pé, diante da máquina de escrever posta numa plataforma alta. E você?
Escrevo sentado, mas as melhores idéias me vêm em movimento. Ando pela casa, saio andando pela rua com uma caneta e um bloco no bolso.
Demora muito para criar? Empaca às vezes? Trabalha sob pressão? Obriga-se a trabalhar? Você levava mais tempo antes do que agora para compor?
Tudo tem demorado mais, cada vez mais. Empaco muitas vezes, mas não me sinto pressionado, geralmente trabalho com prazer. Com a experiência, a gente aprende a fazer tudo mais devagar.
Como se sente quando termina um trabalho? Alívio, frustração, euforia, dor de barriga?
Vazio.
Que influências literárias recebeu?
No começo eu queria ser Rubem Braga, escrevia crônicas nos jornais do colégio. Depois quis ser escritor russo. Depois virei escritor francês, fui virando Flaubert, Zola, Proust, acabei sendo Céline, eu adorava Louis Ferdinand Destouches, dito Céline. Na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, eu já estava para ser Kafka, quando um colega me disse para deixar de ser besta e me mandou ler em português. Foi mais ou menos nessa época que virei Guimarães Rosa. Depois virei músico e parei de ler. Também li muito Graciliano, Vinícius, Bandeira, João Cabral, muito João Cabral.
E na música? Quem você ouviu ou ouve mais?
Ouvi de tudo, desordenadamente, mas o que mais me impressionou, e para sempre, foi a primeira audição de Chega de Saudade, de Tom e Vinícius, com João Gilberto.
Você aprendeu outras línguas sempre nos países de origem ou estudou alguma no Brasil?
Italiano aprendi na Itália, onde morei dois anos quando menino. Na mesma época aprendi inglês, língua que se falava na escola americana de Roma. O francês elementar, que aprendi no ginásio em São Paulo, aprimorei com leituras, muitas leituras. O espanhol aprendi falando, chutando, confundindo com o italiano, em minhas viagens pela América Latina. Também leio bastante em espanhol. Tenho, aliás, facilidade para desaprender essas línguas, por isso me forço a ler o que posso no original. Em 64 ou 65, fui aluno ouvinte de Boris Schnaiderman [professor de Língua e Literatura Russa] na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Eu tinha a pretensão de ler Tolstoi e Dostoievski em russo, mas não passei do alfabeto cirílico.
É muito diferente compor músicas e escrever romances ou peças?
Escrever romances é muito diferente de compor músicas. E minhas peças de teatro, peças musicais, têm mais afinidade com a música que com a literatura. A música acaba marcando a minha literatura. As personagens são obsessivas, repetem-se, são como personagens de música, são como temas de música, que tendem a repetir-se. Mas o princípio que me move é o mesmo: vontade de me comunicar.
Já abandonou projetos começados?
Bem, há projetos de canções que ficam pelo caminho, isso acontece o tempo inteiro. E agora me lembro de uma comédia teatral, O Dia em que Frank Sinatra Veio ao Brasil, projeto que abandonei com a morte de Paulo Pontes, então meu parceiro.
E já retomou alguns, depois de abandonados?
Tenho uma gaveta cheia de músicas abandonadas, mas não costumo abri-la. Eu teria dificuldade em mexer nessas músicas. Tenho a impressão de que elas endureceram, e aqui estou plagiando Ernst Jünger [romancista alemão, 1895-1998], quando se referia à sua incapacidade de mexer em seus antigos escritos.
A sensibilidade feminina expressa em algumas de suas músicas (em geral temas de personagens) é tão grande que chegaram a pensar que uma mulher as tivesse composto. Sua porção mulher é muito pronunciada?
Eu é uma moça.
Você já quis botar letra em algumas músicas, mas desistiu. Lembro uma do Astor Piazzola. Isso acontece muito?
Tenho quatro gavetas cheias de músicas alheias que não consegui letras. Essas gavetas eu abro de vez em quando, e já me aconteceu de escrever a letra para uma música que me fora enviada 15 anos antes e ainda estava maleável. Se deixo de escrever letras e músicas é simplesmente porque não dou conta do serviço, sou um artífice vagaroso. Acho até que já escrevi músicas e letras em demasia, mas ainda assim vou ficar devendo.
Suas histórias em geral são "difíceis", de estrutura incomum. Você se preocupa em ser original, não-linear? Ou elas se compõem assim naturalmente para você?
Não, não me preocupo em ser original. Acho que sou meio esquisito mesmo.
Muita gente considera Estorvo um livro difícil. Você tentou experimentar com a linguagem, com a estrutura?
Não, escrevi daquele jeito porque não sei escrever de outro.
Gostou das adaptações de seus livros para o cinema?
Gostei muito. Penso que a atmosfera de Estorvo é impossível de reproduzir em cinema. E o Ruy Guerra a reproduziu. A adaptação de Benjamin, da Monique Gardenberg, é também muito boa. É uma leitura feminina do meu livro.
As personagens de Benjamim têm nomes estranhíssimos: Castana Beatriz, Benjamim Zambraia, Ariela Mazé, Zorza, Grango, Alejandro Sgarati, Dr. Campos Celeste, Cantagalo, Geovau, Gâmbolo. São apelidos de jogadores do time do seu time, o Politheama?
Não, são nomes e sobrenomes reais, do meu time de botão.
Por que Budapeste, cidade que você não conhecia? Não pensou numa cidade fictícia para ambientar a história?
Por causa da língua, que eu conhecia um pouco, umas 20 palavras e um time de futebol. Cheguei a escrever sobre um país imaginário, com uma língua inventada. Inventei umas palavras, mas não dava certo, a coisa não andava. Então me lembrei das palavras húngaras.
Alguns estranham seu novo CD à primeira audição. A maioria das músicas não é assobiável. Pelo menos não à primeira, ou às primeiras audições.
Mais de uma pessoa já disse que não é fácil gostar desse disco na primeira audição. Talvez não seja mesmo. Nisso, lembra o anterior. Mas tenho a esperança de que ele seja ouvido outras vezes. No meu caso, é difícil esperar que uma de minhas canções seja um grande sucesso, que toque no rádio. Minhas músicas agora resultam de um tempo maior de meditação, de apuro. Todas são mais trabalhadas. E não só na composição, mas nos arranjos, no estúdio. É um trabalho mais sério, mais pensado. Ele e outros não saíram assim porque eu queria fazer música pretensiosa, refinada ou rebuscada de propósito. Acho que minhas músicas mais recentes são o resultado do amadurecimento. Talvez por isso quem sabe durem mais...
Por causa desse estranhamento, você acha que seu trabalho não é bem compreendido?
Sei que em jornal, crítico de música geralmente é crítico de letra. É difícil não ser de outro jeito. A letra é visível, impressa, a partitura não. No entanto, eu dou cada vez mais importância à música. Quase sempre faço a letra que a música pede. Todos deviam perceber que as letras não são poesia; elas se integram à música para compor uma canção. Talvez seja pedir demais.
Na música Subúrbio, você chama a atenção para a periferia do Rio...
Sim, eu quis cantar a periferia. Tem relação com a posição marginal d Brasil no mundo e com a posição cada vez mais periférica do Rio em relação às tomadas de decisão do poder, quase sempre concentradas em São Paulo. O subúrbio que eu canto é a periferia fora do mapa de uma cidade, ela própria meio marginal. Mesmo assim, o subúrbio ainda mantém um lado idílico, com suas tradições e formas de expressão próprias. Foi isso que me motivou. Não a saudade do velho Rio e do velho subúrbio, que todo mundo tem. O que me inspirou foi o subúrbio de hoje.
Depois dos governos de FHC e de Lula, você ainda tem esperanças na política?
Os dois decepcionaram. A pessoa que chega ao poder se torna um pouco fantasma daquela que deu a vida por algo que não se realizou.
Colaboraram Ferando Faro e Selma Borbagian
Preconceito na mira
Chico Buarque lança um novo CD depois de oito anos e, com a lucidez de sempre, fala sobre política, velhice e criação
Eleitor histórico de Luiz Inácio Lula da Silva. Chico Buarque aproveita lançamento de um disco inédito, depois de oito anos sem gravar, para dar o seu recado: nunca viu a figura do presidente da República ser tão desrespeitada quanto agora. Chico vê "uma rejeição desrespeitosa", "preconceitos arraigados", e a vontade furiosa de "despachar" Lula do poder, o que seria um grave "retrocesso" para o País. Intitulado Carioca, o CD passeia pelo Rio de Janeiro, falando em doses iguais de suas belezas e mazelas. O tema do disco é uma oportunidade para o compositor expor publicamente a sua visão mais que crítica da classe política carioca, a pior do País, na sua opinião. Nesta entrevista, com a lucidez habitual, Chico também discorre sobre violência urbana, drogas, velhice e imprensa.
Carta Capital: Os cariocas estão dispostos a ver o Rio de Janeiro de forma crítica, como o senhor propõe no disco e em recentes entrevistas?
Chico Buarque: Quando o Rio de Janeiro era a capital da República e havia um certo reconhecimento da hegemonia política e cultural da cidade em toda parte, a gente não precisava ficar sublimando essa superioridade. Hoje em dia, isso mudou. O peso é outro. O Rio perdeu importância. São Paulo cresceu muito. O bairrismo carioca que está surgindo veio como uma espécie de reação, um desdém, com ou sem justificativa, ao que vem de fora. E os cariocas contra-atacam São Paulo. Mas, até por sentimento arcaico de superioridade, o carioca se dá ao direito de falar mal da própria cidade.
CC: E o paulista?
CB: O paulista não fala mal de São Paulo. Quando vou para São Paulo, vou como visitante. Eu pego táxi no aeroporto e vejo aquele engarrafamento terrível. As pessoas não se queixam mais disso... E aí você fica sabendo de uma enchente na marginal Tietê, as pessoas demoram três horas para chegar em casa e nada. Ninguém reclama. Para nós, cariocas, isso é quase incompreensível. Não apenas no disco, mas também nas entrevistas, levanto questões para serem discutidas. Mas me dou ao direito de, como carioca, amar essa cidade e ao mesmo tempo apontar os problemas que são gritantes.
CC: Os políticos do Rio, por exemplo...
CB: Evidentemente, quando eu digo que os políticos do Rio são os piores, não quero dizer que são todos horrorosos. Acho que essa coisa de execrar a classe política como um todo é muito perigosa. especialmente para quem viveu a época da ditadura. para quem viu o golpe de 64, se arvorar como, o defensor da cidadania contra a corrupção, contra o comunismo etc. A política foi cerceada durante todos esses anos com essa justificativa: os políticos são todos iguais, os políticos são todos corruptos, a política é suja. Então, esse é um discurso muito perigoso.
CC: Quando o senhor se refere aos políticos, imagino que esteja se referindo à turma de ponta, que representa a cara do Rio na política nacional...
CB: Se você for olhar para cada partido, dá para ver isso. O PMDB deve estar com vergonha da atitude do Garotinho, que é a figura mais proeminente do partido no Rio. O PT carioca sempre viveu uma crise de identidade, com muitos conflitos. O PSDB é insignificante... O Rio é sempre um problema. A fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio foi nociva para o Rio. Talvez fosse necessária, não sei. Mas foi imposta e o resultado não foi bom.
CC: Mas é sempre bom lembrar que somos nós, os eleitores, que escolhemos os políticos...
CB: O Rio de Janeiro já foi mais progressista, mais expressivo. No começo da ditadura, o Rio de Janeiro era o Estado da oposição, uma preocupação para os militares. Hoje em dia, isso se diluiu um pouco. Há fenômenos novos, a própria emergência dos evangélicos. O Brasil mudou, com o Rio não foi diferente.
CC: Essa situação incomoda?
CB: Não, não me incomoda, mas... Isso é apenas um disco, não é um manifesto político. Agora, se eu sou chamado a falar de política do Rio, vamos embora. Confesso que não é o meu assunto preferido.
CC: Apenas mais uma pergunta sobre esse tema, então. O que o senhor acha da decisão do Garotinho de fazer greve de fome?
CB: Eu não preciso nem dizer nada. Eu li nos jornais que representantes do próprio partido estão constrangidos com essa história.
CC: Em uma canção do disco, o senhor defende de passagem a adoção de uma política de combate às drogas diferente.
CB: Acho tão inócuo culpar o consumidor ou pedir que ele se abstenha de consumir droga quanto o papa ou o Bush proporem a abstinência sexual como única alternativa para se prevenir contra a Aids. A repressão policial também não produz resultados. É uma questão complicadíssima. Como é que se vai legalizar o comércio de drogas? Isso está sendo discutido em muitos outros lugares. No México, na Holanda.. E aqui eu não vejo isso ser discutido. O problema não é levado a sério. Eu também não gosto de ficar pontificando. Não quero que a minha canção seja um hino, uma bandeira em defesa das drogas. Mas, de fato, eu acredito que é melhor legalizar as drogas. Traz menos danos à sociedade do que o tráfico. A tentativa de responsabilizar o consumidor é ingênua, mais ingênuo que o sonho descrito na canção, que fala da maconha da tabacaria e das drogas da drogaria.
CC: Como o senhor viu a ocupação das favelas cariocas pelo Exército?
CB: A ocupação das favelas me espantou muito. E o que mais me espantou foi o apoio maciço da classe média, das pessoas que escrevem no jornal. Eu entendo o fato de a classe média estar apavorada. Eu entendo o resultado do plebiscito das armas: a pessoa achar que andar armada pode ser uma solução, pode contribuir para a defesa. Eu discordo. A imagem de canhões apontados para a favela, para mim, é assustadora. E, nas cartas de apoio, as pessoas defendem soluções drásticas, como se isso fosse resolver o problema do morro. É um erro tratar todo habitante do morro como um delinqüente, dizer que todos os moradores das favelas precisam ser removidos de lá, quando não eliminados, como está mais ou menos aparente e às vezes até explícito. O que se ouve é: "Toca fogo no morro, resolve isso de uma vez".
CC: Esse conservadorismo não chega a ser uma novidade...
CB: Sim, mas está cada vez maior.
CC: No ano passado, o senhor manifestou a esperança de que a crise política tivesse algum proveito e não apenas provocasse "alegria raivosa" em quem não votou no Lula. Hoje, qual é a sua avaliação da crise?
CB: A alegria raivosa está menos alegre porque há uma grande possibilidade de reeleição do Lula. Os opositores se batem contra isso de uma forma brutal. Há insultos contra a figura do presidente da República como eu nunca vi anteriormente, nem mesmo ao Collor. Tudo bem, está certo, o Lula, em ano eleitoral, faz o que pode para se reeleger e a oposição faz a sua parte para impedir. Mas acho que há uma rejeição despropositada, algo que passa do limite. Acho uma besteira bandeiras como "Fora, FHC!" Na verdade eu nunca bati muito bem com certos setores do PT. Nunca fui petista, mas, como votei seguidamente no Lula, me chamam de petista. Os petistas sabem que eu não sou petista. E eu via muitas vezes em alguns militantes essa arrogância de achar que quem não é petista é calhorda. Isso, pelo menos, é um proveito que se tira da crise. Acredito que o partido possa se reerguer, mas carregará essa mancha para sempre. E isso é bom.
CC: Mas o senhor acha que a critica está acima do tom?
CB: Acho que há um desrespeito ao presidente Lula. Há um componente, sim,de preconceito de classe muito forte. As pessoas não diriam "vagabundo","burro"e "imbecil" para um professor como Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e poliglota, ou mesmo para um representante da elite nordestina como o Collor. As pessoas se dão ao direito de se referir ao Lula dessa forma. Esses preconceitos estão arraigados. Dizem: "Nós lhe prestamos um favor, para você ocupar o palácio por um tempo. Como não se portou direito, vai embora". Isso é grave. A eleição dele foi muito boa para o Brasil. E despachar o Lula dessa forma não é bom. Simbolicamente é um retrocesso. E é o que as pessoas querem fazer. Ou seja, pessoas que nunca aceitaram muito bem a eleição de um operário metalúrgico e agora se voltam com toda a fúria.
CC: Em uma passagem do DVD, alguém pergunta: "Quantos discos o senhor ainda pretende fazer?" Depois de pensar um pouco, a sua resposta é: "Enquanto a gente estiver fazendo alguma coisa, está bom". A frase revela uma certa preocupação com o envelhecimento.
CB: Nem tanto. É claro que isso me preocupa porque chega um momento em que a gente sabe que não resta tanta vida pela frente. Eu não gosto da idéia de morrer. Gostaria de viver muito, com saúde e com capacidade de criar. É isso o que gosto de fazer. Por isso que, enquanto estiver fazendo, está bom. É bom escrever um livro, é bom escrever canções, é bom gravar... Trabalhar e criar, para mim, é essencial. Agora, a pergunta é complicada. Cada vez mais os tempos de criação são mais extensos. Levo mais tempo para escrever uma música hoje do que há 20 anos. Levo mais tempo para escrever um livro hoje do que os primeiros livros. Essa demora entre uma coisa e outra, esses tempos aumentando e a perspectiva de vida diminuindo... Por isso eu brinquei com ele: "Isso é pergunta que se faça?"
CC: Este é um disco um pouco mais melancólico que os anteriores?
CB: Eu não acho. Isso foi dito do meu último disco, o anterior. Talvez a minha voz seja triste. Ou talvez porque, no outro disco, eu tenha escolhido tonalidades mais graves. Isso talvez pudesse conduzir as pessoas a achar o disco mais triste. Mas eu não achava as canções tristes, nem as letras nem nada. Esse eu acho até mais brilhante nesse sentido de tonalidade, é um pouco mais vivo. Tem canções alegres, canções irônicas e canções tristes. Tem uma tão triste que o autor da música, o meu contra baixista, falou: "É tão triste, tão triste. mas tão triste, que chega a ser engraçada". E ele falou isso sem conhecer a letra. Quando ele disse isso. eu pensei: "Que bom, então está certa a letra".
CC: Qual é a diferença de gravar um disco por uma gravadora estrangeira e outro por uma gravadora brasileira?
CB: Para mim, na prática, nenhuma. Hoje, preciso de mais tempo de estúdio. E eu tive aqui toda a liberdade para fazer, para mudar coisas, para ficar insatisfeito, refazer tudo... Como tinha antes em gravadoras multinacionais. A esta altura eu sou bem tratado. Agora eles têm paciência comigo. Antigamente eles não tinham essa paciência toda, não. As músicas novas levaram um ano e meio para serem escritas. E o disco mesmo levou oito meses de estúdio.
CC: Como o senhor encara esse processo cada vez mais massificador de divulgação? Em um mesmo dia, o resultado do seu trabalho estará em todos os jornais e revistas...
CB: Nessa parte eu não me meto. Acontece muito quando eu lanço um livro. Mas esse é um problema mais da imprensa do que nosso. Essa é uma preocupação do departamento comercial da gravadora. Eu me submeti a isso. Eles perguntam: "Topas dar entrevista?" Eu topei, estou aqui falando. Quando lancei o livro, eu não dei entrevistas. O meu editor ficou zangado: "Como é que você não deu entrevista para o livro e agora fala?"
CC: Por que não deu entrevista para o livro?
CB: É difícil, mas eu procuro evitar me valer do nome que tenho. Não quero tirar proveito de 40 anos de vida pública para promover um livro. Quero separar uma coisa da outra. Eu não vou ocupar o caderno cultural dos jornais com um livro que, se fosse de outro escritor, não teria esse mesmo espaço. Acaba tendo espaço, mas pelo menos eu não contribuí para isso. Agora eu resolvi falar, até para não ser aquele artista que não fala nunca. O sujeito que não fala nada é a Greta Garbo. Se ele fala muito, é arroz-de-festa. Então eu resolvi ser arroz-de-festa uma vez para não ser esquecido.
CC: Recentemente, o senhor foi vítima de um paparazzo, que o flagrou com uma mulher casada na praia. Pelo visto, o episódio está superado...
CB: Eu já enfrentei situações piores. Não sou um sujeito cheio de melindres, não sou não-me-toques. Já briguei com a imprensa bastante, por motivos mais graves. Eu não vou querer lembrar isso agora. Há 20 anos a barra era mais pesada. Essa coisa de invasão de privacidade é chato, mas eu não vou deixar de viver por essa besteira. Não vou deixar de andar na praia por isso. Tive problemas, no passado com vários jornais. E não fiz greve de fome por causa disso. Alguns passavam da conta, falavam demais, mentiam. Deixei de falar com alguns. Mas depois de alguns anos eles me absolveram.
CC: O senhor tem uma preocupação particular com a preservação da sua obra, não?
CB: Eu trituro todos os rascunhos e jogo na fogueira. Hoje, menos, porque muitos rascunhos são apagados no computador. Algumas vezes eu imprimo e corrijo a mão. Esse material impresso eu prefiro destruir. É uma questão de pudor. Não quero que ninguém veja um rascunho inacabado.
CC: Dessa forma, o senhor pretende evitar o "comércio de material inédito"?
CB: Isso me incomoda bastante, mas comigo não vai acontecer. Não deixei rastros. E não vou deixar.
Ele é carioca e afirma isso isto não só no titulo, mas em veias referências geográficas e sonoras do novo álbum, o primeiro solo de canções inéditas desde 1998. Mas Chico Buarque não é bairrista e numa de suas muitas sacadas espirituosas disse que o disco é uma homenagem a São Paulo, porque foi Carioca o apelido que ganhou aqui quando morou nos anos 50. Teve gente que não entendeu a piada e, para completar, as críticas que fez ao urbanismo da cidade deram o que falar nos últimos dias. "Não sou bairrista, só não gosto de mau humor", disse ao Estado. "Você mora em São Paulo? Parabéns!", zombou do repórter, ás gargalhadas.
Produzido por Vinicius França, com arranjos e direção musical de Luiz Cláudio Raptos, Carioca é a primeira produção independente da carreira de Chico e foi lançado ontem pela Biscoito Fino em duas versões: CD simples e dual disc, incluindo um DVD com os bastidores das gravações. É nesse DVD que ele brinca com a homenagem aos paulistanos. Para quem não se lembra, antes de se tornar compositor e escritor, Chico estudou na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo)e foi aluno de Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha. Bem, fala sério, não há paulistano consciente que discorde de Chico quando diz que urbanisticamente a cidade está ficando cada vez pior.
Embora Carioca traga embutidas muitas lembranças de bons tempos de São Paulo e do Rio, Chico diz que não é um disco saudosista. Ele prepara turnê para o segundo semestre e faz urna prévia em Berlim, no dia 16 de junho, dividindo o palco com Mart'nália, dentro dos eventos musicais da Copa da Alemanha. A seguir, tópicos da entrevista em que ele discorre sobre temas relacionados ao disco, entre reminiscências, rap, cinema, Zezé di Camargo ( muitos fãs de Chico torceram o nariz quando ele aceitou o convite para gravar um dueto com o sertanejo em Minha História) e sonhos tema recorrente em suas letras, que agora volta em Outros Sonhos, com a qual defende a descriminalização das drogas.
SÃO PAULO
Não é nem detestável, é invivível. Na semana passada fiquei lendo sobre a intenção da Prefeitura, ou sei lá de quem, de resolver o problema do engarrafamento aumentando as pistas da Marginal, invadindo o canteiro central. A cidade já não tem verde e o pouco que tem vão tirar. A cidade fica careca, não absorve a água da enchente, e aí vejo na televisão a cidade, que já não é bonita, paralisada, onde ninguém anda. Ao mesmo tempo chego a São Paulo e, ao contrário dos cariocas, que têm o costume de xingar, de falar mal da própria cidade, costumo encontrar gente bem-humorada, que aceita essas coisas com naturalidade. Agora, a cidade urbanisticamente não deu certo. Não falo da arquitetura, porque a arquitetura de São Paulo tem coisas muito mais interessantes do que a arquitetura moderna do Rio, na Barra da Tijuca. Aquilo é urna excrescência arquitetônica.
SOFISTICAÇÃO SONORA
Há um depuramento maior, certamente. Quando faço um disco novo, quero gravar um disco novo em relação ao que já fiz. Mas não há nenhuma busca de complicações, pelo contrário. Gostaria até que fosse tudo mais simples. Quando digo que tenho de abandonar a literatura, é para conseguir encontrar de novo a linguagem da canção. Mas também discordo que a música tem de ser facilmente escutável porque me acostumei com a idéia de que as músicas não vão tocar no rádio. Se tocarem, vai ser por acidente. Não tenho esse compromisso, então imagino que as músicas serão ouvidas por gente que ouve um disco inteiro mais de uma vez.
SONHOS
Não é uma obsessão, mas sou muito curioso nesse assunto e guardo alguns sonhos. Tenho essas idéias de sonhos permanentemente. Tem até músicas que sonho, mas sou outro compositor quando sonho com música e às vezes acordo e a música está pronta. Mas estranhamente nunca são as minhas música. São sempre de outros autores, como Zeca Pagodinho e outros inventados, nunca alguma que eu pudesse aproveitar.
REMINISCÊNCIAS
A letra de Leve é atual, a música remete à Copacabana da minha infância, como talvez o arranjo de Sempre traga algum ar de anos 50. E há algo de reminiscência nesse disco, até quando se fala do titulo como referência ao meu apelido Carioca. Há reminiscências na letra de As Atrizes, que é uma música do carioca pré-adolescente que morava em São Paulo, mas é só isso. Imagina um caso muito engraçado. Fiquei sabendo recentemente que era uma música de juventude do Tom. Conheci essa música durante a preparação da filmagem de Pra Viver um Grande Amor. E o Tom nunca me disse que essa música era antiga. Isso foi em 1982. A letra de Leve não é saudosista, é juvenil. Mas fica nisso, no resto o que há são releituras. Mesmo os arranjos do Luiz Cláudio são modernos, ousados. Acho que musicalmente nesse sentido é um disco até atrevido.
O FIM DA CANÇÃO
Não fui eu que levantei essa lebre. Foi um jornalista italiano que uma vez comentou isso comigo e ele também não tinha inventado isso na hora. Alguém diz que a canção nesse formato talvez seja própria do século 20 e no século 21 pode ser que ela caia de moda, venha outra coisa. A comparação era com a ópera, típica do século 19 e não sobreviveu ao século seguinte. A música brasileira, que tinha um pé na polca, nas músicas de salão, na música dos escravos, foi se transformando, primeiro no maxixe, depois no samba e tal. Isso é um argumento contra mim, que procuro desmentir fazendo canções. Mas quem disse que daqui a 50 anos, olhando para trás, este disco, por exemplo, não seja tardio, um disco do século 20 que apareceu em 2006?
RAP
Essa enxurrada de revivals, compilações, de revivência de músicas do século passado, talvez seja sintoma de que hoje não é mais necessário fazer músicas novas. E talvez também o rap seja tinha negação desse formato de música. Não sei se é. No caso de Ode aos Ratos, desde o começo disse que essa música ia entrar no disco. Tinha a idéia de introduzir um elemento novo. E tinha pensado num rap. Mas eu não soube fazer direito e depois comecei a ficar duvidando um pouquinho dessa idéia. .Já via muito rap utilizado em comerciais e não sei quê, talvez não fosse uma boa idéia, mas era. Aconteceu que na tentativa de fazer o rap, surgiu a embolada. É parecido, só que tem melodia, mas tem o ritmo dos fraseados, as rimas internas, as aliterações, é meio um pouco Jackson do Pandeiro. Foi interessante isso, aí cobri esse buraco, achei que podia continuar cantando e experimentei isso no estúdio. O Rodrigo( de Castro Lopes), que é o engenheiro de som, sugeriu colocar aquela distorção na voz, que parece som de radinho de pilha. Eu gostei do efeito e tal.
CINEMA E TEATRO
O disco tem algumas músicas feitas para cinema, uma para teatro(Ode aos Ratos) tem duas que falam de cinema, mas isso foi por acaso. Acho que ao longo da minha carreira discográfica, pelo menos a partir dos anos 70, quase sempre havia nos discos algumas músicas que eram feitas para teatro ou Cinema. Eu me lembro que antes da Ópera do Malandro ficar pronta, já tinha algumas músicas que inclui no disco anterior, porque estavam ali, deu vontade de gravar. As Atrizes fiz em cima daquela entrevista que tinha dado para o Roberto de Oliveira (diretor da série da Direc-TV, lançada em DVD), falando das minhas lembranças de garoto, na minha fascinação pelas atrizes francesas, as moças nuas que vi pela primeira vez quando estive em Paris. Depois de ter falado sobre tudo isso, achei que dava um bom tema e escrevi a música, que entrou no programa.
Depois, o mesmo Roberto pediu uma música para o programa dele que abordava cinema. Falei, "pô", mas já fiz. Achei que não podia fazer, porque já tinha feito, depois achei que podia fazer exatamente por isso, seria uma atualização desse tema, trazer a idéia daquela fascinação pelas atrizes para hoje. Dai fiz Ela Faz Cinema.
DUO COM ZEZÉ
Conheci Zezé di Camargo numa reunião com Lula e outros artistas. A idéia é dele, não minha. Ele que quis gravar Gesú bambino, que é unta versão minha, e me convidou para gravar. Simplesmente isso. Não fui gravar de caso pensado. Foi uni convite dele, que aceitei com prazer. Foi muito bonito a forma como foi feito. Mas, sinceramente, a esta altura do campeonato, não posso nem pretender atingir esse ou aquele público. Faço aquilo que tenho prazer de fazer, aquilo que eu sei fazer. O rap, sim, é uma forma de me atualizar, quer dizer, procuro utilizar os recursos modernos, tecnológicos, ou usar elementos pop na música, coisas que vão se incorporando. Isso é natural. Não quero fazer uma música de 40 anos atrás, é uma música feita agora, gravada com as condições de hoje e incorporando o que eu ouço. Não é que eu escute tanta música assim.
OUVIDO MUSICAL
Ouço aleatoriamente o que me chega, ouço às vezes o que quero ouvir e o que não quero também, mas são coisas que vão impregnando meus ouvidos. Por mais que eu não queira eu ouço aquilo, tanto é que costumo brincar que detesto música. Porque se eu estiver aqui conversando com você e tiver uma música tocando, não vou conseguir conversar direito porque vou ficar ouvindo aquela música, que vai ficando chata porque me atrapalha. Mas na verdade a música me suga. Então, o tempo todo estou ouvindo essa trilha sonora difusa da cidade, no rádio do botequim, no carro que o sujeito passa ouvindo alto, a música que eu ponho no meu CD, isto tudo vai se misturando com as informações antigas, porque isso você não abandona nunca. Tenho o ouvido já feito, a cabeça feita por uma quantidade grande de influências que ainda não esgotei.
*O repórter viajou a convite da gravadora
"Chico diz que vota em Lula de novo"
Decepcionado com o PT, Chico critica oposição que trata Lula como um 'vagabundo que deve voltar à senzala'
Fernando de Barros e Silva
"É duro jogar na defesa." Foi esse o comentário bem-humorado que Chico Buarque fez assim que terminou a primeira parte de uma entrevista feita em dois tempos, no domingo à noite e na segunda-feira à tarde, no seu apartamento no Leblon. O compositor se referia à defesa que acabara de fazer do governo Lula.
Mas Chico Buarque não sabe, não gosta e não joga na defesa. Como no futebol, que, perto de completar 62 anos, em junho próximo, continua praticando três vezes por semana, Chico partiu logo para o ataque. Disse que o escândalo do mensalão o deixou, sim, decepcionado com o governo e é desastroso para o PT. Mas disse com ênfase ainda maior que as críticas da oposição e de parte da mídia a Lula exorbitaram tanto no tom quanto no conteúdo e são, por isso, inaceitáveis.
Mais ainda, Chico vê o recrudescimento do preconceito de classe contra o presidente: "Como se fosse uma concessão, deixaram o Lula assumir. "Agora sai já daí, vagabundo!". É como se estivessem despachando um empregado a quem se permitiu esse luxo de ocupar a Casa Grande", diz Chico.
Há no PT a idéia de que ou você é petista ou é calhorda, assim como o PSDB acha que você ou é tucano ou é burro
"Carioca", que chega hoje às lojas, está distante oito anos do CD anterior, "As Cidades", de 1998. No meio do caminho, o também escritor lançou o romance "Budapeste" (2003). Depois da Copa, ele deve retornar aos palcos apresentando o novo trabalho pelo país.
Folha - No fim de 2004, em entrevista à Folha, você via uma onda de ódio aos pobres e de ódio a Lula no país. Entre aquele diagnóstico e a situação de hoje houve a crise do mensalão. Você está decepcionado? O que mudou no governo Lula?
Chico Buarque - É claro que esse escândalo abalou o governo, abalou quem votou no Lula, abalou sobretudo o PT. Para o partido o escândalo é desastroso. Espero que disso tudo possa surgir um partido mais correto, menos arrogante. No fundo, sempre existiu no PT a idéia de que você ou é petista ou é um calhorda. Um pouco como o PSDB acha que você ou é tucano ou é burro [risos].
Agora, a crítica que se faz ao PT erra a mão. Não só ao PT, mas principalmente ao Lula. Quando a oposição vem dizer que se trata do governo mais corrupto da história do Brasil, é preciso dizer "espera aí". Quando aquele senador tucano canastrão vai para a tribuna do Senado dizer que vai bater no Lula, dar porrada, quando chamam o Lula de vagabundo, de ignorante, aí estão errando muito a mão. Governo mais corrupto da história? Onde está o corruptômetro? É preciso investigar. Tem que punir, sim. Mas vamos entender melhor as coisas.
Folha - Como assim?
Chico - Pergunte a qualquer pequeno empresário como faz para levar adiante seu negócio. Ele é tentado o tempo todo a molhar a mão do fiscal para não se estrepar. O mesmo vale para o guarda de trânsito. E assim sucessivamente. A gente sabe que a corrupção no Brasil está em toda a parte. E vem agora esse pessoal do PFL, justamente eles, fazer cara de ofendido, de indignado. Não vão me comover. Eles fazem o papel da oposição, está certo. O PT também fez o "Fora FHC", uma besteira.
Mas o preconceito de classe contra o Lula continua existindo -e em graus até mais elevados. A maneira como ele é insultado eu nunca vi igual. Acaba inclusive sendo contraproducente. O sujeito mais humilde ouve e pensa: "Que história é essa de burro!? De ignorante!? De imbecil!?". Não me lembro de ninguém falar coisas assim antes, nem com o Collor. Vagabundo! Ladrão! Assassino! -até assassino eu já ouvi.
Fizeram o diabo para impedir que o Lula fosse presidente. Inventaram plebiscito, mudaram a duração do mandato, criaram a reeleição. Finalmente, como se fosse uma concessão, deixaram o Lula assumir. "Agora sai já daí, vagabundo!" É como se estivessem despachando um empregado a quem se permitiu esse luxo de ocupar a Casa Grande. "Agora volta pra senzala!" Eu não gostaria que fosse assim.
Folha - Você acredita que o Lula seja de fato visto como uma ameaça pelos mais ricos?
Chico - A economia, na verdade, não vai mudar se o presidente for um tucano. A coisa está tão atada que honestamente não vejo muita diferença entre um próximo governo Lula e um governo da oposição. Mas o país deu um passo importante elegendo o Lula. Considero deseducativo o discurso em voga: "Tão cedo esse caras não voltam, eles não sabem fazer, não são preparados, não são poliglotas". Acho tudo isso muito grave.
Folha - Você vai votar no Lula?
Chico - Hoje eu voto no Lula. Vou votar no Alckmin? Não vou. Acredito que, apesar de a economia estar atada como está, ainda há uma margem para investir no social que o Lula tem mais condições de atender. Vai ficar devendo, claro. Já está devendo. Precisa ser cobrado. Ele dizia isso: "Quero ser cobrado, vocês precisam me cobrar, não quero ficar lá cercado de puxa-sacos". Ouvi isso dele na última vez que o vi, antes de ele tomar posse, num encontro aqui no Rio.
Folha - Vários artistas andaram criticando o PT, o governo e Lula. O meio artístico, ao que parece, não vai mais embarcar no "Lula lá".
Chico - Pelo que eu ando lendo, a grande maioria dos artistas está contra o Lula. Tenho a missão de contrabalançar um pouco isso [risos]. Há também entre os artistas um pouco daquela competição: quem vai falar mais mal do presidente? Mas concordo em parte com o Caetano. Em parte.
Quando ele fala que as pessoas do atual governo se cercam da aura de esquerda para justificar seus atos e reivindicar para si uma posição superior à dos demais, tudo isso também vale para o governo anterior. Os tucanos costumam carregar essa aura de esquerda com muito zelo. Volta e meia os vemos dizendo que foram contra a ditadura, que são intelectuais de esquerda. Fernando Henrique foi eleito como candidato de centro-esquerda. Na época a vice entregue ao PFL parecia algo estranho. Depois se provou que não era.
As pessoas se servem do passado de esquerda como se fosse um título, um adorno. Na prática política essa identidade não funciona mais. Mas não funciona não só porque as pessoas viraram casaca. A história levou para isso. Levou o PSDB a se tornar o que é e obrigou o PT a abdicar de qualquer veleidade socialista ou revolucionária.
Folha - O que você acha do PSOL e dessa turma que deixou o PT fazendo críticas pela esquerda?
Chico - Percebo nesses grupos um rancor que é próprio dos ex: ex-petista, ex-comunista, ex-tudo. Não gosto disso, dessa gente que está muito próxima do fanatismo, que parece pertencer a uma tribo e que quando rompe sai cuspindo fogo. Eleitoralmente, se eles crescerem, vão crescer para cima do PT e eventualmente ajudar o adversário do Lula.
Folha - Como você vê a atuação da mídia no escândalo do mensalão? Tem gente que ainda diz que a mídia criou ou inventou essa crise.
Chico - Não acho que a mídia tenha inventado a crise. Mas a mídia ecoa muito mais o mensalão do que fazia com aquelas histórias do Fernando Henrique, a compra de votos, as privatizações. O Fernando Henrique sempre teve uma defesa sólida na mídia, colunistas chapa-branca dispostos a defendê-lo. O Lula não tem. Pelo contrário, é concurso de porrada para ver quem bate mais.
Folha - O rumo que tomou o Brasil e o mundo o faz se sentir derrotado? A sua geração perdeu?
Chico - É evidente que parte da minha geração que chegou ao poder não lutou a vida inteira para isso. Eu vou dizer: até mesmo pessoas que hoje são execradas publicamente, como o Zé Dirceu...
Não tenho maior simpatia pelo Zé Dirceu, não assinei manifesto em defesa dele, acho que ele errou, que ele tem culpa, sim, por tudo o que aconteceu, mas eu respeito uma pessoa que num determinado momento entregou a sua vida, jogou tudo o que tinha em nome de uma causa, do país.
Como o Zé Dirceu eu poderia citar outros nomes que chegaram ao poder, mas chegaram despidos daquele sonho em nome do qual eles lutaram a vida toda. Quem sabe para chegar ao poder tiveram justamente que se render ao pragmatismo. A pessoa que chega ao poder é um pouco um fantasma daquela que deu a vida por algo que não se realizou.
Folha - O público mais jovem tem interesse pelo que você e sua geração fazem hoje? O que mudou na recepção do seu trabalho?
Chico - Mudou muita coisa. Para as pessoas mais velhas, as músicas costumam ter história, lastro, estão ligadas à vida de cada um ou relacionadas a momentos do país. É comum ouvir "isso me lembra as Diretas-Já, isso me lembra Geisel, isso me lembra o Festival da Record". Para a garotada não há nada disso. Para eles sou músico de um passado só. Outro dia um jovem me disse: "Adoro aquela sua música". "Qual?", perguntei: "Com Açúcar, com Afeto" [risos].
A música tem 40 anos!.
Folha - É uma jovem senhora, mas ainda chama a atenção.
Chico - Isso na verdade é cíclico. Nos anos 80, em determinado momento que uma parte expressiva da mídia flertou com muito entusiasmo com uma certa idéia de internacionalização da cultura e de desbunde com o mercado, parecia que a música da gente já era. Nacional, só rock e olhe lá. Eu fui considerado completamente ultrapassado. Depois voltou. Daqui a pouco pode ser que não interesse mais. A gente continua fazendo -existe uma teimosia aí. E também, a essa altura, uma natural despreocupação com o sucesso imediato. Mesmo porque o sucesso imediato não acontece.
Folha - Você considera que o novo CD exige uma digestão mais lenta?
Chico - Você e outros comentaram que, a exemplo do anterior, o disco não é fácil de se gostar na primeira audição. Talvez não seja mesmo. Eu aposto um pouquinho no fato de que a pessoa vá ouvir várias vezes.
É difícil no meu caso ter uma música que seja um grande sucesso, que toque no rádio -eu não conto com isso. Não estou preocupado em fazer, como diziam os italianos, uma música "orecciabile", "orelhável". No final dos anos 60, quando morei em Roma, eles queriam que eu fizesse outra música como "A Banda", "orecciabile". E eu acabei não fazendo outras músicas "orelháveis", frustrando muitas expectativas. Hoje não existe nenhuma expectativa, nem minha nem de ninguém, de que eu precise ou vá compor uma música "orecciabile".
É natural que haja um tempo maior e um apuro maior, não apenas no processo de composição mas também no trabalho de estúdio, durante os arranjos, as gravações. É sem dúvida um trabalho mais sério, mais cuidado do que era há anos atrás. Não quero dizer que isso resulte numa música "impopular" de propósito, uma música sofisticada demais -não acho isso-, mas é uma música que não tem compromisso com o sucesso. Isso talvez a torne mais longeva.
Folha - Você transmite a sensação de que gostaria de ver seu trabalho melhor compreendido.
Chico - Sei que é difícil falar do disco. Até para mim é difícil. Em jornal, crítico de música geralmente é crítico de letra. É compreensível que seja assim -a letra vai impressa, o crítico destaca este ou aquele trecho. Funciona assim. Eu cada vez mais dou importância à música e tenho vontade de dizer: "Olha, só fiz essa letra porque essa música pedia. Isso não é poesia, é canção". Enfim, fico um pouquinho chateado com essas coisas, mas sei que é difícil.
Como é que vai imprimir uma partitura no jornal e explicar aos leitores?
Folha - Você volta a fazer shows?
Chico - Tenho vontade de fazer, sim. Depois da gravação, do convívio com os músicos no estúdio essa vontade aparece. É o passo seguinte, de certa forma natural. Vamos ver depois da Copa.
Folha - Você acaba de gravar 12 programas dirigidos por Roberto de Oliveira, que mesclam entrevistas inéditas e imagens de arquivo cobrindo praticamente toda a sua carreira. Chama a atenção a maneira desinibida com que você acabou passando a limpo a sua trajetória. O que o levou a fazer esse balanço?
Chico - O Roberto foi me engabelando [risos]. A idéia inicial eram dois ou três programas. Achei que a proposta de recuperar imagens de arquivo que de outra forma ficariam perdidas justificava o trabalho. Mas só fazia sentido se isso viesse acompanhado de algo mais.
Folha - Esses documentários dos anos 70 e 80 que os programas recuperam chamam atenção pelo despojamento, pelo ambiente caseiro, de ensaios descontraídos. Vivia-se em outro planeta, não?
Chico - Fiquei muito tempo fora da Globo durante a ditadura, primeiro porque eles me vetaram, depois, quando me chamaram, porque eu não queria. Esses programas eram um contraponto à programação e à estética da Globo. Mostravam os artistas gravando, bebendo, era uma coisa meio mal-acabada, meio alternativa. Alguns discos, não apenas os meus, também tinham esse clima.
Era uma bagunça. Ouvindo hoje a gente tem a sensação de que o cantor bebeu, o maestro fumou e o produtor cheirou, não necessariamente nessa ordem [risos].
Era muita loucura, o estúdio cheio de gente, garrafas pelo chão, uma festa. Hoje você entra num estúdio e é aquela coisa ascética. Parece um hospital. Não se come, não se bebe, não se fuma, não se faz nada ali dentro.
Naquela época havia um certo valor nessa transgressão, nesse desregramento. Você ia gravar daquele jeito, todos no estúdio estavam daquele jeito e provavelmente quem ia ouvir os discos também estava daquele jeito. Não deixava de ser uma maneira de enfrentar e suportar a repressão. Hoje não faria nenhum sentido gravar naquelas condições.
Folha - Era uma época mais simpática?
Chico - Não acho nada simpática. Não dá para abstrair a ditadura. Uma coisa é Maio de 68 na França. Outra, completamente distinta, o nosso dezembro de 68.
"Existe a intenção de fazer cantar a periferia da periferia da periferia"
Folha - Quando pensamos nas mazelas do Rio, a imagem que nos vem à cabeça é a dos morros, das favelas dominadas pelo tráfico, da miséria pendurada na paisagem da zona sul. Sua canção "Subúrbio" desloca nossa atenção para as costas das montanhas, onde o drama social parece condenado ao esquecimento e ao silêncio. É como se a própria miséria tivesse também a sua periferia...
Chico - Existe mesmo na canção a intenção de fazer cantar a periferia -ou antes a periferia da periferia da periferia. O Brasil sempre ocupou uma posição periférica no mundo e o Rio, cada vez mais, está numa situação periférica em relação às decisões nacionais, ao poder, a São Paulo. O subúrbio do Rio é a periferia dessa cidade meio marginalizada e está literalmente fora do mapa.
Fui procurar mapas do Rio quando estava fazendo a canção e não encontrei nenhum incluindo o subúrbio. As pessoas se lembram de Vigário Geral por causa da chacina, sabem que existe Olaria e Madureira por causa do futebol, mas não se vai muito além.
Folha - Quando você se refere ao subúrbio, não fala apenas da vida inviável, da violência, da condenação ao esquecimento, mas de um lugar que, para além disso, preserva tradições populares e formas de arte como o samba-de-roda, as cabrochas e o próprio choro. Isso convive com o rap, o hip hop, o funk, o rock. Enfim, há vários tempos históricos convivendo na canção.
Chico - Isso existe, esses tempos estão lá. Mesmo esse subúrbio idílico, que aparece muito nas novelas, isso também existe, mas misturado a outras formas de existência e expressão dessa realidade.
Folha - Você diz, entre sério e irônico, que "Carioca", o título do CD, é uma homenagem a São Paulo, pois era assim que lhe chamavam os amigos paulistanos quando você vivia na cidade. Já foi mais fácil ser carioca?
Chico - "Carioca" é o nome do disco, não sou eu me declarando -não se trata de uma afirmação pessoal. O disco acabou resultando carioca pela temática de várias canções e pela linguagem musical -essa, sim, talvez mais acentuadamente do que em outros discos meus, é carioca.
Folha - Você não teme com esse título reavivar ou ser vítima de velhos bairrismos?
Chico - Não pensei nisso e não tenho essa intenção, pelo contrário. Talvez também porque tenha morado muito em São Paulo e algum tempo fora do país eu sempre achei qualquer forma de bairrismo uma grande besteira. Enquanto é brincadeira, vá lá, tolera-se, mas quando começa a virar coisa séria não dá.
Concentração em trem de Paris para Nancy, França: "Na hora de produzir você sai do zero, não do pódio. Quando vou escrever, não sou nada"
O telefone tocou passava da meia-noite. Do outro lado da linha, a inconfundível voz de um dos maiores nomes da música popular brasileira exclamou: "Descobri! É 'gestatório'!". Era a palavra que faltara em meio à entrevista realizada na véspera para se referir à liteira que serve para transportar o papa em ocasiões solenes: "Cadeira gestatória". Chico Buarque é um escritor e compositor obcecado pelas palavras. Uma obsessão que o persegue durante seu processo criativo. Avesso a religiões e outras crenças, suas bíblias são os volumes de dicionários; as orações, suas canções e romances. "Gestatório" tem, como primeira definição, "relativo a gestação"; e "gestar", no sentido figurado, é "trazer e levar palavras". O verbete tem tudo a ver com o inquieto personagem, que confessa sentir uma "sensação desagradável" quando está "parado", seja na música ou na literatura. Três anos após o lançamento do bestseller Budapeste e oito anos passados desde o lançamento de seu último CD, Cidades (1998) o estudante de arquitetura volta ao "urbanismo cultural" e põe na praça um disco chamado Carioca.
Muito próximo de chegar aos 62 anos (no próximo 19 de junho), Chico também tem dificuldade em ficar fisicamente parado. Além de jogar peladas três vezes por semana no seu campo no Rio, defendendo as cores de seu time, o Polytheama, ele é um veterano caminhante. Em suas andanças pelo calçadão do Leblon e de Ipanema ou como um aplicado flâneur nas ruas de Paris, assobia novas melodias, cria versos e imagina o desenrolar das histórias de seus romances. Uma das dificuldades que enfrenta é quando o interrompem no meio do caminho: "Não posso dizer que estou trabalhando, porque ninguém vai acreditar. Então digo que estou me exercitando, que meu personal trainer está vindo atrás e não me deixa parar", diz, rindo.
Na tarde de uma quarta-feira da primavera européia, no entanto, Chico Buarque permaneceu sentado numa cadeira da sala de seu apartamento em Paris por exatas duas horas e meia (com pausas para buscar água na cozinha ou ir ao banheiro) para falar ao gravador da Trip. A conversa, entre momentos mais graves e outros bem-humorados, discorreu sobre criação, música, literatura, política, futebol, mídia, arquitetura, psicanálise, sexo, drogas e hip hop. A seguir, os melhores momentos da entrevista.
Nesta edição a Trip debate a importância que uma boa relação com o lugar em que moramos e com a nossa cidade tem para a felicidade de cada um. Você estudou arquitetura na USP. Você acha que teria sido feliz como arquiteto? Eu sei que não seria um bom arquiteto. Às vezes fazia um trabalho de estagiário em escritório de arquitetura, e eu borrava tudo com nanquim, ficava uma porcaria. Eu não tinha gosto pela coisa técnica da arquitetura. Na verdade, não tinha talento para isso. Fui para a arquitetura por exclusão, não sabia para onde ir. Pensava "vou ser escritor". Mas não adianta estudar letras, tinha de ter urna profissão. Nenhum escritor vivia de ser escritor. Meu pai era professor, os outros escritores tinham outra profissão. A exceção clássica era o Jorge Amado. Eu não ia ser advogado, nem médico, nem engenheiro, nem administrador, e fui para arquitetura, que tinha alguma coisa a ver com arte. E naquela época tinha aquela empolgação, arquitetura era concorrida, muita gente moça queria ser arquiteta por causa de Brasília, de Oscar Niemeyer. E a escola era muito boa, os professores eram o Paulo Mendes da Rocha, o [Vilanova] Artigas e o meio universitário era estimulante. Foram bons anos ali, mas não por causa da arquitetura. Eu estudava em colégio de padres, e foi a primeira vez em que estudei em colégio público. Era outro mundo para mim.
Você largou a faculdade depois de 1964, quando o clima ficou chato... O clima ficou muito chato mesmo. Não falo que larguei a faculdade por causa do golpe de 64, porque seria mentira. Cursei um ano de arquitetura em 1963. No segundo ano claro que a faculdade ficou chata, fecharam o grêmio, tudo ficou mais chato. Mas eu também já estava começando a fazer música. Quando me chamaram para fazer Morte e Vida Severina eu ainda era estudante da FAU. Em 1965, fiz um pouquinho e larguei pela música.
Teu último romance tem o nome de uma cidade e teu CD anterior se chama Cidades. De qual cidade você mais gosta e por quê? Eu gosto do Rio de Janeiro, cidade onde nasci e moro, mesmo, há 40 anos. Fui com dois anos para São Paulo, estive em Roma, mas com 21 anos voltei para o Rio para fazer um show e fiquei. É a cidade onde sei morar melhor. Cidade não é só gostar, tem de saber morar.
Você já disse que durante muito tempo resistiu à idéia de ser carioca. Eu sempre me senti carioca, o que acho meio chato é a coisa do bairrismo, de "ah, sou carioca". Não me sinto um carioca da gema, do chopp em bar, até já fiz isso muito. Mas essa coisa do cariocão não tem muito a ver comigo, da mesma forma que acho paulistice chata, baianice chata, mineirice chata.
E São Paulo? É uma cidade onde não gostaria de morar. Mesmo porque a cidade hoje tem muito pouco a ver com a São Paulo da minha infância. Eu era criança e ia para o Rio todas as férias. E, além de ter a família, os primos, a praia, quando chegava no Rio tinha sempre a sensação de que estava chegando numa cidade grande. Quando chegava, geralmente um tio ia me buscar e eu vinha pela beira-mar vendo aqueles prédios todos, aqueles anúncios luminosos. Era uma coisa assim de estar chegando à capital, à metrópole. Quando voltava para São Paulo estava voltando para uma cidade de província, uma cidade quase de interior. A rua onde eu morava - que hoje é uma rua muito chique, cheia de lojas de grifes, a Taiarana, que virou a Vittorio Fasano [onde fica o hotel FasanoJ - era uma rua de terra, a gente jogava futebol ali. Hoje vou para São Paulo e não conheço mais a cidade. Não sei andar em São Paulo. Se me derem um carro, não vou saber sair dirigindo.
É uma cidade que, hoje, você não aprecia? Eu tenho laços afetivos com São Paulo, amigos lá, mas a cidade é um desastre. Era uma cidade amável nos anos 50, se podia gostar dela. Hoje em dia acho impossível alguém gostar. Estou falando da cidade, da arquitetura, do urbanismo. Se vai falar da vida noturna, cultural, dos restaurantes, hotéis, médicos, aí é muito boa. Mas a cidade é detestável. É um desastre, é a cidade que não deu certo. Lá no Rio, às vezes dá no noticiário "temporal em São Paulo", e aí vêm aquelas imagens da marginal. Não se pode ...viver assim, engarrafado.
Você costumava sonhar com cidades imaginárias. Ainda sonha? Eu penso em cidades para dormir. Fico imaginando essas coisas, porque para pegar no sono tem de ficar inventando histórias. O único passo para você entrar no sono que eu conheço, a não ser que seja um sonífero, é a imaginação. Você cria um mundo e vai para lá. Tem uma hora que você percebe que está pegando no sono, e esse mundo começa a ficar meio solto, frouxo. Às vezes a gente já está dormindo, meio que acorda e fala "oba, já estou entrando no sono". E um desses pensamentos bons ou úteis, soporíferos, é a invenção de cidades. Aí chego na cidade, tem o aeroporto, a avenida. E desenhava cidades, algo que gostava muito de fazer, mas não tenho tido muito tempo. Qualquer hora posso voltar à ativa.
Você lembra e analisa seus sonhos? Tenho uns sonhos de música que são engraçados. Descobri que não sou compositor nos meus sonhos. Eu componho músicas dos outros, mas ainda não parei para analisar por quê. Mas aconteceu uma série de vezes. Compus a música do meu bisavô, uma música inteira que existe [e cantarola "maré, maré]. Compus uma música do Sérgio Ricardo, era o "Samba da Biblioteca". E uma vez compus uma música do Zeca Pagodinho. E o mecanismo do sonho é formidável. Eu estava no palco, acho que no Canecão, e por algum motivo ia cantar uma música do Zeca Pagodinho. E eu dizia "droga, não estudei essa música, não sei nada, a música, a letra". E aí o conjunto começou a tocar e tinha um grupo de apoio, backing vocal, atrás de mim, que começou a cantar. E eu peguei a manha de ir ouvindo eles e cantando junto. Era uma coisa chamada "Samba de Roda". E aquele pânico, "como vou cantar essa música do Zeca Pagodinho, ninguém me ensinou, o que estou fazendo aqui no palco?". E tinha lá atrás o pessoal cantando "vai o samba de roda..." [canta]. Eu ia um pouquinho atrasado. E a platéia do sonho aplaudiu e tudo, não percebeu que eu estava enrolando. É engraçado isso. Eu podia compor uma música minha mesmo, acordar e, pá, o serviço já estava pronto [risos]. Seria mais fácil a vida, você dormir bastante, tendo sonhos musicais, acordava e ia direto para o estúdio gravar.
E você tem pesadelos? Tenho [silêncio]. Tem uns sonhos assim que voltam. Tinha um que era muito bom, que faz tempo que não tenho, que era de voar. Faz alguns anos eu sonhei de novo que eu voava, e era tão bom, acordei tão feliz, "eu ainda sei voar". Voava, mas não como o Super-Homem ou o Capitão Marvel. Meu ídolo de infância era o Marvel. Minha primeira mulher, antes de as francesas mostrarem os peitos, era a Mary Marvel com uma sainha curta, que voava assim. Mas eu não voava como eles, não. No sonho era como se eu pulasse, como se não tivesse a lei da gravidade. Era como se a minha gravidade fosse menor, então eu podia abrir a janela e dar um pulo até aquele telhado ali, e se eu pousasse no chão e pegasse um impulso voava cada vez mais. Então não é voar, é flutuar. E bem alto, de ir até as nuvens e voltar. Era delicioso esse sonho. Eu tinha direto.
Como foi sua relação com a análise? Não me dei bem com a psicanálise. Fiz três vezes e larguei as três. Uma acho que era junguiana, outra freudiana, nem lembro mais. Não gostei, não me dei bem. Antidepressivo nunca tomei. Remédio é só para dormir, em último caso. Evito me viciar nessas coisas. Tomo às vezes, quando preciso, um Dormonid. Mas se puder não tomo nenhum e bebo vinho. Com um vinho e mais uns placebos, umas besteirinhas, e mais umas idéias na cabeça eu consigo dormir. Mas é difícil. Eu prefiro evitar ficar dependente. Mas a seco não dá para dormir, simplesmente não dá, você deita e não consegue. Não sei como se faz para dormir.
Você já teve depressão? Depressão, depressão, não. Talvez eu não seja a pessoa mais feliz do mundo, sei o que é angústia, mas não sou uma pessoa deprimida e nem dada a depressões. Angústia criativa eu sei o que é. Nas três vezes em que entrei para a psicanálise foi um pouco por isso, assombrado por um período de infertilidade criativa. Não conseguia fazer nada, e aquilo foi me angustiando, e aí entrava na análise. Por algum motivo, alguma hora eu começava a fazer música, mas não acredito que isso se devia à análise. Quando eu começava a fazer uma música ou algo assim eu me dava alta. Hoje lido melhor com isso. A experiência ajuda, você se diz "paciência, isso é normal". Você passa por períodos mais brilhantes e outros mais opacos.
Durante algum momento de sua vida já passou pela sua cabeça a idéia de se matar? Não, nunca. Gosto muito da vida, não quero morrer, não. Com tudo o que há, eu quero viver, viver bastante. E viver bem. No futebol eu já anunciei que eu iria pendurar as chuteiras em 2022. Anunciei no campo. Até vai ter uma festa, o pessoal quer fazer um churrasco. Mas isso já faz alguns anos, e agora estou achando que 2022 é cedo, vou estar com 78 anos. Estou com vontade de adiar um pouco [risosl. Você podendo fazer algumas coisas boas até mais adiante dá para viver.
Para você, o ato de criar é sempre algo misterioso, começa de um jeito e acaba de outro completamente inusitado. Foi assim também na criação deste novo disco? É assim desde que comecei a alternar a música com a literatura. Quando volto a compor não sei mais como se faz para escrever uma música. O violão fica realmente encostado durante anos. A transição é difícil. Estava ainda mergulhado naquele mundo de literatura, queria sair dele, mas o violão custou a me atender. Quando você pega o violão de novo é como se não tivesse domínio do instrumento. É um pouco como você recomeçar um caso amoroso. É uma mulher que você não conhece, não sabe como lidar, no começo você faz muita cerimônia. E o violão ficava ali, arredio. Mas, quando a música começa a aparecer, ela é mesmo como uma namorada nova. Eu já estava com vontade de fazer música, com tesão musical mesmo. Então as músicas começaram a aparecer, e eram melodias e caminhos harmônicos novos para mim. Mas a letra demorou a aparecer, porque a cabeça ainda estava um pouquinho impregnada de literatura. E letra de canção não tem nada ou muito pouco a ver com literatura, é outro tipo de linguagem.
A cada disco você diz que essa inspiração misteriosa é confinada a um espaço mais estreito, menos fácil e espontâneo, como era há décadas. Isso é natural. Você já seguiu muitos caminhos e quer fazer o que não fez ainda. Você começa a desconfiar quando tudo parece fácil, tem de abrir o olho. Não é uma esterilidade, mas uma vontade de procurar um caminho novo, original e, portanto,mais difícil. Você sempre pode descobrir coisas novas. Depois há um trabalho de depuramento que você começa a curtir mesmo. E é natural da, vamos dizer, terceira idade [risos] você se deter mais tempo na música, achar que sempre pode melhorar um pouquinho. Então cada canção leva um bocado de tempo para nascer, outro tanto para terminar e outro para burilar e chegar a forma final.
Você já falou sobre obsessões na hora de compor, imagens que te perseguem na hora da criação de uma música. Você teve obsessões neste disco? É um trabalho obsessivo. E cada vez mais.Para você começar a escrever uma canção não precisa de um motivo forte. O motivo às vezes não é forte em si, mas acaba se tornando forte pela obsessão."O que eu faço com isso? Tenho de fazer uma música." Mas você não sabe por que aquilo apareceu na tua cabeça. E você não vai sossegar enquanto não transformar em canção, em verso Eu lembro que a última música que fiz fiquei dois meses tocando, não vinha a letra, e era meio diferente, uma música meio espanhola. E acabou que não tem nada de espanhola.. E ficava fazendo aquele desenho harmônico mil vezes por dia. Mudava uma coisinha no dia seguinte e regravava. É sempre uma coisa obsessiva. Trabalho obsessivamente.
Qual é a música? A música se chama "Subúrbio".
E a música "Outros Sonhos". Pois é, para você ver, tem coisas também que vêm lá de trás, e emergem. "Outros Sonhos" vem de um mote que meu pai cantava. A música acho que é chilena. Depois fui descobrir que os versos foram musicados por um autor chileno, mas também por um autor argentino. Tem um tango do Carlos Cardel que diz a mesma coisa. Enfim, estes versos são anônimos: "Soñe que el fuego hebala, soñe que la nieve ardia, y por soñar lo imposible, some que tu me querias". Meu pai cantava muito isso [repete os versos contando] Cantava muito, só quando eu era garoto. Mas, de repente, volta. Volta e começa a ficar te perseguindo, e fica um "tenho de fazer esta música".
Você ainda teme que a música possa te abandonar um dia? Já sublimei um pouco isso com essa coisa da literatura. Mas também não sei até quando vou levar isso. Parece um jogo perigoso porque vai acontecer. Quando este período de música passar, vou fazer shows e, depois, isso vai morrendo de morte natural. Aí imagino que vá querer escrever um novo livro e, evidentemente, não vou saber por onde. Não tenho idéia nenhuma, não penso isso. Não escrevo nada, tenho muita dificuldade para escrever. Escrever uma carta para mim é difícil, fico horas. Engraçado que antes de ouvir "Chega de Saudade", quando jovem, pensava que seria escritor.
Você vai fazer um aquecimento para a turnê num show em Berlim, como parte dos eventos culturais da Copa do Mundo, e vai aproveitar para assistir a dois jogos da seleção brasileira. Qual você acha que deve ser a composição do "quadrado mágico" do técnico Parreira? Eu não entendo nada de futebol, nada de tática. Eu quero ver os melhores jogadores ali, todos juntos. Mas tem o Ronaldo e o Ronaldinho. Kaká está muito bem. Adriano não está muito bem, mas pode entrar. O Robinho acho ótimo. Acho que o Juninho Pernambucano também pode jogar. O Edmílson devia jogar também, porque avança. Eu gosto de jogadores que vão para frente. A defesa fica cheia de buracos, mas aí é problema do técnico. Eu não sei, não entendo mesmo, gosto de jogar e de ver. De ver jogadas criativas, ver gol, os passes, os dribles. Gosto menos de ver defesas brilhantes, beques que atrapalham as jogadas do ataque. Para mim eles atrapalham o espetáculo.
Por falar em espetáculo, a turnê de Carioca vai começar logo mais. Ainda é angustiante para você subir no palco? Aí vem essa coisa que todo mundo fala "ah, porque é tímido, mas neste dia ele não tava tímido". Todo dia eu não estou tímido, mas eu sou tímido porque assim está escrito. "O tímido, o supertímido Chico Buarque neste dia se soltou." [Risos] Mas" ele" está se soltando todo dia. Eu não sou tímido na minha vida normal. Mas eu não acho que seja normal você subir no palco e cantar. Ali, realmente, travo um pouco. Não sei como vai ser o próximo. Espero não sofrer. Gosto dos ensaios, gosto de viajar com os músicos, a gente se diverte muito. Mas entrar no palco, uma estréia, quando penso agora fico um pouquinho apreensivo. Às vezes a boca fica seca. Sei lá, acontece mesmo de esquecer tudo. Mas ao longo da temporada vai melhorando.
O fato de ser um dos compositores mais importantes da música brasileira já influenciou na sua maneira de produzir? A responsabilidade atrapalha? Não, porque na hora de produzir você sai do zero. Não sai do trampolim, do pódio. Você não está de salto alto. Você tem de estar descalço. As pessoas imaginam que o artista pensa nele o tempo todo. Que fica se olhando no espelho, se achando o máximo. E você age como uma pessoa normal, porque você se sente uma pessoa normal. E aí as pessoas dizem "tá lá o artista fingindo que é uma pessoa normal". Quando vou escrever, não sou nada.
Você acha que o tipo de música que faz, a "canção", está com os dias contados? É um assunto interessante. Um jornalista na Itália me perguntou uma vez se a música popular não seria um fenômeno restrito ao século 2º, assim como a ópera tinha sido restrita ao século precedente. Há vários indícios. Também não estou querendo jogar contra mim Estou fazendo músicas novas e talvez sejam músicas tardias, não sei. Ou talvez eu já seja um sujeito tardio, do século passado. Mas é interessante, porque algumas coisas levam a acreditar nisso. É o caso da percussão em detrimento da harmonia e da melodia, do rap que é um pouco a negação da canção como a gente conhece. Também esta proliferação de revivals, de coletâneas, de besto f, esse anseio do público pelo velho, pelos standards. Seriam sinais de fim de linha da canção como modo de expressão? Talvez sejam, tomara que não. Mas aí já interpretaram mal, de uma forma um pouco malévola, como se eu estivesse dizendo que nós fomos das últimas gerações a compor, e agora vocês vão pegar esta sopa, e não vai ter música para vocês, não [risos]. Pode ser que exista uma maneira. O rap já é um pouco isso. Também, não sei se o rap vai continuar imperando, e amanhã podem dizer que o rap foi uma moda do começo dos anos 2000.
Você escuta rap? Eu até ouço às vezes. E até ouvi, por dever de ofício. quando pensei no rap para "Ode aos Ratos" [do musical Cambaio. em parceria com Edu Lobo, e gravada no novo disco]. Depois desisti de fazer Um rap, pensei "não, essa coisa já está um pouco vulgarizada, já está todo mundo fazendo, vejo até em anúncio de TV, não vou fazer rap, não". Mas aí fiz essa embolada, que é um pouco um rap, um pouco falada. Uma coisa já antiga, nordestina, mas que tem a ver com a divisão do rap.
E a música eletrônica, o que acha dela? Já dançou ao som de um DJ? Não sou muito bom de dançar. Aliás, uma vez eu dancei, mas foi num lugar em que não era preciso dançar muito. Não sei o que era. A pessoa que estava comigo reclamou que não era tecno, que era house, ou que era house e não era tecno. Eu não entendia nada daquilo. Isso foi aqui em Paris. Mas as luzes piscavam e você não precisava dançar. Meio que mexia assim (faz o gesto), e você olhando de fora via algo como robôs dançando. Se é assim, então tá bom, você não precisa ser um Fred Astaire para brilhar na pista. Aí entrei, dei meus passos e tudo bem.
Você tem iPod? Não, nem sei direito o que é isso. Eu ouço falar, mas não sou bom nisso. Não sei lidar muito bem com informática. Só sei o básico. Até hoje não consegui entender como se faz para gravar um CD. Tenho tudo lá em casa, mas aí quando fui fazer as músicas e tive de mandar para o Luiz Cláudio Ramos, que é o arranjador, tentei e não consegui. E aí recorri ao velho gravador cassete. Foi à moda antiga.
O telefone celular você usa pouco e de forma utilitária, mas a Internet se tornou parte de sua vida. Aqui em Paris e quando viaja eu sei que você freqüenta cibercafés. Como é isso? Freqüento para saber notícias do Brasil, e sempre tem essa coisa de correspondência. Eu comecei a ter só por necessidade imperiosa, para troca de e-mails com os tradutores, quando começaram as traduções de Budapeste. Quando fiz Budapeste usava o computador como uma máquina de escrever, com o Word. Não tinha Internet. E aí passei a ter para isso, para o contato imediato. Antigamente, isso era feito por telefone, por fax, era complicado, e o e-mail facilita muito a vida. Mas também você perde um pouco de tempo ali. Antes, ficava jogando paciência, que era uma espécie de aquecimento dos dedos para começar a escrever. Durante todo o tempo em que fiz meu livro tinha esse ritual. E agora, em vez da paciência, tem o Google, sei lá, para fazer uma pesquisa, ver uma sacanagem.
E o que você acha do sampler no trabalho de criação musical? Você está achando que vai me pegar, que eu não sei o que é sampler, né?(Risos.) Mas eu sampleei uma vez, também não sou tão bobo assim, não. Foi numa música chamada "Tempo e Artista" [1993], em que eu queria um serrote. Tentaram localizar um cara que tocava serrote em São Paulo, mas parece que já tinha morrido. E a referência que tenho do serrote é a introdução de "Ne me quitte pás", do Jacaques Brel. E aí o que nós fizemos? Sampleamos a introdução de "Né me quitte pás". Nessa você não me pegou.
Ao colocar o ponto final em Budapeste, aqui em Paris você disse:"E agora? Tenho de arranjar outra coisa para fazer". Você está se sentindo assim depois de ter finalizado o Carioca ou ainda não deu tempo? Já está começando perigosamente. Porque dá um brancão, né? Não posso ficar parado, senão dá uma sensação desagradável. Eu me lembro que estava aqui em Paris quando cheguei, na minha cabeça, ao final do livro. Ele estava num ritmo muito lento, e sabia que vindo para Paris em um mês eu adiantaria. Porque num mês aqui eu escrevo quase o dobro do que escreveria no Rio. Você fica mais isolado. E lembro o dia em que estava andando à beira do Sena, e tem aquele pessoal que fica dançando ali no verão. Naquele ano, pelo menos, era mágico. São vários anfiteatros e cada um tem um gênero de música. O pessoal do hip hop aqui, e lá adiante tem o pessoal dançando música brasileira. E tem um meio caminho em que você está ouvindo uma coisa e vendo outra. É muito louco isso, estar ouvindo uma música percussiva, que ficou ali para trás, e vendo o pessoal dançando tango ali adiante. E eu ia passeando por ali com a cabeça noutro lugar, eu estava no livro. Era uma forma de distrair um pouco a vista, mas a cabeça estava trabalhando. E foi em um dia assim que descobri que tinha chegado ao final do livro. Aí eu parei e fiquei olhando o pessoal dançando um tango do Piazzolla E aí me deu uma alegria e uma tristeza misturadas. Lembro que fiquei com os olhos marejados, emocionado com aquela dança, e ao mesmo tempo a cabeça dizendo "pô, terminou meu brinquedo já sei que meu livro tem um fim". E agora também, o disco estava pronto e vim para cá, e saí por aí ouvindo o disco, andando com esse fone. Não é um iPod e essas coisas, mas um velho walkman. Esse é um momento bom de curtir, porque é uma despedida também. Ontem já acordei um pouquinho de ressaca, "já não vai ser mais tão bom como antes" {risos}. Depois você entrega o disco e ele cai na vida, as pessoas vão ouvir, vão gostar ou não, e vão gostar disto ou daquilo, e você já não está mais vivendo aquilo.
Já passou pela sua cabeça trabalhar com outras pessoas para se aventurar em outros caminhos musicais? Eu tenho impressão de que não faço tudo sempre igual {risos}. São 12 músicas, 12 canções bem diferentes. Com tratamento orquestral diferente para cada uma. Cada uma é uma história à parte, com exceção de duas músicas que são bem coladas, porque a temática é a mesma. Uma outra é continuação da outra. "As Atrizes" e "Ela Faz Cinema. Mas assim mesmo são bem diferentes. Uma é um choro-canção, outra é uma bossa nova.
Elas foram escritas no mesmo elã? Não. Isso foi engraçado. Eu compus "As Atrizes porque estava gravando aquela série de DVDs, vim gravar aqui em Paris, e surgiu o assunto de Paris na minha vida. E me lembrei daquele momento em que vim a Paris pela primeira vez. Era pequeno, tinha uns oito anos de idade, morava em Roma com toda a minha família. O maior impacto para mim naquela época foi ver mulheres com peitos de fora. Não digo mulheres inteiramente nuas, mas tinha fotos de mulheres de peitos de fora nas bancas de revista. Nós passeamos à noite pelo Moulin Rouge, perto de Pigalle, e naquelas casas noturnas e cabarés havia fotos de mulheres quase totalmente nuas. Eu nunca tinha visto nada parecido, nunca tinha visto peito na minha vida. Na verdade, só os das minhas irmãs, mas isso não contava, elas não tinham peito, eram mais novas do que eu. Então aquele menino ficou deslumbrado com aquela coisa. Mais tarde, vieram aqueles filmes franceses, que eram proibidos para 18 anos, mas que às vezes a gente, com jeitinho, conseguia, com 15, 16 anos, entrar no cinema e ver. Ver Martine Carol e aquelas atrizes francesas, e mais tarde a Brigitte Bardot, nuas. E só existia isso em filme francês. Então escrevi essa música em cima dessas reminiscências de infância e adolescência, das atrizes nuas que me deixavam de boca aberta. Depois, o Roberto de Oliveira [amigo de muitos anos e diretor da série de DVDs], que foi me enrolando e muito delicadamente me levando a fazer mais e mais programas, fez um sobre cinema, e disse "você não quer fazer uma música nova sobre cinema?". Musicalmente é outra coisa, mas é uma continuação, é o marmanjo já, que termina a outra música dizendo "com tantos filmes na minha mente, é natural que toda atriz, presentemente, represente muito pra mim". Esse é o mote, o estopim para a música seguinte, tanto é que quando termina a música há quase uma sugestão de ligação musical com a faixa seguinte, que é "Ela Faz Cinema", que é então já o adulto, que é vítima de uma mulher que só faz cinema.
Você comentava sobre essas mulheres peladas da sua infância. Sempre estudou em colégio de padre e teve essa educação católica bem rigorosa, primeira comunhão, crisma e... É. Era no tempo em que a missa era em latim, e eu fui coroinha no colégio. Tinha a sacristia, e a gente roubava hóstia - não consagrada, que é pecado mortal - e às vezes um gole de vinho. Além de estudar latim, eu sabia ajudar na missa, sabia tudo.
Hoje você é religioso, tem alguma crença? Não, nada. Sete anos em colégio de padre foi bom para não gostar muito de Igreja. Eu não gosto de nada, sempre achei meio esquisito. As minhas lembranças de Igreja hoje são sempre muito sombrias. Um dia, em Roma, minha mãe conseguiu uma audiência - não particular, claro, mas uma audiência restrita, com umas 100 pessoas - para ver o papa. Quando apareceu o papa, o Pio 12, fiquei com um medo dele, daquele velho. Ficamos numa sala, e aquele cheiro de incenso que me enjoa, e esperando, esperando, e em pé. E a minha mãe, que é católica - meu pai, é claro, não estava ali -, levou os sete filhos para ver o papa de perto. Depois de sei lá quanto tempo, apareceu o papa numa... não sei como se chama esta cadeira, tem um nome em latim, depois eu vejo. E ele passando carregado pelos soldados da Guarda Suíça. Ele com aquela batina branca, sendo carregado, cheio de almofadas brancas, e aí minha irmã mais nova falou alto "a papa é folgada, não é?" [risos]. Foi a única coisa que me relaxou. Enfim, eu me afastei completamente da Igreja. Já perdi a fé lá na escola de padre.
Você diz, mesmo assim, ter tido uma experiência positiva no trabalho com a Organização de Auxílio Fraterno. Isso era bacana. Eu tenho conhecidos, amigos, que são padres da igreja progressista, mas sempre achei meio esquisito. Não acredito muito que eles acreditem naquela coisa da Igreja, nos dogmas. Mas esse padre André, canadense. levava a gente para dar cobertor e sopa para mendigos ali na Estação da Luz. Lembro de chegar lá e os mendigos ficarem assustados. A gente ia chegando como se fosse se aproximando de índios. Esse padre era legal. Lembro que quando chegou lá só falava francês, e a gente achava legal porque ele jogava vôlei junto com os alunos. Eu comecei a ensinar português para ele. Tinha a manchete no vôlei, e eu dizia "ô, a punheta, padre, bonita a punheta" [risos]. Eu ensinei português para o padre e ele me ensinou a ver os mendigos na Estação da Luz. Mas hoje não tenho religião nenhuma, não gosto de religião.
No filme Vinicius você fala sobre um tempo em que as casas eram abertas para todos e existia uma passionalidade nas relações. Você sente saudades dessa boemia? Não sinto falta, porque não sinto nostalgias. Não só havia casas mais abertas, como havia os bares. Na verdade, havia mais bares do que casas. A gente se encontrava nos bares, ficava no Antonio's, depois no Luna Bar. Vinicius, Tom, a gente ficava horas. Não sei como é que eu podia fazer outra coisa. Lembro de uma vez, a gente bateu o recorde. Chegamos no Antonio's ao meio-dia e pouco e saímos às 3h da manhã. Acabou, passou esse tempo. Eu sinto falta das pessoas. Mas não dá para recuperar isso.
Você acha que falta romantismo nos relacionamentos? O beijo e o sexo ficaram fáceis demais, perderam o valor da conquista, como você disse uma vez? Isso já existia. No pós-pílula, anos 60 e tantos, já era assim. Eu não peguei isso na minha formação sexual, e é uma pena, gostaria muito de estar me formando sexualmente agora [risos]. Naquela época, as primeiras experiências sexuais já eram mais tardias do que hoje porque você tinha menos informação. Hoje, um garoto de dez anos está sabendo o um garoto de 15 daquela época não sabia. E a formação sexual se dava com prostitutas ou com empregadas domésticas, que faziam um pouco prostituição também. No meu caso foi isso, minha primeira mulher era uma empregada que dava... ela não dava, cobrava, baratinho até. Era a empregada de um amigo da turma que tinha essas liberalidades. A gente sabia, e tinha aquela fila [risos]. E depois, as prostitutas e tal. Namoro não chegava às vias de fato. Eu tive várias namoradas com quem rolava uma forma qualquer de sexo, mas incompleto. Já depois, nos anos 60, eu já com 20 anos começou uma certa liberação. Então, que bom que a questão é mais aberta, menos traumática, menos hipócrita. O que me preocupa é que às vezes parece que há um certo enfado, que não existe mais a vibração que existia pela própria facilidade com que as coisas são obtidas. Pode ser. Mas pode ser impressão minha.
O que há de melhor e pior entre ser casado e solteiro? No meu caso, vivi casado 30 anos e estou há dez anos só. Não me sinto só, não sinto solidão. Mas também não sei se é um caso especial. Porque eu trabalho sozinho, e gosto de trabalhar. Então posso de estar acompanhado, mas certamente gosto de estar sozinho também. Há momentos em que eu quero estar sozinho.
Você já tomou Viagra? Eu sou contra essa coisa de dependência, tenho medo disso. Não sou contra Viagra, não, porque provavelmente eu vá ter de recorrer a ele. O que eu acho um pouco preocupante é esta idéia de ter um Viagra sempre à mão para facilitar as coisas. E tem gente nova que toma por medo de fracassar. Isso pode se tornar um problema, você vai precisar de Viagra para ficar de pau duro sempre. Pode até fazer uma experiência, mas criar mais essa dependência... queria não. Não sei, estou falando isso hoje, amanhã pode ser diferente.
Você já brochou? Claro que já. Todo mundo já brochou, menos o Ziraldo [risos]. Ele diz que nunca brochou. Isso faz tempo. As pessoas falam muitas coisas. Tem outro que falou que teve mil mulheres. Eu digo: "Bom, mas, então, não foi bom nunca, para comer mil". O cara não é velho, tem vinte e poucos anos, e comeu mil. Mesmo que tenha comido uma por dia... Não acho uma vantagem comer mil mulheres.
Você já foi cantado por homens? Já fui cantado por homens. Não foi adiante [risos].Eu achei graça até. Era garoto, recebi uma proposta mirabolante. Achei engraçado. Quando eu era garoto talvez achassem que eu pudesse ser veado, eu era um menino atraente. Mas nunca fui veado, não. Pensando bem, já faz muito tempo que não tem um homem que me faz uma cantada.
Como foi sua experiência com as drogas? Experimentou um pouco de tudo? Não experimentei tudo. Nunca fui na heroína, nunca me piquei. Foi o básico: fumei, cheirei, tomei ácido. E larguei isso tudo. Na verdade nunca fui um bom maconheiro. Eventualmente posso até fumar. Por exemplo, já me foi recomendado para dormir, eu tenho esse problema de insônia. Mas não dá certo comigo. Não me dá leseira, nem larica. Me deixa excitado. Aí eu preferi a cocaína, mas parei também, parei há muito tempo. Maconha ainda posso eventualmente fumar aqui e ali, não vejo muito mal. Mas não sou adepto.
Você é a favor da legalização de alguma droga? Sou. E cada vez mais. No Brasil, nos países pobres principalmente, a quantidade de vítimas que o tráfico de drogas faz é muito maior que a de vítimas das próprias drogas. No Brasil, no Rio de Janeiro, moleques de nove, dez anos já estão cheirando cocaína, porque manejam, vendem cocaína. Envolve às vezes uma quantidade muito grande de crianças, adolescentes, acaba com a vida dessa gente, morre gente pra burro. Fora a violência toda que o próprio tráfico vai desencadeando. É claro que você não pode pensar em liberar abertamente o consumo de drogas se não tiver um interesse internacional. Senão, cria-se um problema. Você pode ir a Amsterdã e fumar sua baga na e tal, mas não pode sair de lá com o negócio. Se produzissem legalmente cigarros de maconha, se fossem vendidos nas tabacarias, no Brasil, como aliás digo numa música,não vejo que o dano... quer dizer, haveria, claro, um problema de saúde pública, como com o cigarro, como com as drogas farmacêuticas, o consumo de álcool. Há pessoas que entram na viagem e podem virar maconheiros, se tornar inúteis, mas podem se tornar meros consumidores de maconha e ter uma vida completamente normal. Não há comparação com a quantidade de vítimas que o tráfico traz. E mesmo a cocaína. Cocaína é barra-pesada, eu não recomendo a ninguém. Antigamente se vendia cocaína em farmácia. Descriminalizar ou comercializar de alguma forma com assistência médica, com licença ou isso e aquilo, não sei como se chegar a isso. Certamente, há alguma maneira melhor do que permitir que se trafique, porque isso é permitido, todo mundo sabe que há conluio da polícia, e um tráfico aberto faz um número de vítimas muito maior.
Como é sua relação com a política hoje? Você já disse experimentar um certo fastio da política. Não vejo grandes novidades na política. Nem vejo muito espaço para grandes mudanças, sinceramente. Já não alimentava grandes ilusões de grandes mudanças com o governo Lula. Achava bonito isso, de ele ser eleito. Bom para o país um operário ser eleito e chegar à presidência da República. Mas também não achava que íamos ter transformações profundas na sociedade. É difícil. E agora ficou provado que é mais difícil até do que se imaginava.
Crises do mensalão, CPIs sobre corrupção, a queda do ministro Antonio Palocci, eleições se aproximando... Como você vê esse momento do Brasil e do governo Lula em particular? Não vejo com nenhuma satisfação especial. Não é assunto que me entusiasma, não. Mas,enfim, fazer o quê? Podemos falar disso também, até porque as pessoas estão muito exaltadas. Não sei por que as pessoas estão tão exaltadas assim. A argumentação política cedeu lugar a ofensas pessoais, e parece que isso vai se agravar nestes meses que vêm por aí. Não há muito argumento. Porque no fundo, no fundo, honestamente, não vejo como um próximo governo, com quem quer que seja eleito, possa ser muito diferente desse governo Lula, assim como o governo Lula não foi muito diferente dos governos que o antecederam. As notícias de corrupção, mensalão estão na ordem do dia porque são mais recentes, mas elas também repetem práticas similares de governos anteriores. Todo mundo sabe disso. Claro que o governo do Lula é mais vulnerável hoje porque é a vidraça, porque o próprio PT ajuda a jogar pedra na sua vidraça, ao contrário dos partidos mais conservadores, que, por mais que se debatam lá dentro, não saem atirando uns nos outros. Eu fico vendo este pessoal do PSDB e do PFL indignados na TV. Peraí, vamos falar sério, né? Vocês não podem estar tão indignados, surpresos com o nível de corrupção, que não é maior do que foi no governo anterior. Todo mundo sabe como foi conseguida a malfadada reeleição presidencial [do FHC], que é nociva, na Constituição. Todo mundo sabe o que aconteceu, as falcatruas, as tentativas bem-sucedidas de abafar CPIs. Então fica reduzido a quê? O sujeito gosta deste ou gosta daquele. Ou tem simpatia ou alguma vantagem pessoal a levar com governo tal. Eu não tenho isso, não quero proximidade nenhuma com poder nenhum. Mas eu fico um pouco espantado com o grau de agressividade das pessoas. Eu conheci o grau de agressividade do PT, sei como é. Eu já falava isso, tem muito chato neste PT. Ficam enchendo o saco da gente, enchendo o saco dos artistas, cobrando isso e aquilo. Isso acho até que vai acabar um pouco, porque acabou a idéia de que o PT é um partido superior aos outros. Agora, também não vejo por que nesse clima que se instalou no país as pessoas se sentem no direito de ofender o Lula, de enxovalhar. Qualquer um vai para o jornal e manda "e o Lula?", "é um merda", "é um bosta" . As pessoas não gostam que se diga, mas isso evidentemente traz um preconceito de classe muito forte. São pessoas que não admitem, até hoje não engolem o fato de o Lula ter sido eleito, ter ocupado o Palácio da Alvorada, ele com a dona Marisa. Então, se na próxima eleição os candidatos forem o Lula, o Alckmim, talvez o Garotinho e uma dissidência à esquerda, eu voto no Lula até por isso. Não posso dizer que estou satisfeito com o governo dele, mas não vejo vantagem nenhuma no governo voltar às mãos do PSDB e do PFL. E, se o Lula for reeleito, acredito que ele, ao contrário do Fernando Henrique, possa fazer um segundo mandato melhor do que o primeiro. Até porque estará livre de uma porção de malas e de gente que atrapalhou. Ele vai ter de governar mais, escolher as pessoas, estar mais atento, mais presente. Mas não gosto da idéia de ele sair escorraçado, pela porta dos fundos, as pessoas xingando, quando não fizeram isso com o Fernando Henrique, nem com o Collor ou o Sarney.
A crítica da imprensa já te incomodou no passado, ao ponto de afetar sua produção. Como você lida com isso hoje? Isso teve mesmo. Nos anos 80 foi barra-pesada. Você cansa, né? Tomando muita porrada, você vai perdendo a vontade de se expor a mais porrada. Eu tinha de ler o Jornal do Brasil com capacete, porque tinha porrada em tudo que era seção. Até a seção de gastronomia dava porrada. A Folha de S.Paulo, numa época, também era uma coisa barra-pesada. Isso, durante uns dez anos, foi muito chato. Principalmente uma certa imprensa paulista muito, muito agressiva. Depois melhorou um pouco. Hoje, não sei. Às vezes tenho a intuição de que algo está se armando {risos], que estão ali atrás, na esquina, espiando, "ele vai passar agora", prontos para dar porrada. Mas as porradas também com o tempo vão doendo menos, você vai ficando um pouco mais calejado.
Você pensa na velhice, sente ela chegar? Ela vai chegando, vai se instalando aos poucos, tem umas coisinhas que você vai percebendo, uma mazelazinha ali que não tem jeito, é assim mesmo. Mas não estou me queixando, não.
Você tem medo da morte? Medo não, mas quero distância {risos]. Acho que com saúde, fazendo as coisas direito, dá para viver um bocado mais. Gostaria de viver com saúde e imaginação, com vontade de criar coisas. Noventa e tantos anos e virando a noite por causa de uma música, um livro. Formidável. Posso morrer assim.
O Tom Jobim disse que "a gente só leva da vida a vida que a gente leva". O que você levará da sua vida? Não vou levar nada. Alguma coisa deixarei. Umas musiquinhas, uns livros, filhas, netos. Vou deixar umas coisas bonitas. Coisas que valeram a pena.
"Tenho medo de me tornar um idiota"
Aos 60 anos, Chico Buarque fala sobre ser escritor e músico, considera oca a fama de sexy e rejeita o título de ícone
Ima Sanches La Vanguardia
"Tenho 60 anos. Nasci e vivo no Rio. Estou separado e tenho três filhas, duas netas e meia, e um neto: Chico. Sou um democrata que ainda acredita na possibilidade de um socialismo democrático. Já tivemos quase duas décadas de idiotice globalizada. Sou ateu. Publico Budapeste na Salamandra em castelhano e na La Magrana em catalão."
Uma vida rodeado de mulheres. Sim, irmãs, filhas, netas.
O que aprendeu com elas?
Continuo com a curiosidade intacta, com o mesmo desconhecimento e esta estranha admiração. Sempre me surpreendem e suas opiniões me interessam mais que a dos homens.
Você encabeça a lista dos homens mais sexys do Brasil.
Isso é ridículo, e essa lista é ridícula. Tenho 60 anos, percebe?
Sempre fugiu da fama?
Não, participei de festivais e busquei o reconhecimento para meu trabalho. Mas logo aparece a fama boba, oca, que é a sombra do reconhecimento e que fala se o artista está gordo ou com quem vai para a cama. Há 40 anos não era assim.
Como era?
Ficávamos bêbados em Ipanema dizendo coisas absurdas, mas não saía na imprensa. Hoje, alguém vai ver uma partida de futebol e vem o jornalista lhe perguntar como está a partida. Isso não me agrada.
Mas é o que vende
Tem gente que persegue essa fama que não corresponde a nada. É insólito.
Por que teremos chegado a esse ponto?
Nunca vi um movimento geral de idiotice como o de agora. Mas em meu país, de 15 anos para cá, vem crescendo perigosamente. A idiotice nos rodeia, eu mesmo tenho medo de me tornar idiota...
Pense bem...
Talvez tenha razão. Tudo seria mais fácil, nada me surpreenderia e poderia dar entrevistas sem escrever livros.
?...
Sim, sim, anuncio que vou escrever um novo livro e passo dois anos dando entrevistas. Depois falo do livro que não saiu. E assim passa a vida. Hoje é possível viver de feira literária. Há festivais a cada semana em alguma parte do mundo. E agora que finalmente sou escritor...
Custou-lhe três livros.
Sim. Agora já me consideram como tal e posso viver me fazendo de turista literário; certamente conseguiria ser muito mais conhecido como escritor do que sou hoje sem necessidade de escrever mais livros.
Falemos de épocas mais intensas.
Não sou nostálgico, não penso que éramos mais bonitos, mais magros e mais felizes, embora tudo isso seja verdade. Não me agrada recordar nem os anos 60 nem os 70, dos 80 não me lembro, e nos 90 começou a idiotice. Nunca estive de acordo com o que me cercava. Me agrada estar vivo, fazer as coisas em meu ritmo, sem pressões.
Então deve ter vivido infeliz na ditadura.
Em fins de 68 começou a verdadeira censura e a perseguição aos opositores do regime, políticos, simples artistas ou fumadores de maconha. Isso tudo era preciso combater e nós, os artistas mais populares, o fizemos com a música, com prejuízo para a qualidade artística.
Você vivia sendo preso.
Como todos, mas saía sempre. Só dormi na prisão quando era menor de idade e roubava carros.
Um filho de ilustre historiador e sociólogo roubando carros?
Sim, roubávamos carros para circular pela cidade e quando acabava a gasolina os largávamos. No dia seguinte fazíamos o mesmo, assim até que me pegaram. Mas durante a ditadura me chamavam ou vinham me buscar e me levavam para perguntar por que havia cantado isso ou aquilo.
Chegou a ter medo?
Quem tem c... tem medo. Recebia ameaças, cartas. Hoje tem gente no Brasil que tem medo de outras coisas e vive cercada de guarda-costas, sobretudo os famosos, porque ter guarda-costas o torna ainda mais famoso.
Você é um ícone da música; poderia ter dois ou três.
Não me agradaria ser ícone, soa fatal. Chegaram a me chamar de monstro sagrado, que medo!
Para quem escreve as letras de suas canções?
São "cantadas" para mim mesmo: é formidável, experimente, diga-se coisas bonitas. Me lembro de Vinicius de Moraes, que quando viajava sozinho e tinha sonhos se cantava canções de ninar e passava a mão no rosto até adormecer. Eu tentei e não funcionou.
Você é um insone?
Sim, por isso sempre trabalho de noite, o que é fatal para o insone. Quando consigo dormir, escrevo música em sonhos. Compus coisas maravilhosas, mas logo percebi que eram de outros.
Por que está há seis anos sem se apresentar?
Lancei o disco, fiz um ano de concertos, depois lançaram o disco do concerto do disco, e depois o disco do disco do concerto do disco... Em seguida colaborei em teatro, escrevi o livro e agora estou aqui com você.
Como é a sua mãe?
Tem 95 anos e repete constantemente, "Juízo e alegria!", e eu lhe digo: "Mamãe, ou juízo ou alegria." Meu pai era um sonhador e ela equilibrou seu lado boêmio, impunha a disciplina mas com muito sentido de humor, com isso: com juízo e alegria. Sete filhos!
O que significou para você trazer filhos ao mundo?
É formidável. Quando nasceu a primeira eu tinha 24 anos, era quase uma irresponsabilidade. Mas as três são melhores que seu pai e creio que se cada um de nós pudesse dizer isso, se Bush o dissesse, por exemplo, em 30 anos teríamos um mundo melhor.
Tradução de Celso M. Paciornik
Auster "entrevista" Chico Buarque em NY
Escritor brasileiro fala sobre censura, do "jeito" com as mulheres e de seu processo criativo em evento na cidade
Pedro Dias Leite
De Nova York
A programação prometia uma "Conversação: Chico Buarque e Paul Auster", mas, na verdade, o que se assistiu na biblioteca pública de Nova York na ensolarada e fria tarde de sábado foi a uma entrevista, e das boas, conduzida pelo norte-americano com o autor do romance "Budapeste". Apesar da fama mais do que reiterada de tímido, Chico estava muito à vontade. Falou das músicas sob censura ("Eu mesmo, quando ouço as músicas que escrevi, não entendo o que eu quis dizer"), do jeito com as mulheres ("Não tenho nada a ver com essa reputação") e da vocação do rap ("O tipo de música que uma vez foi feita, por mim e por outros, com uma temática social, eles fazem isso melhor").
E ainda brincou com o fato de suas entrevistas no Brasil sempre acabarem na sua faceta de compositor em algum momento: "Fui à Noruega e a repórter perguntou: é verdade que você é também um compositor?". Nos EUA, achava que seria diferente ("Aqui sou mais conhecido como o tio da Bebel"), mas Auster teve de intervir quando um fã pediu que Chico cantasse uma música. "É um festival literário pessoal", disse, bem-humorado, o autor de "Leviatã".
Os dois fizeram a palestra de abertura do PEN World Voices, um festival internacional de literatura que segue até o dia 22 em Nova York. A idéia é que não seja um "festival tradicional", mas, sim, uma "reabertura do diálogo entre a América e o resto do mundo", como explicou na abertura da palestra o presidente do PEN, o britânico Salman Rushdie.
A tarde começou em clima ameno, com Auster perguntando à platéia de cerca de 150 pessoas que lotava o auditório quem ali conhecia a música de Chico Buarque. Não mais que a metade levantou a mão. Quando a questão foi sobre quem já leu seus livros, o número não passou de 40.
Na uma hora e meia que se seguiu, os ouvintes conheceram mais da literatura de Chico, de sua relação com a música, de seu processo criativo. E ainda souberam que o novo livro de Auster está quase pronto ("Brooklyn Folies") e que Chico voltou a compor, com planos de um disco novo e shows.
Na maior parte das vezes, foi um monólogo de Chico sobre música, fama, ditadura e mulheres. Leia a seguir as declarações que o escritor brasileiro fez no festival literário:
Mulheres
"Eu não tenho nada a ver com essa reputação [de entender as mulheres]. Escrevi músicas para mulheres cantarem, porque temos mais compositores homens que mulheres."
"Não seria capaz [de escrever um livro como mulher]. Música é algo curto, você escreve por um momento, não acho que me sentiria confortável escrevendo como uma mulher por dois anos."
Rap
"Gosto muito de rap. O tipo de música que uma vez foi feita, por mim e por outros, com uma temática social, eles fazem isso melhor, porque vêm de lá. Eles falam para sua gente, vêm das favelas e são ouvidos por todos os tipos de pessoas. Eles têm algo a dizer, muito sério."
Censura
"Escrevi meu primeiro livro naquela época, porque tinha muitas músicas que eram censuradas. Mas não foi um bom livro ["Fazenda Modelo", de 1974], porque foi escrito por um outro tipo de necessidade, porque eu não podia escrever música, foi escrito com raiva."
"Muitas vezes, havia tantas metáforas e tantos meios de escapar da censura na década de 70, que, eu mesmo, quando ouço músicas que escrevi, não entendo o que eu quis dizer."
Literatura e música
"Acho que escrevo livros como faço música. Tenho música na cabeça o tempo todo. Eu nunca ouço música, porque atrapalha meu escrever."
"Quando eu escrevo acho que tem música no fundo da minha cabeça. E tem uma necessidade inconsciente de escrever de um modo musical. Se uma frase faz sentido, eu leio, releio, mas algo está errado, esse algo errado tem a ver com o sentido musical, o ritmo da frase, não sei como dizer, mas fico realmente satisfeito quando leio de modo musical."
"Escritores dizem, ah, escrevo ouvindo suas canções, ou música clássica. Eu olho para eles e digo: você não gosta de música. Você gosta, mas não é uma pessoa musical. Não toma sua atenção. Se você gosta, qualquer música, no elevador, chama a sua atenção."
Diálogo entre Chico Buarque e Paul Auster abre festival literário em NY
Alejandra Villasmil
Nova York, 18 abr (EFE) - A faceta literária de Chico Buarque está muito ligada a seu processo criativo como músico, como ficou evidente em um diálogo entre o cantor e o escritor americano Paul Auster em um fórum literário em Nova York.
"Tenho uma necessidade inconsciente de escrever literatura de uma forma musical", disse Chico no último sábado em uma conversa com Auster, na abertura do festival internacional de literatura "Pen World Voices", em Nova York.
Como em uma conversa entre amigos, Auster revelou um Chico escritor e seu processo criativo na produção de literatura, em particular seu último romance, "Budapeste", traduzido para vários idiomas.
Muito apropriadamente para a ocasião, Chico Buarque leu um trecho desta obra - em sua tradução ao inglês - sobre um lingüista brasileiro que, em Budapeste, é seduzido pela língua húngara, "a única no mundo que o diabo respeita".
Enquanto Chico comentou sua produção literária, Auster confessou ter escrito as letras de três canções, às quais depois encomendou os arranjos. "Um romancista realmente bom faz uma composição musical quando escreve", acrescentou.
"Cada vez que escrevo uma canção é porque me vem à mente e pronto. Só escrevo a letra e não penso na música. O compositor se encarrega disso", acrescentou Auster.
Surpreso, Chico pediu que ele explicasse como escreve as letras sem escutar a música em sua cabeça, acrescentando que sempre escreve a letra junto com a música ou primeiro a música, depois a letra, mas não ao contrário.
"Quando escrevo sem pensar na música, escrevo prosa", disse Chico, de 60 anos, que tem três romances publicados. "Sinto prazer quando escrevo, mas, claro, sempre haverá alguma luta, por exemplo, quando é preciso mudar uma palavra que não rima. Em minhas canções, tenho como regra não submeter a música às palavras", explicou Chico.
"Portanto, é preciso encontrar essa palavra que rime ou que se encaixe na música. Essa palavra pode ser completamente diferente em significado da palavra originalmente pensada para essa estrofe, mas é válida sempre que tiver o ritmo que busco", acrescentou.
Para Chico Buarque, escrever canções e literatura exigem o mesmo tempo e esforço. "Budapeste", por exemplo, foi escrito em dois anos e dois meses.
Ele também falou de como começou a escrever e de como a censura imposta pela ditadura militar brasileira o levou a escrever metáforas que às vezes nem ele mesmo entende quando as relê.
"Escrever literatura foi uma ambição da minha juventude. Meu pai, historiador e crítico literário, não me pressionou a escrever, mas apreciava quando eu escrevia. Aos 21 anos, comecei a compor canções, e isso foi o que me seqüestrou", lembrou.
Chico destacou também que a publicação de seu primeiro livro foi um risco, já que "ninguém pensa que um compositor bem-sucedido pode escrever um bom romance".
"Assumi o desafio. Após passar um ano sem escrever canções, me disse: 'algo anda mal; tenho que tentar outra coisa'. Então, há 15 anos, escrevi meu primeiro romance e as pessoas começaram a aceitar a idéia de que posso ser um escritor razoável", disse.
O primeiro dia do festival literário aconteceu na Biblioteca Pública de Nova York. O evento reunirá 115 importantes escritores de mais de 45 países até o próximo dia 22 de abril, entre eles o brasileiro Rubem Fonseca, o indo-britânico Salman Rushdie, o argentino Tomás Eloy Martínez, a mexicana Elena Poniatowska, o cubano José Manuel Prieto, o espanhol Antonio Muñoz Molina e a colombiana Laura Restrepo.
O TEMPO E O ARTISTA
Para Chico Buarque, um sentimento difuso a favor do apartheid social está hoje tomando conta da sociedade brasileira
"Querem exterminar os pobres do Rio"
DO ENVIADO A ROMA E A PARIS
Há um sentimento difuso quase a favor do apartheid social no Brasil e existe, por parte das elites, um ódio visceral não vocalizado em argumentos contra o presidente da República operário, que tem um dedo a menos e fala errado.
São sintomas da regressão social que Chico Buarque enxerga no Brasil de hoje, um país "cada vez mais irracional". O governo, porém, também não sai ileso na avaliação de Chico. Vem desperdiçando oportunidades históricas de intervenção social porque assumiu compromissos errados e cedeu demais.
Um exemplo bem concreto: o engavetamento da discussão sobre a descriminalização das drogas, segundo Chico a única maneira de enfrentar a questão da violência ligada ao tráfico no Rio.
"Se o governo Lula não enfrentar isso, não sei quem vai fazer", diz Chico -e completa: "O Lula sabe o que o cara do rap está cantando. Ele conhece aquela voz. Não tem o direito de ignorar".
Neste trecho da entrevista concedida em Paris, o compositor fala ainda sobre o assédio da mídia, da demanda crescente pelos assuntos fúteis e do fato de se sentir cada vez mais como se estivesse permanentemente submetido ao olhar de um Big Brother.
(FERNANDO DE BARROS E SILVA)
Folha - Você faz parte de uma geração de artistas que foi porta-voz de ambições grandes em relação às possibilidades do país. Hoje essas ambições encolheram muito, não se vê mais a perspectiva de mudanças sociais como antes. As aspirações foram redimensionadas para baixo. Como você analisa isso?
Chico Buarque - Hoje em dia a gente vê pouquíssima margem de uma mudança social. Ao mesmo tempo, em países pobres, como o Brasil é, deveria ser mais do que nunca premente a necessidade de uma transformação social. A situação se deteriora e não se enxerga uma alternativa razoável.
Me preocupa que estamos nos encaminhando cada vez mais para uma situação irracional. Tudo passa pela economia. É difícil. Eu tendo a acreditar nos economistas quando dizem ser impossível gerenciar países como o nosso de outra forma. Quem sou eu para opinar? Eu me sinto muito diminuído, tenho pouco interesse em me manifestar, da mesma forma que tenho pouco interesse em ler opiniões de leigos, de gente desavisada a esse respeito.
Às vezes podem dizer coisas interessantes, ou até brilhantes, mas quando chega a hora de uma discussão mais séria essas opiniões soam quase como um escárnio, coisa de poeta.
Folha - Você se vê pressionado a falar sobre esses assuntos?
Chico - Eu cada vez mais me abstenho por reconhecimento da minha limitação, da minha ignorância. Aí eu sou realmente modesto. Não sou modesto em relação ao que eu faço como artista. Mas, sobre os rumos ou possibilidades do país, não vejo honestamente que contribuição eu possa dar.
O que eu posso fazer é só constatar minhas perplexidades, meus receios diante desse quadro cada vez mais assustador. Como não se vê perspectiva de mudança a curto ou mesmo a médio prazo, a sociedade toda é levada a um certo conformismo, ou mesmo a um cinismo. Na alta classe média, assim como já houve um certo esquerdismo de salão, há hoje um pensamento cada vez mais reacionário, com tintas de racismo e de intolerâncias impressionantes.
O medo da violência na classe média se transforma também em repúdio não só ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao sujeito que tem um carro velho, ao sujeito que é mulato, ao sujeito que está mal vestido. Toda essa indústria da glamourização, de quem pode, de quem ostenta, de quem torra dinheiro -enfim, ser reacionário se tornou de bom tom. As moças bonitas no meu tempo eram de esquerda. Hoje são todas de direita (risos).
Boutades às vezes racistas, preconceitos de classe, manifestações de desprezo mesmo pelos mais pobres se tornaram algo muito comum e socialmente valorizado.
Folha - Estamos diante de uma grande restauração, uma grande maré conservadora?
Chico - Exatamente. E diante da negação de conquistas não só sociais mas também comportamentais. Vejo um pensamento cada vez mais conservador, até mesmo na aparência das pessoas, todo mundo arrumadinho...
Folha - Mas isso convive, no caso brasileiro, com um governo de um líder operário, o que poderia ser visto como uma conquista histórica na contramão desse quadro. Como explicar esse curto-circuito?
Chico - Em primeiro lugar, acho que a eleição do Lula foi uma vitória. Ter conseguido eleger o Lula talvez tenha sido um último sinal de que algo ainda possa mudar para melhor. O outro lado da moeda é esse de que falei.
O Lula sabe o que o cara do rap está cantando. Ele conhece aquela voz. Outros podiam não conhecer, mas o Lula sabe exatamente o que é aquilo, não há de esquecer. O Lula não tem o direito de ignorar isso. Nessa altura, fico depositando minha confiança pessoal no Lula, minha esperança de que ele encontre uma maneira de pelo menos suavizar esse quadro. Mas esse é um fardo muito pesado. É uma esperança talvez demasiada.
De certa forma, o Lula trouxe o acúmulo de esperanças de muito tempo para um tempo em que elas não podem mais se realizar. E aí não é culpa dele. É por isso que tendo a reagir às críticas que são feitas exageradamente ao Lula.
Folha - Parece que você quer evitar jogar água no moinho dos que dizem que as coisas no governo não funcionam ou que o Lula é igual ao Fernando Henrique.
Chico - Não quero jogar, porque já tem muita água nesse moinho. Vejo muita gente com ódio pessoal do Lula. E não vejo essa gente verbalizar com argumentos essa oposição tão visceral ao Lula. Parece que há uma certa vergonha de ter um presidente como o Lula, um operário, um sujeito com um dedo a menos e que fala errado. Uma vergonha de ver o Lula representando o país lá fora. Percebo isso em gente próxima. E vejo isso na mídia também. Na verdade, isso deveria orgulhar um brasileiro -ter um homem com as origens sociais do Lula na Presidência da República.
Folha - Isso é um avanço em relação à era tucana?
Chico - Deveria ser também motivo de satisfação ter tido um professor, um sociólogo como o Fernando Henrique na Presidência. Foi um progresso. Nós vínhamos de anos e anos de generais, que não eram eleitos, depois tivemos o Sarney, acidentalmente, o Collor e o Itamar. A eleição do Fernando Henrique foi um salto qualitativo. É um intelectual, um homem com estofo. Agora, também não concordo com aquela satisfação que se viu no nosso meio -"é um de nós, finalmente". Não quero um de nós na Presidência (risos). Não quero ser presidente. Não gostaria que meu pai fosse presidente da República. Não é por aí. Também não acho que o fato de o Lula não ter curso secundário completo seja em si uma virtude. Virtude é ele poder ter sido eleito. Ele pode ser um bom ou um mau presidente. O Brasil ter eleito Lula contradiz tudo o que eu disse há pouco a respeito de um país que parece cada vez mais estar contra gente como o Lula. E volto a repetir: não vejo apenas um sentimento contra o marginal, o traficante, o ladrão. Mas contra o motoboy, contra o desempregado, contra o sujeito que não fala direito, isso apesar de a elite brasileira falar muito mal o português. Constato um sentimento difuso quase a favor do apartheid social.
Folha - Você não quis incluir os seus jogos de futebol e a sua paixão pelo futebol como tema dos programas que está gravando. Qual a razão?
Chico - Todo mundo sabe que eu adoro jogar bola, que eu gosto de futebol. Já sabem até onde jogo bola. Então, vira e mexe, aparece alguém lá para tirar foto, essas coisas. Aí o futebol vira um acontecimento. Talvez até mais porque eu não esteja fazendo show, não esteja me exibindo em público, o futebol vira uma ocasião de exibição, como se eu quisesse me exibir jogando bola. Não é o caso. Aquilo não é uma exibição. Por isso achei melhor deixar de lado.
Folha - Ou é uma exibição para consumo interno, pessoal...
Chico - Pois é (risos). Mas há uma demanda cada vez maior para assuntos fúteis. Nos sites da internet isso é muito evidente. Qualquer coisa parece ser assunto. Fulano desceu em Congonhas (risos). Isso não é notícia, evidentemente. Mas tem que preencher os espaços, tem que botar foto de artista descendo do avião... Estréia, então. Eu em geral não vou mais a estréias, porque muitas vezes a platéia trabalha mais que o artista. Tem que estar bem vestido, a sua roupa vai ser comentada, essas bobagens todas. Minha empregada outro dia ficou com vergonha porque apareci com a mesma camisa em dois acontecimentos sociais (risos). Isso deve ter ocorrido mesmo. Acho que não estava atento ao meu figurino (risos). Além disso, você é quase sempre solicitado a fazer resenhas críticas no corredor do teatro, tem que sair de casa preparado para estar inteligente, dizer se gostou, por que gostou. Isso quando não enfiam o gravador na sua cara na saída do cinema para saber o que você achou da reunião do Copom, se você acha que a taxa de juros vai cair meio ponto, se o viés é de baixa ou de alta.
Folha - Você convive com assédios variados há muito tempo. Isso mudou de uns tempos para cá?
Chico - Piorou muito. Isso não era assim. No tempo em que nós andávamos expostos, raramente acontecia de sair uma nota dizendo "fulano foi visto bebendo em tal bar". Todos os dias nós estávamos no Antonio's -o Vinícius de Moraes, o Tom, o Rubem Braga, eu. Falavam-se barbaridades, brincava-se muito, bebia-se à beça. Se alguém estivesse por perto anotando, acabava, o Antonio's fechava. Nós andávamos por aí. Ninguém fotografava. Hoje parece que vivemos numa espécie de Big Brother permanente.
Folha - O Rio, onde você mora há muito anos, também mudou muito de cara, em termos sociais. Na sua música, quando a gente pega, por exemplo, dois sambas como "Estação Derradeira", de 1987, e "Carioca", de 1998, percebe-se com clareza essa mudança. Os personagens são outros, a atmosfera é outra, a barra é muito mais pesada, apesar dos muitos encantos da cidade. Como você sente isso no dia a dia?
Chico - O clima hoje na cidade é muito mais pesado. Para não falar lá de cima, na própria zona sul já há territórios demarcados. Eu conheci a praia como um espaço democrático. Hoje em dia já se sente no ar a idéia de que vai existir logo uma fronteira entre Ipanema e o Leblon. Tem um pessoal na altura do Jardim de Alá [moradores de um cortiço na rua do canal que divide Ipanema e Leblon] que desce ali e ocupa a praia. Vira uma paranóia, vira uma hostilidade com esses garotos que ficam circulando ali. Assaltar na praia é o pior negócio que existe. De vez em quando acontece. No dia seguinte, vem a polícia e enfia os meninos no camburão, quando não faz coisa pior. Eles querem tirar da praia, sumir com eles dali. Não vai ter onde botar esses meninos.
As soluções sugeridas para isso, as coisas que eu leio nas cartas dos leitores dos jornais, em geral são fascistas. Virou moda responder a quem defende os direitos humanos com o trocadilho infame dos "humanos direitos" contra os vagabundos que nos retiram o direito de andar livremente pelo calçadão. Isso quando não se defende abertamente a pena de morte, a reclusão dos garotos de rua, a diminuição da maioridade penal, a prisão perpétua. Eles querem exterminar com os pobres do Rio. Se puderem sumir com aquilo tudo -ótimo. Os meninos são os inimigos, são os nossos árabes, são os nossos muçulmanos.
Folha - E o problema cada vez mais grave do tráfico, como fica? Porque o tráfico virou talvez a única perspectiva de ascensão social, ou de possibilidade de um enredo vitorioso na cabeça de um menino morador da favela.
Chico - É. Assim como o futebol ou o pagode, o tráfico virou um veículo de ascensão, de chance de ter dinheiro, poder, mulheres e fama, mesmo ao preço de uma vida muito curta. É o que se reserva para um menino sem estrutura familiar, sem emprego, sem quase nada. Eu não vejo outra saída para a violência ligada ao tráfico senão a descriminalização de alguma forma, não sei se total ou parcial, das drogas.
Lembro de ter lido nos jornais que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, era favorável a essa idéia quando tomou posse. Não sei porque o governo não levou e não leva essa discussão adiante. Isso pode ser desgastante para os índices de popularidade do governo, talvez por isso ninguém toque no assunto.
Talvez pensem que não é o momento de enfrentar o problema em razão de alianças e de compromissos com os evangélicos do PL, essas coisas. Mas se não enfrentarem o problema agora, quando é que vão enfrentar? Se o Lula não enfrentar... Isso tem a ver com tudo o que a gente estava falando antes, com o rap, com o que os garotos da periferia estão falando, com a falta de perspectivas, com a violência toda que está ali, manifesta nas canções.
O Lula sabe muito bem o que é isso. Se não encarar isso, não sei quem vai fazer. Não entendo por que não se discute isso a sério.
Folha - Você acha que o governo, para além dos constrangimentos econômicos, está deixando escapar entre os dedos oportunidades históricas de intervenção social?
Chico - Acho. Acho. Entendo os compromissos, o FMI, a dívida etc. Tudo bem. Mas isso não tem nada a ver com essas outras omissões. Ou é isso ou é a Bíblia.
O TEMPO E O ARTISTA
Em entrevista em Paris, o compositor diz que a emergência do rap talvez represente o fim do principal gênero musical do século 20
A canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico
DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS
Chico Buarque voltou a compor. Disse que está na hora de finalmente se despir e se libertar do romance "Budapeste", que lançou no final de 2003 e do qual ele se ocupou, acompanhando as traduções, ao longo deste ano.
Paradoxalmente, Chico diz, rompendo um silêncio que vinha de muito tempo, que a canção, tal como a conhecemos, talvez seja um gênero do século passado -e que o rap talvez seja a sua negação. Paradoxalmente, mais uma vez, é o rap o que mais chama a atenção de Chico no cenário cultural brasileiro. "Tem uma novidade importante aí, na periferia se manifestando dessa forma."
O caminho do músico Chico Buarque continua, e cada vez mais, iluminado pelo farol de Tom Jobim, seu maestro soberano. Mas os olhos do artista estão mais do que nunca voltados para a moçada dos morros, onde ele enxerga ao mesmo tempo a desgraça e a antena do país.
Neste trecho da entrevista, Chico fala ainda sobre Cuba e diz que, mesmo discordando da ausência de democracia na ilha, considera louváveis os esforços para preservar os "valores da revolução".
(Fernando de Barros e Silva)
Folha - Podemos começar falando da reclusão que você se impôs neste ano.
Chico Buarque - Fiquei até menos recluso do que estive durante os dois anos em que escrevi o livro ["Budapeste"]. Este foi um ano de entressafra. O meu trabalho foi praticamente acompanhar as traduções, ficar na cola do livro que saiu no ano passado. Pouca coisa a mais. Recebi alguns convites para fazer músicas e não pude atender. Foi nesse sentido quase um ano sabático. Embora dê trabalho acompanhar as traduções.
Folha - Mas é um trabalho de que você gosta...
Chico - Gostar eu não gosto especialmente. Acho que faço para sofrer menos. Cada tradução é um sofrimento. Você nunca pode dizer exatamente o que você quer em outro idioma. Mas, nas línguas que eu mais ou menos alcanço, procuro trabalhar o mais próximo possível do tradutor.
Folha - Por que você preferiu não falar quando o livro foi lançado? Receio de induzir a leitura, de misturar o escritor e o compositor?
Chico - Um pouco disso tudo. Na verdade, neste ano sabático tive que ficar me explicando. Não tenho prazer especial em ficar explicando o que escrevi, os livros, as canções, o que seja. Há artistas que gostam disso e se explicam muito bem. Eu não sei fazer isso. Houve também aquela comemoração toda em torno dos meus 60 anos, uma coisa excessiva sobre a qual eu não tinha muito o que dizer.
Além disso, não quis falar um pouco também para evitar que o livro viesse ocupar o espaço que eu tenho como compositor de música popular. Procuro o máximo possível distinguir as duas coisas. Muitas vezes nem isso é possível. Mas apresentar o livro na TV, tirar fotos, isso confundiria ainda mais as coisas. Vem cá, mas esse é o compositor, o escritor? Parece que fica tudo sendo a mesma coisa, a mesma cara, o mesmo sujeito.
Folha - É visível o seu esforço de separar o escritor do compositor. Por quê?
Chico - Eu procuro separar, sim. Entendo que são duas coisas diferentes. O escritor tem pouco a ver com o compositor. Mas é uma coisa pessoal minha. É difícil convencer o leitor de jornais desse meu sentimento. Mas é por isso mesmo que eu procuro ser um pouco mais discreto enquanto autor de romances. Soma-se a isso o fato de que o personagem central de Budapeste é discretíssimo. Achei que seria complicado ir na contracorrente e desmentir tudo o que o livro diz. Neste sentido o livro é um pouco... Não vou dizer que seja autobiográfico, mas o protagonista tem isso em comum comigo.
Folha - Já falaram que os personagens dos seus três romances -"Estorvo", "Benjamim" e "Budapeste"- são um pouco alter egos do Chico Buarque.
Chico - Os livros são muito diferentes. O que complica um pouco a questão é que o protagonista de "Budapeste" é escritor. O protagonista de "Estorvo" não era nada, e o de "Benjamim" é um ex-modelo-fotográfico.
Depois de um ano, mais de um ano, já está na hora de eu me despir, me libertar deste livro. Eu estou na verdade ansiando por isso, até para escrever outro livro, ou para escrever novas canções.
Folha - Você voltou a compor?
Chico - Consegui fazer uma canção, para o filme do João Falcão, "A Máquina", uma adaptação do livro da Adriana Falcão. Tive outras encomendas, mas não consegui. A única que saiu foi essa.
Folha - Como chama a canção e como ela nasceu?
Chico - Chama-se "Porque era ela, porque era eu". É uma variação sobre um dito famoso do Montaigne [filósofo Michel de Montaigne (1533-1592)] -"Parce qu'était lui, parce qu'était moi". Ele se referia nos "Ensaios" à grande amizade com o Étienne de la Boétie, que morreu muito jovem, dizendo que a ligação entre ambos existia simplesmente "porque era ele, porque era eu". Na canção, o "lui" [ele] virou uma mulher. É uma canção de amor. Por coincidência, estive em Paris no mês passado e vi duas vezes nos jornais alusões à frase do Montaigne. A canção na verdade já estava pronta.
Folha - E virão novas canções? Ou você não sabe ainda o que fazer?
Chico - Tenho muita vontade de fazer música. Mas é difícil planejar. Parece que se tornou uma coisa quase automática -faz um livro, depois faz um disco e assim vai. Talvez eu mesmo não queira obedecer esse script que venho seguindo. Mas sempre foi assim. Depois de um trabalho com literatura, até retomar a música leva um bom tempo. O formato é tão diferente da literatura que a mão fica dura.
Folha - Tem parcerias à vista?
Chico - O Ivan Lins me mandou uma música muito bonita. Está aqui comigo, mas ainda não consegui letrar. Fora as canções de outros autores que tenho comigo há muito tempo -Guinga, Dominguinhos. São coisas que ficam ali na gaveta, numa espécie de arquivo a que eu recorro quando estou num processo de criação.
Folha - O que motivou você a fazer essa revisão da sua obra, a aceitar gravar essa série de entrevistas para os programas da TV?
Chico - A idéia partiu do Roberto [de Oliveira, diretor dos especiais com Chico]. Para mim é um pouco incômodo ficar revendo fitas antigas, falar sobre canções do passado. Estou, na verdade, cedendo a uma demanda que existe -e acho que cada vez mais. Isso é curioso. Talvez tenha razão quem disse que a canção, como a conhecemos, é um fenômeno próprio do século passado, tal é a quantidade de releituras, de compilações, de relançamentos, de gente cantando clássicos -e isso no mundo inteiro. Os meus próprios discos são relançados de formas diferentes pela indústria, em caixas e caixotes, embrulhados assim e assado, com outra distribuição das músicas. E há um interesse muito grande por isso. Se eu lançar um disco novo, vou competir comigo mesmo. E devo perder.
Folha - Você parece estar descrevendo um esgotamento histórico...
Chico - A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. Mas o interesse hoje por isso parece pequeno. Por melhor que seja, por mais aperfeiçoada que seja, parece que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito.
E há quem sustente isso: como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido.
Noel Rosa formatou essa música nos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem a bossa nova, que remodela tudo -e pronto. Se você reparar, a própria bossa nova, o quanto é popular ainda hoje, travestida, disfarçada, transformada em drum'n'bass.
Essa tendência de compilar e reciclar os antigos compositores de certa forma abafa o pessoal novo. Se as pessoas não querem ouvir as músicas novas dos velhos compositores, por que vão querer ouvir as músicas novas dos novos compositores? Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. Estou dizendo tudo isso e pensando ao mesmo tempo que talvez seja uma certa defesa diante do desafio de continuar a compor. Tenho muitas dúvidas a respeito. Às vezes acordo com a tendência de acreditar nisso, outras não.
Folha - E o rap? Sem abusar das relações mecânicas, parece que estamos diante de uma música que procura dar conta, ou que reage a uma nova configuração social, muito problemática.
Chico - Eu tenho pouco contato com o rap. Na verdade, ouço muito pouca música. O acervo já está completo. Acho difícil que alguma coisa que eu venha a ouvir vá me levar por outro caminho. Já tenho meu caminho mais ou menos traçado. Agora, à distância, eu acompanho e acho esse fenômeno do rap muito interessante.
Não só o rap em si, mas o significado da periferia se manifestando. Tem uma novidade aí. Isso por toda a parte, mas no Brasil, que eu conheço melhor, mesmo as velhas canções de reivindicação social, as marchinhas de Carnaval meio ingênuas, aquela história de "lata d'água na cabeça" etc. e tal, normalmente isso era feito por gente de classe média.
O pessoal da periferia se manifestava quase sempre pelas escolas de samba, mas não havia essa temática social muito acentuada, essa quase violência nas letras e na forma que a gente vê no rap. Esse pessoal junta uma multidão. Tem algo aí.
Eu não seria capaz de escrever um rap e nem acho que deveria. Isso me interessa muito, mas não como artista e criador. O que eu posso é refazer da melhor maneira possível o que já fiz. Não tenho como romper com isso.
E quando penso na melhor maneira possível, penso imediatamente em Tom Jobim. Ele foi meu mestre desde o começo. E, depois que ele morreu, eu sinto paradoxalmente ele mais presente na minha maneira de pensar a música e mais presente no panorama geral da música brasileira. Esse disco agora, que está sendo lançado ["Ao Vivo em Minas", gravado em 1981], é maravilhoso. Não chamava muita atenção na época um show de Tom Jobim só com o piano. Isso era visto até com certo desdém. Alguém teve a boa idéia de gravar, e agora isso é recebido como uma jóia, que é. É um pouco o que eu via. Ele ali no piano, compondo "Águas de Março", "Luiza" [Chico cantarola: "vem cá, Luiza, nã nã nã nã..."). Vi muito isso. Ele não tinha pudor de mostrar as músicas rascunhadas. Mostrava. Pedia palpites. Ver o Tom em ação, e tendo dúvidas, em processo de criação, era formidável -e difícil. Eu sou incapaz de partilhar um momento como esse, uma obra rascunhada, um pedaço de música ou de letra.
Folha - Ficaram com você canções inéditas do Tom?
Chico - Ao longo dos anos, ele me deu várias músicas para fazer letra e eu não consegui. Não vejo mais sentido, sem ele aqui, de gravar canções que estão comigo. Só tinha sentido com ele junto.
Folha - Você tem uma relação antiga com Cuba. O regime de Fidel Castro vem sendo cada vez mais cobrado pela ausência de democracia, pelas execuções etc. Como você se coloca nessa discussão?
Chico - Minha ligação com Cuba se estabeleceu no fim dos anos 70 até a volta das relações diplomáticas com o Brasil. Na época meu apelido era "el embajador". Eu participava de um intercâmbio cultural que envolvia muitos artistas, músicos, intelectuais. Acho que cumpri bem o meu papel. De lá para cá, tenho ido menos a Cuba. Perdi um pouco o contato.
Folha - Mas você tem amigos músicos em Cuba.
Chico - Tenho. Amigos hoje um pouco distantes. É essa a minha relação com Cuba. Existe, é claro, para a minha geração, um outro tipo de relação, afetiva, que vem da revolução cubana. Nos anos 60, aquilo era muito forte para nós. Um exemplo de resistência. Ainda hoje o ditador Fidel Castro, como gostam de dizer os jornais, inclusive a Folha... Ele é o único adversário dos Estados Unidos na América Latina que resistiu a golpes de Estado e assassinatos e está ali. Todos os outros foram depostos ou assassinados. Ele sobreviveu a vários atentados. Manteve e mantém até hoje uma posição altiva. E isso é algo que ninguém deve ignorar e que eu admiro.
Quanto a fuzilamentos ou a prisão de dissidentes políticos, fico contrariado, porque não gosto e não concordo com isso. A questão toda é muito delicada. Eu gostaria que Cuba fosse um país democrático. Agora, eu gostaria de uma maneira, e o Bush gostaria de outra. Cuba poderia ser hoje o Haiti. Cuba não é. É claro que me desagrada a idéia de um partido único, de liberdades vigiadas, mas existe ao mesmo tempo a necessidade de um controle para manter os valores da revolução, que a meu ver são louváveis.
O TEMPO E O ARTISTA
Filmes dirigidos por Roberto de Oliveira mesclam imagens de arquivo com depoimentos e serão lançados em DVD no final de 2005
Dez programas refazem carreira de Chico
DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS
Chico Buarque gosta de contar uma história que ouviu de uma de suas filhas, a atriz Sílvia Buarque. Ela estava em uma loja de CDs no Rio quando reparou que uma moça a seu lado pegou nas mãos o CD "As Cidades" (1998), recém-lançado. Olhou de um lado, virou do outro, e fez o comentário: "Mas só tem música nova!".
A frase da moça divertiu e ficou famosa na família Buarque. O compositor costuma repeti-la quando quer exemplificar a nostalgia que percebe num público ávido pelo "Chico dos anos 70".
Pois a moça não terá mais do que reclamar. A partir de janeiro, Chico reaparecerá numa série de programas para a TV sobre sua obra, todos eles mesclando imagens de arquivo, muitas delas raras, com depoimentos do autor gravados hoje.
A estréia acontece dentro de um mês, no dia 26, quando a DirecTV exibe o primeiro programa, de um total de dez previstos para pingar em princípio mensalmente, embora só três já tenham sido gravados e estejam certos.
O responsável pelo projeto é o diretor Roberto de Oliveira, ex-vice-presidente da Rede Bandeirantes, que conheceu Chico em 1973, quando inventou e pôs em prática o Circuito Universitário -uma espécie de show itinerante de artistas por cidades do interior do país numa época em que a ditadura fechava as portas da grande mídia para muitos deles.
Desde então, Oliveira produziu vários documentários musicais com Chico, exibidos ao longo dos anos 70 e 80, sobretudo na Bandeirantes. É parte desse acervo, que soma cerca de 30 horas de filmes, mais o acervo pessoal de Chico, com algumas gravações amadoras feitas nos anos 60, que está sendo recuperado.
O diretor define os programas como "um grande testemunho, no qual Chico fala da obra dele, da vida dele, do processo de criação, e se vale da recuperação de imagens e canções do passado para ilustrar as coisas que ele diz hoje".
A intenção de Roberto de Oliveira é lançar no final de 2005 cinco DVDs com os programas exibidos, acrescidos do making of, e repetir a dose, com os outros cinco, até o final de 2006.
O roteiro dos programas segue uma divisão temática. O primeiro, intitulado "Meu Caro Amigo", foi feito em torno das parcerias de Chico. A entrevista e as imagens de hoje que dão o fio condutor foram gravadas no Rio. Chico falou na Biblioteca Nacional, onde se realizou uma exposição sobre sua obra como parte das comemorações dos 60 anos, completados em 19 de junho. A exposição chega a São Paulo em 13 de janeiro.
Tom Jobim, a quem será dedicado um programa inteiro, aparece já neste de abertura, cantando ao piano "Falando de Amor", ao lado de Chico. Francis Hime e Edu Lobo, os dois parceiros mais assíduos, também comparecem, em versões de "Meu Caro Amigo", canção clássica da resistência à ditadura gravada em meados dos 70, e "Choro Bandido", já dos anos 90. Chico canta ainda com Djavan, com a irmã Miúcha e com Dorival Caymmi, entre outros.
No depoimento que dá sobre o velho compositor baiano, Chico o define como "um caso à parte na música brasileira, de tal forma despojado que é difícil até imitá-lo, fazer uma música à la Caymmi". "Não sei de onde vem Caymmi nem sei para onde vai", diz, rendendo homenagens a um grande mestre que, segundo ele, não deixou discípulos na MPB.
O momento mais marcante do programa de estréia talvez seja a aparição histórica ao lado de Elis Regina, num show de 1974, quando interpretaram juntos "Pois É", canção feita em parceria com Tom. Os dois mal se olham no palco. É sabido que Chico e Elis não tinham afinidades e acumularam pinimbas ao longo da vida.
O segundo programa, previsto para fevereiro, foi gravado há dez dias em Paris e vai se chamar "À Flor da Pele", nome de uma das duas versões de "O Que Será", gravada no disco "Geraes" (1976), de Milton Nascimento. O motivo do programa é o conhecido e repisado universo feminino nas canções de Chico, assunto que ele não gosta de abordar.
"Roberto, você vai perguntar e eu vou embatucar, não sei falar sobre isso", avisou Chico antes da gravação, feita num bistrô em frente à ilha de Saint Louis, no centro de Paris. Provocado pelo diretor, acabou comentando várias de suas canções. Disse até que foi em Paris, quando era um menino de 9 ou 10 anos, que viu pela primeira vez mulheres com os seios nus nas capas de revistas.
Houve também momentos de simpático embaraço. Num deles, o diretor deu voltas, tergiversou e lançou uma pergunta a respeito da inspiração de "Morena dos Olhos d'Água", feita em 1966 para a hoje socialite Eleonora Mendes Caldeira. Chico olhou sorrindo para o diretor: "Ô Roberto, a Eleonora Mendes Caldeira é uma senhora. Você não vai querer que eu fale sobre isso nessa altura do campeonato. Nem fica bem". A equipe caiu na gargalhada.
O terceiro programa foi gravado em Roma, uma semana antes. Será exibido em março com o título "Vai Passar", canção de Chico que se tornou um hino da campanha pelas Diretas-Já, em 1984.
O eixo do programa é a política, sobretudo a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Chico morou em Roma durante 13 meses, entre 1969 e 70, numa espécie de exílio voluntário. Já havia morado na cidade quando criança, entre os oito e dez anos, quando seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda lecionou na Universidade de Roma.
"A ditadura me encheu muito o saco, mas também enchi bastante o saco dela", disse Chico na entrevista gravada num hotel. Nela, o compositor passou o período do exílio a limpo, comentou o prazer de caminhar pelas ruas de Roma e disse que o disco "Construção", lançado em 1971, representa um marco em sua obra, uma espécie de perda da inocência presente nas canções do período anterior.
Neste terceiro programa, há algumas imagens históricas. Numa delas, pouco conhecida, Chico caminha pelo palco do Anhembi, em São Paulo, de microfone em microfone, procurando um que não tivesse sido desligado. Era 1973 e ele cantava "Cálice" quando lhe cortaram o som do teatro.
No final de janeiro, Chico deverá gravar a entrevista para o quarto programa da série, sobre literatura. Em princípio, em Portugal, mas o compositor gostaria de estender a viagem a países da África que falam o português, o que está sendo negociado.
Chico contra o cinismo
O compositor fala com exclusividade à Folha, que o acompanhou durante duas semanas em Paris e em Roma, nas filmagens de um documentário
FERNANDO DE BARROS E SILVA
ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS
"O Lula trouxe o acúmulo de esperanças de muito tempo para um tempo em que elas não podem mais se realizar." A frase é de Chico Buarque. Resume, mais do que uma frustração, uma posição complexa diante um governo que ele apoiou e ajudou a eleger, mas sobre o qual tem hoje várias críticas, embora não o considere o único nem o maior responsável pelo fato de o Brasil estar caminhando para uma situação que chama de "cada vez mais assustadora e irracional".
Chico falou à Folha com exclusividade na quarta-feira da semana passada, durante duas horas, no seu apartamento em Paris. Acabava naquele dia uma maratona de gravações de duas semanas, a primeira delas em Roma, para dois de uma série de dez programas sobre sua obra, mesclando imagens de arquivo com depoimentos, que a DirecTV vai levar ao ar a partir de janeiro.
A Folha o acompanhou durante todas as gravações, a maior parte delas com cenas de Chico caminhando (o que mais gosta de fazer, ao lado de jogar bola) pelas ruas de Roma e de Paris.
É a primeira vez, desde que Lula foi eleito, que Chico aceita falar longamente, inclusive sobre a situação do Brasil, assunto sobre o qual sempre é cobrado. Primeiro, disse que se sentia "diminuído" e se abstinha de opinar porque hoje "tudo passa pela economia" e ele próprio não costuma dar muita atenção aos palpites dos leigos.
Mas logo a seguir veio a crítica central ao que ele diz ver em curso no país: "Diante da ausência de perspectiva de mudança social a curto ou a médio prazo, a sociedade toda está sendo levada a um certo conformismo, ou mesmo ao cinismo". Na alta classe média, disse, "assim como já houve um esquerdismo de salão, há hoje um pensamento cada vez mais reacionário. O medo da violência se transformou em repúdio não só ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao motoboy, ao sujeito que tem carro velho, ao sujeito que anda mal vestido".
"No meu tempo as moças bonitas eram de esquerda", disse sorrindo. Sejam de esquerda ou de direita, jovens ou senhoras, as "moças" continuam encantadas por Chico. Foi um frisson entre as funcionárias da embaixada do Brasil em Roma, todas já coroas, quando Chico chegou ao belo palácio na Piazza Navona para gravar algumas imagens. Fotos e autógrafos, como sempre.
Uma estudante pernambucana de 18 anos que vive em Roma passava pela rua e viu Chico na porta. Ficou paralisada e começou imediatamente a chorar. As lágrimas escorriam por seu rosto. Não parava por nada neste mundo. Mais fotos e algumas palavras trocadas meio sem jeito de parte a parte.
Aos 60 anos, Chico segue sendo o mesmo menino tímido diante de qualquer desconhecido. Gosta mais de ouvir e de observar do que de falar e ser observado. Não se sente à vontade quando é abordado na rua. Em seu semi-anonimato nas cidades da Europa, estava na maior parte do tempo descontraído. E às vezes brincalhão com a equipe do documentário.
Em Roma, a produção alugou um carrinho de golfe para acompanhar Chico pelas ruas. Entre uma locação e outra, ele próprio quis dirigir a engenhoca. Num determinado momento, começou a cantar um tango em voz alta, acompanhando o cinegrafista argentino, Mariano, que ia filmando ao seu lado.
Amigos, cinema e futebol
Chico aproveitou a viagem para rever alguns amigos. Jantou em Roma com Sergio Bardotti, o criador de "Os Saltimbancos", que ele adaptou para o Brasil em 1977, fazendo da peça musical uma espécie de "Revolução dos Bichos" ao contrário e transformando-a num dos maiores sucessos do teatro infantil no Brasil. Em Roma, disse Bardotti, "Os Saltimbancos" nunca emplacaram.
Em Paris, o compositor aproveitou um dos intervalos das gravações para ir ao cinema sozinho. Assistiu ao novo filme de Bergman, "Sarabanda". Lacônico, disse ter gostado muito: "Bergman é um mal necessário".
Dias antes, também em Paris, havia ido visitar a família do fotógrafo Sebastião Salgado, seu velho amigo. Tião, como ele o chama, estava viajando, mas Chico foi recebido pela mulher, Lélia, e pelos dois filhos, Rodrigo e Juliano, com um lanche à base de baguete, frios e foie gras. Assistiu ainda pela Globo Internacional ao jogo entre São Paulo e Flamengo pelo campeonato brasileiro. Torcedor do Fluminense, não parava de provocar durante a partida o amigo e assessor Vinícius França, rubro-negro dos mais fanáticos.
O futebol o acompanhou pela Europa. Em Paris, com a temperatura marcando em média -1º, não conseguiu parceiros em número suficiente para armar sua pelada. Um mês antes, Chico havia contraído uma gripe fortíssima justamente por ter jogado a céu aberto e sob uma garoa fina num campinho de terra batida na mesma capital francesa.
Em Roma, porém, jogou bola duas vezes. Arrumou a pelada no centro esportivo da RAI, a TV e rádio estatal italiana. O time brasileiro, com ele à frente, ganhou a primeira partida dos italianos por 13 a 11 e empatou a segunda por 5 a 5. "Fora de casa, dois bons resultados", disse Chico, sério.
Houve, porém um incidente que o deixou irritado. O par de chuteiras velhas e rasgadas de Chico foram parar no lixo. A camareira do Hotel de Russie, um dos mais elegantes de Roma, ao lado da Piazza del Poppolo, achou que aquilo era um calçado imprestável e deu sumiço. Chico reclamou na recepção, mas em vão. Não conseguiu recuperar o mimo. "Uma chuteira com história, mais de 2.000 assistências e duas centenas de gols", brincou depois com os amigos.
Um dia antes de partir de Roma, Chico deu já na madrugada da sexta-feira, dia 10, uma entrevista ao vivo para um programa sobre música brasileira na rádio da RAI. Falou sempre em italiano fluente. E ainda ironizou a maneira como os italianos costumam pronunciar seu nome: "Kiko Bárkue".
'Escrevo para me entender melhor', diz Chico Buarque
Mariana Timóteo da Costa
da BBC Brasil
O compositor e escritor Chico Buarque de Hollanda foi o centro das atenções em um evento promovido pela editora Bloomsbury na quinta-feira à noite, no Queen Elizabeth Hall, em Londres, para lançar a edição em inglês de Budapeste.
Acompanhado de Patrícia Mello, que está lançando Valsa Negra na Grã-Bretanha, Chico leu trechos de Budapeste em português e inglês - confortavelmente - e conversou com a platéia sobre a sua vida e obra. "Escrevo, tanto livros como músicas, para me entender melhor", disse Chico, bem-humorado.
"E às vezes descubro coisas que queria --e que também não queria-- descobrir", completou o autor e compositor.
Chico falou basicamente sobre literatura, muito pouco sobre música.
Sobre isso, ele apenas declarou que até se divertia, durante a ditadura, ao adotar o pseudônimo Julinho de Adelaide para escapar da censura. "Nunca tinha pensado que, assim como o protagonista de Budapeste, tinha virado um ghost writer."
Depois do evento, Chico distribuiu autógrafos e beijos na imensa maioria de mulheres presente, que não perdeu a oportunidade de tirar uma foto com o ídolo.
Leia a seguir os melhores momentos de Chico durante o evento da Bloomsbury.
Criatividade: "Levei dois anos escrevendo Budapeste. Tinha a idéia de escrever sobre um cara com a vida completamente destruída. Ia inventar uma língua para ele aprender, mas achei que ia ser muito difícil criar uma nova língua. Optei pelo húngaro, que é muito mais fácil, né? (risos)".
Hungria: "Achei mais fácil escrever sobre um país que nunca visitei. Mas tive uma namorada húngara há muito tempo e era fã da Seleção da Hungria da Copa de 1954. Todos os meus jogadores de futebol de botão tinham nomes dos jogadores húngaros. Acho que isso acabou me inspirando".
Frustração: "Às vezes ficava dois, três meses, sem ter uma idéia boa. O trabalho de escritor requer disciplina e fica meio solitário de vez em quando".
Falar em público: "No Brasil, não existem eventos literários como este, que me obrigam falar em público. Achava que ia ser fácil me tornar escritor e ficar mais recluso. Mas pelo visto não escapei do palco. Se bem que ler é ainda mais fácil do que cantar".
Melodia nas palavras: "Não ouço nenhuma música enquanto escrevo livros porque sempre já tenho uma música martelando em minha cabeça. Acho que meus livros acabam tendo uma melodia, sim. É inevitável. Se as palavras juntas não me soam bem musicalmente, preciso reescrever a página".
Egoísmo:"O trabalho de escritor, assim como o de compositor, é bastante egoísta, claro que eu escrevo em busca de alguma coisa, para entender talvez o passado, talvez eu mesmo. Às vezes descubro coisas boas, às vezes não".
Tradução: "Uma jovem australiana traduziu Budapeste para o inglês, acho que ela fez um excelente trabalho em buscar palavras relacionadas à palavra em português, que expressassem as minhas idéias. Mas é claro que o livro traduzido fica diferente, não dá para escapar disso".
Teatro: "Não tenho este orgulho de falar que sou um autor de teatro. Minhas peças foram apenas a criação de links para unir as minhas músicas. Não me considero nem de longe um teatrólogo".
"Já estou pegando o violão"
Com uma música nova, já pronta, enquanto termina as revisões de "Budapeste", Chico afirma que "mora no limbo", conta dos ciúmes que tem de suas canções e de porque fica ressabiado se o chamam de "poeta". Para aqueles que andavam sentindo falta do Chico Buarque das canções, uma boa notícia: ele está de volta. Depois de mais uma incursão aos labirintos da literatura, com seu terceiro romance, "Budapeste", o compositor, que acaba de completar 60 anos, feitos em 19 de junho, já está tirando a poeira do violão e se prepara para mergulhar na música outra vez. Não que os livros tenham ficado de lado. Chico também tem se dedicado ao trabalho de fazer traduções de si mesmo. Ocupado com revisões de edições previstas para sair ainda neste ano em diversos lugares do mundo (incluindo na lista, além dos previsíveis Espanha e Itália, as improváveis Sérvia e Montenegro e Hungria) ele se rendeu às facilidades da Internet e agora tem até e-mail, para facilitar o trabalho.
Entre tantas atividades, Chico Buarque conseguiu separar um espaço na agenda para um bate-papo com a "Ocas". Ao longo de duas horas, falou sobre sua rotina ("Dá tempo de jogar bola, andar na praia"), sua obra ("Tenho algumas músicas que são boas, né?"), experiências pessoais ("Quando fui pego pela polícia, apanhei um bocado"), ONGs ("É como se a sociedade toda tivesse suprido todo o tipo de carência"), política ("A pior coisa que pode acontecer para um governante e estar cercado de puxa-sacos") e sua relação com a imprensa ("Prefiro não falar para não me aborrecer").
O compositor, que marcou a conversa para uma tarde de sábado, fez uma única ressalva quanto à entrevista: "Vai ter que ser depois do meu futebol". Leia, a seguir, a prosa de Chico Buarque.
OCAS - Como andam as traduções de Budapeste?
CHICO BUARQUE - As que eu acompanho, que são espanhol, inglês, italiano e francês, já estão na fase de revisão. A de inglês estava para sair no mês passado. Italiano, como terminamos há pouco, deve sair só no meio do segundo semestre. Volta e meia chegam notícias de novos lugares interessados. Nesta semana, por exemplo, recebi a notícia da venda do livro para a Sérvia e Montenegro, além da Hungria. Só que essas traduções eu não acompanho, por causa do idioma.
OCAS - E nas traduções que você acompanha, você dá palpite, interfere...
CHICO - Sim, sempre foi assim. Antigamente era mais complicado, tinham que me mandar as coisas por fax. Agora é muito mais rápido. Leio tudo. O que acontece às vezes é que percebo erros evidentes de tradução ou compreensão e acabo ficando em dúvida se é realmente aquilo que a pessoa quer dizer. Nessa situação sugiro: "Não seria isso? Não seria aquilo?" e depois o sujeito manda de volta. Às vezes, rebate, às vezes, concorda. Fica uma conversa assim, e é bom. Até para que você compreenda melhor o que você escreveu, é preciso ter muita certeza do que escreveu. Às vezes essas dúvidas levantam a discussão com o tradutor, querendo saber: "Mas você quis dizer exatamente o que com isso, com essa palavra?", e, como já passou um bom tempo, você mesmo fica se perguntando: Mas o que será que eu quis dizer com essa palavra?" (risos). É um pouquinho cansativo, mas por outro lado não é. Lembro no primeiro livro, o "Estorvo", de eu no meio da tradução resolver criar outras coisas. O sujeito traduziu, e eu corrigi. O cara até vinha e dizia: "Mas não foi isso que você escreveu", e eu respondia: "Eu sei, mas agora eu quero que seja:assim" (risos). Uma coisinha ou outra você mexe, você tem o direito de mexer.
OCAS - Você sente vontade de fazer retoques também na sua música?
CHICO - Sim. Na música já senti muito isso, porque tem um momento em que você entrega e pronto, tem que largar. Mas já me aconteceu, por exemplo, de eu fazer uma música e uma letra e, quando eu vou gravar, quando sou eu o cantor, quase sempre na hora de cantar, no estúdio e tal, eu tenho uma outra idéia e mudo uma coisinha ou outra. Já me aconteceu uma vez de gravar, o disco ficar pronto, a capa ficar pronta com as letras impressas e eu, meio dormindo, ter um estalo: "Pá! A palavra não é essa, tem que ser outra!". Aí acordei gente, o disco já estava realmente na prensa, e eu: "Pára! pára! pára!". No final das contas, deu mais ou menos tempo de parar a prensa, mas com a música foi complicadíssimo porque era a época de cortar fita a gilete. Estava tudo pronto, com arranjos e mixado, e era uma palavra só, mas que eu tinha que trocar. Fui para o estúdio, gravei a palavra nova, eles cortaram a fita e enfiaram a palavra nova, sem alterar a música. Fiz por cima, e foi bastante complicado porque a música é toda corridinha, picadinha, e o técnico teve um trabalho cirúrgico. Então acontece isso sempre. Depois não dá mais para mexer. Aí quando você vai, lá adiante, regravar uma música, dá vontade de mudar.
OCAS - A letra? Pode?
CHICO - Pode, se for uma outra gravação, outro arranjo. Até porque não faz sentido gravar igual. Você pode mudar o andamento, o arranjo, a levada, a harmonia, por que não a letra? Volta e meia mudo uma coisinha ou outra, por que não? Agora é claro que sempre a versão que fica, é a da primeira gravação. É ela que fica registrada, que vai songbooks e tal.
OCAS - Você já disse que não gosta de se escutar. É por isso, pela vontade de mexer?
CHICO - É um pouco isso. Mas na verdade eu não escuto muita música. E escutar a mim mesmo só se for para fazer alguma coisa, um arranjo novo. Ficar escutando por escutar eu não gosto. O que às vezes é uma vantagem. Em primeiro lugar, porque é curioso ouvir coisas que você hoje em dia faria diferente, mas também porque você esquece, e pode acontecer de ter uma surpresa boa. Às vezes você ouve uma música sua que não conhece mais, que lembra vagamente. Porque faz 20, 30 anos que você não mexeu mais naquilo. Aí, de repente, você ouve e acha interessante. Isso só acontece por acaso mesmo, porque alguém regrava uma música sua. Agora mesmo passei por isso, arrumando a casa, as minhas fitas. Tinha uma porção de coisas que eu queria jogar fora, pegava e colocava para tocar querendo saber que música era aquela e, de repente, pá!, tinha a surpresa, essa música é minha. Esse cara que está cantando sou eu (risos). É bacana você ficar ouvindo e pensando: "Para onde é que vai agora?". Isso quando a música é boa. Porque, você sabe, tem algumas que são boas, né? (risos).
OCAS - Alguns compositores dizem que, ao criar uma canção, sentem que a métrica e a rima formam uma espécie de prisão, sem possibilidade de expansão, com limites bem traçados.. A literatura parece não ter isso. Essa foi uma das razões de você ter escapado para a literatura, para ter uma coisa mais ampla?
CHICO - Talvez a parte literária da composição seja um bom exercício para, depois, na hora de desamarrar, você se sentir mais solto. Talvez tenha, sim, um prazer nessa liberdade. Mas, por outro lado, existe um prazer muito grande em fazer letra. Muitas vezes faço música em parceria, faço letra para canções prontas. Quando sou eu compondo, nunca faço a letra antes. Mas a música vai puxando a letra e pode ir se moldando, posso ir modificando a música conforme a necessidade da letra, porque ela é mais maleável. Quando eu pego uma música pronta e vou letrar, essa música para mim é intocável, é quase uma questão de honra não mexer, não acrescentar uma sílaba. E isso vira uma espécie de desafio. Então fazer letra de música para além do valor que elas possam ter, para mim, deve ter servido como um exercício, eu devo ter ficado mais forte para poder escrever livremente depois de ter passado por isso. Realmente são dois trabalhos muito diferentes, e se por um lado é um alívio você não ter mais aquele constrangimento da métrica, por outro lado é um pouco assustador você ter essa liberdade toda, poder escrever uma frase de 50 linhas, sem pontuação, com as palavras que quiser, já que não tem que rimar com nada. E tenho a impressão de que existe um certo ritmo na literatura para quem está habituado a trabalhar com música que é peculiar. Existe, mesmo sem querer, um ritmo próprio de quem está acostumado a trabalhar com literatura oral. São palavras que foram escritas para serem ditas. Não é que eu saia lendo meu livro em voz alta, mas é que em algum pedaço da cabeça procuro um ritmo. Porque acho que, se não houver esse ritmo, vou rejeitar aquela frase, vai parecer que ela não está correta, que está manca.
OCAS - Quanto tempo ao todo "Budapeste" levou para ser escrito?
CHICO - Dois anos.
OCAS - Jogou muita coisa fora?
CHICO - Ah, bastante. Muita coisa, principalmente por eu ter uma certa inexperiência. Acontece muito de, no meio do livro, quando você está seguindo por um caminho, lá adiante, depois de um mês de trabalho, você começa a se desgostar, lê e aquele negócio não está legal. Aí é difícil, por ser uma hora em que você é obrigado a renunciar a meses de trabalho porque uma coisa saiu errada. E muitas vezes você nem sabe o que é. Lendo, você diz: "Não é isso, não está bom, a história não está boa, o personagem seguiu um caminho errado". Você percebe isso pela inconsistência das frases, começa a não acreditar no que está escrito, acha que está mecânico. Então é isso, jogar fora, jogar fora, jogar fora, o tempo todo.
OCAS - Todo escritor passa por isso, na sua opinião?
CHICO - Não, acho que todos têm uma facilidade maior para escrever. Mas eu não sou esse escritor. Eu, aliás, não sou um escritor, sou um homem de música que escreve textos. Escritores geralmente não me consideram escritor, também. E eles têm razão. Até porque eu não faço questão de me considerar um escritor. Quando viajo, chego ao hotel e tenho que escrever minha profissão, escrevo sempre "músico". Mesmo quando vou a festivais de livros, lançamentos, é sempre "músico". Sendo que os músicos também não me consideram músico... (ri muito). Os músicos vivem dizendo: "Mas ele é um poeta". Porque, não sei se você sabe, quando os músicos não gostam da música do sujeito, dizem que ele é um poeta. Já conheço essa gracinha e, quando eles falam que eu sou um poeta, olho feio. Agora mais recentemente é que os músicos estão me redimindo (risos). Mas, se você for perguntar para um spalla da orquestra sinfônica se eu sou um músico, ele vai ficar ofendido. Ele não me considera um de seus pares. Assim é também com a grande maioria dos nossos literatos (risos).
OCAS - Você está num limbo, então.
CHICO - É, moro no limbo (risos).
OCAS - Você trocou a música pela literatura?
CHICO - Há 2 anos, eu simplesmente só fiz escrever. Meu violão ficou desafinado. Não é que eu não tocava violão, eu não tocava no violão. Porque eu não consigo misturar as duas coisas. E agora estou penando para voltar para a música, existe essa dificuldade. Parece coisa fácil, as pessoas acham que é um pouco isso, mas não é. Do tipo deu na veneta escrever um livro, pronto, vou Iá e escrevo um livro. Deu na veneta fazer música. Não é assim, é custoso. Começar a escrever um livro demora muito, você tem que escrever todo dia, aquela coisa. Eu, por exemplo, quando cheguei ao terceiro capitulo, falei: "Caceta, esse cara não é um arquiteto, a profissão dele não é essa". Aí volta tudo. Quer dizer, não foram 2 anos escrevendo um livro de 170 paginas. Foram 2 anos escrevendo vários livros que joguei fora. Todo mundo sabe que é assim, mas é mais do que as pessoas imaginam. E não ache que eu estou me queixando, pelo contrário, foram 2 anos maravilhosos. Tive momentos muito difíceis, em que tinha que jogar fora coisas que eu gostava. Ficava uns 2 dias até conseguir tomar a decisão. Quando conseguia, me sentia muito bem, como se eu largasse um vício, uma coisa que me fazia mal. Depois, na hora de retomar, dá medo de entrar no caminho errado de novo, de trabalhar mais 1 mês e ter que jogar fora. Em muitos momentos, dá uma grande agonia. Você não sabe onde está o final, quando tem que acabar, se vai ficar bom, se vai interessar a alguém. Mas dá muito prazer conseguir, antes de dormir, à noite, imprimir o que você escreveu naqueles dias, ler e gostar daquilo que escreveu. Porque o escritor tem que gostar de ler. Tem que gostar de ler aquilo que, por um acaso, foi ele quem escreveu. A questão é que agora essa história de tradução ainda está me prendendo a esse livro. Eu gostaria de já estar livre dele, porque quero voltar a compor. Já estou pegando o violão, mas estou com a cabeça um pouco presa lá ainda.
OCAS - Você se impõe uma rotina para compor?
CHICO - A rotina da literatura não existe, porque você fica o dia inteiro pensando nisso. Claro que dá tempo de jogar bola, andar na praia, mas você está com aquilo na cabeça o tempo todo. Durante esses 2 anos era um pouco difícil para mim ir ao cinema, me entregar inteiramente a um filme que eu fosse assistir. Você fica muito autocentrado, girando naquele mundo que você criou, que ainda está em gestação. Tudo o que você vê e lê de certa forma você acha interessante, acha que pode de alguma forma te sugerir coisas. Não imediatamente, porque isso não existe. Um jornal que você lê não traz uma notícia que vai te servir ao livro. Ao mesmo tempo teu livro é contemporâneo àqueles acontecimentos. De certa forma uma coisa acaba sendo filtrada pela outra. Já o trabalho com música é mais disperso. Geralmente, música é mais dispersiva. Disciplina não existe nenhuma, porque você não consegue fazer nada em trabalhos com arte sem prazer. Se você não tiver prazer naquela escrita, quando começa a não sentir mais isso, é porque alguma coisa está errada. Você pega o violão, começa a tocar, tem uma idéia, vem uma seqüência harmônica interessante, e é capaz de ficar 8 horas repetindo aquilo, não almoçar, não jantar. Agora se você tentar perseguir aquilo e aquilo não vem, e você passa meia hora com o violão, buscando, e aquilo não chega, você tem mais é que sair e tomar um sorvete. Porque não adianta, aquilo vai te deixar doente. A busca do prazer não funciona dessa maneira. Ele está ali ou não está. Não adianta forçar. Então, no caso da música, você faz uma coisa aqui, burila, burila, termina a música, vem um hiato até aparecer outra música. O que significa que, durante 1 ano, eu posso compor as canções de um disco, 10 músicas e não mais que isso. Porque tem essa história de os tempos de criação começarem a ficar mais largos. E o tempo de vida vai ficando mais estreito (risos). Por isso é que às vezes eu penso que vai chegar uma hora em que eu vou ter que parar com essa brincadeira, porque não vai mais dar tempo. (Começa a falar de modo irônico) Por exemplo, para eu fazer um disco, tenho que me livrar do livro, e isso leva alguns meses. No último disco, levei 1 ano compondo as músicas, o que quer dizer que no próximo vou levar 2. Então, para me livrar de um livro, ao invés de 1 ano, vou precisar de 2 também. Depois de 2 anos vou começar a compor esse disco, e só daqui a 4 anos vou ter terminado de gravá-Io. Aí o pessoal vai dizer: "Vamos fazer show, vamos fazer show", e Iá vou eu fazer show. E isso vai ser daqui a 5 anos. Em 6 anos, vou escrever outro livro. Então, mais 1 ano aí na conta para eu começar a escrever de verdade esse livro. Daí para o próximo livro são 3 anos, que significa que, pela minha matemática, o próximo livro ficaria pronto daqui a 11 anos. Aí eu vou estar com mais de 70 anos (ri muito). E, se eu ainda decidir nessa época fazer música de novo, esses prazos todos vão crescer, e em progressão geométrica! Mas, falando sério, tem uma hora que você, evidentemente, quer fazer uma coisa só. Pode ser que daqui a 1 ano eu pare e veja que não estou mais conseguindo fazer música. Aí a única solução é fazer música no tempo de Caymmi: faço uma canção, descanso, espero, faço outra (risos). É uma idéia, também. E, ao invés dos pincéis dele, posso talvez me dedicar à literatura. Mas, mesmo assim, daqui a uns 20 anos, não tendo mais escrito nenhuma música, e tendo feito uns 2 livros, quando eu for me registrar no hotel vou colocar "profissão: músico".
OCAS - Ainda sente prazer em fazer shows?
CHICO - Sinto saudades do clima de show, do clima de camaradagem com os músicos, estarmos juntos. Depois do show, é ótimo sempre, jogar futebol, jantar, tomar um vinho. Ter essa família, como dizia o Vinicius. Gosto desse clima de encontrar as pessoas no avião, no ensaio, no restaurante, no camarim. Adoro ter essa trupe viajante, gosto muito do clima entre os músicos. Porque depois vou me trancar, escrever ou compor, e isso é uma solidão danada. A música é gregária, não só a parte de show como também estúdio e gravações. Gosto de ir para o estúdio com as músicas, conversar sobre os arranjos, ouvir palpites, mudar aqui e ali, brincar. Isso é muito bom.
OCAS - A idéia, quando você começa a compor, é que isso sempre desemboque num show?
CHICO - Não é obrigatório. Já gravei discos sem fazer show. O que acho um pouco difícil, mas que também pode acontecer, é fazer um show sem o disco. Já fiz isso, é uma variação da mesma história. Quando eu terminei de escrever o "Estorvo" passei por esse mau bocado por um tempo. Pensava que não conseguia mais fazer música. E o interessante nessa dificuldade era que a dificuldade não estava em fazer música, e sim em fazer letra. Eu lembro que falei meio brincando na época que eu estava fazendo várias músicas e que precisava de um letrista. E apareceram tantos candidatos a letrista que tive que avisar para as pessoas que era mentira. Porque eu não sei fazer isso, fazer a música e dar para outra pessoas fazer a letra. Morreria de ciúmes. Sei fazer o contrário, pegar a música de outro botar a letra. E, se o sujeito não gostar, peço desculpas. Acho que não gostaria de alguém colocando Ietra nas minhas músicas porque tenho uma idéia de Ietra que não consigo realizar. Geralmente o músico entrega para um letrista porque ele não tem idéias para a letra, não está acostumado a escrever. Quando o cara ainda faz um pouquinho de letra, cria-se um pouco de atrito, como era o caso do Tom. Tivemos vários atritos amigáveis, porque ele entregava a música para eu colocar a letra e depois ficava querendo mexer na minha Ietra (risos). A gente discutia e tal. Mas não é isso que acontece na maioria das vezes. Quase sempre o cara só tem, no máximo, o título da canção. É engraçado isso, sair da literatura e ir para a música. Porque é quase como se a música estivesse te chamando, você está carente dela. Você quer tocar violão. E parece o tempo todo que você está escrevendo, que tem uma música tocando lá no fundo da sua cabeça. Ela fica ali no teu pé, te marcando. Talvez querendo se vingar, acho. Aí o problema é que você não sabe mais o que fazer com as palavras, porque elas não estão mais habituadas a sair assim, em forma de música, se agrupar daquela maneira. É impressionante a incapacidade que sinto nessas ocasiões em juntar palavras em forma de música. Agora estou mexendo no que seria a primeira música que vou fazer depois desse tempo todo. A música está legal, estou gostando, a letra está quase pronta. Mas a dificuldade de dizer as coisas é absurda. É quase como se a cabeça não obedecesse.
OCAS - Você disse que acompanha de perto as traduções do livro. E as adaptações para cinema, você participa do processo?
CHICO - Não, nesse caso você entrega e seja o que Deus quiser. Até porque não quero me meter no trabalho das pessoas. Não entendo disso, não sei mexer em cinema. Sei menos cinema do que sei língua estrangeira. E não é que eu saiba muito, mas posso dar algum palpite quando se trata de outro idioma. O Ruy Guerra, por exemplo, me mostrou só o primeiro tratamento do "Estorvo", me perguntou o que eu achava, eu falei, e depois disso ele mexeu em muita coisa, mas nem me perguntou mais nada. Nem eu quis que perguntasse. A Monique (Gardemberg, diretora de "Benjamim") me mostrou um pouco mais, me perguntou, pediu opinião. Discordei de algumas coisas, ela acatou, outras não.
OCAS - Você foi à estréia do filme sobre seu pai, o "Raízes do Brasil": Você tem saído mais depois que terminou o livro?
CHICO - Não, mas, quando estou escrevendo, aí é que eu saio menos ainda. Por aquilo que eu te disse, é difícil ficar o dia inteiro, dia após dia, pensando numa coisa, e depois ir assistir a um filme. Sua cabeça não vai acompanhar. Então fico mais recluso.
OCAS - Agora é diferente?
CHICO - Um pouco, mas a questão é que não gosto de lugares com muita gente. As pessoas falam em timidez, mas não tem timidez nenhuma. Eu não sou uma pessoa tímida. Se eu estiver numa mesa com até 4 pessoas, acho bom. Se tem 5, a quinta pessoa já atrapalha um pouquinho (risos), porque parece que a conversa vai ficar cruzada. É como música em restaurante. Sempre peço para tirar a música, pelo amor de Deus. A música começa a perturbar meu pensamento, eu começo a prestar atenção só na música, a pessoa fica falando comigo e eu não consigo fazer tudo ao mesmo tempo. Porque eu quero falar com aquela pessoa. Por exemplo, se eu estiver numa mesa falando com você, e tiver 2 pessoas ali ao lado falando também, vou querer ouvir o que você está dizendo, mas vou querer saber também o que os outros 2 estão falando. Ou como quando você chega nessas festas que têm música tocando alto, você não entende nada do que as pessoas estão falando, aquilo me deixa um pouco incomodado. Alguns me dizem: "Então vai dançar", mas eu não sou bom dançarino. Então é isso. Não é vontade de reclusão. Gosto de uma boa conversa, sair com os amigos, caminhar na praia, converso com o porteiro, o carteiro.
OCAS - Quando alguém te reconhece na rua, você responde, atende quando te chamam?
CHICO - Como assim, você quer saber se viro a cara?
OCAS - Quero saber se você conversa com fãs na rua.
CHICO - Claro, eu sou muito educado (risos).
OCAS - A imprensa, à época do lançamento do filme sobre seu pai, publicou fotos e entrevistas suas com sua mãe. Como é sua relação com ela?
CHICO - Bom, minha mãe, por exemplo, odeia Dia das Mães. Como ela não gosta de dias em geral, tipo Dia da Secretária, essas coisas. Porque a cada ano parece que tem um dia novo, né? A Câmara dos Vereadores está sempre aprovando alguma coisa assim, Dia de Marido. E minha mãe é antiga, ela viu quando essa história de Dia das Mães começou, os americanos trazendo essa tradição para cá. Então ela não acha graça, mesmo. E eu era garoto, um dia chegaram as preparações para o tal dia, e a professora de português resolveu fazer um concurso de redações. Quem ganhasse ganhava uma caixa de bombons e um buquê de flores para dar para a mãe. Eu fiz um soneto e com esse soneto ganhei a competição. Ah! e tem também outra coisa: minha mãe era também a mais velha entre as mães dos outros garotos, porque minha mãe, quando eu nasci, ela já tinha mais de 30 anos. Os meninos falavam para mim: "Pô, sua mãe é velha, hein?" (risos). Enfim, aí ganhei esse concurso e cheguei em casa feliz da vida. Minha mãe gritou: "O que é isso? Que bobagem de Dia das Mães! Como é que você ganhou essas flores?". E eu respondi: "Com esse soneto que eu fiz para você" (ri muito). Aí ela leu o soneto, ficou ofendidíssima e jogou fora. Ela não quis entender como uma peça de ficção dirigida a uma mãe fictícia, ela levou para o lado pessoal (risos). Mas a verdade é que lá em casa éramos muitos filhos, e nunca fui paparicado. Só minha babá que me paparicava:
OCAS - Uma parte do seu cancioneiro tem a presença da pobreza. Você é uma pessoa que nasceu na elite, mas seu cancioneiro reflete esse outro lado.
CHICO - Em primeiro lugar acho que temos que deixar claro que não fui criado como um filho da elite. Não nasci no morro, não passei fome, mas também não tinha tantas facilidades. Eu vi a pobreza se agravar ao longo dos tempos. Por exemplo agora já não são mais crianças que vão morar na rua, são crianças parindo outras crianças na rua. O lado mais miserável da pobreza por acaso eu tive contato com ele, por algum tipo de preocupação social de gente que me criou e me acompanhou desde a minha primeira juventude. Sem contar que meu pai era professor, não era um banqueiro. E eu convivia na rua com gente pobre. Não conheci muito essa miséria associada à violência, porque ela ainda não existia. Vou contar uma história, pra você entender melhor. Fui preso, com 17 anos, pela minha brincadeira de playboy, aquela história de roubar carros, pegar o carro do sujeito, andar até acabar a gasolina, largar o carro na puta que pariu e voltar para casa a pé. E, quando fui pego, apanhei um bocado. Tem gente que fala que foi o golpe militar que piorou a situação nas delegacias de polícia, mas porrada em preso já existia. Isso é uma instituição nacional e secular. Depois de tomar porrada de todos os guardas, do ascensorista, do delegado, ser ameaçado de tortura, finalmente consegui convencer aqueles caras de que eu era menor de idade e fui transferido para o que seria hoje uma Febem. Passei uma noite lá, meu colega de cela estava preso porque tinha roubado uma mula. Quer dizer, não existia drogas, essa loucura toda que é hoje em dia. Há pouco tempo fui jogar futebol com uns artistas contra meninos de uma espécie de Febem dessas, de Niterói, para dar uma alegria para a garotada. Só que, chegando lá, eu falei que não sabia se deveria jogar no time dos artistas ou dos menores infratores (risos). Quando era pequeno briguei muito, quebrei dedo, mas nunca ouvi filar de ninguém perto de mim que tivesse puxado uma arma. Não existia essa possibilidade. Era fora de propósito a idéia de um garoto, mesmo pobre, mesmo fodido, fazer esse tipo de coisa. Não acredito que o fato de ter sido bem criado, ter freqüentado boas escolas, me faça sentir estranho perto do mundo da pobreza, da miséria e da violência que têm acompanhado a gente no dia-a-dia. Tenho visto isso o tempo todo, cada dia crescendo mais. Se eu pegar a minha música, não vejo essa coisa mitificada. O que eu vejo, por exemplo, é que canções falando sobre esse tema compostas nos anos 70 são quase ingênuas se trazidas para hoje.
OCAS - De que maneira a situação de violência no Rio te afetou?
CHICO - A mim, pessoalmente, muito pouco. Na semana passada, roubaram a bicicleta da minha filha, por exemplo, ali na Lagoa. Todas as minhas meninas já foram assaltadas mais de uma vez, mas eu nunca fui. Nunca andei de relógio, anel, corrente, até para evitar isso, para não ter muito o que levarem. Então, desses pequenos crimes ando mais ou menos salvo. Mas isso não quer dizer nada. Essa confusão não me afeta fisicamente, mas de resto afeta tudo. É ruim estar nessa loucura. Não vivo com paranóias, não tenho essa preocupação. Já passei por climas parecidos, mas que eram mais fáceis de lidar. Por exemplo, no tempo da repressão, sendo realmente ameaçado de ser morto, sofrer acidentes, eu convivia com isso. Não era paranóia de repente chegar uma caixa na minha casa e eu ter que atirar longe para ver se explodia. Mas o que acontece hoje é que você vive com esse clima, e o que te ameaça não vem do inimigo. Esses caras que estão fazendo isso, eu provavelmente dou razão a eles. Se o cara quiser entrar aqui em casa e levar essa porra toda, me dar porrada, eu vou ficar muito puto, não vou gostar de apanhar, mas no fim das contas vou pensar que se eu estivesse no lugar dele faria a mesma coisa. Às vezes as pessoas jogam pedras do mirante aqui na minha piscina, e eu penso que, se eu estivesse lá em cima, também jogaria, entende? Estou lá, vendo isso tudo aqui embaixo, estou sem um puto, eu não vou virar evangélico, não vou ler a Bíblia, talvez tente trabalhar e não consiga nada e, aí ainda mais, eu vou querer aquela bicicleta daquela garota que está passeando na Lagoa.
OCAS - Como você vê a iniciativa das ONGs? Você acha que existe um esvaziamento da responsabilidade do governo, que acaba caindo nessas organizações?
CHICO - Sei que é difícil você se conformar com o trabalho assistencial. E hoje em dia se vê muito mais, até mesmo por parte do governo, esse tipo de iniciativa. Como se a sociedade toda tivesse suprido todo o tipo de carência. Estou pensando aqui, não sei se tem a ver com a sua pergunta, que eu estudava em colégio de padres. Éramos alunos de uma escola cara, de padres progressistas, e que nos levavam para distribuir cobertores e sopa na Estação da Luz, em São Paulo. E, naquela época, esse tipo de assistencialismo era ridicularizado. Diziam que não era nosso papel mudar o país. De lá até hoje, as idéias revolucionárias dos movimentos estudantis, por exemplo, se perderam dos anos 60 para cá. E sobrou isso como alternativa. Seja, como é para alguns, uma forma de aplacar a consciência, seja um trabalho de dedicação verdadeira como é para outros, que querem ser úteis à sociedade. Agora, se vai resolver ou não, é muito pouco provável. Porque as ONGs entram onde o poder público não entra e atacam problemas que o governo, por um ou outro motivo, não enfrenta. Mas não dá para cobrir todas as frentes.
OCAS - Por que você não foi ao jantar de desagravo ao ministro José Dirceu? A imprensa divulgou que você chegou a confirmar presença, mas não apareceu.
CHICO - Pois a imprensa se enganou. Porque eu fui convidado pelo Eric Nepomuceno no dia 17 de abril, e ele mesmo se encarregou de passar a mensagem ao Fernando Morais de que eu não poderia ir ao jantar no dia 30. Eu disse que não queria. Na véspera estava Iá em todos os jornais o meu nome como presença confirmada. No dia seguinte disseram que eu faltei alegando problemas de agenda. No outro dia, saiu na coluna social da "Folha de S. Paulo" que minha ausência foi notadíssima. Aí fui obrigado a falar com a moça da coluna. Eu simplesmente não poderia estar em São Paulo naquela noite. Eu também acho que existe uma má vontade muito grande da imprensa com esse governo. Outro dia me perguntaram se eu não tinha telefonado para o José Dirceu. Eu mal conheço o José Dirceu, não acho que tenho que ficar telefonando para ele. Perguntaram para mim também se eu estava satisfeito com o governo Lula, e eu respondi que era óbvio que não. E acho ótimo eu não estar satisfeito. A pior coisa que pode acontecer para um governante é estar cercado de puxa-sacos. Mas isso também não significa que eu esteja decepcionado com o Lula. Votei nele várias vezes, votei dessa vez e não me arrependo do meu voto. É claro que há coisas que tenho esperança de que ele vá resolver. Espero talvez o impossível, mas alguma parte do impossível eu imagino que ele cumpra, porque nem ele pode estar satisfeito. Nem estou muito surpreso, não esperava coisa muito diferente, pelo menos nos 2 primeiros anos. Não podia esperar o rompimento com a linha econômica que foi traçada antes, por exemplo. Agora outra coisa é essa intimidade com o poder. Sou um pouco avesso a isso, não me sinto muito à vontade para, por exemplo, ir jogar futebol com o Lula. Eu quero continuar gostando do Lula, torcendo por ele, mas a distância. E ele sabe disso. Não me vejo muito indo jantar com o ministro. A única pessoa lá que tenho mais contato é o Gilberto Gil. E mesmo assim tenho dificuldade em vê-Io como ministro, eu o vejo como o Gil, entende? Ficar telefonando, estar próximo, essas coisas não são papel do artista. Prefiro não ter vínculos sociais, só isso. E em nenhum momento há uma animosidade, ou uma vontade de demonstrar publicamente contrariedade. Há uma má vontade com o Lula muito forte, com ou sem motivos. E o que puderem fazer para criar atrito em qualquer área parece interessante.
OCAS - Qual a sua relação com a imprensa atualmente?
CHICO - Fico um pouco desgostoso quando sou obrigado a falar. Porque, quando sai publicado, não gosto da maneira que saiu. Mesmo que sejam as palavras que eu disse. Porque as pessoas que ouviram minhas palavras escreveram aquilo, e elas já não são mais as que eu disse. Aí prefiro não falar, para não me aborrecer. Porque acabo sempre me aborrecendo. Se eu puder evitar, é melhor.
Guardian unlimited
The lionised king of Rio
Jemima Hunt
Sunday July 18, 2004
The Observer
Chico Buarque's songs and novels have made him a hero in Brazil - even though exile is his main theme
Last month saw the 60th birthday of Chico Buarque. In Brazil, where he lives, the event was national news. TV channels replayed interviews and clips from past concerts and public appearances. Two of the country's leading broadsheets ran lengthy articles on the man who has helped define Brazilian culture for the past four decades. Not wanting to be left out and in acknowledgement of Buarque's support of his election campaigns, the Brazilian President Lula de Silva wrote a letter offering birthday greetings.
'I'm an amateur,' says singer-songwriter turned bestselling novelist Buarque, as he pours coffee in his apartment high above Rio de Janeiro's Ipanema beach. 'It's the same with songs. I'm not a professional. Yet somehow I manage to get away with it.' Modesty is a well-known Buarque trait. He is notoriously press-shy. That the protagonist of his latest novel, Budapest (Bloomsbury £13.99, pp192) is a ghostwriter is no coincidence. The character's job is to observe and write without exposing himself, which is what Buarque has always sought for himself. Yet, here in Brazil, he is nothing short of a national treasure. His lyrics are studied as part of the Portuguese BA curriculum. His songs are hummed across the country. Women fawn over his startling blue eyes and chiselled good looks. And as the author of Turbulence, the recently filmed Benjamin and now Budapest, Buarque has sold nearly half a million copies.
He wrote his first short story at 18. 'My father agreed to send the story to the literary editor of [broadsheet] Folha de Sao Paulo only after reading it first.' Buarque neatly explains the father-son relationship. His father, Sergio Buarque de Hollanda was then one of Brazil's leading literary critics and historians. His father approved. The story was published and with it Buarque's career as a man of words was born. Not only did he have his father to compete with but also his cousin, Aurelio Buarque de Hollanda, the man responsible for writing the popular Brazilian-Portuguese dictionary, affectionately referred to as the Aurelio.
Perhaps to escape comparisons, Buarque originally made his name as a musician - albeit one with a strong sense of history. 'Music kind of kidnapped me for a while,' he says. Starting out composing songs in the Sixties, he went on to write hundreds of them. His gift as a social commentator was to inhabit the lives of Brazil's disenfranchised. He sang about street kids, a prostitute given the chance to save the world. 'Construcao', a surrealist fantasy about a construction worker falling to his death became a popular classic, enamouring him to a public struggling with political repression under military rule. He learnt the importance of words at a time when words were banned. 'It was a challenge," he says. 'I had to write 20 songs in order to get two past the censors.'
Novels escaped the censors. Their audience was deemed an insignificant threat. Buarque's first novel, written in 1974, has been erased from his CV. 'I'm not proud of it as literature. It was a book written out of anger,' he says, insisting that protest does not inspire great art. In 1968, Buarque's first play, Roda Viva, an anarchic satire, landed him in trouble with the law. Like his fellow musicians - Caetano Veloso and Gilberto Gil (Brazil's Minister of Culture) who, inspired by bossa nova, created the anti-establishment Tropicália movement, Buarque was forced to flee the country. He went to live in Italy for 18 months. Veloso and Gil fled to London.
Exile is a recurrent theme in Buarque's life and work. Budapest is the story of José Costa, a writer who finds himself stranded in the Hungarian capital when a bomb scare grounds his plane. Written in Buarque's deceptively spare prose, the book is extraordinary for its observations on language, foreignness and love. 'It should be against the law to mock someone who tries his luck in a foreign language,' begins Costa's journey in a strange land. He embarks upon an affair with a woman who mocks him for his poor sentence construction in a language famously described as the devil's tongue. With thoughts of Rio never far from Costa's mind, the story meanders like the unfolding of consciousness.
Plot, admits Buarque, comes second to words. 'When I derived the idea for the book, I thought of setting it in an invented place with an invented language.' That this imaginary place ended up as Hungary was inspired in part by a Hungarian girlfriend, as well as memories of the 1954 World Cup. 'I remember being struck by the players' names,' he says. What emerges is a humorous and philosophical take on the experience of being abroad. The freedom of seeing the world through new eyes, like a child, is matched by the frustration of being faced with an impenetrable wall of sound. Can anyone escape their mother tongue any more than they can shake their past? The theme came back to haunt Buarque as he worked alongside the translator responsible for the English version of Budapest . He discovered that some things had to be rewritten. 'They did not translate,' he says.
He writes every day. His country of birth and city of residence still surprise him. 'Every time I drive into Rio from the airport, I see the city for the first time and think how strange it is,' he says. But it is here in the glamour capital of Brazil where the favelas [shanty towns] cling to the mountain sides and Christ the Redeemer stands with open arms to offer protection to the city, that Buarque finds his inspiration. He worries about Brazil's escalating violence. He believes in the democracy of the beach and the passion of football. He supports Rio's home team Fluminense. On his study wall is a framed photograph of himself as a young man with Bob Marley. Both are dressed in football strip. 'Good times,' he says.
A helicopter's shadow passes suddenly overhead. Somewhere a dog begins to bark. It is time for his stroll along the pavement of what is arguably the most famous beach in the world. In Rio even Chico Buarque can walk freely on the beach.
"É evidente que não estou satisfeito"
Coluna de Mônica Bérgamo
Cada vez mais refratário à imprensa, o cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda surgiu ao lado de sua mãe, dona Maria Amélia, na pré-estréia do filme "Raízes do Brasil", anteontem, no Rio. Numa das cenas do longa de Nelson Pereira dos Santos sobre a vida de Sérgio Buarque de Hollanda, pai de Chico, o presidente Lula aparece novinho, à época da fundação do PT, discursando à frente de Sérgio. O cantor, que apoiou a eleição de Lula à Presidência em 2002, tem evitado falar sobre o governo. Depois de alguma insistência, ele revelou sua opinião à coluna:
Folha - Para você, qual seria a opinião de seu pai sobre o Lula?
Chico Buarque - Ele foi um dos fundadores do PT, mas não sei. Não posso falar por ele, não sei o que acharia.
Folha - E você?
Chico - Eu não sou do PT.
Folha - Mas o que acha do governo Lula até agora?
Chico - Você quer que eu responda isso aqui, agora?
Folha - É, rapidinho...
Chico - É evidente que não estou satisfeito, que ainda falta muita coisa. Nem o próprio Lula está satisfeito. Mas acho que ele ainda tem tempo de realizar pelo menos parte do que prometeu.
A nova festinha de Edu e Chico
Hugo Sukman e Roberta Oliveira
No início de suas carreiras, nos anos 60, Edu Lobo e Chico Buarque tinham um motivo fundamental para compor sem parar.
- Havia aquelas festinhas todas, o que, para mim, era como uma encomenda, lembra Edu.
- Todo mundo ia chegar com música nova e pegava mal não ter uma para mostrar. Imagina chegar na casa do Tom sem música nova para mostrar. Rolava uma adrenalina, não podia chegar com aquela que todo mundo conhece. Hoje não tem mais as festas, por isso é importante a encomenda de uma peça, de um filme para ter motivo para compor.
No que Chico interrompe:
- As festas existem, a gente é que não é mais convidado. Esses jovens de 23 anos fazem essas canções todas para quê? Arrumar namorada.
Nesse clima
- "As meninas também não se impressionam mais apenas com uma música nova. Afinal, o autor é velho", rebate Edu
Eles retomam, 12 anos depois do último trabalho de fôlego (as canções do balé "A dança da meia-lua"), uma parceria que vem fazendo história. No lugar das festinhas, encomendas de teatro ou balé.
O bom motivo para a dupla agora é a peça "Sonhos", título provisório do musical de Adriana e João Falcão previsto para abril de 2001. Com o espetáculo, dirigido por João, Edu e Chico prosseguem a parceria marcada por espetáculos de dança feitos para o Balé do Teatro Guaíra, "O grande circo místico" (83) e "A dança da meia-lua" (88), e de teatro, "O corsário do rei" (85), de Augusto Boal.
A parceria dos dois, que já rendeu clássicos inquestionáveis como "Beatriz", "Valsa brasileira" e "Choro bandido", além de mais de 30 canções no mínimo excelentes, só não teve patrão encomendando nem qualquer ligação com o palco por duas vezes: a primeira de todas, "Moto-contínuo" ("Que serviu para inaugurar a parceria", diz Chico), feita para o disco "Almanaque", de Chico, e depois regravada por Edu com Tom Jobim; e "Nego maluco", samba do último disco solo de Edu, "Corrupião".
Para quem estava com saudade das grandes canções de Edu e Chico, uma boa notícia. Das 12 que pretendem fazer até janeiro, quando serão gravadas num disco com participação de diversos cantores da MPB, quatro já estão prontas, com títulos provisórios e motes curiosíssimos: "Uma canção inédita", "Canção que existe" e um tema de verão (uma canção de amor), além de um hit.
- Passei meses para conseguir compor este hit. Mas sei que, nos dias de hoje, essa música não seria um sucesso de jeito nenhum - lamenta Edu, que inspirou-se simplesmente na sonoridade do último disco de Miles Davis para achar o som do que ele sonha que deveria ser um grande sucesso.
- Trabalhar em teatro é estimulante por isso, mesmo quando fica desesperador. É um processo que nos leva a encarar ritmos com os quais não temos a menor intimidade. Talvez não seja o melhor tango do mundo, mas eu jamais faria um se não fosse o "Tango de Nancy" de "O corsário do rei". Assim como nunca faria um hit como esse. E Chico e eu, quando pegamos um projeto desse tipo, não estamos querendo fazer apenas paródias, mas músicas que também nos agrade ouvir.
Velha amizade que demorou a virar parceria
Desde que começaram suas carreiras, Edu Lobo e Chico Buarque sempre usaram o teatro para fazer canções. Chico debutou no palco com as canções para a montagem de "Morte e vida severina", enquanto o primeiro trabalho de fôlego de Edu foi o desafio de musicar "Arena conta Zumbi", o marco do teatro brasileiro criado por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal. Na década de 90, entretanto, ambos ficaram longe dos palcos.
- Nós nos afastamos porque ficou difícil produzir. Ao ser remontada anos depois, "Gota d'água" (peça escrita e musicada por Chico) teve que ser feita com fita, porque não havia como manter um espetáculo com músicos ao vivo - diz Chico, lembrando que o projeto de "Sonhos" começou com um convite de um produtor paulista para que a dupla compusesse as canções para um espetáculo sobre os 500 anos do Descobrimento.
- O musical sobre os 500 anos não suscitou interesse, mas a idéia de retomar a parceria sim.
Amigo de João Falcão desde que este dirigiu a atriz Marieta Severo na peça "A dona da história" e tendo acabado de ler "A máquina", livro de estréia de Adriana, Chico ligou para a escritora e propôs que o casal escrevesse um roteiro. Numa madrugada, a dupla rascunhou aquela que é até hoje a trama de "Sonhos": um homem absolutamente comum, num mundo em que todos querem ser alguém, sonha ser uma pessoa especial enquanto um astro, que acaba de lançar um hit cantado no mundo inteiro, sonha ser anônimo.
- Na verdade, no fim descobre-se que se trata apenas do astro sonhando ser um homem comum, sonhando ser alguém famoso. Ao acordar, ele lembra que era uma pessoa que não tinha o que ele tem, mas que tinha coisas que ele não tem, como liberdade - conta João, que ainda não definiu o número de personagens, mas quer escalar atores desconhecidos que, além de interpretar, possam cantar, dançar e até fazer malabarismos.
- Embora tenha um formato tradicional, com início, meio e fim, o fato de ser uma história que se passa num sonho dá aos personagens a possibilidade de fazer coisas que acordados não poderiam fazer, como andar cantando ou esquecer a gravidade.
O musical e os discos da trilha - o primeiro, gravado por intérpretes conhecidos, e um segundo com o elenco escolhido para o espetáculo - deverão ter 12 faixas.
Tendo outros trabalhos em teatro no currículo, como "O berço do herói", de Dias Gomes, foi Edu que teve a idéia da parceria teatral e, em 1983, convidou Chico, que também já trabalhara em espetáculos como "Roda viva" e "Calabar", para inaugurar a parceria com "O grande circo místico".
- Assim como está acontecendo agora, o trabalho de criação se dava em parceria com os roteiristas, porque, muitas vezes, nos era feita uma encomenda, mas o caminho que a música tomava era outro. Em "O grande circo místico", por exemplo, a personagem chamava-se Agnes e não Beatriz, mas o nome não cabia na letra - conta Chico, lembrando que, à medida que ele e Edu compunham as músicas daquele espetáculo, descobriram que o poema "O grande circo místico", de Jorge de Lima, tinha um erro.
- Era a história de uma família circense. Lá pelas tantas, um personagem que até então era neto virava sobrinho.
Além de chamar de "estimulante" o trabalho em teatro, Edu diz que, musicalmente, há uma diferença muito grande entre as músicas compostas para "Arena canta Zumbi" e as de "O grande circo místico".
- As minhas músicas melhoraram muito depois que comecei a trabalhar com o Chico por causa do rigor com que ele trabalha as letras. Força o parceiro a ter o mesmo rigor nas músicas. Não se trata de uma competição, e sim de um desejo de não decepcionar - diz Edu, que está negociando o relançamento em CD dos três musicais que fez com Chico.
- "O corsário do rei" foi mal lançado e "A dança da meia-lua" foi pessimamente lançado.
Assim, 2001 parece ser o da retomada da parceria, com direito a relançamentos de discos quase inéditos e a novidade nos palcos e no disco.
Mesmo muito próximos musicalmente, Chico e Edu já tinham 15 anos de carreira quando engataram a parceria. Antes, eles se cruzaram, Chico como compositor e Edu como arranjador, em 1973, no disco com as canções da peça "Calabar" que, mutilado pela censura, virou "Chico canta". Chico lembra por que a parceria musical demorou tanto:
- Nos anos 60, quando nos conhecemos, eu não costumava fazer parceria com ninguém. Fiz umas coisas com o Tom, como "Retrato em branco e preto" e "Sabiá", mas muito pouco - diz Chico, lembrando que Edu mandou-lhe, no fim dos anos 60, dos Estados Unidos, uma música que ele nunca letrou.
- Fui aprendendo aos poucos, e só nos anos 70, quando comecei a compor para valer com o Francis (Hime), é que comecei a pegar o jeito. Quando encontrei o Edu em "O grande circo místico", eu já estava dominando mais essa história.
Chico está exclusivamente dedicado ao musical, enquanto Edu tem outros trabalhos em vista: terminar a trilha de "O Xangô de Baker Street", de Miguel Faria Jr., e depois do musical gravar nos EUA um disco com Dori Caymmi.
"Eu tenho um pouco de dificuldade em distinguir trabalho de ócio. Não posso ficar parado, catatônico. Mas ir ao cinema, para mim, é trabalho. O tempo todo é assim. Esse negócio de hora é estranho. Cada um tem seu tempo, cada um faz a sua parte."
"Meu ascendente é virgem e depois de um tempo você vira o ascendente. Acho que estou virgem há bastante tempo."
CHICO BUARQUE, cantor e compositor.
"Espetáculo terá performance de uma hora e 40 minutos"
João Falcão, um dos autores de "Sonhos" e o diretor da peça, adianta apenas que o musical terá uma hora e 40 minutos de duração e vai ser encenada em um único ato.
Sobre a escolha de atores, não revela quase nada. Segundo ele, uma seleção deve acontecer entre setembro e outubro.
"Podem ser artistas estreantes ou não. Mas, provavelmente, pessoas menos conhecidas terão menos compromissos e poderão se comprometer com o nosso projeto."
Segundo ele, os artistas procurados devem cantar e atuar, ter habilidades corporais e tocar um instrumento.
"Não queremos só transportar as canções, mas retrabalhar cada uma delas de alguma maneira para a ação dramática. É um musical com muitas possibilidades e ainda temos tempo para uma definição."
João disse que o seu "sonho" é, após a seleção dos atores, começar o trabalho. "Eu adoraria que eles ficassem estudando a peça por alguns meses, até dezembro, antes dos ensaios de montagem, que começam em janeiro. E isso talvez seja a parte mais cara do projeto."
A escritora Adriana Falcão ("A Máquina"), mulher de João e com quem divide o texto do musical, disse que, a partir de encontros regulares com o grupo de criadores, a idéia inicial da história cresceu.
"No início, era só uma sinopse. O texto não estava tão formatado. Era apenas uma coisa de sonho. Mas a história está andando, está bem delineada."
Sobre a indefinição da produção, João disse que isso não é motivo para tanta preocupação.
"A gente vai precisar de um patrocínio bom, e tem gente envolvida nisso. Mas, enquanto não chega, estamos trabalhando sem ele, até porque a gente acredita que é impossível que esse projeto não se realize."
"Prefiro não falar de política quando estou com amigos. Tentei acreditar no primeiro governo, do fundo do meu coração. No segundo, eu já não acreditava. Já discordei da reeleição. Há muito tempo que me sinto sozinho em relação a esse governo."
CHICO BUARQUE, cantor e compositor
Chico Buarque reaparece no musical "Sonhos"
O cantor e Edu Lobo se reencontram em peça sobre pop star que quer ficar anônimo.
Espetáculo está previsto para estrear em abril, em São Paulo; texto é de João e Adriana Falcão.
Fernanda Cirenza
Da enviada ao Rio
Chico Buarque está às voltas com um novo projeto para o teatro, retomando a parceria com Edu Lobo depois de 13 anos. O musical vai se chamar "Sonhos" e está previsto para estrear em abril, em algum teatro de São Paulo.
Conta a história de um pop star que sonha ser um sujeito anônimo e desfruta da liberdade para ser verdadeiro e sonhar.
Questionado se o texto da nova história tem relação com sua vida, Chico respondeu: "Nunca pensei sob esse ponto de vista porque esse artista não se parece com nada, ele também é um sonho. Não tem referência a nada que se possa identificar".
O espetáculo tem também a participação de João Falcão, diretor e dramaturgo, que divide com sua mulher, a escritora Adriana Falcão ("A Máquina"), o texto do musical. João é quem vai dirigir a peça.
A última parceria de Chico e Edu aconteceu em 1987, quando compuseram as canções para o balé "Dança da Meia-Lua".
Três anos antes, musicaram a peça "O Corsário do Rei", de Augusto Boal. Para adiantar o que vai ser "Sonhos", os quatro criadores se reuniram no apartamento de cobertura de Chico, no Alto Leblon, Rio de Janeiro, na última quarta-feira.
Foi o próprio Chico quem abriu a porta para receber a reportagem. Foi ele também quem fez café e chá para o grupo. "É o que eu sei fazer. Você quer mais?"
Chico não se poupou também de recolher as xícaras e arrumar alguns copos em uma bandeja quando alguém lhe pediu água.
Cauteloso em seus gestos e palavras, o poeta deixou escapar, em um dado momento, que começa a se interessar por objetos de arte.
Comentou os trabalhos dos artistas plásticos Antônio Dias e Daniel Senise, expostos frente a frente em uma pequena sala de estar. "Esse do Dias ainda não está no lugar certo." Depois, contou que comprou o trabalho de Senise por meio de um catálogo. "Não sabia que era desse tamanho. Foi uma surpresa boa."
Mostrou ainda a sua mais recente aquisição: um trabalho de Nelson Félix, colocado em um corredor que leva os visitantes a uma sala mais ampla. "É, estou gostando. Antes, essa função não era minha", encerrou o assunto.
A conversa durou quase duas horas. Chico, Edu, João e Adriana anteciparam, com reservas, o que vai ser o musical. "É uma produção voluntariosa", disse Chico, referindo-se ao fato de que o projeto ainda precisa de um patrocinador e de um esquema de produção. "Tirar essa pressão do contrato é bacana", afirmou Edu Lobo.
"Esse personagem não se parece com nada, é sonho"
Chico diz que tentou acreditar no primeiro governo FHC e que não gosta mais de falar de política.
Antes da estréia, prevista para abril, compositores querem lançar CD com até 12 faixas.
Da enviada ao rio
"Sonhos", que deve estrear em abril em São Paulo, tem quatro músicas prontas. No total, devem ser 12 para o disco que Chico Buarque e Edu Lobo pretendem lançar antes do espetáculo. "A peça é outra coisa", disse Chico. Edu compõe, e Chico escreve as letras. João e Adriana Falcão desenvolvem a sinopse da história. "Como é um trabalho em gestação simultânea, uma coisa interfere na outra", afirmou Chico.
A seguir, os melhores momentos da entrevista com Chico e Edu.
Folha - Como surgiu a idéia do musical?
Chico Buarque - Eu e o Edu queríamos fazer um musical há muito tempo. Aí apareceram uns produtores querendo pensar um musical ligado aos 500 anos. Isso foi no ano passado. O tema não atraiu a gente. Mas partiu daí a idéia de "Sonhos". Eu perguntei para a Adriana se ela tinha alguma idéia que não fosse sobre os 500 anos. E assim começou.
Folha - Começou do nada?
Chico - Simplesmente.
Edu Lobo - A gente resolveu fazer um negócio que acho bacana, que é começar a trabalhar sem nada.
Chico - Não existe a produção montadinha. É difícil isso.
Folha - Por quê?
Chico - Porque demora e, quando aparece a produção, você já está atrasado. Tem de começar a fazer uma coisa com a produção pressionando. Então, não pode estar tudo em cima.
Folha - Não tem nada definido?
Chico - A produção existe, tem gente envolvida nisso, mas ainda não está nada definido. Tem uma data porque isso nos obriga a trabalhar também (risadas). Deve ser abril e em São Paulo.
Folha - É, então, uma produção independente?
Edu - Não.
Chico - Em princípio é. É uma produção voluntarista.
Folha - E se ninguém quiser patrocinar a peça?
Edu - Então fecha o Brasil e eu vou morar na Guatemala.
Chico - A gente faz uma cooperativa. Agora não vou parar de fazer essas músicas, não... (risos).
Folha - "Sonhos" conta a história de um ídolo pop que sonha ser um sujeito anônimo. Tem a ver com a vida de vocês?
Edu - Para o Chico, isso é mais difícil. Para mim, é tranqüilo.
Folha - É verdade, Chico?
Chico - Nunca pensei sob esse ponto de vista porque esse artista não se parece com nada, ele também é um sonho. Não tem referência a nada que se possa identificar. O grande sucesso musical que o personagem faz não vai fazer sucesso. A música só faz sucesso na peça. Nunca me passou pela cabeça que essa história tinha a ver com a minha vida.
Folha - Como são essas canções?
Chico - Por enquanto, temos quatro, duas prontíssimas e duas cujas letras estou terminando. Esse hit é uma canção de sedução. Há também canção inédita, então é uma música inédita e o nome da canção é "Canção Inédita" e a música tem de ficar inédita. O valor da música é esse. Tem também a canção que existe, que é a dos sonhos. O personagem se apaixona por uma mulher sonhada.
Folha - Quais são os ritmos?
Chico - A "Canção Inédita" é uma valsa. O hit, não sei... Podemos chamar de pop.
Edu - É o pop do Miles Davis do final da vida dele. Tem uma espécie de atmosfera pop, só que é uma música com frases que não existem na chamada música pop tradicional. É um hit idealizado.
Folha - Quantas músicas vão ser?
Chico - Eu tinha falado em 10, 12. Mas o próprio formato, com atores performáticos e tal, significa que, durante a peça, os diálogos vão ser quase raps cantados, ritmados, falados. Não são canções porque são músicas que aparecem ou vinhetas ou pequenas canções. Vai haver um disco, antes da peça, com 10 ou 12 canções. A peça é outra coisa.
Folha - E como isso tudo vai funcionar no palco?
Chico - Tudo ao vivo, mas nada de músico no fosso ou no canto. A idéia é integrar tudo.
Folha - Como vocês se dividem?
Chico - João e Adriana estão desenvolvendo a sinopse já com indicações de situações musicais. O Edu escreve as músicas, e eu, as letras. Como é um trabalho em gestação simultânea, uma coisa vai interferir na outra.
Folha - Vocês não trabalhavam juntos desde 87?
Edu - Isso é uma loucura. Porque não faz 13 anos que a gente fez as canções para "Dança da Meia-Lua". Parece menos.
Folha - A relação com o tempo mudou?
Chico - É a vida. Mais um dia... (ele canta), e, no final, uma letra enorme. Agora é tudo tumtumtum, parapumpumpum. Morreu. Acabou. O próximo.
Folha - E "Estorvo", o filme?
Chico - Gosto muito do filme. Acho que não é apropriado para Cannes. O Ruy concorda com isso. E aqui repercutiu muito pelo fato de ter tido críticas negativas. Por outro lado, o "Le Monde" fez críticas boas, ninguém fala disso aqui no Brasil. Eram críticas pequenas, que faziam ressalvas, mas muito elogiosas.
Folha - Gostaria que vocês comentassem o governo FHC
Chico - Jura? Prefiro não tocar nesse assunto. Há muito tempo que eu me sinto bastante sozinho em relação a esse governo.
Folha - Por que sozinho?
Chico - Porque eu tentei acreditar nesse governo, no primeiro governo. No segundo, eu já não acreditava mais. Já discordei do processo de reeleição. Fico numa situação desagradável, porque o que eu digo é muito pessoal.
Antes era mais fácil porque nós éramos todos contra a censura, contra o regime militar. Todos tínhamos um adversário comum.
Folha - Chico, você trocaria a seleção oficial pela seleção olímpica?
Chico - Ronaldinho fez muita falta, ele estava suspenso, não podia jogar. Desmanchou o time todo. (Chico referia-se ao jogo Brasil e Chile da última terça-feira, em que o adversário goleou a seleção, vencendo por 3 a 0.)
Folha - A ausência do Ronaldinho justifica a lavada de 3 a 0 do Chile contra o Brasil?
Chico - Não, a lavada foi porque aquele cara acertou a perna do chileno. Ali acabou o time. Essas coisas definem a partida.
Villela prepara versão "faroeste" do musical "Ópera do Malandro"
Reportagem local
No país onde cartaz de "procura-se" expõe até ex-juiz, a "Ópera do Malandro" converte-se em metáfora do "estábulo Brasil", nas palavras do diretor mineiro Gabriel Villela, 41.
Sua versão "faroeste" (ou "bangue-bangue") para o musical de Chico Buarque, cuja primeira montagem aconteceu em 1978, vai entrar em cartaz no dia 22 de setembro, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo.
Segundo Villela, a relação de Teresinha, representante da ascensão capitalista, com o malandro Max Overseas "reflete a união de todas as instituições de uma nação absolutamente entregue a falcatruas, à corrupção, ao comércio generalizado do corpo".
Ou seja, um casamento perfeito, conforme os interesses das partes envolvidas. É sob essa perspectiva, a do casamento, que Villela concebe sua trilogia com musicais de Chico.
Depois da "Ópera do Malandro", é a vez de "Gota d"Água" (75), parceria do cantor e compositor com Paulo Pontes (estréia dia 1º de maio). A trilogia fecha com "Calabar" (73), criação de Chico e Ruy Guerra (prevista para 12 de outubro).
"O grande matrimônio da primeira história é abortado na segunda e nem chega a ser consumado na terceira peça", afirma.
A trilogia será interpretada pela Companhia de Repertório do TBC, criada por Villela. Ele recém-assumiu a direção artística do teatro no bairro da Bela Vista.
Da audiência inicial com 600 candidatos, foram selecionados 23 para o elenco estável. Todos os atores da companhia têm contrato para o projeto da trilogia, patrocinado pelo Grupo Chaim.
Responsável pela reforma arquitetônica do TBC, no ano passado, J.C. Serroni também assina a cenografia dos musicais.
CHICO BUARQUE DE HOLLANDA O HOMEM QUE NÃO GOSTA DE OUVIR MÚSICA
Um dia ouvi alguém dizer sobre um artista de grande talento da minha geração: "falta-lhe sofrimento e um pouco de ódio no coração para ser um grande artista". Não estou assim tão certo se estes componentes são necessários para a construção de um grande artista.
Chico Buarque, um dos maiores artistas brasileiros do século XX, construiu uma obra densa - ainda que curta na literatura mas vastíssima na música popular - e não há qualquer sombra de ódio nos seus olhos azuis nem presença de sofrimento no seu vasto sorriso.
Durante as três horas que passamos juntos no seu apartamento - de vista deslumbrante - no Leblon, Chico me pareceu o ser mais pacificado que conheci. Lembro-me de Bruna Lombardi entrevistando Harrison Ford e Marília Gabriela entrevistando Madonna. Que desagradáveis figuras, desumanas, incapazes de descerem de seus pedestais de mito. Chico, para nós, é muito maior do que os dois juntos e, sentado conosco, um marciano jamais descobriria ali a que líder deveria ser levado. Éramos todos mortais da mesma praia.
Além do clima de total descontração, foi uma alegria imensa para nós descobrirmos - Zezé Sacks era a única que sabia - que tanto nossa revista como Chico Buarque faziam aniversário no mesmo dia. Se seu signo for tão dadivoso para Bundas como foi para ele, que grande futuro aguarda esta revista.
Outra coisa: a entrevista foi profundamente alegre, gêmeos nos protegia, o astral era altíssimo e, por um longo tempo, conversamos abobrinhas com Chico. Se você estiver atrás de uma revelação bombástica, não leia esta entrevista pois nenhum de nós - os entrevistadores - estávamos atrás disso. Agora, se você quer conhecer um pouco da alma boa de Chico Buarque, venha conosco, com a Maria Lucia Rangel, com a Zezé Sacks, o Caco, o Miguel Paiva, o Aroeira, o Fred Fotógrafo, o Luís Pimentel, o Poerner, o Ricardo Leite e o locutor que vos fala, os privilegiados. (Ziraldo)
Ziraldo - Chico, a gente tá há um ano aqui tentando uma entrevista com você, e de repente eu pego a revista Sexy e tá lá: "entrevista exclusiva com Chico Buarque de Hollanda"...
Miguel Paiva - O que aconteceu ali, Chico? Você disse aquilo tudo que saiu em seu nome?
Chico Buarque - Disse nada! Eu também levei um susto. Na verdade, não era uma entrevista minha. Inventaram uma história, tiraram várias coisas de outros lugares, outras entrevistas. E a mulher colocou na minha boca, com palavras dela. Não que as informações estejam erradas, mas eu fiquei parecendo um débil mental falando. E olha que coisa de maluco, eu canto no meio da entrevista, respondo perguntas com trechinhos de canções...
Luís Pimentel - Mas o que deu nessa moça?
Chico - Eu vi no expediente, ela é editora-executiva da revista. Mas melhor do que isso foram as explicações que vieram depois, quando eu protestei. O editor dela mandou dizer que sim, que ela fez a entrevista comigo no Aeroporto de Guarulhos, quando estava indo visitar meus netos, em Salvador. Eles tinham tudo isso: a história de como foi feita a entrevista, dia 27 de abril, Aeroporto de Guarulhos, das onze da manhã ao meio-dia... Tudo com uma precisão que eu mesmo comecei a achar que talvez pudesse ter dado a entrevista. Só vi que eu não tinha dado quando a li. Eu não poderia ter falado aquelas coisas, eu nunca falei coisas assim.
Ziraldo - Você chegou a ficar em dúvida?
Chico - Os editores sustentavam a versão da moça e diziam: "Por que ela iria fazer uma coisa dessa? Só se ela fosse louca, porque a gente ia publicar, você ia reclamar e a gente ia ficar nessa situação..." Eles realmente não tinham por que duvidar dela, era uma coisa de maluco. E pra provar que havia feito a entrevista, ela tinha várias coisas: a data, o horário, o local e até uma letra inédita, que eu teria feito e que felizmente não foi publicada.
Pimentel - Ela estava guardando para a suíte.
Caco Xavier - E a letra é boa?
Chico - A letra é um horror! O pior é que o editor me mostrou e disse: "Tá vendo? Essa letra é a sua cara!" Foi aí que eu resolvi processar! Depois dessa eu tive que ligar pro advogado.
Ziraldo - A BUNDAS sai com sua entrevista exatamente no dia do seu aniversário, que é também o aniversário da revista, 19 de junho, quando completa um ano. Que signo é?
Chico - Gêmeos. [Rindo e apalpando uma "bunda" imaginária] E bundas também são "Gêmeas".
Ziraldo - Eu queria falar sobre os teus livros, o Estorvo e o Benjamin. Essa coisa de escrever é uma necessidade? Por que você resolveu virar escritor, depois de já estar consagrado como músico?
Chico - "Por que cismou de escrever depois de velho", você quer dizer, né? Antes mesmo de começar a fazer música eu queria ser escritor, achava que ia ser escritor. Eu tinha uns 17, 18 anos, e tive um conto publicado no suplemento do Estado de S. Paulo. Eu escrevia várias coisas, pra jornalzinho de colégio e tal. Aí veio a coisa da música e...
Ziraldo [citando trecho de Roda Viva] - "...carrega a vida da gente pra lá..." Como é que é a letra, mesmo?
Chico [rindo] -É, vou responder cantando música, boa idéia!
Maria Lucia Rangel - O que seu pai [Sérgio Buarque de Hollanda] indicava pra você ler, já que você queria ser escritor?.
Chico - Não é que ele indicasse, realmente... ele dizia: "Leia mais, leia mais, leia mais". Às vezes ele comentava autores como Guimarães Rosa. Lembro de ter visto o segundo livro do Rubem Fonseca, Coleira do cão, em cima do piano. O livro estava lá, dando sopa. Meu pai ainda não tinha lido, mas falou: "O Antônio Cândido disse que é muito bom". Aí, claro, eu peguei pra ler.
Miguel - O Estorvo é um livro difícil, e me parece que o filme feito a partir dele também é um filme difícil. Você escreveu intencionalmente um livro difícil, pra contrapor à obra popular, da música popular?
Chico - Eu não quis escrever um livro difícil, e nem acredito que seja um livro obscuro. Mas é, evidentemente, uma linguagem inteiramente diferente da linguagem da música popular. É um livro 'literário', se a gente pode chamar assim. Não teria sentido, pra mim, deixar de fazer música pra fazer algo parecido em literatura. É outra linguagem, mesmo, outra forma.
Ziraldo - Em geral, o sujeito quando faz uma obra qualquer, cria uma medida de satisfação, de reconhecimento. E mesmo quando ele atinge essa medida, no nível que você atingiu, normalmente o sujeito quer fazer sempre mais.
Chico - Mas eu não quero fazer "mais": quero fazer diferente. Até pra preencher um vácuo, porque chega um momento em que a música popular não te ocupa tanto tempo quanto te ocupava na juventude. Não é por falta de inspiração nem nada disso, mas porque você não tem mais aquele entusiasmo pela música que você tinha quando estava com 20 anos.
Miguel - Você está compondo menos?
Chico - Componho menos. Todo mundo compõe menos, depois de um certo tempo. Quando você grava o primeiro disco, deixa de fora o dobro das músicas, porque no disco não cabe tudo aquilo que você tem na cabeça. Você acha tudo maravilhoso. Depois você começa a ficar cada vez mais seletivo, demora mais tempo pra fazer uma música. Isso não significa crise de criação, pelo contrário. Você leva mais tempo porque exige mais de você mesmo. E tem uma hora, também, que você se sente um pouco enfastiado...
Quando eu comecei a escrever o Estorvo, estava há seis meses sem compor, sem escrever música.
Ziraldo - Dizem que o Estorvo tem muita identificação com o noveau roman. Você reconhece alguma influência?
Chico - De tudo, menos do noveau roman. Isso foi dito por aquele crítico, o Wilson Martins, do qual eu disse e repito: um sujeito intelectualmente corrupto. Quando saiu o Estorvo, ele disse na revista Veja que o livro era plagiado do Zero, do Inácio de Loyola Brandão. Isso é facilmente desmentível. Quando saiu o Benjamin, ele foi e deu outra entrevista nas páginas amarelas, dizendo que era um plágio do noveau roman. Eu nunca li noveau roman. É claro que meu livro deve ter alguma coisa a ver com o cinema dos anos 60, da nouvelle vague. Os roteiristas da nouvelle vague eram autores do noveau roman, e por isso acho que posso ter muita influência, sim, mas do cinema. O livro é totalmente cinematográfico.
Ziraldo - Fale dessa sua facilidade de criar, que te faz brincar com tua filha e fazer o livro Chapeuzinho Amarelo... Essa coisa de criar já era reconhecida desde a infância?
Chico - Desde garoto eu fazia essas coisas. Eu fazia 'filmes', histórias em quadrinhos onde cada quadro era do tamanho da 'tela' de uma caixa de sapatos. Em pegava dois lápis, ia enrolando e o filme ia passando. Eu fazia os créditos, no começo. Tinha atores que apareciam em vários filmes. Tinha um tal de John Rivers que era um grande caubói, a grande estrela da minha 'produtora'.
Ziraldo - Isso é ótimo, isso é ótimo! Todo menino fez isso, com caixa de sapatos...
Chico - Pôxa, pensei que estava sendo original. E eu fazia cidades enormes, plantas complicadas, grandes. Fazia tudo desenhando (até hoje eu faço), criava estradas, linhas de ônibus, cinemas. A gente pensa que é original. Um dia encontrei Antonio Pedro, e ele disse que tinha um amigo que também fazia assim, igualzinho. E ainda mais: tinha a língua da cidade e dicionário completo dessa língua. Aí eu perguntei pra ele: "E por onde anda esse cara, agora?" "Tá no Pinel!", ele disse.
Ziraldo - Histórias de meninos criativos são muito parecidas, Chico! Ou você vira um gênio ou fica louco.
Miguel - Quando eu morava em Milão, no final dos anos 70, a gente esperava ansiosamente por suas músicas, porque elas simbolizam um oásis na aridez que eram aqueles anos. O que aconteceu daqueles anos pra cá, quando suas músicas continuam significando coisas mas são usadas de maneira imprópria, como nesse episódio da Feira de Hannover? As pessoas estão tendo a mesma intenção em relação às suas músicas? A realidade é outra?
Chico - Aconteceu uma coisa parecida nos anos 60, quando fizeram uma publicidade de televisão usando A Banda. Era uma propaganda militar. Naquela época, falaram exatamente a mesma coisa que falaram agora, com relação a esse episódio da Feira: que eu tinha 'censurado' a minha música, que era antipatriótico.
Maria Lucia - Mas ninguém te pediu autorização pra usar a música em Hannover?
Chico - Eu não queria fazer escarcéu com essa história. Simplesmente chegou um pedido de autorização e eu falei "não, não quero autorizar, não quero ligar meu nome a governo". Na verdade não quero ligar meu nome a governo algum. Eu tenho direito de não gostar e de não permitir que minha música seja usada para um monte de coisas. Comerciais, por exemplo. Esse raciocínio é torto, não é? "Censor das próprias músicas". O que é isso? Agora mesmo eu tô perdendo um processo onde o juiz está dando ganho de causa a uma editora que usou uma versão minha, Sonho Impossível. A editora diz que meu direito é um direito de "autor agregado" (eu nunca tinha ouvido essa expressão), já que nem a música nem a letra são minhas, apenas fiz uma versão. Sendo assim, eu não poderia impedir a veiculação. O estranho é que a versão que vai ao ar, num comercial da Vésper, é a minha versão, minha e do Ruy Guerra. Estamos recorrendo. É bom até que se esclareça isso, que se crie uma jurisprudência. O versionista não tem direito algum?
Pimentel - A companhia telefônica pagou direitos pra quem? Para a editora?
Chico - Pagaram à editora e depositaram uma quantia na minha conta e na do Ruy. O Ruy me ligou, dizendo "ô, que bom, chegou uma grana aqui", e eu disse "espera um pouquinho, Ruy, não vamos mexer nesse dinheiro que eles estipularam". O problema, então, não é que eles não tenham pago. Eles pagaram o que eles estipularam, lá entre eles, o que achavam que valia. O problema é que usaram sem autorização.
Ziraldo - Você nunca autoriza o uso de tuas músicas pra nada?
Chico - Às vezes autorizo pra campanhas eleitorais, partidos. Eles pedem, eu simpatizo e autorizo. Até fizeram uma paródia do Vai Passar pra campanha do Fernando Henrique à Prefeitura de São Paulo, em 1985. Época de eleição é uma loucura. Começam a usar tuas músicas e você começa a receber telefonema de tudo quanto é lugar: "Tão usando uma música sua, lá no Acre, lá em Sergipe..." Mas eu nunca autorizei que usassem música minha em comerciais.
Ziraldo - Por princípio, você jamais vai doar uma canção sua para um produto comercial, definitivamente?
Chico - É, acabou virando uma questão de princípios. Mais de uma vez já fui interpelado pelo pessoal ligado à publicidade: "por que é que você não autoriza?" Parece que é uma ofensa a eles, ao capital, porque você recusa às vezes quantias muito altas Aí fica aquela coisa, quase uma questão de honra. Parece que você tá querendo chegar ao teu preço. E aí você não pode ter preço. Talvez, se eu precisasse desse dinheiro, eu cedesse. Porque estaria passando fome, ou sei lá o quê. Mas sei que, se eu precisasse, ninguém ofereceria tanto dinheiro assim.
Ziraldo - Mas teu grande parceiro Tom Jobim negociou um.
Chico - Ele fazia, ele adorava fazer comercial, gostava inclusive de ser ator. Ele fazia até precinhos baratos, não era nem uma questão de preço. Mas eu não tenho nada com aquilo. Não era uma questão de princípios minha, não estabeleci isso antes. Mas acabou virando, depois de eu dizer várias vezes "não vendo, não vendo, não vendo". Aí ficou sendo assim: "Chico é o sujeito que não vende as músicas". E se eu sou o sujeito que não vende as músicas, não posso mais vender as músicas.
Caco - Embora você tenha sempre pensado em escrever, só com Estorvo é que você deu o passo pra entrar no mercado nacional como romancista. Você sentiu essa sensação de estar realmente começando algo novo? Chegou a pensar no que tudo aquilo que você alcançou no campo da música popular poderia contar para o sucesso do Chico Buarque escritor?
Chico - Não conta nada. "A partir de agora, não conta nada", foi o que eu pensei. E eu fiz questão que não contasse mesmo. Foi uma experiência totalmente à parte, de iniciante. Foi o primeiro romance. Eu não poderia nem mesmo comparar com o Fazenda Modelo, que era uma novela, tinha outra motivação (já que eu a escrevi não por uma necessidade literária, mas política).
Caco - O filme é um produto totalmente novo a partir do livro? É assim que você vê?
Chico - O filme é do Ruy. Gostei muito do filme. Ele me pediu autorização pra filmar Estorvo e me mostrou o primeiro tratamento do roteiro adaptado. Isso já faz muitos anos. Nessa época eu conversei com ele, dei um ou outro palpite, mas depois disso só fui ver o filme em fase de montagem.
Ziraldo - Como é o teu processo de criação? Você fica inquieto, fica escrevendo no elevador, como é que é?
Chico - Quando começa não pára mais, fico escrevendo o tempo todo. Tô conversando com vocês aqui e fico pensando no que tenho que escrever. Com a música é a mesma coisa.
Maria Lucia - Você sofria muito pra compor, antigamente... Eu vi você compondo, você ficava angustiado, tinha uma certa excitação...
Chico - Ah, excitação, sim; sofrimento, não. Às vezes tem aquela coisa, parece que tá tudo na mão mas falta uma coisinha...Mas não tem sofrimento não. Pelo contrário, compor sempre foi um grande prazer.
Pimentel - Ainda é um grande prazer?
Chico - Ainda é, ainda é.
Ziraldo - Você costuma trabalhar junto com o parceiro?
Chico - Não, trabalho separado. Criação é uma coisa muito íntima, você tem que estar sozinho, com suas caretas e esgares, como diz um poema do João Cabral.
Ziraldo - Quer dizer que, mesmo quando você compunha com o Tom, você levava pra casa e ia fazendo a letra em cima do tempo musical dele?
Chico - Em cima de cada nota. A cada nota corresponde uma sílaba. Isso é questão de honra, tem que fazer exatamente em cima da música. Muito raramente você pode pedir uma liberdade, mas eu evito isso. Geralmente os parceiros dizem assim: "Você pode adaptar aí, mudar alguma coisinha", mas eu prefiro fazer exatamente como está.
Ziraldo - É impressionante, porque a música e a letra, nos teus trabalhos em parceria, ficam tão bem encaixadas...
Maria Lucia - E quando a música também é sua, como fica?
Chico - Aí pode nascer junto. Parte da letra pode ir nascendo junto com a música. Geralmente a música tá pronta e a letra ainda não, e tem aquele trabalho de completar. A letra nunca vem antes.
Ricardo Leite - Tem muita música sua que você tenha gravado e nunca lançado? Existem muitos autores que vão lá, gravam quinze músicas e lançam dez... Você tem essas sobras?
Chico - Sabe, eu ia dizer que não, mas lembrei agora de uma história do meu último disco. Eu estava com ele quase pronto e fiquei cismado com uma música, achando que alguma coisa estava errada, que eu não iria conseguir cantar. O disco já estava com o prazo estourado e no limite do número de músicas. Mesmo assim eu tirei essa e compus outra. Aquela ficou guardada, pra ser retomada um dia, aquela coisa. A letra repetia um pouquinho uma letra de uma música minha antiga, chamada Ela Desatinou. Era um 'Ela Desatinou 2'. Aí, olha que engraçado: eu estava em Londres fazendo um show e encontrei Elza Soares. Quando ela me encontrava, cantava [imita] "Elzaaaa desatinooou..." Ela fazia essa graça, e tal... Algum tempo depois, chega aqui uma produtora que queria fazer um musical sobre a vida da Elza Soares. Sentou aqui mesmo, onde a gente está, e me pediu uma música pro show. Eu disse pra ela que eu não tinha música, que eu tinha terminado um show, que não ia dar tempo de compor... aí de repente eu lembrei: "Peraí, eu já fiz essa música pra Elza, sem saber!" Eu tirei ela do meu disco porque não era pra eu cantar, era pra Elza cantar. E ela gravou. O engraçado é que o titulo da música era Dura na Queda, e a Elza tinha acabado de despencar do palco... Parecia realmente feita pra ela, e foi.
Ricardo -O Jealous Guy, por exemplo, que é uma música brilhante do John Lennon, já tinha sido gravada anteriormente com os Beatles, com uma letra diferente. Aí ele desistiu de colocar no Álbum Branco, e quatro ou cinco anos depois gravou solo e foi aquela coisa maravilhosa.
Chico - Aí pode acontecer, isso já aconteceu comigo. Uma música que eu fiz pra peça Calabar, por exemplo. A peça foi proibida, a música também e ficou aquela melodia guardada. Anos depois eu peguei a melodia e fiz outra letra pra Bibi Ferreira cantar, em Gota dÁgua: Basta um Dia. Essa música tinha outra letra, completamente diferente.
Ricardo - De que você gosta de fazer que não seja o seu trabalho? Você gosta de ouvir música...?
Chico - Não. eu não gosto de ouvir música. Eu detesto ouvir música. Ouço muito pouco. Às vezes paro pra ouvir um disco que eu recebo, coisa assim. Mas aquela música que fica lá no fundo, acho isso odioso. Se você está conversando aqui e tem uma música tocando, fica aquele barulho... é desagradável.
Ziraldo - Na mitologia grega, o hermafrodita foi mulher e foi homem. Então quando perguntaram quem gozava mais, se o homem ou a mulher, ele respondeu: "A mulher goza muito mais, eu experimentei os dois e sei". Você faz canção e literatura de muito boa qualidade, é um hermafrodita nesse sentido. O que te dá mais prazer e alegria: acabar um livro ou terminar uma música?
Chico - O livro são vários orgasmos, não é um orgasmo só no final do ano, "aaaahhhhh". Quando você termina o livro, acontece uma coisa interessante: você não quer mais largar dele, quer continuar escrevendo... [Chico interrompe-se e aponta para a mureta de seu terraço. Há um enorme urubu placidamente pousado nela, a uns três metros da mesa onde estamos]
Chico - Olha, olha! [Opiniões diversas entre a 'platéia': "Isso é a Operação Condor, ele tá com uma microcâmera no peito!" "Nada, é o Flamengo que vai ser campeão carioca!"...]
Ziraldo -Que forma de arte mais te exaure, mais te exige?
Chico - Não, nada me exaure. O que me exaure é dar entrevistas. Quando você está fazendo um livro, ou uma música, você não fica exausto. Pelo contrário, você não quer dormir, quer continuar fazendo, aquilo não te cansa. Eu falei que você tem que botar um ponto final no livro porque não quer largar dele. Na música também tem isso, na última hora você quer botar mais uma coisinha, quer retocar. Cês conhecem a história do Bonnard, quando já era um pintor famoso, com quadros expostos? Essa história é do cacete: ele entrava escondido nos museus, com pincéis e tintas, e quando os guardas não estavam olhando, ia lá e retocava os próprios quadros!
Ziraldo - É mesmo, dá sempre vontade de ficar mexendo.
Chico - Eu acompanhei as edições todas do Estorvo, e teve coisas que eu mudei na tradução. Eu lia e dizia: "Ah, acho melhor colocar assim e assim". E o tradutor: "Mas você escreveu dessa maneira aqui". E eu dizia: "Eu sei mas acho que fica melhor assim!"
Pimentel - Você falou que se cansa de dar entrevistas. Tem uma época em que você se fecha, mesmo, né? Tem um período em que você dá entrevista e tens outros em que você não dá? Como é isso?
Chico - Eu tenho que dar entrevistas porque eu sou escalado pra isso, quando tem lançamento de um disco, de uma peça de teatro, principalmente quando envolve outras pessoas. Aí você não pode ficar se fazendo de 'doce'. Agora, tem épocas em que eu não tenho nada pra falar. Hoje, por exemplo: não tenho nada pra Falar. É bom porque estamos aqui batendo um papo e quando um bate-papo é gostoso, e tal. Mas só em saber que vai ser publicado, que o que você disse vai ter conseqüências e que você precisa ficar se policiando, isso é um pouco cansativo.
Zezé Sack - Você não gosta de ficar muito exposto, aparecendo muito... Não é isso, não?
Chico - Não há necessidade de ficar se expondo quando não se tem nada pra falar. Agora está meio excessivo, porque a mídia está em toda parte e precisa preencher os espaços das colunas, da televisão, e às vezes isso é indesejável. Você vai assistir um futebol e vira um artista assistindo futebol: vão lá te entrevistar pra saber o que você tá achando do jogo. Eu parei de ir ao Maracanã porque você precisa ir armado pra dizer coisas. E não é só a mídia. Na época da Copa do Mundo de 98 eu estava na França como correspondente, escrevendo pro Globo, pro Estado de S. Paulo e pro Zero Hora. Tava assim de brasileiro na rua. Você saía e o pessoal te parava em Paris, com câmeras: "Agora fala uma coisinha lá pro pessoal de Botucatu". Nos nossos tempos de Antonio's, a gente ficava lá no bar dizendo besteira a noite toda e não saía em jornal nenhum, ninguém se incomodava...
Miguel - Mas o que aconteceu? Vocês ficaram mais famosos ou a foi a mídia que mudou?
Chico - Eu era até mais famoso estava nos festivais, aparecia em todas os revistas, "o rapaz de alhos verdes... "
Ziraldo - O Chico, teu olho é azul, pó!
Chico - É, azul. Então, não havia tantas revistas, tantos canais de televisão. Há um excesso de espaço pra poucos artistas.
Aroeira - Mas às vezes você tem que vir a público porque é citado. Por exemplo, quando o Fernando Henrique diz que você é repetitivo, necessariamente os jornalistas vão atrás de você pra saber o que você tem a dizer.
Pimentel - É, ele disse que gostava de você antes, mas que agora você está "muito repetitivo".
Ziraldo - Ah, e tem outra frase que ele disse: "Eu preferia o teu pai". Lembra dessa?
Chico [rindo] - Eu ouvi ele falar isso do Luiz Fernando Veríssimo. Ele tá sendo repetitivo! Mas aí tudo bem, ele pode gostar de quem ele quiser, isso realmente não me chateia.
Ziraldo - E o que você acha dele?
Chico - Eu também gostava mais dele antes. O [bispo] Mauro Morelli diz que gostava mais dele quando ele era ateu. Eu perdi o contato com ele. Não acho um bom negócio ter amigo no poder. É incômodo.
Pimentel - Ainda tá meio longe, mas se o Lula sair candidato de novo você reafirma o seu apoio?
Chico - É possível, não sei dizer. Já nas últimas eleições eu achava que o Lula não deveria ter saído candidato. Eu falei de brincadeira: "meu candidato é Sepúlveda Pertence!" porque andaram cogitando o nome dele. O Lula já não ia se eleger, em 98. O Brasil não vai eleger o Lula. O rico não vota no Lula e o pobre não vota no Lula, vai ficar sempre nesses 25% e não vai passar disso. Eu fico muito incomodado com isso, mas é um questão cultural. Ainda mais quando eu leio um negócio como o que saiu uma vez na Folha de S. Paulo, um filósofo amigo do Fernando Henrique, dizendo: "Até os adversários mais ferrenhos sentem no íntimo um grande orgulho por termos um presidente tão refinado Fiquei pensando nisso. Eu nem sou um adversário tão ferrenho assim mas não tenho nenhum orgulho de ter um 'presidente refinado'. Eu teria mais orgulho se fosse o Lula o nosso presidente.
Ziraldo - Você tem noção da importância do papel de um artista como você? Você sabe que tem um compromisso e não foge a esse compromisso. Você poderia ficar na sua, como o Borges, na Argentina...
Chico - Mas eu não sei se o Borges é menos importante por ter ficado, como você diz, numa torre de marfim e ter se dedicado à literatura mais do que a qualquer outra coisa, do que se tivesse feito oposição progressista. O que a Argentina deve a Jorge Luis Borges não tem tamanho. Mesmo se ele jamais tivesse falado nada de política (como falou pouco, aliás) e tivesse feito apenas aquilo que ele fazia, e bem, a importância dele não seria alterada.
Ziraldo - Mas por que, mesmo fazendo bem aquilo que você faz, você sempre se comprometeu?
Chico - Eu me comprometi porque nós vivíamos numa ditadura. Nessa época o artista, quisesse ou não quisesse, estava comprometido, até pela omissão. Aí sim, você querendo ou não querendo corria o risco de ver sua música usada num comercial de um governo militar. Aí você consentia ou não consentia. Não consentindo, passava a ser um opositor do regime. Participando de uma passeata de cem mil, era um opositor do regime. Por um mínimo que você fizesse, tomava posição política. A partir daí, o seu trabalho vivia debaixo do tacão da censura. Você não pode exercer sua profissão porque um governo não permite que você a exerça. Fora toda a indignação de ter amigos presos, amigos exilados, gente que morre, que você conhece... E o artista, num quadro desses onde a imprensa é censurada, os sindicatos estão proibidos, também a organização estudantil, os partidos políticos... Numa hora dessas o artista acaba assumindo um papel acima até do que seria desejável.
Ziraldo - Mas você acha que o momento em que estamos vivendo agora permite que o artista possa ficar completamente alienado, sem se preocupar com o país como naquela época?
Chico - Pode. Pode. Eu não estou me alienando de nada, embora minha ênfase seja muito menor do que era na ditadura. Há uma série de nuances aí: você pode pegar um ovo e jogar na cabeça do ministro, você pode tomar uma outra atitude, você pode escolher não se manifestar. Agora, eu não acredito que o artista seja obrigado a ter um papel político no país. Eu sou contra isso, sou contra essa exigência. Sempre fui. Mesmo quando eu tive a mais marcada atuação política, não exigi isso de ninguém, não cobrei isso de nenhum colega meu. Não acho isso justo, acho até uma violência com um sujeito que tá em casa, pintando seu quadro e por um motivo ou outro, ou porque tem medo, ou porque não se sente à altura, ou porque não se acha afetado por aquilo, ou porque se acha insignificante como ator político, não acredito que esse cara tenha obrigação de sair à rua e assinar um manifesto. Não gosto dessa imposição. E existe também um julgamento político, a favor e contra o artista. Muitas vezes o artista é elogiado, é apreciado porque tem boas posições políticas. Isso não é correto.
Caco - Passam a julgar a obra do artista em função de sua posição política.
Chico - É, a favor e contra. Provavelmente um crítico ultraconservador vai ter um ódio ideológico à minha pessoa. Na minha lista de admiração, na literatura, existem vários autores de direita. O Ezra Pound, um poeta ultraconservador, que grande poeta! Acho que a questão política contamina o julgamento estético e acho isso próprio de quem não gosta de literatura, de que não gosta de música, É próprio de fanáticos e eu não gosto de fanatismo.
Caco - Esse é um pensamento muito temporal, do que acontece aqui e agora. A contribuição que Ezra Pound e Borges deram à poesia americana e mundial, e à cultura argentina, é muito maior do que qualquer...
Miguel - ... do que o suposto mal que eles possam ter causado.
Chico - Muito maior do que o mal real que o Ezra Pound causou fazendo o papel que ele fez lá na Segunda Guerra, na Itália. Uma pena, uma pena que esse grande escritor estivesse `acompanhado' de um sujeito que fosse nazista ou outro caso qualquer, que fosse um mau caráter... Foda-se! Não quero conhecê-lo pessoalmente, não tenho interesse nenhum em saber da vida pessoal de fulano ou sicrano. É um grande escritor? Viva! Eu quero ler os livros dele.
Zezé - Você foi a Cuba pela primeira vez no início dos anos 70, e fez sólidas amizades que duram até hoje. Como andam seus contatos?
Ziraldo - E por que você se encantou com Cuba?
Chico - Eu já não vou a Cuba há uns oito anos, talvez. Em primeiro lugar, todo mundo sabe: Cuba parece muito com o Brasil. Tem aquele povo parecido com o nosso, alegre, e tem (pelo menos tinha) seus problemas básicos resolvidos. Se isso é possível de se fazer em Cuba, que é um país paupérrimo não é possível que não possa ser feito no Brasil. Não é possível que não se possa dar escola, sapato no pé, comida, hospital, atendimento básico, não é possível que não se possa fazer no Brasil alguma coisa parecida. Basicamente, é isso.
Aroeira - O Ziraldo quer que eu faça uma pergunta. Há algumas semanas atrás, nós botamos na revista o Gilberto Gil de 'Bundão da Semana'...
Ziraldo - ...porque ele elogiou o FHC, aquele negócio do salário mínimo. O que você acha dessa atitude do Aroeira, de ter colocado o Gil como Bundão?
Aroeira - Eu? Não fui eu que botei: nós botamos. Eu fiz a ressalva que como artista ele é genial...
Chico - Eu discordo de chamar ele de bundão. Discordo da posição do Gil, mas tenho vários amigos que gostam (ou gostavam) do Fernando Henrique na época da eleição. Eu não vou perder amigo por causa de política. Saio com eles e não falo de política. Eu protesto, acho que Gil não tem nada de bundão, que história é essa?
Ziraldo - Mas, Chico, um artista não pode ficar elogiando o Fernando Henrique, não. Nessa altura, fica calado, não se manifesta. O povo tá sofrendo tanto, é tão nítido...
Chico - Mas, escuta: se eu posso falar mal, por que o Gil não pode falar bem? O artista tem que ser sempre de oposição? Eu não acho isso. Ô Ziraldo, ele deve acreditar nisso. Ele não está sendo desonesto.
Aroeira -Você conheceu algum daqueles artistas do Buena Vista?
Chico - Não, não conheci. O filme é uma delícia. Mas falam que esses músicos estavam sumidos, esquecidos por causa de problemas com Fidel, o que não é verdade. O que acontece é que essa velha geração da música cubana estava fora de moda. Como aqui no Brasil, tem um monte de gente que desaparece. Cartola virou lavador de carro, durante muito tempo sumiu de circulação. Ele, Nelson Cavaquinho... E um dia foram descobertos pela Nara, pelo Vianinha, pelo Grupo Opinião. Eles buscaram esses compositores do morro e os trouxeram para a mídia, novamente. Foi uma coisa parecida.
Zezé - E verdade. E só Ibrahim Ferrer estava realmente afastado da música. Todos os outros continuavam tocando, com sua bandas. Daqueles artistas, você nunca encontrou ninguém, então...
Chico - Uma vez eu estava no festival de Varadero e depois da apresentação fomos assistir a um show da velha guarda cubana. Pablo Milanés é que nos levou. Numa mesa estavam o Harry Belafonte, Gilberto Gil, eu, Pablo e mais algumas pessoas. Era uma espécie de Canecão, um pouco menor. Fazendo o show estavam o Cesar Portillo de La Luz, um grande compositor de oitenta e poucos anos, e uma cantora que pode ser até a Omara Portuondo (eu não sei, eu não conhecia). As pessoas bebiam, e gritavam, e falavam... Os velhinhos cantando lá e ninguém prestava a menor atenção. Uma hora o Pablo se levantou enfurecido, subiu ao palco e pagou pra todo mundo: "Se vocês não querem respeitar esses artistas que estão aqui, respeitem ao menos os meus convidados". E apresentou o Harry Belafonte, todo mundo aplaudiu. Ele voltou pra mesa, silêncio total. Aí começou o show de novo e em cinco minutos tava aquele espooorro, igual como estava antes! Quer dizer, ninguém estava muito interessado em ouvir a velha guarda.
Zezé - Eu queria te perguntar sobre teu lado de ator. Todo mundo diz assim, que "o Chico é uma pessoa supertímida..." Até aqui não pareceu. Você gosta de atuar?
Chico - Tem sempre esse negócio do tímido. Aí no dia seguinte eu leio: "nesse dia, excepcionalmente, não estava tímido..." Sempre assim. Acho que os jornalistas já têm aquele negócio no computador; com o nome de cada um. E deve estar lá: "Chico Buarque, carioca, músico, tímido... " Ficou assim, não sei como começou. E não me considero um bom ator, não. Eu me empenho, eu faço a sério, mas não gosto muito não.
Arthur Poerner - Quando eu voltei pro Brasil, você se tratava com o 'Nero'. Lembra do 'Nero'?
Chico - Lourival. Morreu. Morreu louco.
Ziraldo - E aquilo era misterioso mesmo, Chico?
Chico - Tinha mistérios ali, sim.
Poerner - Eu vi ele operar uma catarata em Londres, com uma colher dessas de cozinha.
Miguel - Era um médium, então?
Chico - Era. Mas era um médium esculhambado, porque ele recebia o Nero, o imperador romano. Então, antes de fazer a operação, começava a dizer um monte de barbaridades, esculhambava todo mundo. Aí de repente o Nero recebia o médico que operava. Sempre passava antes pelo Nero. Às vezes passava pela Messalina, também. Nós éramos 'anestesistas', eu e o Tom. Enquanto a gente tocava, se a gente não desafinasse, não doía. Ele só operava com música. Não tendo música ao vivo, ele usava fita.
Ziraldo - E dava certo?
Chico - Dava certo. Eu desconfio que quando não dava certo ele embromava. Quando não 'baixava' direito, acho que ele fingia, fazia uma embromação lá. Mas eu vi casos de pessoas que não podiam andar e saíam dançando. Sabe o que eu acho? Que tinha também um problema de manutenção. Ele não resolvia, ele fazia um 'gatilho' ali e a coisa funcionava. Daí a quatro, cinco anos, o problema aparecia de novo e a pessoa tinha que voltar lá nele.
Ziraldo - Falando em médium, você tem essa coisa de 'especialidade', um dom. Atualmente, acho que você é um dos artistas mais gratificados, você é o cantor do seu povo. Quando você fica sozinho, reflete sobre isso? Você pensa assim: "Puxa, por que pintou isso pra mim?" Isso te ocorre? Ou você não pensa nisso?
Caco - Rapaz, essa é uma maneira original de fazer aquela velha pergunta: "Como você se sente sendo o Chico Buarque?"
Chico [rindo] - Eu não penso nisso, né Ziraldo! Tenho mais o que pensar!
Ziraldo - Pó, Chico, não há hipótese de não pensar! Não tem uma hora em que você, sozinho em casa, pensa assim: "Puta que pariu, eu sou o Chico Buarque"? Eu lá em Caratinga já pensava nisso...
Chico [se divertindo] - Ah, é? E como é isso, Ziraldo? Eu quero saber. Em casa, sozinho, você chega e fala: "Puta que pariu, eu sou o Ziraldo!" Como é que é isso?
Ricardo - Você é religioso?
Chico - Não sou religioso não, mas sei que tem uns mistérios por aí... Eu tô querendo escapar um pouquinho dessa armadilha em que vocês estão me enfiando. Eu não me considero nenhum iluminado, nem nada parecido com isso. E quando eu falo em mistérios, estou falando da vida, mesmo...
Zezé - Faltou só perguntar o que você acha da revista BUNDAS.
Chico - Eu estava gravando um especial pro Multishow, com José Henrique Fonseca, e ele falou assim: "Saia andando, passe em frente à farmácia, entre numa banca de revistas e compre alguma coisa". Aí eu comprei a revista BUNDAS, dei uma folheada e continuei andando. Depois da gravação, quando cheguei em casa, fui ler a revista que eu tinha comprado. Aí eu abro e leio assim: "Parem de pedir entrevistas com o Chico Buarque! Ele não gosta da gente!" Porra, eu tinha acabado de comprar a revista, mostrei ela na frente das câmeras!
Pimentel - Viu como a nossa provocação funcionou? A entrevista foi boa, Chico?
Chico - Pra mim, foi. Foi bom pra vocês, também?
Fala, Chico Buarque
Se fosse feita uma investigação para identificar os brasileiros que mais produziram na área cultural, desde a década de 1960, o nome de Chico Buarque de Hollanda, certamente, seria um deles. O volume de obras deste Songbook - o maior entre todos os Songbooks - não deixa a menor dúvida. São centenas de músicas, sem contar a sua atividade como escritor de livros, autor teatral e sua presença nos palcos do Brasil. Se a obra musical de Chico impressiona pela quantidade, impressiona muito mais pela qualidade.
Um criador do seu nível também tem muito a dizer, razão pela qual apresentamos a maior das entrevistas já publicadas em Songbooks. Chico Buarque tem muito a dizer.
Almir Chediak: Para começar, gostaria que você falasse dos seus primeiros contatos com a música. Como é que foi isso?
Chico Buarque: A lembrança mais remota é a dos meus pais cantarolando músicas antigas, como Último desejo, por exemplo, na casa em São Paulo, na rua Hadock Lobo, onde morei até os oito anos idade. Em 1952, a família foi toda para Roma, mas me lembro também que, antes da viagem, eu ouvia rádio.
Chediak: Que rádio? A Nacional?
Chico: Possivelmente. O rádio era da minha babá, ou melhor, da babá dos sete filhos dos meus pais e depois virou cozinheira. Acho que era a Nacional mesmo, porque um dos programas que a gente ouvia era aquele do primo pobre e do primo rico, o Balança mas não cai. Mas havia muita música, principalmente os sambas e as marchinhas de carnaval, que eu gostava muito. Me lembro da Linda Batista, do Blecaute, da Marlene, da Zilda do Zé, todos eles cantando músicas de carnaval. Depois, na quaresma, mudava a programação e entrava a música de meio de ano, como era chamada. Era samba-canção, bolero, mas que gostava menos disso.
Chediak: Você não ouvia disco?
Chico: Antes da viagem para Roma, minha irmã Miúcha ganhou um vitrola, ainda daquelas de dar corda. Não era elétrica não. Quando a gente voltou para São Paulo, dois anos depois, apareceu lá em casa um novo móvel, que, na verdade, era um toca-discos da marca Telefunken. Naquele aparelho ouvi Sílvio Caldas, Ataulfo Alves, Elizeth Cardoso, Roberto Luna, Frank Sinatra, Inks Spots, Lucho Gatica, Trio Los Panchos e mais uma porção de gente. Minha mãe adorava Edith Piaf. Tinha também um disco do Jacques Brel.
Chediak: E o primeiro contato com o violão, como foi?
Chico: Foi bem mais tarde. O primeiro violão que apareceu lá em casa era da Miúcha, que tinha um ciúme danado do instrumento. Não deixava nem a gente chegar perto. Depois, minha irmã Ana apareceu com outro violão grená, esquisito, que não produzia som nenhum e não dava a menor vontade de tocar. A gente chamava o violão de "catupiri". Miúcha começou a reunir os irmãos, distribuía as vozes e formava um coral para ela acompanhar no violão. Eu não cantava. Quem participava do coral eram os meus irmãos.
Chediak: E quando foi que você acabou pegando o violão?
Chico: A partir da Bossa Nova. Quando apareceu Chega de saudade, foi um choque tremendo, me lembro perfeitamente. Ficava horas, a tarde inteira ouvindo aquilo, ouvindo, ouvindo, ouvindo... Conhecia o violão de João Gilberto desde o disco da Elizeth Cardoso, Canção do amor demais, um disco que freqüentou muito a Telefunken dos meus pais. João tocou violão em duas faixas, Outra vez e Chega de saudade. Mas a gravação de João Gilberto era diferente. Eu nem sabia que Chega de saudade era do Tom Jobim, tanto que, ao pedir dinheiro aos meus pais para comprar o disco, disse que a música era do Vinicius de Moraes, o autor da letra e amigo do meu pai. Nem me ocorreu que a música era do mesmo autor (com Billy Blanco) de Teresa da praia, um disco que eu havia comprado para dar de presente à Miúcha. Era aquela gravação com Dick Farney e Lúcio Alves.
Chediak: Foi João Gilberto quem detonou tudo.
Chico: Detonou tudo! Ouvia Chega de saudade sem parar. Eu e um amigo meu de rua ficávamos ali, com violão, tentando decifrar a batida e as harmonias de João. Quando saiu o primeiro long-play do João Gilberto, a gente repetia Aos pés da cruz não sei quantas vezes na tentativa de fazer aquela introdução.
Chediak: Também passei por isso, Chico.
Chico: Por morar em São Paulo, eu levava uma desvantagem em relação ao pessoal do Rio. Não havia televisão na minha casa. De vez em quando, chegava um amigo, dizendo: "Vi aquele cara esquisito que você gosta na televisão." João Gilberto apareceu como uma coisa misteriosa. De vez em quando, um amigo perguntava: "É verdade que ele é viado?" "É viado", garantia outro. Ele era diferente de tudo até para um jovem de 18 anos. Eu tinha 14 anos e, na época, ter quatro anos a menos significava uma diferença brutal. Acho que, por isso, João pegou muito o pessoal da minha idade. Aliás, o que estou falando é comum ao pessoal da minha geração. Já vi o Gil, o Caetano, o Edu, todo mundo falando onde estava quando ouviu Chega de saudade pela primeira vez. Foi demais pra todo mundo. Quem não tinha aquela idade não estava na hora certa, no lugar certo, talvez não fosse capaz de perceber. Ou era mais velho, já não estava na idade de ser, vamos dizer, fulminado por um tipo de coisa assim, ou era muito novo para se interessar por aquilo. Conversei com pessoas que tinham, na época, 10 anos de idade e elas disseram que não entenderam nada.
Chediak: João Gilberto revolucionou. Aquele batida no violão...
Chico: Eu criticava minha irmã porque ela tocava violão "bossa velha". Não gostava daquilo, eu só queria saber de bossa nova. Durante alguns anos, fui um seguidor fanático da bossa nova. Reneguei tudo aquilo que havia escutado antes. Engraçado é que, pouco antes disso, gostava muito de Elvis Presley, Little Richards, essa coisa toda. Gostava também de Frank Sinatra, das orquestrações de Nelson Riddle, ouvia discos de jazz na casa de um amigo, Milles Davis, Oscar Peterson, Mingus, mas a bossa nova era uma coisa moderna e era música brasileira.
Chediak: Foi aí que você ganhou seu primeiro violão?
Chico: Não me lembro... Acho que me apropriei do violão da Miúcha.
Chediak: E você se lembra dos primeiros acordes que fez? Para mim, isso foi o máximo. Era uma música de Dolores Duran. Mas é você o entrevistado. Como foi isso?
Chico: A gente começava a procurar acordes. Eram horrorosos, mas a gente achava que estava bom. Talvez por incapacidade de reproduzir os acordes do João Gilberto, comecei a inventar, a compor. Tentava fazer uma música parecida com a que ouvia o João tocar. Mas já sabia que não conseguiria fazer nada igual.
Chediak: Tocava pedaços de música, pedaços de harmonia.
Chico: Pedaços. Pulando uma escala, pulando um degrau, comecei a fazer minhas músicas. Como não conseguia reproduzir, imitava.
Chediak: Já compunha com letra?
Chico: Com letra. Antes disso, já escrevia bastante nos jornais do colégio. Em Roma, na escola americana, escrevia em inglês. Lembro de um bilhete da professora, que guardei até pouco tempo (deve estar guardado em algum lugar), que dizia: "Um dia, ainda vou ler alguma coisa escrita por Francisco Buarque de Hollanda."
Chediak: Você se lembra da sua primeira música?
Chico: Primeira, primeira, não sei, mas me lembro de uma chamada Anjinho de papel e de outra com o nome de Canção dos olhos.
Chediak: Você tinha o quê, 17, 18 anos?
Chico: Por aí. Me lembro de ter cantado essas músicas num showzinho do colégio em que estudava, o Santa Cruz.
Chediak: Tocava violão e cantava?
Chico: Tocava e cantava. Aliás, eu disse que não tocava outras músicas, mas isso era bem no comecinho, mas, na verdade, forçando um pouquinho a memória, me lembro de ter cantado naqueles showzinhos Primavera e Minha namorada. Em São Paulo, um sujeito que soubesse tocar bossa nova numa festa fazia o maior sucesso. Naquela época, eu passava as férias no Rio. Me lembro de uma vez, em Petrópolis, eu via tantas pessoas tocando e me dei conta de quanto eu não sabia de violão. Outra vez, na praia de Ipanema, em frente ao Country, comecei a tocar e apareceu o Nelsinho Mota e tirou o violão da minha mão antes da música acabar: "Espera aí, tem um camarada que toca..." Acho que era ele mesmo ou alguém que tocava melhor do que eu. Ele tinha acesso a essa gente toda. Nunca falei com ele desse episódio. Foi em 1961, por aí.
Chediak: Você tinha um amigo que tocava bem, não tinha?
Chico: Tinha, o Olivier, que aprendeu junto comigo mas era mais aplicado do que eu. A gente trocava informações e ele me passava uns acordes. Dando um pulo no tempo, me lembro de fazer um acorde e João Gilberto me dizer: "Não faz assim. Faz esse aqui."
Chediak: Ele freqüentava a sua casa?
Chico: Freqüentava. Mas foi depois. Por isso, dei um pulo no tempo. Já havia gravado Pedro Pedreiro, meu primeiro disco. Antes disso, não tinha quem me ensinasse. Eu vinha ao Rio, via as pessoas tocando e me dei conta de que estava atrasado. Em São Paulo, dava pra enganar com aqueles acordes, mas no Rio não dava. Aí, fui prestando atenção. Depois, conheci Toquinho, que havia estudado com Paulinho Nogueira e sabia violão. Olhava quando ele tocava e fui aprendendo alguma coisa.
Chediak: Vamos às suas primeiras músicas. Quais foram elas?
Chico: Já falei de Anjinho de papel, da Canção dos olhos e havia também uma marchinha que eu tocava nos shows estudantis em São Paulo, a Marcha para um dia de sol, gravada por uma cantora paulista muito boa, Maricenne Costa. Depois, fiz Sonho de um carnaval, que concorreu no festival da TV Excelsior, em 1965, cantada por Geraldo Vandré, com arranjo do Erlon Chaves. Foi aquele festival que Edu Lobo e Vinicius de Moraes venceram, com Arrastão, cantada por Elis Regina. Minha música não ganhou nada, mas foi classificada para a final, o que recebi como uma vitória. Também me lembro de ter participado de uma novela do Roberto Freire na televisão. Era uma novela com Eva Vilma e John Herbert. Eu era o garoto que aparecia numa festa para tocar bossa nova. Cantei uma daquelas bossas novas que fazia na época, chamada Teresa tristeza, que até Eduardo Conde gravou mais tarde. Mas era uma canção amadora, que fiz antes de Sonho de um carnaval.
Chediak: No seu primeiro disco, você gravou Sonho de um carnaval e Pedro Pedreiro.
Chico: Isso mesmo. Quando fiz Pedro Pedreiro, tive a sensação de que pela primeira vez estava compondo uma música realmente minha, que já não era mais imitação de bossa nova. Daí em diante, as coisas começaram a acontecer.
Chediak: Sonho de um carnaval é uma música original, Chico.
Chico: Mas eu achava Pedro Pedreiro mais original. Cantei essa música num programa de auditório da Rádio América e, quando cheguei naquele trecho, "esperando o sol, esperando o trem", alguém fez uma imitação do apito do trem que quase me derrubou. De qualquer maneira, a música chamou a atenção de alguém e fui convidado para gravar um compacto simples na RGE, ainda uma pequena gravadora de São Paulo. Naquela época, havia muitos shows estudantis e eu era convidado a participar. Havia um radialista em São Paulo, Válter Silva, o Pica-pau, que apadrinhou a gente. A gente era o Toquinho, o Taiguara, eu, uma cantora chamada Ivete, outra chamada Ana Lúcia. Começamos a cantar na primeira parte dos shows de bossa nova. Éramos nós, os amadores de São Paulo. Na segunda parte, era o pessoal do Rio.
Chediak: O disco fez sucesso?
Chico: Fez, principalmente em São Paulo, onde as músicas já eram conhecidas. Daí, fui contratado pelo TV Record e passei a cantar num esquema profissional. Logo depois, fui convidado para cantar num programa de televisão no Rio, num programa, aliás, que eu não tinha a menor idéia do que se tratava. Peguei um ônibus e vim para o Rio. Cantei e o apresentador elogiou a música. Era o Flávio Cavalcanti. Depois, alguém falou: "Fiquei com medo que ele quebrasse seu disco." Ele quebrava os discos com as músicas que não gostava. Eu não sabia disso, pois não via televisão. Na minha casa não se via televisão.
Chediak: Ele quebrou o primeiro disco do Martinho da Vila. Um mês depois, convidou o Martinho para o programa e disse que ele era o maior. Com que idade você passou a ver televisão?
Chico: A primeira pessoa a ter um aparelho de TV lá em casa foi a babá. Ela passou do rádio para a televisão na época dos festivais. A televisão dela passou a ser a televisão da casa.
Chediak: Quer dizer que, quando a televisão chegou à sua casa, você já era o Chico Buarque?
Chico: Estava começando a ser o Chico Buarque. Na Record, havia uma parada de sucessos chamada Astros do disco, que começava com os últimos colocados, os discos colocados em trigésimo lugar, trigésimo não sei quanto. Eu entrava assim: "Em vigésimo primeiro lugar, Pedro Pedreiro." Aos poucos, eu ia entrando nos outros programas, sempre para cantar Pedro Pedreiro. Já não agüentava mais.
Chediak: Depois, veio Vida e morte severina.
Chico: É verdade. Isso aconteceu em 1965. No ano seguinte, a peça venceu o Festival de Nancy.
Chediak: Em 1966, aconteceu muita coisa.
Chico: Logo no início do ano, Nara Leão saiu com três músicas minhas no disco dela. Aquilo foi muito importante pra mim. Ser gravado por Nara Leão era uma marca de qualidade. Ela era muito conhecida e muito prezada pelo repertório, pela descoberta de novos compositores que estavam esquecidos, como Cartola, Nélson Cavaquinho e Zé Kéti, e de gravar músicas de autores novos como Edu Lobo, Sidney Miller e eu. Naquele disco, havia três músicas minhas: Olê, olá, Pedro Pedreiro e Madalena foi pro mar.
Chediak: Eu tinha 16, 17 anos quando comecei a dar aula de violão e pegava as primeiras músicas para tirar a harmonia. Olê, olá me deu um trabalho danado. Há nela uma seqüência harmônica diferente de tudo, uma coisa muito original. Como foi que essa música saiu? Foi uma coisa intuitiva?
Chico: Muito intuitiva. Só podia ser, porque eu não tinha conhecimento teórico nenhum.
Chediak: Em 1966, você estourou com A banda.
Chico: Foi a música do festival da Record. Tirou o primeiro lugar, empatada com Disparada, do Téo de Barros e Vandré. Depois do festival, fui convidado para participar de um show com Odete Lara e MPB-4, na boate Arpège, dirigido por Hugo Carvana e Antônio Carlos Fontoura. E resolvi morar no Rio. Nasci no Rio, mas fui cedo para São Paulo. Meu apelido em São Paulo era Carioca. Antes de ser Chico Buarque, eu era o Carioca.
Chediak: Quando foi que você decidiu estudar música?
Chico: A partir do meu encontro com Tom Jobim, em 1967. Tom foi comigo à Lapa para comprar um piano que ele indicou. Era um piano do tipo armário. Comecei a tomar aulas com Vilma Graça.
Chediak: Eu me lembro disso. Ela dizia que você pegava tudo com muita rapidez.
Chico: Durante um ano estudei com ela e aprendi tudo o que sei sobre teoria. Claro que aprendi também lidando com meus parceiros músicos. Uma vez, fiz uma letra pro Toquinho, Lua cheia. E musiquei a poesia de João Cabral de Melo Neto em Vida e morte severina. Mas, normalmente, fazia letra e música. Achava que não precisava de parceiros. Comecei a fazer letra para o Tom, depois para o Francis Hime, para o Edu Lobo, isso tudo me acrescentou muito na música. Tom tinha a faculdade de ser um mestre sem ser didático. Pegava a sua música, colocava um acorde dele e falava assim: "Você é um craque, hem!" Ele rearmonizava. Se bem que me lembro muito do Tom também me dizer pra eu preservar de certa forma a minha "ignorância", ou seja, o que eu tinha de espontâneo, a minha intuição musical. Mas havia aquelas coisas que eu devia corrigir.
Chediak: Você falou pouco do festival de 1966.
Chico: Eu já cantava A banda para os amigos, nos botequins. Só não podia cantar em público. Nesse tempo, eu cruzava muito com Gilberto Gil, que morava em São Paulo e trabalhava na Gessy-Lever. A gente se encontrava quase sempre num bar na Galeria Metrópole. Gravei A banda antes do festival, mas o disco só saiu depois. Foi o meu primeiro long-play.
Chediak: Quando você ganhou o primeiro cachê imaginou que dava início à sua carreira profissional?
Chico: Era muito pouco para imaginar que poderia me manter com aquilo. Foi num show organizado por Pica-pau, em Campinas, que me rendeu 30 mil cruzeiros e alguma coisa. Era um dinheirinho muito bom para um estudante de arquitetura (na época, eu estudava arquitetura). Bem, bebi o cachê com os meus amigos. Já o meu o primeiro salário, na TV Record, era de 500 cruzeiros novos. Estou bem lembrado dele porque foi inteiramente aplicado no pagamento da primeira prestação de um carro, um fusquinha usado. Foram 10 ou 12 prestações. Era receber o ordenado e pagar as prestações. Continuava estudando arquitetura porque não tinha a veleidade de me tornar um profissional da música. Achava que aquele dinheiro que recebia servia apenas pra comprar um carrinho, um violão, pra pagar a cerveja, pra me divertir. Achava que música seria uma atividade passageira.
Chediak: Mesmo depois de Pedro Pedreiro e A banda?
Chico: Mesmo depois eu duvidava que aquilo fosse uma profissão duradoura.
Chediak: Mas com A banda você ficou superconhecido.
Chico: Foi o maior sucesso. Deu capa de revista, etc. e tal, meu salário aumentou e passei a fazer shows com muita freqüência. Comecei a viajar muito com o violão e o empresário. Geralmente, ia cantar em clubes no Brasil inteiro. O clube parava a dança, eu cantava meia hora com o violão e a dança voltava depois. Ganhava um dinheirinho, mas não era grande coisa.
Chediak: E o direito autoral?
Chico: Custei a receber. Ganhava na vendagem de discos, nos shows, na televisão, o que me permitiu comprar um pequeno apartamento no Leblon, além de um outro fusquinha, mas de primeira mão. Mas na época não existia ECAD [Escritório de Arrecadação e Distribuição Central]. Existiam as sociedades arrecadadoras e distribuidoras de direito autoral, que relutavam em aceitar um sócio novo, porque seria mais um a dividir o bolo. Quase um ano depois do lançamento de A banda é que ingressei na UBC [União Brasileira de Compositores].
Chediak: Quando foi que você decidiu deixar a arquitetura?
Chico: No terceiro ano da faculdade. Eu não sabia o que ia ser. Tinha uma vaga idéia de ser jornalista, porque gostava de escrever. Pensei também em ir para o Itamaraty. Achava que lá as pessoas bebiam e faziam músicas e poesias.
Chediak: Por causa do Vinicius, talvez.
Chico: Por causa do João Cabral também. Mas eu gostava muito de arquitetura, como gosto até hoje. Além do mais, havia todo aquele entusiasmo por Brasília, por Oscar Niemeyer. Só não queria ser arquiteto.
Chediak: Tom Jobim também estudou arquitetura e abandonou a faculdade. Falar nisso, como foi seu encontro com ele?
Chico: Quem me levou na casa dele foi Aloysio de Oliveira, dono da gravadora Elenco. Aliás, o sonho da gente era ser artista da Elenco, mas eu já tinha contrato com a RGE. Na época, Aloysio era casado com a Cyva, do Quarteto em Cy, e foi ele quem produziu o disco delas cantando Pedro Pedreiro. Aloysio gostou das minhas músicas e tinha aquele coisa generosa, gostava de ajudar, e me levou ao Tom Jobim. Isso foi antes da Banda. Cantei Pedro Pedreiro para o Tom. A partir de 1967, a gente ficou parceiro. A primeira letra que fiz para ele foi para uma música já gravada, chamada Zíngara. Com a letra, ganhou o nome de Retrato em branco e preto. Vinicius estimulou muito a parceria. Mas eu achava que era um risco muito grande fazer letra para Tom, até porque a minha única experiência de letrista para música pronta tinha sido para Lua cheia, de Toquinho. Compor com Tom foi uma coisa que me deu trabalho mas muito orgulho também. Era o máximo ser parceiro dele. Para mim, era a glória.
Chediak: Como é que o Tom recebia as suas letras?
Chico: Ele era muito engraçado e muito crítico também. Quando o Quarteto em Cy ia gravar Retrato em branco e preto, tirei do verso "eu tenho o peito tão marcado de lembrança do passado" o "tão marcado" e mudei para "carregado de lembrança". Expliquei ao Tom que o "tão" era uma muleta para completar as sílabas da canção. Ele disse, concordando: "Você é um craque." Depois, ele telefonou, pedindo para deixar como estava: "Esse 'eu tenho o peito carregado' tem outra conotação." "Qual?", perguntei. "É que 'peito carregado' pode ser uma tosse."
Chediak: Imagina foi uma das primeiras melodias que ele criou. Como foi fazer uma letra para ela?
Chico: Foi engraçado porque Tom dizia que não era uma música para ter letra, que era impossível letrá-la. Falei: "Vou topar o desafio, posso?" Ele disse que eu não conseguiria. Mas eu precisava da música porque estava fazendo a trilha de um filme do Miguel Farias, Para viver um grande amor. Fiz a letra sem mudar nada na música. Nota por nota, está tudo ali. Ele nem implicou porque viajou logo para os Estados Unidos. Como eu precisava da aprovação dele para gravar, mandei a letra para ele e fiquei aguardando a resposta, que veio num telegrama com duplo sentido: "Very exquisite". É que, em inglês, exquisite é bom. Aliás, em todas as línguas, menos em português, exquisite é uma coisa boa, rara. Em português, tem um sentido de estranho. Acho que considerou a letra estranha e, realmente, ela é estranha. Mas ele gostou.
Chediak: O que foi que houve com Wave?
Chico: Ele me mandou a música, que adorei, e comecei a fazer a letra. Escrevi logo: "Vou te contar". E o resto não saía. O tempo passou e Tom ia perdendo a paciência: "Ô Chico! Você não sai do 'vou te contar'? Não quer ficar rico?" Ele sabia que a música iria fazer sucesso e foi realmente um grande sucesso internacional. Acabei desistindo e ele fez a letra. Várias músicas dele - como Nuvens douradas, Rancho das nuvens - passaram por mim e as letras não saíram.
Chediak: Depois, você passou a fazer letra também para o Francis Hime.
Chico: Foi em meados dos anos 70. Tom até ficou um pouquinho "mordido". Fiz letra também para o Sivuca.
Chediak: Antes disso, você foi para a Itália.
Chico: Fui lançar um disco. Chegando a Roma, fui aconselhado a não voltar, porque no Brasil as coisas estavam muito difíceis. Nem pensava em ficar, porque minha mulher estava grávida de Silvinha e eu queria que ela nascesse aqui. Aluguei um apartamento e Silvinha nasceu lá. Fui ficando e acabou saindo um outro disco com versões de Sérgio Bardotti para o italiano. Depois, fui eu que fiz as versões das músicas de Bardotti para Os saltimbancos, que Antônio Pedro adaptou para o teatro.
Chediak: E a censura, Chico?
Chico: Às vezes, a censura proibia uma música inteira e o advogado da gravadora corria para Brasília. Muitas vezes, o advogado telefonava de lá para dizer que, se mudasse tal palavra, a música estaria liberada. Quase sempre era uma bobagem, como em Partido alto, em que "titica" virou "coisica", "brasileiro" virou "batuqueiro", coisas assim. Era o preço para o disco sair. Naquele disco que gravei ao vivo com Caetano Veloso, a gravadora teve que botar aplauso para esconder uma palavra proibida. O aplauso ficou evidentemente falso.
Chediak: E Vinicius, Chico? Como você via o Vinicius de Moraes?
Chico: Eu não via o Vinicius. Eu queria ser o Vinicius, que conhecia desde criança, porque ele era amigo do meu pai. Queria ser o Vinicius, com mulheres bonitas, tomando aquele uísque, tocando violão, fazendo poesia. Não queria mais nada. Quando veio a Bossa Nova, aumentou meu fascínio e veio uma admiração muito grande.
Chediak: E você acabou parceiro dele. Como foi que vocês fizeram Valsinha?
Chico: Nós estávamos na Argentina, onde Vinicius fazia muitos shows com Toquinho. Maria Bethânia também estava lá. Vinicius me deu uma fita com a música, que eu trouxe para o Brasil e mandei a letra por carta. Ele queria que a música se chamasse Valsa hippie, mas não gostei e sugeri Valsinha, um nome que tinha mais a ver com ele, que usava tudo no diminutivo. Era "mulherzinha", "uisquinho" etc. Fizemos também Olha, Maria, Gente humilde, Desalento e Samba de Orly.
Chediak: Dos compositores antigos, quais foram os que mais o influenciaram?
Chico: Ouvia muito Noel Rosa, Ary Barroso, Ismael Silva, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, uma porção deles. Ouvia muito um disco de duetos do Mário Reis com o Francisco Alves. Ouvia também aquelas operetas do cinema, tipo O príncipe estudante. E gostava das músicas americanas com Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, das músicas de Cole Porter.
Chediak: Quando começou sua parceria com Edu Lobo?
Chico: Já nos anos 80. Escrevi pra ele a letra de Moto contínuo e depois fizemos O grande circo místico, com um roteiro do Naum Alves de Souza, baseado num poema de Jorge de Lima, a pedido do corpo de baile do Teatro Guaíba, de Curitiba. Na verdade, a parceria com Edu vinha sendo adiada desde os anos 70. Edu fez os arranjos do disco Chico canta. Depois do Grande circo místico, veio O corsário do rei e outro balé chamado A dança da meia-lua. Foram três projetos. Edu foi o parceiro com quem fiz o maior número de músicas. Prezo muito a nossa parceria.
Chediak: Qual o processo que você adota para compor esta obra maravilhosa?
Chico: Há a criação de parceria e a criação solitária. São processos diferentes. Quando recebo a música do parceiro, faço a letra sem interferir numa nota sequer. Mas quando a música é minha, vou mudando. Muitas vezes, a música já vem anunciando as palavras. Pelo som, pela musicalidade, aparecem palavras que vão puxar o resto da letra e me obrigam a mudar a música. Quando sou eu que faço, a música é sempre maleável.
Chediak: Já aconteceu de "baixar o santo", ou seja, a música ficar meio pronta imediatamente?
Chico: Quando esse "santo" baixa, vem com uma idéia qualquer, um estalo. Depois, vem o trabalho e muitas vezes o trabalho vai até depois da gravação. Um disco meu já estava sendo prensado quando descobri que precisava substituir uma palavra em O futebol. A palavra que entrou foi "anular", mas não me lembro da que saiu. O fato é que tiveram de parar a prensagem e alterar a capa por causa de uma única palavra. Aquela troca era uma coisa muito importante, muito preciosa pra mim. No disco As cidades, aconteceu uma história diferente. Tinha a idéia da letra, mas a música não saía. Me lembrei então de uma música que Dominguinhos havia me mandado em 1983. Saí atrás da fita e ela estava guardada na gaveta. Acabei compondo Xote de navegação. Quer dizer: levamos 15 anos para compor a música. Só Dorival Caymmi seria capaz de levar tanto tempo compondo uma música.
Chediak: Você já compôs dormindo? Não sou compositor, mas me lembro que um dia acordei com uma música que havia criado enquanto dormia.
Chico: Aconteceu, mas nada que prestasse. Há pouco tempo mesmo, contei pro Sérgio Ricardo que havia sonhado com ele. O sonho era o seguinte: eu estava num carro, ligava o rádio e ouvia o Sérgio Ricardo cantando uma música. Acordei do sonho com a música inteira na memória, mas fui esquecendo aos poucos. De manhã, não me lembrava de mais nada. Ficou apenas um verso que dizia assim: "Tem livro muito bom, tem livro muito pau." Com o verso, ficou também uma sugestão de título: Samba da biblioteca.
Chediak: De certa maneira, seria uma parceria com Sérgio Ricardo.
Chico: Quando Ruy Guerra e eu fazíamos as músicas da peça Calabar, saiu uma típica marchinha de carnaval, Boi voador não pode. Por isso, convidamos um cantor especialista em músicas carnavalescas para gravar. Mas ele pediu parceria. "Como assim?", perguntei. Hoje não é mais assim, mas o que ele disse ainda fazia sentido naquele tempo. O compositor fazia a música carnavalesca, mas era o cantor que saía em campo para trabalhar na divulgação, aparecendo nas emissoras de rádios, nos bailes, aonde pudesse ir para divulgar a música. No final das contas, quem ganhava dinheiro era o compositor, que faturava os direitos autorais. Mas não podíamos dar parceria. Era uma música de uma peça de teatro e todas as músicas eram assinadas por mim e pelo Ruy Guerra.
Chediak: Escrever um livro e compor, o que é mais difícil?
Chico: Com toda a certeza, fazer música com 20 anos de idade é mais fácil. Agora, um livro é como se fosse uma canção enorme, longa, que toma cada dia, durante um ano ou um pouco mais. Mas quando estou compondo, fico tomado pela música.
Un profundo observador de la realidad
BRASILIA.- Es sobradamente sabido (y él mismo lo ha dicho cada vez que le fue posible) que Chico Buarque prefiere el lenguaje musical que el de las entrevistas. Pero cualquier conversación mano a mano con el creador de "Teresinha", como la que tuvo La Nación en Brasilia, siempre arroja frases de gran riqueza y testimonios de un profundo observador de la realidad. He aquí algunas de las frases que el artista dejó en el diálogo: "En América latina estamos unidos por lo que tenemos de peor, y separados por lo que tenemos de mejor. Incluso en el fútbol. En las artes creo que Brasil aún está aislado. Tenemos poco contacto con la Argentina y el resto de América."
"Toda mi generación (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo) se formó con la bossa nova. Es probable que muchos de nosotros, que nos sentíamos impulsados a hacer otras cosas (letras, cine), nos volvimos accidentalmente hacia la música. Teníamos 14, 15 años, estábamos allí, vino todo ese movimiento musical revolucionario, irresistible, con João Gilberto, Jobim, Vinicius, y no podíamos hacer otra cosa que entrar en esa explosión musical."
"La mayoría de las canciones testimoniales tienen vigencia. Tanto, que las canto todas las veces que puedo en el escenario. Lo que tal vez no tenga vigencia son cuatro o cinco temas determinados, de los tiempos de la represión. Pero son muy pocos."
"En Brasil, mucha gente me ve como un ciudadano muy comprometido hacia las cuestiones políticas. Es cierto que sigo haciendo canciones que hablan de los problemas sociales de mi país, pero no quiero que me etiqueten como un cantante político. Aun las canciones más citadas como ejemplo de temas comprometidos tienen poesía y música muy alegres."
"En cuestiones literarias soy, sobre todo, un autor de ficciones. Nunca se me dio por escribir ensayos. No creo que llegue a escribir algo parecido a "Verdad tropical", de Caetano Veloso."
"Nuevos talentos"
"Todo el tiempo surge musicalmente algo nuevo. Tal vez no lo escuchamos diariamente por la radio o la televisión, pero siempre aparecen nuevos talentos. En mi país hay nombres muy valiosos como Arnaldo Antunes o Carlinhos Brown, con un talento que supera las posibilidades de difusión."
"En Estados Unidos existen muchas dificultades para localizar e identificar plenamente lo que es la música brasileña. Tal vez se quedaron estancados en los años de la bossa nova, un movimiento que allí prendió muy fuer te."
"Mientras estoy cantando o haciendo giras no me ocupo de ninguna otra cosa. El año próximo tal vez piense en un nuevo libro o nuevas canciones, pero no quiero estar atado al compromiso de hacer un disco o escribir una novela por año. La realidad tiene impulsos que se convierten en canciones, pero esto me ocurre menos que antes. Cuando uno tiene 20 años cualquier cosa es un motivo para escribir una canción y estar todo el tiempo con la guitarra. Con el tiempo uno se vuelve más selectivo, más crítico."
"Que alguien me haya designado como el músico del siglo en Brasil es un despropósito, toda una exageración."
Entrevista a Chico Buarque de Holanda
"Me gustaría que dijeran de mí: fue buen alumno de Tom Jobim" En Brasilia, en una entrevista exclusiva con Página/12, el carioca habló de su relación con Argentina (de Borges y Maradona, por ejemplo), de los ideales del Mayo francés, de la bohemia, del presidente Cardoso y de por qué se cree más literato que músico.
Por Fernando D'Addario
La ciudad donde Chico Buarque está cantando "Construçao" y un millar de fieles salda sus cuentas con el tiempo aplaudiéndolo a rabiar parece ahora la mueca de un viejo sueño colectivo. Brasilia fue construida a principios de la década del 60, condicionada por el slogan "La ciudad del futuro". El futuro llegó. Las fabulosas autopistas que la recorren con el frenesí de este fin de siglo se transforman en venas abiertas cuando llegan a la periferia, y miles de nordestinos marginales ofrecen su versión del progreso. A los 54 años, Chico Buarque encuentra en Brasilia una paradoja de su propia historia. El también soñó con esa "ciudad del futuro", como una suerte de proyección arquitectónica de aquel Brasil que empezaba a seducir al porvenir a través de la bossa nova y el cinema novo. Por eso, el músico que editó recientemente el CD As Cidades, no puede evitar una reflexión escéptica cuando contempla ese espejismo de perfección formal que es Brasilia. "Yo empecé a estudiar arquitectura por el fenómeno Brasilia, que era un símbolo de modernidad, de descentralización", cuenta en la entrevista que concede a Página/12 en una tarde calurosa y seca. "Y hoy esta ciudad es reflejo de lo que ocurre en el mundo. Es todo un síntoma el hecho de que cuando nosotros éramos jóvenes las ciudades con mayor población eran Tokio, Nueva York, Londres, que eran modelos a imitar. Hoy las ciudades más populosas son Bombay, México DF, San Pablo, que sólo atraen pobreza, no bienestar".Chico, el intelectual, el músico de las canciones perfectas, el hombre comprometido, sólo se entusiasma realmente cuando le hablan de fútbol. Volvió a las giras después de un lustro, Brasil cumple 500 años de existencia, los próximos 11 y 12 de octubre actuará en Buenos Aires (este último dato sólo les interesa a los argentinos, que no tuvieron muchas posibilidades de disfrutarlo), pero el orgullo lo delata cuando cuenta que su equipo de fútbol, el que lo acompaña a todos los conciertos y lo tiene como indiscutible número 9 titular, está invicto en 23 partidos. "Y eso que tenemos los árbitros en contra", advierte con una sonrisa irónica que deja entrever exactamente lo contrario. Y dice, con el único síntoma de jactancia que evidenciará a lo largo de la entrevista, que su estilo "se parece más al de Pelé que al de Ronaldo". Y que sus éxitos en la cancha lo ayudan a disimular su amargura por las desventuras del Fluminense, el equipo del que es hincha, y que en contradicción con un pasado de esplendor, compite en el torneo de la tercera división brasileña. "Hoy me vinieron a felicitar porque le ganamos 1 a 0 a Serra, otro equipo de tercera, que es un desastre. Y me enojé: ¡cómo me van a felicitar por un 1 a 0 a Serra!", se queja. Enseguida asegura que él, en realidad, no es fanático de nada, y luego se retracta, y dice que, en realidad, es "fan de Maradona, el último grande de verdad. Ahora están Ronaldo, Ronaldinho, Rivaldo, pero ninguno como Maradona. Y no lo admiro sólo como jugador, sino como persona. Toda la vida fue un rebelde, y su rebeldía es más interesante por su sufrimiento personal". De Maradona a Buenos Aires sólo hay un paso en el improvisado temario del reportaje. "Creo que conozco más Buenos Aires a través de los cuentos de Borges que por haberla caminado. Pero espero que no piensen que mi relación con esa ciudad le debe todo a Ficciones. También tengo muchos amigos reales allí". La arquitectura y el fútbol asoman, entonces, como elementos constitutivos de del fútbol y la planificación metódica de la arquitectura se proyectaron en su obra artística abonaría el terreno de las arbitrariedades, pero él construye sobre la marcha su opinión:
"Nunca había pensado esa mezcla. Con respecto de la arquitectura sí, y no es casualidad. En la historia de la música brasileña hay muchos ex estudiantes de arquitectura. Jobim, por ejemplo. La música tiene unacuestión casi matemática, que la gente no ve ni escucha, pero está presente todo el tiempo en el que compone. Pero por otro lado, no creo que lo intuitivo que pueda tener jugando al fútbol lo haya trasladado al arte. Quizás si hiciera jazz podría ser, por el tema de la improvisación permanente, pero no en mi música. Lo que llaman inspiración no me ha visitado casi nunca. Siempre necesité de la planificación para "construir" mis canciones."
Página/12 - ¿Usted fue más vanguardista en sus novelas y en sus obras de teatro que en sus discos?
Chico - Es verdad, creo que fui y soy más rupturista en la literatura que en la música. La explicación es simple: tengo más conocimiento de escritores y de libros que de música. En lo musical siempre necesité de la ayuda de maestros para ir mejorando. Y los tuve cerca. Crecí bajo la influencia de la bossa nova y durante muchos años sólo traté de escribir letras como Vinicius, cantar como Joao y componer como Jobim. De tanto imitar, aprendí algo. Si alguna vez, dentro de algunos años, a alguien se le ocurriera catalogarme, a mí me gustaría que dijeran de mí: 'Fue un buen alumno de Tom Jobim'. Por eso, mi falta de conocimientos musicales profundos me impiden ser un vanguardista al estilo Caetano o Gismonti. Lo mío es más "tradicional".
P12 - ¿Y en la literatura?
Chico - Allí, como mis referentes son más lejanos en tiempo y lugar, pude hacerme un camino más personal. De todos modos me costó mucho lograrlo. Creo que recién con mi novela Estorvo conseguí un lenguaje próprio
P12 - Usted estuvo cinco años sin hacer shows. ¿Se siente más cómodo con la literatura que con la música?
Chico - No es tan así. Pero sí me siento más cómodo escribiendo -ya sea música o literatura-, que actuando.
P12 - ¿Por qué volvió a actuar, entonces?
Chico - Porque después de tanto tiempo, hay un público que apenas me conoce. Me vienen a ver jóvenes que no vivieron mi anterior etapa y siento que tienen más libertad para escucharme. No me piden que cante "A pesar de voce".
P12 - ¿No le gusta cantar "A pesar de Voce"?
Chico - No, porque es una canción con una mirada muy de los 70.
P12 - "Construcao" también lo es y sin embargo la canta.
Chico - Pero hay una diferencia: una es política y está escrita para el contexto de una época muy determinada. La otra, "Construcao", es una canción con una temática social y, en consecuencia, atemporal. Para cantar un tema necesito no sentirlo viejo. Soy más formalista de lo que la gente piensa.-El público suele tener una reacción curiosa. Quizás no le moleste que hayan cambiado Cardoso, o Lula, pero pretende que su artista favorito diga y haga siempre lo mismo, "lo de antes".
P12 - Esta también es una actitud muy "años 70".
Chico - El hecho de haber participado de una época muy convulsionada y de haber estado muy expuesto nos condiciona para toda la vida. A los que empezaron hace poco no se les exige "coherencia". Lo que en realidad quiere la gente es volver a vivir esa época, y nosotros quedamos en el medio, entre ellos y la realidad.
P12 - En la canción "Assentamento", de su último CD, plantea la situación del movimiento de los "Sin tierra". Ahí está muy clara su postura sobre este fin de milenio.
Chico - Es que yo no me desligo de lo que pasa. Ese tema formó parte del libro Terra, del fotógrafo Sebastiao Salgado, y decidí incluirlo en el disco. El problema que sufren los "Sin tierra" me sensibiliza mucho. Está más que claro que la geografía de Brasil alcanza para darle tierras a todo el mundo, y sin embargo no la tienen. Lo más curioso es que en mi país todos, menos los latifundistas, claro, están de acuerdo con que se debe hacer una reforma agraria. Todos están de acuerdo con que existe una injusta concentración de riqueza en favor de unos pocos. Pero nadie tiene la voluntad política para cambiar eso.
P12 - ¿Cardoso lo decepcionó por haber sido un intelectual progresista que luego se volcó a la derecha?
Chico - En realidad, no me sorprendió. El fue en su momento un sociólogo de izquierda, pero no bien estuvo cerca del poder se notó que ya no era el mismo. Era otro Cardoso. Y resultó lógico que con las alianzas que estaba trazando su gobierno iba a ser lo que es. También hay que ser concientes de algunas cosas: Cardoso no fue elegido por haber sido un sociólogo de izquierda, sino por haber tejido una inteligente alianza conservadora. Además, sería tonto pensar que Cardoso es un caso aislado, de un hombre que en los 60 estuvo en la lucha clandestina y luego, en el poder, hizo todo lo contrario. Hay un grupo de gente que cambió. Si a un hombre cualquiera lo hubiesen tenido durmiendo estos últimos 30 años y le mostraran ahora la foto actual de Cardoso y de su gabinete, diría: ¡Estamos en Cuba! Pero está claro que no estamos en Cuba.
P12 - ¿Es escéptico con respecto del futuro?
Chico - No tengo esperanzas de cambio. Y tampoco veo otro camino posible. Lo que me aburre es que se siga este único camino posible con tanto fervor...
P12 - Da la sensación de que hoy, a diferencia de lo que ocurrió siempre en la historia, es la derecha la que avanza y avanza, mientras que la izquierda sólo puede defender lo poco que le queda...
Chico - Es que se invirtieron los roles de la retórica. Muchas de las consignas de la izquierda fueron tomadas por la derecha. Son ellos los que ahora dicen: "La concentración de la riqueza es terrible, hay que hacer algo". ¡Pero es la derecha la que está en el poder! Me resulta particularmente patético que muchos viejos izquierdistas, ahora en el gobierno, tienen tanta necesidad de "limpiarse" de su pasado, están tan obsesionados por afirmarse en su nuevo rol, que los derechistas históricos parecen más izquierdistas que ellos.
P12 - ¿Usted cree que ante este estado de las cosas el arte puede ser un vehículo de resistencia?
Chico - Sí, porque todo lo que sea imaginación es una forma de resistencia. Esto no lo digo yo. En el Mayo Francés decían: "la imaginación al poder". Está claro que la imaginación todavía no llegó al poder.
P12 - Brasil siempre fue "proteccionista" en materia musical. No es fácil entrar en el mercado brasileño. Sin embargo, los mayores movimientos musicales del país, la bossa nova y el tropicalismo, fueron producto de mixturas, ya fuera con el jazz o con el rock. ¿Cómo se maneja ahora el tema de la penetración cultural y la identidad?
Chico - Es cierto que el jazz y el rock fueron influencia en su momento, pero después aparecieron otros ritmos. Están el rap, que es más crudo porque refleja la vida de gente con una realidad más cruda, el reggae, y el intercambio entre las músicas de las diferentes regiones brasileñas. Hoy se ve una propuesta interesante en artistas de Pernambuco, en Recife. No me parece mal que exista una asimilación constante de música extranjera si se conserva la identidad. Lo interesante es ser regional y al mismo tiempo internacional. Como pasó con el samba-reggae, por ejemplo.
P12 - Pero hacia afuera da la sensación de que no hubo una camada de músicos que pudiera suplantar, con el mismo nivel artístico, a su generación, la de Gil, Caetano, Gal...
Chico - No sé qué es lo que llegará a la Argentina, pero hubo una buena generación de recambio. Carlinhos Brown, Chico César, Marisa Monte, y muchos nombres más. Lo que pasa es que mi generación se manifestó en un momento socio-cultural muy especial y es difícil que se borren nuestros nombres de la memoria de la gente. Pero quizás tengamos en el futuro nuevos movimientos, con nuevas mezclas de estilos, nuevas influencias. Negarse a la asimilación de culturas extranjeras es tan peligroso como conservador. Y si no, miren lo que pasó con Piazzolla. Brasil tuvo capacidad para asimilar todo. Con la buena música extranjera que llegabase hizo y se hace buena música brasileña. Con la mala música extranjera, que también llega en cantidad, se hace mala música brasileña. Esto fue así toda la vida.
P12 - ¿Ve en los músicos jóvenes una actitud diferente de la que tenían ustedes?
Chico - Los noto más aplicados, con un bagaje teórico más desarrollado. Por ejemplo, hay un mercado muy fuerte de "song-books", y los chicos muestran mucho interés por aprender musicalmente.
P12 - ¿Y la bohemia?
Chico - No, ahí no. Ya no hay bohemia. No existe eso de encontrarse a tocar, a cantar, a hablar de la vida, a crear colectivamente. Hoy se está construyendo una sociedad cada vez más aislada y entonces los músicos también viven más aislados. Quizás por eso se dediquen a estudiar más que lo que hacíamos nosotros. En general, la gente está encerrada en sus casas, y sino, se encierra en los shoppings. La mía fue la generación de las jam-sessions, ésta es la de los song-books...
P12 - Antes se refería a Maradona y destacaba su rebeldía. Usted también es exitoso, es famoso, tiene dinero. ¿Dónde ubica la rebeldía en su vida?
Chico - Creo que durante toda mi carrera, mi inconformismo habló a través de los discos y de los libros que hice. Y después de tantos años, sigo siendo rebelde. Lo que ocurre es que ahora soy mansamente rebelde. O delicadamente rebelde, si te gusta más
Aos 55 anos, o autor de grandes clássicos da MPB diz que está mais interessado no prazer do que no sucesso
"Hoje, cobra-se cachê para cantar não importa para quem. Amanhã podem perguntar: 'Quanto você cobrou para cantar no comício do Lula, na Marcha dos 100 Mil?'"
Marcos Fernandes
Às vezes, ele estica a perna e já não consegue alcançar a bola. Mas parece ser esse o único efeito nocivo do tempo sobre o artista. Aos 55 anos, Chico Buarque compõe, grava e faz show quando quer. Cada vez menos, cada vez melhor. Com 300 mil cópias vendidas do último CD, As Cidades, lançado depois de um silêncio de cinco anos, não está muito interessado em fazer sucesso - principalmente se isso incluir aparições nos programas do Faustão e do Gugu. "Caetano (Veloso) fez a opção dele. Eu quero fazer o que me dá vontade, o que eu acho bom", afirma, sem criticar o caminho escolhido pelo intérprete de Sozinho. Ausente da Marcha dos 100 Mil, o autor de clássicos da resistência musical como Apesar de Você e Cálice (cujas metáforas, admite, ele próprio já não compreende) defende mudanças na política econômica e a investigação de alguns negócios do governo, como a privatização das teles. E critica o comércio, que, no lugar da ideologia, hoje envolve a participação dos artistas em campanhas políticas. "Cobra-se cachê para cantar não importa para quem."
Correio Braziliense - Há um intervalo de cinco anos entre Paratodos e As Cidades, seus dois últimos discos. Tempo e Artista, uma das faixas de Paratodos, diz: "Imagino o artista num anfiteatro/ onde o tempo é a grande estrela/ Vejo o tempo obrar a sua arte/ tendo o mesmo artista como tela." Hoje você grava menos discos, faz menos shows, compõe menos do que antes. O que o tempo fez com o artista Chico Buarque?
Chico Buarque - Sou hoje um músico mais completo, um compositor mais exigente que há 30 anos, menos prolixo e mais apurado. Em compensação, com o tempo você perde em fluência, em espontaneidade. Enfim, são vantagens e desvantagens que o tempo traz.
Correio - Mais vantagens ou desvantagens?
Chico - O tempo acrescenta com uma mão e tira com a outra. Mas não tenho queixas.
Correio - Nem do fato de já ter completado 55 anos?
Chico - Não. Quando eu tinha 20 anos, comecei a desconfiar que ia envelhecer (Risos). Mas o tempo vai passando aos poucos, não é assim de uma hora para a outra. Você nem se dá conta. É claro que se aborrece quando estica a perna e não alcança a bola...
Correio - Isso quer dizer que o tempo faz mal ao jogador de futebol Chico Buarque. E ao artista? Por que hoje você compõe tão pouco?
Chico - Por ter me tornado muito mais exigente do que era no início da carreira. Às vezes, quando ouço uma música que fiz aos 20 anos, penso: ''Eu podia ter feito muito melhor.'' No começo, tinha contratos com gravadoras que me obrigavam a lançar um disco por ano. Hoje, só assino contrato por um disco, que posso renovar ou não. E isso me faz muito bem: gravar quando tiver vontade, quando me sentir bem.
Correio - E para compor, você também precisa se sentir bem, ou é a inspiração que manda?
Chico - Pode acontecer de, num relance, eu ter uma idéia, uma inspiração. Mas, cada vez mais, sou eu quem vai buscar a música, e não o contrário. Como tenho muitas parcerias, não costumo partir do nada - parto das melodias dos parceiros. Ou de imagens, como no caso de A Ostra e o Vento, tema do filme do Walter Lima Jr., e de Assentamento, feita a partir do livro (Terra) do fotógrafo Sebastião Salgado. Pode até aparecer uma idéia de repente, mas isso acontece cada vez menos.
Correio - Por quê?
Chico - Porque, com o tempo, você fica cada vez menos disponível para esse tipo de centelha, perde o gesto espontâneo de sentar, tocar violão... Fica mais exigente: depois dos 50, você joga mais coisa fora do que aproveita. Você tem mais conhecimento do que tinha aos 20 anos. E como já conhece bem os caminhos, fica mais difícil encontrar um caminho pelo acaso.
Correio - Conhecendo os caminhos, fica fácil compor?
Chico - Não é bem assim. Eu sei como buscar, mas não necessariamente como encontrar. Às vezes, acontece de buscar, ralar, e não encontrar. Mas sei que mais cedo ou mais tarde vou conseguir. Na verdade, fácil, nenhuma música é. Mas para quem passa um ano escrevendo um romance, ficar uma semana tentando compor uma música não é tanto tempo assim.
Correio - Uma parte importante da sua obra foi composta no feminino. Mas no disco novo, apenas uma, A Ostra e o Vento, se enquadra nessa categoria. E no anterior, não há uma única sequer. O que houve com sua alma feminina?
Chico - Acho que ela anda meio adormecida. (Risos) Na verdade, quase todas as minhas músicas femininas foram feitas para cinema ou teatro, para personagens femininas, que precisavam ser cantadas no feminino. E eu tenho escrito menos para cinema e teatro do que antigamente, até porque, principalmente no caso do cinema, se produz menos no Brasil.
Correio - Mas você podia continuar compondo no feminino independente do teatro e do cinema, como no caso de Com Açúcar, Com Afeto e Olhos nos Olhos, não?
Chico - É. Com Açúcar, Com Afeto foi a primeira. A Nara (Leão) pediu que eu fizesse uma música no feminino para ela, e deu até o tema: ela queria que falasse dessas mulheres que sofrem em casa enquanto os maridos vão para a rua. Olhos nos Olhos eu fiz para a Bethânia cantar. Temos cantoras maravilhosas no Brasil, e acho bom fazer canções para elas.
Correio - Então...?
Chico - Tudo bem. A qualquer hora minha alma feminina sai do armário de novo... (Risos)
Correio - E as músicas de protesto, quando saem do armário de novo?
Chico - De protesto mesmo, fiz poucas, talvez uma meia-dúzia. Sobre a realidade social, continuo fazendo, como Assentamento (sobre os sem-terra). A verdade é que a linguagem muda com o tempo. Se você pegar as canções do tempo da ditadura, vai ver que as tintas são mais fortes, há menos nuances, até os arranjos, o jeito de cantar eram diferentes.
Correio - E tinha que ter muita metáfora para driblar a censura, não?
Chico - Algumas tão obscuras que se tornaram incompreensíveis. Às vezes, eu mesmo não sei o que eu quis dizer com algumas metáforas de músicas como Cálice (parceria com Gilberto Gil), por exemplo.
Correio - Uma vez entrevistamos uma ex-censora que se orgulha de ter contribuído para a liberação de Mulheres de Atenas. Ela disse que bateu o pé, dizendo que a música falava apenas da submissão das mulheres, enquanto alguns colegas censores viam ali uma metáfora do Brasil oprimido pela ditadura militar. Quem tinha razão?
Chico - Mulheres de Atenas foi feita para uma peça do Augusto Boal, que falava de repressão sexual. Não era nenhuma alusão ao momento do país. Acontece que naquela época havia uma forçação de barra muito grande, tanto a favor quanto contra. Ambos os lados liam politicamente o que não era.
Correio - Por exemplo?
Chico - Já disseram que o verso ''de muito gorda a porca já não anda'', de Cálice, era uma crítica ao Delfim Netto, que era ministro. E gordo. (Risos)
Correio - E o que quer dizer ''de muito gorda a porca já não anda''?
Chico - Não faço a mínima idéia. (Risos) Esse verso é do Gil.
Correio - Há quem diga que os versos do samba Injuriado (''Dinheiro não lhe emprestei/ Favores nunca lhe fiz/ Não alimentei o seu gênio ruim/ Você nada está me devendo/ Por isso meu bem não entendo/ Por que anda agora falando de mim'') foram dedicados ao presidente Fernando Henrique, que o chamou de ''repetitivo'', em resposta a uma crítica ao governo dele...
Chico - Faço menos músicas dedicadas às pessoas do que as pessoas pensam. Falaram que Apesar de Você era endereçada ao Médici, quando dizia respeito à situação do país como um todo.
Correio - E aquele famoso verso ''você não gosta de mim, mas sua filha gosta'': há a versão de que você fez em homenagem à filha do Geisel, que comprava discos de Chico Buarque enquanto o pai mandava censurar os discos de Chico Buarque...
Chico - O problema é que quando a versão é mais interessante do que o fato, não adianta você querer desmentir. Aquela música falava de uma situação que eu vivi muito: os caras do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) iam me prender e, enquanto me levavam para depor, pediam para eu autografar discos para as filhas, que gostavam de mim.
Correio - Então Injuriado não foi feita para o Fernando Henrique?
Chico - Claro que não.
Correio - Mas o que você achou de Fernando Henrique ter te chamado de ''repetitivo''?
Chico - Não li essa declaração. Mas às vezes eu sou repetitivo mesmo...
Correio - Como assim?
Chico - No sentido de que as pessoas me fazem as mesmas perguntas e este país muda tão pouco que eu sou obrigado a me repetir.
Correio - Por que você e outros artistas não participaram da Marcha dos 100 Mil?
Chico - Os artistas sempre se manifestaram nos momentos cruciais da história. Mas imagino que não era o caso de estarmos naquele palanque. Os artistas cantam em comício para atrair gente, o que no caso da Marcha não era necessário, porque as pessoas já estavam indo a pé, de ônibus... Foi até bom, porque deixou uma coisa bem clara: quem estava ali estava para protestar contra o governo, e não para ouvir música.
Correio - Então artista não deve participar de comício?
Chico - O problema é que o que antes era adesão voluntária, ideológica, hoje está se tornando um negócio. E esse comércio neutraliza a idéia que existiu nas campanhas pela Anistia, contra a Censura, pelas Diretas, pelo Lula em 1989... Hoje, cobra-se cachê para cantar não importa para quem. Amanhã podem perguntar: ''Quanto você cobrou para cantar no comício do Lula, na Marcha dos 100 Mil?''
Correio - Já tentaram te contratar?
Chico - Nunca! E se tentassem, não existiria a menor possibilidade de eu aceitar. O que já aconteceu foi usarem indevidamente minha obra. Há uns cinco anos, um candidato do Acre usou Vai Passar como jingle. E está sendo processado por isso.
Correio - Só a direita usa indevidamente suas músicas, ou a esquerda também?
Chico - A esquerda também. Mas nunca processei ninguém da esquerda.
Correio - Se o cidadão Chico Buarque tivesse participado da Marcha dos 100 Mil, contra o quê ele estaria protestando? Estaria tão injuriado a ponto de pedir o impeachment?
Chico - O impeachment eu acho um exagero. Mas acho legítimo que os cidadãos protestem contra a política econômica, contra a não transparência de alguns negócios, tipo a privatização das teles, contra tudo que tem que ser esclarecido ou modificado neste país.
Correio - As Cidades vendeu 300 mil cópias, e, embora muito elogiado pela crítica, está longe de ser uma espécie de ''Grandes Sucessos de Chico Buarque''...
Chico - Hoje as pessoas gostam muito de compilações. E o mercado também. Uma amiga minha ouviu uma vendedora de uma loja de discos contando que uma freguesa pegou o meu CD, leu o repertório e comentou: ''Ih, só tem música nova''. E não comprou. O engraçado é eu que sempre imaginei que um disco novo devesse ter música nova... (Risos)
Correio - O que você anda ouvindo?
Chico - Não tenho tido muito tempo para ouvir música, mas tem muita gente boa na nova MPB. Eu acho até chato citar alguns e esquecer outros. Mas gosto de Chico César, Lenine (um craque), Zeca Baleiro, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes (outro craque), o pessoal de Pernambuco, do movimento do Chico Science...
Correio - Caetano Veloso diz que anda ouvindo Tiazinha, e adorando. Você gosta da Tiazinha?
Chico - Não ouvi o disco da Tiazinha. Já vi algumas fotos dela, claro, outro dia nos encontramos no aeroporto...
Correio - Bonita?
Chico - ...muito simpática, veio conversar comigo...
Correio - Ela te pediu autógrafo?
Chico - Não, não. Mas o disco dela não sei se é bom, porque não ouvi.
Correio - Os dois maiores mitos da MPB parecem estar trilhando caminhos opostos. Caetano quer ser cada vez mais popular, vai ao Faustão, canta no Gugu, enquanto Chico praticamente se recolhe, faz poucos shows, fica anos sem gravar...
Chico - O Caetano fez a opção dele. Eu já fiz mais shows, já fui mais à televisão, mas hoje não tenho vontade. Em novembro, encerro a temporada de shows para fazer o trabalho de artista criador: vou compor música, escrever romance... Quero fazer o que me dá vontade, o que eu acho bom. É o que me interessa.
Correio -Em outras palavras: Chico Buarque quer ter prazer.
Chico - Mas com certeza!
Renovação com rigor
Chico Buarque ficou 5 anos sem gravar um disco com músicas novas e 11 anos sem se apresentar em Goiânia (sua última apresentação aqui foi no Ginásio Rio Vermelho em 1988), mas agora todo esse jejum está terminado. Chico volta à cidade com o espetáculo As Cidades, baseado em um CD totalmente inédito, lançado no ano passado. Com direção musical de Luiz Cláudio Ramos, cenários de Gringo Cardia e iluminação de Ney Matogrosso e Manoel Quinderé, As Cidades tem sido apontado como um dos melhores shows de MPB do ano e até o próprio cantor, tradicionalmente avesso a apresentações ao vivo, está gostando da turnê. "Eu realmente estou gostando mais do palco do que antes", confirmou Chico Buarque em entrevista exclusiva a O POPULAR. Dividido em três blocos, o show começa com Paratodos, música que fechava sua última turnê, realizada em 1994. Depois, Chico Buarque vai passando a limpo seus 34 anos de carreira, relembrando canções como Construção, Cotidiano, As Vitrines e Terezinha, e apresentando as novas, como Iracema Voou, Assentamento, Carioca e Chão de Esmeraldas. "Isso (as músicas novas), na verdade, é o que me estimula a fazer show", diz o cantor. Na entrevista a seguir, Chico Buarque fala mais sobre essa nova turnê, o novo disco, envelhecimento, música brasileira, futebol e política.
O Popular - Você ficou cinco anos sem gravar um disco com canções inéditas (o último foi Paratodos, de 1993). Como foi compor e gravar novamente depois dessa longa pausa?
Chico Buarque - É, nesse período eu fiz o show Paratodos, que durou praticamente um ano, e abandonei a música para escrever um romance (Benjamim), que me tomou mais um ano e pouquinho. Então, na verdade, fiquei longe mesmo da música durante três anos. As canções desse disco começaram a ser compostas pelas encomendas do Sebastião Salgado, para o livro Terra, e do filme A Ostra e o Vento, do Walter Lima. Então, fui retomando a música exatamente aí.
OP - A música Iracema Voou também seria de um filme, que é For All...
CB - Exatamente. Eu tomei o nome da personagem do For All e a idéia de ser uma moça que queria ir para os Estados Unidos. Só que a música não ficou pronta a tempo de entrar na trilha do filme. Mas eu gostava do anagrama de Iracema e América e fiz a música assim mesmo. Quer dizer, ela é baseada no filme, mas não está no filme.
OP - Você acha mais difícil compor atualmente?
CB - Olha, cada composição que faço hoje me toma muito mais tempo do que no início da minha carreira. Menos coisas você tem para dizer, mais caminhos você já percorreu... quanto mais você conhece a música, mais arredia ela vai ficando. Você não quer repetir, não quer fazer o que já foi feito... o know-how você tem, a técnica você tem, mas os caminhos vão se estreitando.
OP - Você tem sido mais crítico e rigoroso com seu trabalho, atualmente?
CB - Exatamente. Com o tempo você vai ficando mais rigoroso. É natural.
OP - Isso, de alguma forma, o preocupa?
CB - Não, não me queixo dessas dificuldades. Ela é saudável. Já pensou se ainda tivesse a mesma facilidade para compor de quando era jovem? Alguma coisa estaria errada. E, provavelmente, a música estaria errada (risos).
OP - E como é compor depois de escrever dois romances? Até que ponto a literatura influenciou na sua música e vice-versa?
CB - De certa forma, uma coisa realmente influencia a outra. São dois ofícios diferentes, dois processos de criação diferentes, mas o rigor que a literatura obriga, de certa forma passa para a música. Não só na parte literária da composição, mas também na parte musical, que me requer mais apuro do que antes. O fato de ter trabalhado com literatura me tornou um músico bem mais rigoroso. Isso tem acontecido até porque também trabalhei com grandes parceiros como Tom Jobim e Edu Lobo. Eu aprendi muito de música com eles. Então, eu era um músico intuitivo nos anos 60 e hoje me tornei um músico mais preparado.
OP - Entre os seus parceiros está Guinga, que é considerado um dos maiores compositores da MPB. Em As Cidades você gravou uma música dele, Você, Você, e, no último disco dele, Suíte Leopoldina, você canta em uma faixa...
CB - É, essa música dele que eu gravei estava comigo há uns 8 anos. Aliás, eu tenho uma gaveta cheia de parcerias com Guinga e inconclusas (risos). Ele me mandou muitas músicas novas, mas a idéia de letra que estava vindo não casava com nenhuma delas. Então, lembrei dessa, que era mais antiga e já tinha uns 8 anos (risos). Só que a do Dominguinhos (Xote da Navegação) é mais velha ainda. Ela deve ter uns 15 anos (risos).
OP - Ele nem lembrava que você estava com essa música...
CB - É verdade (risos). Quando eu fiz a letra, fiquei com receio dele ter feito outra coisa com a música. Então, liguei para ele e cantarolei e ele me disse que se eu tivesse gravado e excluído o nome dele, ele nem ia saber que era um dos autores (risos). Nem ia reclamar os direitos autorais (risos).
OP - Você sempre foi um cantor que nunca gostou muito de shows. Isso mudou? Você tem gostado do palco?
CB - Tenho. Eu gosto menos de hotel e avião do que dos shows (risos). Do palco eu realmente estou gostando mais do que gostava antes. Como falei, estou mais aprimorado como músico e isso transparece no palco. Estou tocando violão o tempo todo e, de certa forma, isso me integra à banda. Isso me facilita um pouquinho. Tem sido muito agradável. É um show que me exige muito. Eu não tiro de letra, não. Mas quando eu paro de fazê-lo, às vezes por uma semana, me dá saudades.
'Meu trabalho atual me estimula a fazer show'
Chico Buarque considera agradável lembrar antigos sucessos, mas sente prazer mesmo é em mostrar a um novo público uma produção também nova. Ele evita a facilidade do "já digerido" e diz que às vezes nem reconhece canções que fez.
OP - Nos períodos de pausa, você aproveita para compor alguma coisa?
CB - Não. É um show que realmente me consome bastante. Então, quando tenho um tempo de folga eu não me envolvo com música. Estou esperando terminar essa temporada para aí sim me dedicar a alguma coisa nova. Um novo livro, novas canções... não sei.
OP - Então, você não sabe se vai continuar alternando um livro e um disco. Você não tem nada, nada em mente?
CB - Infelizmente não (risos).
OP - O que você tem ouvido atualmente?
CB - Olha, é como eu lhe disse. Quando tenho uma folga da turnê, eu realmente não me envolvo com música. Nem para compor nem para ouvir.
OP - Mas você vê que a música brasileira está sofrendo um certo empobrecimento. Os jovens hoje ouvem Só pra Contrariar e não Chico Buarque. Isso é perigoso para as próximas gerações?
CB - Olha, sempre existe uma geração que não se forma através do rádio e da televisão. Há público para esses autores em evidência, mas há também para outros tantos que não aparecem na mídia. Quando comecei a ouvir música havia sim uma variedade muito maior de opções. Você ligava o rádio e ouvia de tudo. Não era só esse negócio de tocar o sucesso. Isso foi bom para mim porque me acostumou a ouvir os sons mais distintos, a ter uma visão mais aberta. Agora, hoje existe essa massificação em rádio e TV, mas há mais facilidade de informação. Você pode ter acesso a músicas variadas por outros meios e até pela Internet. Eu acho que essa massificação de rádio e TV, na verdade, não fecha a cabeça da garotada.
OP - Você ganhou dois prêmios da MTV (melhor videoclipe de MPB e melhor fotografia de videoclipe), e a MTV é uma emissora praticamente assistida só por jovens. Isso tem refletido nos seus shows? Há muitos jovens na platéia?
CB - Tem. Ao mesmo tempo que existem aquelas pessoas que me acompanham há mais tempo, sempre tem uma presença grande de pessoas que estão me conhecendo agora. São pessoas que estão me conhecendo hoje, pelo meu trabalho de hoje. Isso, na verdade, é o que me estimula a fazer show. Claro que é agradável cantar as músicas que as pessoas já conhecem, mas isso corre o risco de virar uma coisa viciada. De sempre fazer a coisa fácil, de fazer o que já está digerido.
OP - O Almir Chediak está fazendo o seu songbook e você tem ajudado corrigindo as partituras. Como está sendo olhar as antigas canções com o rigor de hoje?
CB - É, tem um preço. Tem coisas que fiz e nem me lembrava. Às vezes ele me traz uma música para eu revisar e, na primeira vez que escuto, nem reconheço como minha. Isso é bem surpreendente. Às vezes a surpresa é melhor do que eu esperava (risos), mas às vezes eu vejo que a música poderia ter sido melhor, que eu poderia ter trabalhado mais nela. É engraçado porque, normalmente, eu não me detenho para ouvir meus discos, mas tem sido prazeroso.
OP - Você fez a música Assentamento para o livro do Sebastião Salgado sobre o Movimento dos Sem-Terra e, agora, o Brasil assistiu à absolvição dos policiais envolvidos no massacre em Eldorado dos Carajás...
CB - Isso foi vergonhoso. Não por causa da impressão que passa para fora, mas para nós mesmos. Parece ficar claro que no Brasil tudo é feito às escondidas. É vergonhoso saber que a violência policial é uma rotina com os sem-terra e saber que os interesses políticos falam mais alto que a justiça.
OP - E o governo FHC? Você, em algum momento, chegou a acreditar que Fernando Henrique Cardoso seria uma boa opção para o Brasil? Qual é a saída para o País?
CB - A saída é esperar mudar o governo. Não estou insatisfeito com o Fernando Henrique porque nunca acreditei nele. Nunca tive esperanças nele. Não votei nele e realmente nunca esperei alguma coisa de seu governo.
OP - Deixando a política de lado, vamos falar sobre futebol. Você pediu um campo para que pudesse jogar em Goiânia. Você não abre mão de uma pelada nem mesmo quando viaja?
CB - Não. Normalmente nos dias de show eu não jogo, mas no dia anterior eu sempre jogo.
OP - E como é ser tão viciado em futebol e torcer para o Fluminense?
CB - Isso eu já esqueci absolutamente (risos). Eu gosto é de jogar bola e só (risos).
OP - Para terminar, como está o lado avô? Você se incomodou ao perceber que estava envelhecendo?
CB - Não. Eu sempre soube que ia ficar velho (risos). Agora, é ótimo ser avô. Meu neto está com 3 anos e minha netinha com quase 1 ano. É uma felicidade muito grande. Eu realmente adoro ser avô.
Esta entrevista, foi concedida pelo cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, a Assuero Gomes, integrante do Grupo de Leigos católicos Igreja Nova, quando de sua visita a Dom Helder, no dia 16 de julho.
Igreja Nova - Chico, qual a lembrança mais interessante que você tem, em relação a Dom Helder Câmara?
Chico Buarque - Todo mundo sabia que não se podia falar em Dom Helder. Eu não era muito querido também não, mas podia fazer meus shows. Eu vim aqui fazer um show no Geraldão, o show estava indo e tinham me falado que Dom Helder estava lá assistindo. O show estava indo mais ou menos morno, uma música e outra, aí eu falei: "eu queria anunciar e agradecer a presença de Dom Helder Câmara. Eu nunca fui tão aplaudido na minha vida. Aquele ginásio veio abaixo. Foi uma coisa linda. Isso foi em setenta e pouquinhos... setenta e dois, setenta três.
Zezita - Sempre que você fez shows aqui, Dom Helder foi aos seus shows.
C.B. - Sempre. Das outras vezes eram shows mais tranqüilos. Desse, eu me lembro especialmente por causa disso. O nome dele estava inteiramente vetado, me disseram que ele estava lá, mas era segredo. E quando eu falei, o ginásio inteiro, todo mundo levantou, aplaudiu. Foi o meu maior sucesso. (risos)
I.N. - O que Dom Helder representa para você?
C.B. - Bom, para mim e para o Brasil inteiro , Dom Helder é um símbolo de luta pela justiça social. Se a gente se lembra dele no Rio de Janeiro, ainda no tempo da Favela do Pinto, nos anos sessenta, a atividade dele lá, deixou marcas até hoje. E mais adiante um símbolo de luta também, pela liberdade, pela democracia na época da ditadura, onde ele era uma das pessoas mais visadas, mais cerceadas, mais vigiadas e mais perseguidas. Eu conheço Dom Helder pessoalmente, desta época e tenho uma admiração profunda por ele. Eu e todos os brasileiros temos uma dívida muito grande para com ele.
I.N. - Você que sempre foi o nosso ícone de luta por uma situação melhor para o país, falando em linguagem de igreja, da "denúncia profética", o que é que você espera do Brasil para o futuro, já que, em nossa opinião, Fernando Henrique foi um grande fiasco?
C.B. - Bom. já que estamos falando a linguagem de igreja, vou citar Dom Mauro Morelli que diz que preferia Fernando Henrique quando ele era ateu. (risos)
Eu acho isso ótimo. Enfim, eu já não tinha grandes esperanças desde o primeiro governo de Fernando Henrique. Achava que essa aliança que o PSDB estabeleceu com o PFL, era perigosa e no fim das contas, se revelou mais perigosa do que eu imaginava, porque no governo, numa aliança de liberais e social-democratas, não sobrou para a social-democracia. E parece que a necessidade de afirmar essa aliança e de renegar o passado, falou mais alto. Enfim, nós temos aí mais três anos de espera, não sei bem do quê. Vamos pensar em 2002
I.N. - Arrisca uma profecia para 2002?
C.B. - Não, eu não sou profeta.
I.N. - Chico muito obrigado e um abraço.
Diario de Pernambuco - Quando acabar a turnê, o senhor já tem algum projeto engatilhado, como um livro?
Chico - A turnê vai até outubro. Não estou pensando em escrever, fazer novas músicas, porque esse show consome muito. É um show baseado no disco, é um show que exige bastante.
DP - Atualmente, como acontece a sua motivação para compor? A motivação é diferente de 20 ou 30 anos atrás?
Chico - Assentamento teve a motivação do livro de Sebastião Salgado. A música para o cinema em cima das imagens. Já na parceria, procuro diversificar.
DP - Por que canções como Apesar de Você e Deus lhe Pague são consideradas datadas pelo senhor? Daqui a 15 anos, corre o risco de achar Assentamento datada?
Chico - Algumas músicas - não muitas, uma meia dúzia, entre as quais as que você citou - estão diretamente ligadas a um período de exceção, de ditadura, então são canções políticas. Assentamento é uma canção social sobre um problema que não é de hoje e nem vai se resolver amanhã.
DP - Cansa o fato de as pessoas ainda vincularem o Chico artista com o político, o cidadão?
Chico - Não, não me cansa. As pessoas perguntam as mesmas coisas porque estou fazendo a mesma coisa há muito tempo, as perguntas sobre política e o papel da mulher na minha música se repetem por minha culpa.
DP - Sendo assim, qual a avaliação que o senhor faz do governo Fernando Henrique?
Chico - Eu não votei no Fernando Henrique nem na primeira nem na segunda vez. No início do primeiro mandato, esperei ver desmentidos os meus receios, as alianças com o PFL. Não tinha grandes esperanças, mas sempre torcendo para estar enganado. O que eu temia se concretizou. Não sei se a reeleição foi um bom negócio, até para o próprio.
DP - Já que estamos falando nisto: como o senhor se sente sabendo que o preço do ingresso para o seu show custa quase a metade do salário mínimo?
Chico - Estou surpreso, nem sabia qual era o preço do show, você está me informando agora. Quem resolve estas questões é o empresário, deve ser este o preço que se cobra para um show, não sei. Deve ter mais caro.
DP - O senhor foi considerado um gênio, um fenômeno já na estréia, quando tinha 20 anos de idade. E agora, qual o paralelo que faz daquela juventude dos anos 60 com a dos anos 90?
Chico - O que diferencia mais acentuadamente minha geração desta talvez seja uma falta de maiores perspectivas, de um maior estusiasmo. Nos anos 60, havia no Brasil, bem mais do que hoje, a vontade de se construir uma nação. Culturalmente havia uma efervescência. Às vezes, tenho a impressão de que há uma apatia geral. Fazendo relação entre o início dos anos 60 e a ditadura militar, o que pesa mais é a falta de perspectivas.
DP - Qual futuro que o senhor visualiza para a MPB com a ascensão do pagodejo?
Chico - Não muda muito. Sempre houve música comercial, a canção em voga.
DP - Mas a mídia está bem mais poderosa.
Chico - Hoje, mais do que há trinta anos, esse tipo de música não impede que se crie música consistente e duradoura. Há uma variedade muito grande. Além disso, volta e meia, como aí mesmo em Pernambuco, surgiu o manguebeat, extremamente interessante, que não tem uma mídia por trás. São músicas pouco comercializadas, mas que têm influência no País, como a música baiana, que esteve em voga. Chico Science nós todos conhecemos e o que ele fez teve repercussão até hoje, como o Mestre Ambrósio.
DP - O Cascabulho participou do disco em homenagem a Jackson do Pandeiro, que o senhor também participou. Gostou do resultado?
Chico - Não escutei ainda, porque estou de mudança para outra casa aqui no Rio mesmo.
DP - O senhor ainda torce pelo Fluminense?
Chico - Há muito tempo não vejo um jogo do Fluminense. Prefiro jogar futebol. Mas de vez em quando assisto, como os jogos da seleção Brasileira.
Un carioca que se escucha desde el cielo
Chico nació Francisco, en una familia de intelectuales. Su padre, Sergio Buarque de Hollanda, fue uno de los historiadores clave en la reflexión sobre la formación de la cultura y el pueblo brasileños. A los ocho años el niño Chico Buarque se mudaba con sus padres y hermanas para Italia y le dejaba a la abuela Heloisa una cartita: "Abuelita, ya estás vieja y sé que no te veré más, pero seré cantor para que cuando tengas saudades prendas la radio y me escuches desde el cielo". Antes de cumplir 20, Chico dejó la Facultad de Arquitectura en San Pablo y abrazó definitivamente la guitarra, participando en festivales universitarios. Era 1964 y la democracia brasileña sufría un duro golpe (militar). Al año siguiente Chico grabó su primer disco, Pedro Pedreiro y en el 66 lanzó "A Banda", canción con la que fue premiado en un festival de televisión y que lo proyectó en la constelación de estrellas de la música popular brasileña. Hoy, con 35 años de carrera, Chico es considerado uno de los más grandes músicos brasileños del siglo, al lado de su "maestro soberano" Tom Jobim, João Gilberto, Vinícius de Moraes y Caetano Veloso. Después de cinco años de silencio, lanza su disco As cidades, que ya vendió más de 400 mil copias y que retoma su diálogo cariñoso con la identidad y la cultura brasileñas, tema central también en su disco anterior, Paratodos. Las marcas del tiempo están presentes en su nuevo trabajo, como en la canción "Xote de navegação", en que parece hablar de sí: "veo aquel río deslizar/ el tiempo atravesar mi pueblo (...) con el nombre Paciencia/ va mi embarcación...". Con 54 años y un nieto, Chico desmiente su mitológica timidez. En la entrevista que brindó a BRECHA, horas antes del penúltimo show de lanzamiento de "As cidades" en San Pablo, habla larga y alegremente sobre algunas de sus pasiones: la música, la literatura, el fútbol y la "verde y rosa", la escuela de samba Mangueira.
- Probablemente, As cidades sea tu último disco antes del fin de siglo. ¿Qué lugar ocupa en el conjunto de tu obra?
Chico - No veo grandes quiebres en mi carrera, creo que sigo una línea más o menos continua en el sentido del perfeccionamiento formal; ahora soy más riguroso en la creación de las canciones que al comienzo. Este disco nuevo y el show llegan a ser casi una continuación del disco y show anteriores, Paratodos; los músicos son prácticamente los mismos. Ahora, me gusta más este trabajo nuevo porque lo encuentro más riguroso, más maduro.
- ¿Hay un hilo conductor que le da coherencia al disco y al espectáculo, o las canciones van surgiendo en forma independiente?
Chico - El show tiene como base las canciones del disco, y las demás canciones del repertorio surgieron naturalmente, las elegí por su afinidad temática o mismo por una relación puramente musical entre ellas. No hay una explicación lógica. Me gusta la fluidez que tienen, la relación entre las canciones dramáticas, como las escritas para teatro o cine, y también las canciones que escribo "en femenino". Pero en general la relación es musical, una canción pide la siguiente por algún tipo de recuerdo musical.
- Por ejemplo, en el espectáculo, la canción que habla de los Sin Tierra ("Assentamento") viene antes de la de Pablo Milanés sobre un poema de Nicolás Guillén, "Como si fuera la primavera", seguida de un drama urbano, que es "Cotidiano", con arreglos más coloreados, más caribeños... ¿Cuál fue el motivo de esa elección?
Chico - No fue por una razón política, como se podría imaginar. Una canción pidió la otra y además yo tenía ganas de cantar la canción de Pablo Milanés, la grabé hace unos 15 años y nunca más la había cantado. Y "Cotidiano" estaba dando para un arreglo rítmico, que la hiciera refrescarse para que sonara más cercana a la canción de Pablo. Es así, a veces el hilo es puramente musical, parece que una canción te está pidiendo aquella otra, tal vez por que hay alguna memoria musical allí.
- En "Carioca" por primera vez afirmás tu ciudadanía con relación a Rio de Janeiro y cantás a una ciudad que no es aquella turística o "maravillosa". La letra habla de "El poniente en la espina de tus montañas/ Casi ciega la retina de quien ve, de noche/ Meninas, pechitos de pitonga/ vendiendo por Copacabana sus baratijas".
Chico - Tiene la expresión "ciudad maravillosa" en su letra, y yo dudé en ponerla porque es un lugar común, un cliché. Pero digo "ciudad maravillosa, sos mía...", ésa es la novedad para mí, poder atribuirme la condición de carioca, que nunca antes había osado porque no me consideraba un típico carioca, nací en Rio pero fui criado en San Pablo... Ahora, después de que Mangueira me hizo un homenaje y dijo que yo era un "carioca da gema", o sea, un auténtico ciudadano, entonces ya puedo creer en esta ciudadanía. La canción obviamente no es una tarjeta postal, hasta tiene elementos así, pero también hablo de los problemas de la ciudad. Es como un rápido videoclip de Rio, un dibujo "chiaro oscuro".
- Que también tiene algo de trágico...
Chico - No diría trágico, yo diría más bien dramático... En el videoclip pusimos los morros cayendo sobre el mar, quisimos que se dramatizara una historia, una idea. Cuando visualizamos el tema no buscamos colores de postal, elegimos el diseño del clip en blanco y negro, por donde el tiempo va corriendo y corriendo bajo esa atmósfera. Esa paradoja que parece tan natural.
- Tu padre, el historiador Sergio Buarque de Hollanda, en "Raízes do Brasil" hablaba del "brasileño cordial", pese a la herencia esclavista y los abismos sociales. En un documental de Walter Salles, el director de Estación Central, sobre tu carrera, hablás del "país de la delicadeza perdida", alertando sobre la creciente exclusión que amenaza romper el tejido social.
Chico - Somos el país con la peor distribución de renta en el mundo. Vivimos en ciudades fragmentadas. La clase media sale de sus casas en condominios cerrados y va al teatro o al cine dentro de shopping centers. En Rio ya la gente no va a lugares públicos porque teme por su seguridad. Vive en casas cerradas, anda en autos cerrados y el espacio público ya no existe. Yo me pregunto en ese documental qué puede llegar a pasar cuando la gente descienda de los morros para exigir su lugar en la ciudad. Algo que a veces ya acontece. Porque esa distancia social está, geográficamente, muy cerca.
- ¿Podemos hablar de ciudades inviables?
Chico - Realmente las megaciudades se están transformando en inviables. En mi trabajo anterior, que fue la participación en el libro Terra, de Sebastião Salgado, ya me refería a ese fenómeno de hinchazón de las ciudades, que es consecuencia de la migración rural, de la falta de condiciones para que la gente pueda permanecer trabajando en el campo. Esa situación lleva a muchos de los problemas urbanos que vemos en las grandes ciudades, como el desempleo, que en una metrópolis como San Pablo llega al 20 por ciento de la población económicamente activa. Esto es una barbaridad. En Rio tenemos la proximidad geográfica entre la miseria y la riqueza, la periferia está en el centro de la ciudad y en todas partes. Eso hace el encanto pero también la desgracia de Rio, su violencia. Lo que en mi juventud era su gran encanto, la convivencia más o menos pacífica y democrática en las pla! ! yas, por ejemplo, ya no existe más.
- San Pablo y Rio de Janeiro están impregnadas en tu biografía...
Chico - Soy carioca de nacimiento, paulistano de crianza, fui paulistano durante el tiempo de la Facultad de Arquitectura, donde me decían "el carioca"... Pero luego volví a Rio. Siempre viví entre las dos ciudades, nunca era de una en especial. En la canción "Paratodos", del disco anterior, digo que mi padre era paulista, mi abuelo pernambucano, mi bisabuelo bahiano... no me nombro como carioca. Al final de la canción digo: "soy un artista brasileño".
- En As cidades hay una numerosa población femenina.
Chico - Hay un tema de siempre en mis canciones que es la femineidad, que puede ser o no una mujer. La femineidad puede estar en los adjetivos que le dedicas a una ciudad, como sucede en "Carioca" cuando hablo de Rio. Y por supuesto hay femineidad en las mujeres de mi música, mujeres concebidas por mí, imaginadas, fatales...
- En tus tiempos de estudiante de arquitectura hacías proyectos de ciudades virtuales, las dibujabas con meticulosidad. En el libreto del disco nuevo hay algunos dibujos tuyos de ciudades imaginarias. ¿Seguís haciéndolo?
Chico - Me gustaba diseñar una ciudad completa, hasta con líneas de subterráneo, paradas de taxis, avenidas y todo. Ahora ya no dibujo, las escribo tomando alguna existente, las imagino y a veces las invento completamente.
- Mangueira, una de las escuelas de samba más populares de Rio te homenajeó en el Carnaval pasado, como tema del desfile en el sambódromo. En As cidades cierra el disco "Chão de esmeraldas", un samba de exaltación a la "verde y rosa" en que retribuís el homenaje.
Chico - Quería terminar el disco con un recuerdo de Mangueira. "Chão de esmeraldas" es atípica dentro del disco, pero para los que participamos en su producción quedó claro que ella debería ser el cierre. En el disco Chico Buarque da Mangueira canto músicas de Cartola, uno de los símbolos de Mangueira y de la vieja guardia de sambistas de la escuela. En este disco nuevo quería algo así, un samba de exaltación, que todos tuvieran ganas de salir cantando. Por eso incluí "Chão de esmeraldas".
- Otra canción atípica en el disco es "Sonhos, sonhos são". Además de la referencia a Calderón de la Barca en el título, el arreglo musical tiene un bandoneón, algo raro en la música brasileña.
Chico - Allí hay una cita a América Latina y casi fue grabada como un tango, pero no quise que se acentuara demasiado este parentesco. Los arreglos no son míos, son de Luis Carlos Ramos, pero pasan por mi supervisión. Busqué un aire de tango sin que se tratara abiertamente de un tango, pues allí hablo del continente: "incomodado estoy, en un cuerpo extraño/ con gobernantes de América Latina/ notando mi mirar ardiente en lejana dirección/ creen todos que avisto alguna salvación".
- ¿Cantarías un tango?
Chico - Sí, ya canté. Hay una canción de Caetano Veloso, "Janelas abertas nº 2", que transformé en tango y en la Opera do Malandro hay un cliché de tango. También hice algo parecido con Edu Lobo...
- ¿Alguna vez pensaste en escribir la letra para un tango?
Chico - No me atrevería a escribir, pero si pudiera volver en el tiempo habría concluido la letra para un tango que Astor Piazzola me envió en los años setenta. Sería coautor de un tango auténtico... ¡y un tango de Piazzola!
- ¿Cómo fue esa historia?
Chico - La última vez que vi a Piazzola fue durante la grabación del programa de tevé que teníamos con Caetano en la Globo en los ochenta, creo que en el 86. El llegó para grabar y yo le pregunté: "Astor, ¿te acordás de aquella música que me dejaste en los setenta?". El se había olvidado, entonces le llevé la cinta y preparó un arreglo para que yo le pusiera la letra de una vez. Ya había demorado más de diez años y tenía cinco días para hacerlo; puse todo de mí pero sucede que yo no hago las letras cuando quiero, a veces ellas no vienen, y no conseguí hacer una letra a la altura de aquella música. Piazzola se enojó muchísimo conmigo. Aún recuerdo que cuando llegué al estudio Tom Jobim trataba de aplacarlo diciéndole: "Chico es así, a veces va a jugar al fútbol y olvida las cosas, ya me ha hecho eso a mí otras veces", algo que era cierto. Pero no hubo caso, Piazzola quedó furioso. Después de ese episodio nos encontramos otras veces en Brasil y en Buenos Aires. Cuandó él se enfermó yo estaba en París, allá supe de su muerte.
- ¿El tango quedará inconcluso?
Chico - Sí, yo sólo hago las letras estando con mis coautores. Todavía guardo la cinta que Piazzola me grabó, pero no conseguí terminar la letra cuando estaba vivo y ahora él me hace falta. También tengo canciones con Tom Jobim que no haré porque sin él no hay gracia. Me gusta hacer las letras con mis coautores, me da placer retribuirles algo. Me entregan una fruta y yo les devuelvo la compota.
- La música popular brasileña es admirada en toda América Latina, sobre todo en los países del Mercosur. Pero la música de esos países parece que no tiene llegada acá. Es una historia de amor no correspondido...
Chico - ¿Por qué los pueblos de habla hispana no entienden el portugués y nosotros entendemos el español? (se ríe). Eso también pasa entre Portugal y España. La literatura de lengua española viaja mejor que la de lengua portuguesa, llega a Brasil más que la nuestra afuera; pero nuestra música, yo creo que viaja mejor que la literatura. En algo nos merecíamos una compensación, y afortunadamente es en la música... es nuestra revancha (riendo). Creo que esto pasa porque la música brasileña puede prescindir de la comprensión de las palabras, tiene una riqueza y una diversidad muy grandes.
- Entre los dos últimos discos, Paratodos y As cidades vino tu segunda novela, Benjamin. ¿Cómo hacés para separar literatura y música?
Chico - Durante el período en que estoy trabajando en un libro, no toco la guitarra, no hago música, y viceversa. Después, la vuelta a la música es un esfuerzo grande, tengo que desvestirme de la literatura y eso me cuesta tiempo. Es penoso, pero también muy saludable porque cuando vuelvo estoy renovado. No hay una pérdida de continuidad, porque este último disco es en gran medida una continuación del anterior, Paratodos. Lo que sí es cierto es que para hacer este nuevo disco desaprendí las canciones del anterior, me olvidé completamente porque este trabajo es una cosecha nueva.
-¿El premio Nobel de literatura para José Saramago puede ser un incentivo para que la literatura de lengua portuguesa sea más conocida?
Chico - El Nobel está en muy buenas manos. Como brasileño también me siento premiado por Saramago, aunque sea portugués, pero es justo que los portugueses reciban ese premio antes que los brasileños. Ahora, confieso que me gustaría también un Nobel para la poesía en lengua portuguesa y que fuera para el brasileño João Cabral de Melo. La literatura en lengua española ya tiene varios, como Gabriela Mistral, Neruda, García Márquez, Octavio Paz... Borges no recibió ninguno, lo que es una gran injusticia. Nosotros también tenemos autores que lo merecían, como Guimarães Rosa y Carlos Drummond, y no ganaron.
- La música popular brasileña de los años sesenta y setenta incluía las canciones de protesta contra la dictadura. Hoy la protesta musical viene de las periferias de las grandes ciudades y una de las corrientes más prolíficas es la del rap...
Chico - Hoy tenemos los muchachos del rap que hacen música de protesta en forma más cruda y directa que lo que se hacía hace 20 o 30 años. La ausencia de censura hoy, felizmente, lo permite. Durante la dictadura, las canciones tenían que ser en lenguaje más metafórico para escapar de la censura. Hoy las canciones de protesta ya no son de gente del ambiente universitario, como era mi caso, sino de chicos que viven la realidad cruda y violenta que cantan, y que hoy tienen más posibilidades de manifestarse que hace 20 años, incluso más facilidades para grabar un disco. Lo que no quiere decir que el acceso a los medios de comunicación sea más democrático, porque todavía es muy restringido.
-Ustedes retomaron la línea evolutiva rescatada con la bossa nova y la ampliaron. ¿La nueva generación musical es la continuidad o la quiebra?
Chico - No veo muy claramente cómo identificar una influencia directa de mi generación musical sobre la nueva. A veces leo entrevistas y la gente joven dice que me escucha, lo que me alegra mucho. Lo que verdaderamente me sorprende es que mi generación todavía esté activa y tengamos espacio para presentar nuestro trabajo. Eso realmente me sorprende, la bossa nova ya tiene más de 40 años y todavía está muy cercana al oído de la gente; tiene su campo restringido pero está presente. La misma bossa nova que me formó como músico... Hoy tenemos una diversidad de músicos jóvenes que están mezclando los ritmos tradicionales y regionales, hay gente buena surgiendo a toda hora, instrumentistas de la mejor calidad, compositores interesantes, eso es muy positivo.
- La temática social siempre estuvo presente en tus canciones. Dos muestras recientes son las que hiciste como parte del libro Terra, sobre los Sin Tierra.
Chico - El reconocido fotógrafo documental brasileño Sebastião Salgado me invitó a participar del proyecto del libro, con él y con Saramago. Me mostró las fotos y a partir de ellas hice las dos canciones del dc que acompaña al libro, "Assentamento" y "Levantados do chão". Tanto Saramago como yo aceptamos de buena gana participar porque la finalidad del libro fue destinar los fondos enteramente al Movimiento de los Sin Tierra.
- ¿La política todavía te inspira música?
Chico - Hago una distinción entre las canciones que tratan de política y aquellas de temática social, que sigo escribiendo como antes. Canciones con letras de protesta política escribí unas cinco o seis, durante la dictadura militar, porque estaba vivamente interesado en contestar al poder político, que interfería en la creación artística. Los versos que escribía podían ser censurados. La convivencia con lo político era diaria; vivíamos bajo una dictadura y sin perspectiva de salida, la llamada luz al fin del túnel. Algunas canciones de esa época permanecieron porque todavía tienen un peso histórico, más que su valor musical. Prefiero escribir sobre algo que está en el aire y viene de la política, pero no de este hombre o de aquel.
- ¿Qué canciones sobre temas políticos se pueden escribir hoy?
Chico - Puedo escribir canciones sobre la corrupción, por ejemplo, sobre el carácter de los políticos. Lo que me preocupa es que canciones así quedarían marcadas por el tiempo, porque la corrupción se renueva con una velocidad alucinante. Cuando el disco salga, la corrupción del día ya será otra. Pero sí se puede escribir genéricamente sobre la corrupción, es una buena idea para una próxima canción...
- El presidente brasileño criticó tu opción por el candidato del Partido de los Trabajadores, Lula, que apoyaste en las últimas tres elecciones (89, 94 y 98). En "Injuriado" cantás versos como "Dinero no le presté/ favores nunca le di/ no alimenté su genio ruin/ usted nada me está debiendo/ por eso no entiendo, por qué anda ahora hablando de mí". Todo el mundo dice que este samba estaría dedicado al presidente. ¿Fue una respuesta musical?
Chico - No hice ese samba para Fernando Henrique... que se interprete lo que cada uno quiera con esa letra. Tengo otras fuentes de inspiración.
- Sos del Fluminense, un gran equipo de fútbol carioca que vive una crisis tremenda y descendió a la tercera división... Chico - Eso fue una tragedia para mí. Ahora no, últimamente prefiero jugar al fútbol con mis amigos en el Politheama, el equipo que tenemos. No voy a la cancha ni veo los partidos del Fluminense para no sufrir más.
- ¿Y si hablamos de Romario, de tu archienemigo Flamengo, que está jugando espectacularmente y volvió a la selección brasileña?
Chico - ¿Será que Fluminense compró a Romario (riendo)? ¡Si es así, ordeno ya al mozo que traiga whisky para todos! La verdad es que me encanta el fútbol. Aunque yo sea del Fluminense, reconozco que Romario es un crack, siempre jugó un fútbol espectacular, pero la crítica es muy injusta con él. Si pasa tres semanas sin hacer un gol, ya dicen que está terminado, que tiene que retirarse. Es un caso de tolerancia cero con Romario. Nunca vi un jugador "acabar" tantas veces y volver cada vez mejor. Para mí, sigue siendo un crack y está jugando un bolão (la está "rompiendo").
- Desde 1997 no actuás en ningún otro país latinoamericano. ¿Hay alguna gira programada?
Chico - La última vez fue en aquel recital de homenaje al Che, en Argentina. Mi ruta inmediata es hacer otras capitales brasileñas y Portugal, y luego, quién sabe... Es un ritmo muy cansador ése de los recitales, por eso no me gusta planear cosas con mucha anticipación. Estamos estudiando ir a Buenos Aires y Montevideo, pero sería en el segundo semestre.
- Durante las dictaduras, la cultura latinoamericana se encontraba en los espacios de resistencia y solidaridad, en la música por ejemplo.
Chico - Parece contradictorio, pero las dictaduras latinoamericanas en cierto modo nos acercaron, unieron al continente por lo que había de peor, el totalitarismo, la violencia contra los ciudadanos. La respuesta a eso vino en forma de la solidaridad. Enfrentábamos problemas comunes y muchas veces nos encontrábamos en el campo del arte, la música en particular. Durante la dictadura hubo un conocimiento mayor de músicos de otros países latinoamericanos por parte del público brasileño, artistas argentinos, chilenos, cubanos, uruguayos. Piazzola y Mercedes Sosa venían seguido a Brasil, igual que Pablo Milanés. El público descubrió la música de Violeta Parra, Víctor Jara, Inti-Illimani, Daniel Viglietti... Estoy hablando de los circuitos más politizados, donde había una identificación mayor y un intercambio con sabor ideológico. Con la redemocratización del! ! continente, de nuevo hubo una separación.
- ¿Hoy es menos frecuente ese encuentro?
Chico - En Brasil tenemos un problema serio en aceptar nuestra identidad latinoamericana. Que Caetano Veloso haya grabado su disco en castellano, "Fina estampa", es algo muy positivo. Eso ayuda a eliminar un poco esa restricción a la lengua española, que es casi subliminal. En los años cincuenta se escuchaba mucha música latinoamericana en las radios brasileñas, sobre todo boleros mexicanos y cubanos, canciones de Agustín Lara, Los Panchos, Lucho Gatica. Eran muy populares. Ojalá ahora pueda volver ese intercambio cultural.
O eterno mistério
De compositor engajado a muso de garotas dos 30 aos 60 anos, Chico Buarque vem se renovando e ao mesmo tempo mantendo as características que fazem dele o sucesso que é: a timidez, a discrição e a capacidade de entender a alma feminina sem nunca ter levado a psicanálise a sério.
Duas décadas atrás, as aparições de Chico Buarque em manifestações políticas, somadas às sua canções mais contundentes, renderam a ele a imagem-clichê de compositor engajado. Algo diferente tem acontecido nos últimos anos; suspirando frente aos olhos verdes do autor de "Carolina", "Beatriz", e "Cecília", garotas de 20 a 60 anos têm lotado seus shows, elegendo-o como o mais sensível porta-voz da alma feminina.
Ver e ouvir Chico Buarque ao vivo, aliás, tomou-se um prazer bissexto, na última década. Desde o show "Paratodos", em 1994, ele andava ausente dos palcos, por estar se dedicando mais à literatura. Para alegria do imenso fã-clube, Chico vem reservando todo este ano à turnê do show "As Cidades", pelo Brasil e Europa. Essa maratona inclui uma nova temporada em São Paulo, em novembro e dezembro que marcará o lançamento do CD "As Cidades ao Vivo".
"Não me considero um homem especialmente bonito", diz Chico, refutando a freqüente imagem de "deus de olhos verdes" que lhe é atribuída pelas fãs mais delirantes. "O que pode encantar as moças está nas minhas músicas e não na minha presença física."
Marie Claire - Há cinco anos, você se mostrou surpreso com a garotada que freqüentava seu show "Paratodos". Isso acontece na temporada de "As Cidades"?
Chico Buarque - Sim. Gente que ainda não tinha idade para assistir ao "Paratodos" está me vendo pela primeira vez.
MC - E esses jovens vão ao seu camarim? Fazem perguntas?
Chico - Vão. Geralmente, falam comigo atraídos pelo disco, o que é engraçado. É gente com muita curiosidade musical. Também procuram muito o maestro Luis Cláudio Ramos, que fez o arranjos. Notamos isso também na minha home-page, que recebe uma quantidade grande de gente muito moça, procurando informações sobre o disco, sobre arranjos, sobre o fazer musical mesmo. Pra eles, sou um artista que estão conhecendo agora. Pra mim, de certa forma, esse tipo de abordagem é uma novidade, por ser mais musical do que política ou poética, como acontecia antes.
MC - Reencontrar o público, cinco anos após seu último show, é mais fácil hoje?
Chico - É sempre custoso. Montar um espetáculo depois de tanto tempo afastado do palco significa ensaiar muito mais, reaprender uma série de coisas. Os shows exigem bastante também pelo lado musical. Hoje eu me sinto mais músico que cinco anos atrás e muito mais do que no início da carreira, mas ainda não tiro de letra, nem uma noite. Fazer o show é prazeroso no final das contas, mas eu . ainda fico tenso. Tanto é que, desde a temporada no Rio, eu passei meus jogos de futebol para a noite, após o espetáculo. Assim o show não fica prejudicado.
MC - Por que? Prejudica a concentração?
Chico - Porque cansa mesmo, fisicamente. E a voz também se ressente um pouco.
MC - Num depoimento à revista "Época", logo depois de ter assistido ao seu show, Caetano Veloso disse que acha você "muito paulista", por você ter crescido e se educado em São Paulo, além de ter feito nessa cidade suas canções mais populares. Você sente que sua porção paulista é maior do que a carioca?
Chico - Acho que esse comentário dele deve ter a ver com a época em que a gente se conheceu, quando eu morava em São Paulo. Na verdade, eu me sinto bastante dividido. Não me sinto paulista, mas também não me sinto carioca. Já aconteceu até um caso engraçado. Uns dez anos atrás, eu assinei um manifesto político em apoio ao ex-deputado Fernando Morais. Um jornalista da "Folha de S. Paulo", tentando me atingir, escreveu três coisas. Primeiro, botou minha idade no jornal, aumentando uns quatro anos (risos). Depois botou "comunista histórico". Até aí ele já tinha me ofendido um pouquinho, mas quando me chamou de "carioca" é que eu fiquei ofendido mesmo. Com isso ele sugeria que eu não teria direito de opinar numa eleição paulista. Nesse dia, eu, que tinha o apelido de Carioca em São Paulo, percebi o quanto valorizo minha cidadania paulista.
MC - Seu pai (o historiador Sérgio Buarque de Hollanda) foi uma espécie de orientador de seus primeiros passos na literatura, sugerindo leituras e fazendo críticas a seus primeiros textos. E quanto à música?
Chico - Ele gostava muito de cantar, especialmente quando bebia um pouquinho e ficava alegre. Ele cantava em italiano, em alemão e também muitos sambas antigos. Apesar de ser muito amigo do Vinícius (de Moraes), ele não era chegado em bossa nova.
MC - Você aprendeu sambas com ele?
Chico - Muitos. Lembro dele e de minha mãe, em casa, cantando Noel Rosa. Conheci o samba "Último Desejo" (de Noel) e essas coisas todas através dos meus pais. Numa lembrança mais remota, mais do que rádio ou vitrola, é esse cantarolar constante dos dois que vem à minha memória. Eles também gostavam muito de Ismael Silva, de sambas dos anos 30, da época em que namoraram.
MC - Algum dos dois estimulou você a seguir a carreira musical?
Chico - Ao contrário, jamais houve algum empurrão. Minha mãe, que tinha uma visão da vida mais prática do que meu pai, ficou muito satisfeita quando entrei para a faculdade de Arquitetura. Eu era meio indisciplinado, quase um vagabundo. Eu já bebia bastante, e ela tinha um pouco de medo. Quando comecei a abandonar a Arquitetura para fazer música, ela até foi à faculdade trancar a matrícula por mim. Eu já sabia que não ia voltar nunca, mas ela guardou por um bom tempo a esperança de que eu voltasse ao bom caminho. Até porque, a música não era uma opção profissional pra mim, no início. Era uma farra, uma brincadeira.
MC - E por que você escolheu Arquitetura para estudar?
Chico - Por exclusão. Eu precisava entrar numa faculdade e gostava muito de Arquitetura. Aliás, ainda gosto. Tinha o hábito de ficar imaginando e desenhando cidades, e lembro de minha avó dizendo: "Chico, você vai ser urbanista, quando crescer". Tinha também aquela coisa de Brasília e de Oscar Niemeyer, que era uma figura mítica par mim, apesar de eu tê-lo conhecido, por ele ser amigo de meu pai. Na minha geração havia um interesse grande por Arquitetura. Na verdade, quando entrei para a faculdade, eu me esforcei para acreditar que eu seria arquiteto um dia, mas não tinha muita convicção. Precisava de uma profissão e tentei. Naquela época, não se podia levar a sério uma faculdade de Letras, muito menos pensar na música como profissão.
MC - Hoje você dedica a maior parte de seu tempo a dois ofícios essencialmente solitários: a composição musical e a literatura. Você era uma criança solitária?
Chico - Não, eu fui um moleque de rua normal, de jogar bola e ter muitos amigos, além de muitos irmãos (seis). Nunca fui uma criança fechada, nem mesmo introvertida. Pelo contrário, eu era até extrovertido em demasia, mas eu tinha todo um mundo particular e imaginário, que preenchia meu tempo livre. Eu gostava de narrar jogos de futebol de botão. Inventava e desenhava cidades que tinham tudo: os cinemas, os nomes das ruas, os bairros, tudo inventado por mim. Eu também desenhava filmes, numa tira de papel, que exibia numa caixa de sapato, com dois lápis. Acreditava que era cinema e persuadia minhas irmãs menores de que era mesmo cinema. Fiz várias películas, com nomes de atores americanos imaginários, como Robert River. Eu passava horas sozinho ocupado com essas brincadeiras que têm a ver com o que eu faço até hoje (risos).
MC - E a literatura? Também era um prazer solitário, ou você chegava a compartilhá-la com os amigos?
Chico - Antes de entrar na FAU, comecei a cismar de ler livros em francês. Tinha dois amigos com quem eu conversava sobre literatura, em francês. Um era filho de franceses, o outro de alemães. Nós três freqüentávamos muito o bar Riviera (na esquina da rua da Consolação com a avenida Paulista, em São Paulo), antes que ele ficasse conhecido como reduto da esquerda. Nós éramos adolescentes, tínhamos 16 ou 17 anos, e ficávamos horas ali, trocando idéias sobre os poetas e romancistas franceses. Nessa época, também comecei a ler os russos, em francês, nas edições da Gallimard, tiradas da biblioteca de meu pai. Com 18 anos, eu ostentava um pouco isso, e costumava levar esses livros para a faculdade. Um dia, um colega mais velho veio caçoar de mim: "Você não lê nem um livro brasileiro?" (risos). A partir daí comecei a ler literatura brasileira, que eu conhecia pouco.
MC - Nessa época, você lia tanto quanto jogava futebol?
Chico - Eu lia mais. Joguei muita bola, no tempo do ginásio e do Científico, mas quando entrei na faculdade, parei de jogar bola por um bom tempo.
MC - Parece que uma das suas primeiras músicas, feita ainda na adolescência, chamava-se "Canção dos Olhos". É verdade que ela tinha uma insinuação a respeito de seus próprios olhos?
Chico - (risos) Nessa canção eu falava dos olhos de um a moça mas as amigas da minha irmã, a Miúcha, diziam que eu cantava essa música, piscando os olhos (risos). Devia ser uma vaidade inconsciente. Eu não seria tão cabotino assim. Logo depois resolvi virar intelectual e já não estava mais preocupado com isso. Esse negócio de ter olhos claros, no Brasil, chama atenção mesmo. Lembro de, ainda bem pequeno, ser parado na nua por senhoras, que pediam: "Deixe eu ver seus olhos, menino".
MC - Desde cedo já tinha consciência de seu poder de sedução?
Chico - Eu era bastante namorador e tal, mas depois que entrei para a faculdade estava sinceramente interessado em literatura e, mais tarde, em música. Eu não fazia disso, de forma nenhuma, um instrumento de sedução. A música pode ser um ofício sedutor e alguns amigos meus até exercitavam isso, como o Toquinho, que eu conheci ainda quando éramos garotos. Ele via a música como um fator de sedução, de aproximação das meninas, mas eu não. Quando veio aquela paixão pela bossa nova, eu só pensava nisso o dia inteiro. Foi uma coisa de louco. Fiquei sinceramente interessado pela música.
MC - Quando você sentiu que poderia seguir carreira na música?
Chico - Foi acontecendo aos poucos. Eu era novo quando comecei a ganhar dinheiro com música, de uma forma até um pouco irresponsável. Tomei consciência de que era um profissional de música, de uma forma até dolorosa, na época em que fui morar na Itália. De repente, eu estava em um país estrangeiro e vi que não havia outra saída mesmo. Aos 24 anos, desempregado e passando dificuldades, quando nasceu a minha filha, percebi que eu era um músico profissional. Ao voltar ao Brasil, a música já tinha deixado de ser aquela farra, aquele dinheiro fácil que se ganhava, que se gastava, que se bebia. Minha relação com a profissão mudou a partir desse momento.
MC - Você ficava muito indignado, quando suas músicas eram cortadas ou mesmo proibidas, na década de 70? A idéia de usar o pseudônimo de Julinho da Adelaide, para driblar a censura, sugere que, pelo menos naquele momento, você enfrentou o problema com humor...
Chico - Na época mais difícil, eu ficava ofendido e indignado, mas não era tanto pela censura e sim por tudo que a cercava. Teve um período em que eu era intimado a depor no DOPS quase semanalmente. Eu fazia aquele circuito universitário de shows e sempre acontecia alguma coisa. Às vezes eu cantava alguma música proibida, em outras vezes nem tinha cantado, mas por causa disso eu era periodicamente chamado ao DOPS. Um dia, virei para o inspetor, que sempre me tratava mal, e gritei: "Eu não agüento mais essa situação". Manifestei minha indignação de uma forma que até deixou o sujeito meio balançado (risos).
MC - Você explodiu...
Chico - Sim, porque aquela coisa era constante. Além das músicas censuradas, havia os shows proibidos, os shows com censores na platéia e no camarim. Não era brincadeira. Esse período foi da minha volta da Itália (1970) até por volta de 1974. Quando eu inventei o Julinho da Adelaide, o clima já estava um pouquinho mais brando. Há que se distinguir um pouco a época do Médici da época do Geisel. Era ditadura sim, a tortura continuava, mataram o Vladimir Herzog, mas a gente já se sentia um pouquinho menos sufocado do que no tempo do Médici. Para que eu criasse o Julinho da Adelaide, para brincar com isso, certamente já havia um clima menos sufocante do que antes. No começo dos anos 70, não havia graça nenhuma.
MC - Em entrevistas, você parece ficar incomodado quando perguntam sobre sua "alma feminina", sua capacidade de falar no feminino. O que incomoda? A repetição freqüente desse lugar-comum ou o fato de que essa é uma habilidade de importância menor na sua obra?
Chico - As duas coisas. Isso tem uma importância menor, inclusive porque está na tradição da música popular brasileira. Antes de fazer minhas canções, eu já conhecia músicas de Assis Valente, ou de Ary Barroso, cantadas no feminino. Isso não é nenhuma novidade.
MC - Mas por que então as mulheres indicam você como o grande porta-voz da "alma feminina"? Por que elas não escolheram, por exemplo, Tom Jobim? Será que o fato de elas verem você como um "deus de olhos verdes", como dizem algumas, não influencia essa escolha?
Chico - (risos) Olha, em primeiro lugar, o Tom Jobim era um homem muito mais bonito do que eu. Ele era um homem belíssimo...
MC - Sim, até o início dos anos 70, antes de engordar...
Chico - A minha vantagem é que eu ainda jogo bole e mantenho uma certa forma. Não me considero um homem especialmente bonito, apesar de ter estes olhos verdes que já chamavam atenção quando eu era criança. Mas eu quero acreditar, ao contrário do que dizem as colunas cariocas que brincam muito com isso, que as pessoas vão ao show para ouvir as músicas. Há até um marketing involuntário, em cima dessa coisa, mas as pessoas que vão ao show para ver um "deus de olhos verdes" devem sair decepcionadas.
MC - E os gritinhos das tietes na platéia? Te incomodam?
Chico - Não. Tem gente que grita aquelas coisas, mas isso também acontece no show de outros artistas. Eu não me sinto desrespeitado por isso, porque eu não sou besta, mas acredito que o que interessa e o que pode encantar as moças é o que está nas minhas músicas e não na minha presença física. Acho que eu tenho canções que falam de amor, com propriedade, não só porque falam no feminino. Às vezes são canções feitas para as mulheres, cantadas no masculino. Forçar a barra nesse sentido, pra mim, equivale à tendência oposta de forçar demais a barra do cantor de protesto, do cantor político. Eu passei a vida inteira tentando nuançar esses clichês. Meus discos e shows têm canções de amor e de temática social. Para um determinado tipo de público e de imprensa, até bem pouco tempo atrás, eu era um cantor engajado, mas eu dizia: "Espera aí, não sou tão político assim. Escrevo músicas falando de amor, sou um cantor lírico". Talvez eu tenha exagerado e feito o barco pender demais para outro lado. Acho que está na hora de todo mundo sentar do outro lado do barco (risos).
MC - Você já disse que, na condição de escritor, o melhor da literatura está no prazer de ler o que se escreveu. Você vê a música dessa maneira? Você também compõe para si mesmo?
Chico - Eu nunca tinha pensado nisso. É claro que a música é refeita, reescrita, mas o meu prazer não é o de ouvir. Na verdade, eu gosto mais de ler do que de ouvir música. Ouço minha música durante o período em que está sendo gravada, mas desconfio que tenho mais prazer no ato de criar a música, do que no ato de escrever. Há momentos de prazer ao escrever, mas você vai refazendo e o prazer só é completo quando você lê e está satisfeito. Na música não, o prazer acontece a cada momento em que ela vai aparecendo. O fazer musical, pra mim, é mais intuitivo do que a literatura. O prazer está ali, na mágica das coisas que aparecem sem que você saiba exatamente como.
MC - Ao terminar uma canção muito especial, você já chegou a sentir a sensação de que jamais poderia fazer outra melhor?
Chico - O Tom Jobim brincava com isso. Quando alguém dizia a ele "depois dessa canção você não precisa fazer mais nada", ele tomava isso como uma provocação. "Não preciso fazer mais nada? Vocês querem que eu morra?" (risos). No momento mesmo em que você está terminando uma música, às vezes atinge um grau de prazer e satisfação, que você chega a dizer: "Ainda bem que eu não morri ontem, porque eu ainda tinha que fazer essa música". Mas isso já me aconteceu várias vezes, não com uma música em especial.
MC - O sucesso de alguma canção sua já chegou a surpreendê-lo?
Chico - Na verdade, a minha relação com o sucesso popular mudou muito. Hoje, se eu fosse ficar preocupado com isso, estaria frustrado. Quando comecei, minhas músicas tocavam muito mais no rádio do que hoje, havia os festivais. Dentro de um mesmo disco, três ou quatro músicas podiam estourar. Às vezes eu ficava surpreso com o sucesso de algumas delas, como "Carolina", que era uma música despretensiosa. Eu estava na Bahia, quando a Cynara e a Cybele cantaram "Carolina", no Festival Internacional da Canção. Lembro de ter sido procurado pelo Ruy, do MPB-4, que era casado com a Cynara. Ele me pediu uma canção para a dupla. Aí eu disse a ele: "Olha, eu tenho uma música aqui, mas não é muito boa" (risos). Eu estava em Salvador, e não estava nem ligado no festival. Mas tinha uma rádio de ondas curtas e pegou uma emissora do Rio, que estava transmitindo o festival. Eu ouvi as duas cantando, surpreso. Quando terminou foi uma ovação enorme, no mesmo Maracanãzinho que, um ano mais tarde, vaiou "Sabiá".
MC - Você já sofreu a chamada angústia da influência? Precisou superar a influência de alguém que marcou sua música?
Chico - Não. Eu comecei a fazer música sob a influência da bossa nova e fazia imitações escrachadas da bossa nova. Como eu não tinha nenhuma veleidade de compositor, naquele época, eu queria ser um sub-João Gilberto, fazendo música como um sub-Tom Jobim. Eu me assumia como um imitador de João Gilberto e não queria ser melhor do que isso. Na minha ingenuidade de amador, eu achava que conseguia fazer uma música parecida com a bossa nova e achava que isso já estava bom. Quando comecei a escrever, também tentei ser várias coisas: fui Céline, quis ser Zola por um tempo e, mais tarde, queria ser Guimarães Rosa. Na ingenuidade dos 18 ou 19 anos, eu achava que já estava escrevendo quase tão bem quanto o Guimarães Rosa (risos). Mas não era nada, apenas cacoetes e neologismos. Tem até um resquício disso, que aparece na canção "Pedro Pedreiro" o verso "Pedro pedreiro penseiro" ainda era aquela coisa de achar que eu podia ser Guimarães Rosa. Foi preciso um tempo, alguns anos para a música, e décadas para a literatura, para que eu pudesse me reconhecer como um autor com uma linguagem pessoal. Hoje, tenho consciência de que o que escrevo é meu. E a música que faço também é minha. Devo a outros autores, com certeza, mas tenho a minha marca pessoal. Nunca passei por esse tipo de angústia.
MC - E verdade que você costuma se aborrecer nas férias? Você se considera um "workaholic"?
Chico - Sim, mas o engraçado é que eu tenho fama de vagabundo. Tem o cara do Bar Jóia, lá perto de casa, onde eu vou tomar água de coco, que me provoca: "Continua vagabundo, hein?". O que eu digo é o seguinte: eu preciso de algum tempo de vagabundagem, para fazer o que eu faço. Mas se eu estiver de férias, sem nada em mente, nenhum trabalho, eu não me divirto. Lá pelo terceiro ou quarto dia, já fico meio inquieto. Isso acontece bastante. Quando eu termino um trabalho muito longo, digo: "Agora eu mereço férias". Faço planos maravilhosos de viagem, mas eles sempre são melhores do que as viagens. Como os projetos de vida, que sempre são muito melhores do que a vida. Eu me divirto pensando em como vão ser minhas férias, mas quando elas chegam não têm tanta graça.
MC - Você já fez psicanálise?
Chico - Tentei três vezes, mas não posso dizer que tenha feito mesmo. Quando começava, era porque estava sem conseguir escrever música. Daí, um mês ou dois depois, quando eu voltava a trabalhar, começava a faltar nas sessões e acabava desistindo. Então eu nunca desenvolvi um tratamento psicanalítico. Essa angústia que me levava à psicanálise estava quase sempre ligada ao vazio criativo. Toda a vez que isso acontece, a gente sabe que vai passar, mas pode ser bastante angustiante.
MC - Uma sensação de que você não tem mais nada de novo a dizer?
Chico - É, exatamente isso. Eu achava que nunca mais iria compor nada. Passavam-se quatro ou cinco meses e não saía nada, como se eu estivesse de férias. Só que essas férias acabavam no divã (risos). Já de uns dez anos pra cá, eu tenho isso mais ou menos resolvido na minha cabeça. A partir do momento em que, depois de um largo tempo sem compor, eu comecei a escrever um livro, eu tive a impressão de que posso preencher o vazio da música com outra atividade. Não sei se isso é mesmo verdade, mas de uns dez anos pra cá eu não procurei mais a psicanálise.
MC - É verdade que, apesar de sua home-page existir há meses, você nem tem conexão com a Internet em casa? Isso é desinteresse ou aversão por esse tipo de tecnologia?
Chico - Não é aversão, não. Tenho a impressão de que, se instalara Internet em casa, vou ficar sentado ali horas a fio.
MC - Então é medo de ficar viciado?
Chico - É, medo de viciar e de perder muito tempo com isso. Já perco muito tempo com coisas inúteis, até jogando paciência no computador. Para começar a escrever alguma coisa, tenho que jogar um pouco de paciência. Isso já virou uma lei na minha cabeça. Depois de uma hora jogando, eu me pergunto: "O que é mesmo que eu ia fazer?". Aí jogo mais um pouco e, quando percebo, já perdi quase uma tarde inteira.
MC - Hoje, não bastasse o impacto da TV, a atenção das crianças também se divide bastante entre a Internet e jogos eletrônicos. Você se preocupa com isso, já na condição de avô?
Chico - Avô não tem que ter obrigação, nem preocupação nenhuma. Eu fico preocupado apenas por tabela. Penso que a minha filha deve ficar atenta a isso. Vejo isso na casa de amigos, que têm filhos menores.
MC - Você se vê no papel de incentivar seus netos a ler?
Chico - Convencer o Chiquinho a ler? Como se diz por aí, é ruim, hein? (risos). Não acredito muito nesse tipo de indução, mesmo que sutil. Tenho a impressão de que talvez algum neto meu venha a se interessar por livros, ao ver que alguém da família tem prazer nisso. Ver o amor que o meu pai tinha pelos livros, o fato de a casa dele ser aquela biblioteca, me marcou bastante. Mas acho que se o meu pai ficasse me empurrando livros para ler, eu talvez rejeitasse. Aliás, para mim, essa coisa de leitura obrigatória era um aborrecimento muito grande. Eu só fui ler Eça de Queirós e coisas assim mais tarde. O que eu lia na escola era tudo de mentira. Quando tinha de escrever algo a respeito, eu lia apenas a orelha dos livros. Desconfio um pouco desses programas de incentivo à leitura.
MC - Você foi um pai menos ocupado do que o seu?
Chico - Há uma diferença grande entre a minha geração e a de meus pais, no trato com crianças. A preocupação pedagógica com a criação dos filhos praticamente não existia na geração deles. Diziam que crianças eram feitas para serem vistas e não ouvidas. E isso não acontecia apenas na minha casa. Mais tarde, nos anos 60, começou essa história de os pais ficarem preocupados com os filhos. Eu procurei ser mais atento. Ao mesmo tempo, na época em que minhas filhas nasceram, eu era mais ausente do que gostaria, porque viajava muito fazendo shows.
MC - Você se vê fazendo música e literatura até o fim da vida?
Chico - Já está de bom tamanho. Não tenho outras ambições.
Chico Buarque
"Para los jóvenes soy una novedad"
En Río de Janeiro, La Nación dialogó en forma exclusiva con el genial artista brasileño, que a los 54 años, y tras una ausencia discográfica de cinco, grabó un nuevo álbum, "As cidades", y regresó a los escenarios para presentarlo
RIO DE JANEIRO.- "Lo que me estimula para hacer música popular es que hay muchos jóvenes interesados en mi trabajo. Si dependiera de la gente de mi edad, ya no compondría: estaría repitiendo las canciones de hace treinta años", se ríe Chico Buarque.
La luz del atardecer caliente presagia lluvia y acentúa los colores del imponente panorama que se abre frente a la terraza de su departamento: la abrupta pendiente del Corcovado enorme e increíblemente próxima, la espesa fronda del Jardín Botánico que se prolonga por las laderas, las tejas allá abajo, el mar azul al fondo; más lejos, la silueta inconfundible del Pan de Azúcar. Se comprende que a Chico la música le entre por los ojos; sin embargo, cuesta imaginar que sea capaz de concentrarse en el trabajo teniendo a la vista semejante espectáculo.
-El público de mi generación -retoma la idea cuando regresa trayendo dos vasos de jugo de açaí- se relaciona más con las canciones de la época en que yo era joven... y ellos también. Siempre reclaman ¿Por qué no hacés más aquellas canciones de cuando tenías veinte años? y creo que en realidad lo que están preguntándose es: ¿Por qué no tengo más veinte años?
Vuelve a reír y parece que él sí los tuviera otra vez. En la charla mano a mano esa expresión juvenil y risueña asoma a menudo. Por ejemplo, cuando se asombra de que haya tantos espectadores en su show cantando "canciones que son mucho más viejas que ellos" o cuando recuerda que "Partido alto" llegó a ser uno de sus más grandes éxitos en Francia, pero con una letra tan alejada del original que hasta habla de un ET.
A los 54, después de una ausencia que se prolongó cinco años, y con el pretexto de "As cidades", el nuevo CD que ya circula en la Argentina, Chico ha vuelto al escenario. La literatura --que le dio no hace mucho el gran éxito de "Benjamín", su segunda novela- le ha cedido el paso a la música popular. Por ahora, Chico no piensa abandonar ni una ni otra. Sólo que emprende una actividad por vez, y siempre se las arregla para no complicarse con compromisos a largo plazo. Por eso, no se atreve a asegurar que este nuevo show lo llevará de regreso a la Argentina, aunque admite que siempre es una perspectiva posible.
No tiene planes ni proyectos. Supone -sólo eso: supone- que a este período musical seguirá otro literario. "Cuando uno termina un disco como éste tiene la sensación de que puso todo, de que se agotó; ahora no tengo ganas de tomar una guitarra para hacer una canción. Al mismo tiempo, el otro lado -el literario- quedó adormecido. Cuando tenga que hacer literatura, voy a tener que reaprender, no habrá una continuidad con el trabajo anterior".
Sí, hay algo de doloroso en este ejercicio de olvidos y reaprendizajes sucesivos. Pero también -confiesa- tiene su lado bueno: "Cuando se reemprende el viejo oficio se lo hace de una manera más fresca".
De esos vaivenes, del origen de las canciones, del público de antes y el de ahora, del disco y el show se habló durante la charla. Conviene seguir su rumbo y sus derivaciones porque a lo largo de ellas Chico fue intercalando opiniones y reflexiones que suelen ser, como todas sus obras, muy sabrosas.
Letra y música
"Mantengo la relación con la misma compañía grabadora -dice- porque trabajo allí con comodidad, pero no hay un contrato que me obligue a grabar un disco por año. El contrato es por cada álbum."
-Hay menos presión.
-Es que no tengo ni interés ni material para grabar un disco por año. Produzco menos porque hago otras cosas. Cuando uno comienza -siendo como yo autor y compositor-, graba el primer disco y le sobra material. Cuando yo grabé el primero, tenía canciones para dos más. Ni siquiera necesité hacer mucha música nueva para completar los tres primeros discos, uno por uno. Después, la producción empieza a escasear, el entusiasmo va disminuyendo; además, uno se pone más crítico, más riguroso.
-Y hay otras ocupaciones.
-Claro. Yo estuve un año viajando con el show de "Paratodos". Después, un año y pico escribiendo "Benjamín". Y antes de volver a hacer música hace falta un tiempo de silencio. Uno queda completamente vacío de ideas, lo que no es malo. Después de un año y pico, retomar la composición de canciones es más difícil y al mismo tiempo más estimulante. Como empezar de nuevo.
-¿Hacen falta esos desafíos?
-Sucede que uno busca otros caminos. Alternativas. Es un fenómeno visible también en otros autores. Tengo la impresión de que la música popular es menos longeva que otras artes. Hay pintores que continúan pintando hasta los 90 años; un creador de música popular no dura tanto. Tal vez porque tiene una relación directa con la juventud -el público es en su mayoría joven-, y con el paso de los años uno empieza a alejarse del mundo de los jóvenes. Llega un momento en que uno se da cuenta de que ya no habla más la misma lengua que los jóvenes, y al mismo tiempo sus contemporáneos -que formaban el público de años atrás- ya no compran más discos. La mayor parte de la gente que consume música es menor de 30. Los de mi edad siguen pidiéndome las canciones viejas. Si fuera por ellos, no compondría.
-¿De dónde vienen las canciones?
-De las imágenes. De un film, de fotos, de lo que veo. La imagen es para mí muy estimulante. Primero viene la melodía, siempre. A veces las primeras palabras llegan mezcladas con la música, pero nunca las palabras solas; yo no escribo poemas.
-¿Y cómo llegás a la letra?
-Por su sonoridad. Son palabras que surgen desprovistas de sentido, puro sonido. Para mí es un camino natural. Imagino que es como un pintor que comienza a trabajar y hasta un defecto, una mancha en la tela le sugieren ideas que va siguiendo y completando. Cuando escribo literatura, domino las palabras, es otro tipo de trabajo, no me dejo llevar por la sonoridad. Por supuesto que también existe un ritmo, una cadencia, pero en la literatura elijo las palabras por su sentido preciso.
-¿Influyó la experiencia literaria en la creación de música?
-Sin duda. Como compositor, yo siempre fui muy intuitivo. Claro que con la frecuentación de grandes músicos -Tom Jobim, Milton Nascimento, tantos otros- me fui educando. Pero pienso que es el trabajo con la literatura el que me ha vuelto más riguroso. No es que me proponga aplicar mi conocimiento literario: lo que procuro es usar en la elección de las notas el mismo rigor que empleo en la elección de las palabras.Y me intereso ahora técnicamente en la música mucho más que 30 años atrás.
-¿Tenés canciones inéditas?
-No. Tengo algunas músicas que comencé y que dejé abandonadas; algunas ideas sin desarrollar. Y mucha música enviada por otros compositores que sigue guardada en un cajón.
-Suelen encargarte letras.
-Aquí hay muchos compositores y pocos letristas. Me gusta mucho escribir letras para músicas de otros, pero se trata de un trabajo bien distinto. Cuando me dan una música me siento en la obligación de escribir una letra que tenga la cara de su compositor, lo que ensancha mi horizonte. En este disco hay canciones con música de Guinga y de Dominguinhos, dos personajes tan diferentes que me obligan a mí a ser diferente al escribir. En realidad, mi trabajo sería algo así como descubrir una letra que está oculta en la música.
-¿Por qué "Las ciudades"?
-En realidad el disco no empezó con la idea de las ciudades, sino que ésta llegó al final. No había un concepto ni un título. Y no lo hubo hasta muy recientemente, porque es el resultado de un trabajo disperso. Las canciones fueron creadas con fines diversos: un film, un libro. Cuando comenzó la grabación, tenía la mitad de las canciones. Y apenas tuve conciencia de alguna unidad, si es que el disco la tiene, con las últimas, cuando empecé a componer pensando en las necesidades del disco. El título vino al final. Un poco soñé con ese título, tal vez porque hay muchas ciudades en el repertorio: está Río, está la ciudad abandonada por los sin tierra ("Assentamento"), las del sueño ("Sonhos..."), la de los que imaginan el viaje mirando correr el río ("Xote...") Son ciudades soñadas, un tema recurrente en mi repertorio.
-Hablando de Río, "Carioca" trae otra visión bien distinta del Río de tus comienzos.
-Es que en aquella época había pobreza, había favelas, pero también había una posibilidad de convivencia natural. La playa, por ejemplo, era un espacio democrático. Hoy en día la playa está toda compartimentada. Está la playa de los gays, la de los surfistas, la de la marihuana, la de favela tal o cual, la de las pandillas de luchadores de jiu jitsu. Hacer una larga caminata por la playa es como ir atravesando tribus. Todo ha cambiado mucho en Río. Crecieron las favelas y las desigualdades, el desempleo, la violencia, la droga. También hay mayor hostilidad. Por eso Río resulta más bonita desde lejos, desde lo alto. Aun así es una ciudad maravillosa, como digo en "Carioca". Pero es maravillosa porque la naturaleza la hizo así. La ciudad más fea construida en el lugar más lindo...
-Pero este cambio no es privilegio exclusivo de Río.
-Claro que no; en San Pablo sucede lo mismo. Lo que pasa es que la proximidad entre el muy rico y el muy pobre ayuda. En las ciudades normales, la pobreza es empujada hacia la periferia. En Río la periferia no está en la periferia: está en el centro, en los morros. Y la tensión se agudiza.
-¿Se refleja en la música ese quiebre de la convivencia?
-Los espacios se reducen. Dentro de la ciudad periférica hay una música legítima creada allí y que expresa esa violencia. En ese sentido, hay cierta ventaja en la pulverización de los medios de comunicación, cierta democracia en esta realidad de radios segmentadas. Ahora es más fácil que un músico de la favela grabe su CD. No quiere decir que llegue a la grabadora -ése siempre es un camino tortuoso-, pero tiene la posibilidad de hacer un CD independiente. Los raps de la periferia de San Pablo, por ejemplo, contienen una violencia, una contundencia muy fuerte y muy auténtica. Pueden entrar en el circuito comercial o no, pero no dejan de conformar un fenómeno interesante. Cuando yo empecé, esos autores populares a los que me refiero y que hoy en día tienen más voz sólo contaban con el carnaval y la escola de samba para poder divulgar su música.
-¿Qué te dejó la experiencia carnavalesca? (Chico fue el tema de la escola de Mangueira en el carnaval de 1998 y desfiló con ella.)
-Un acercamiento muy interesante, tanto por el carnaval como por el disco "Chico Buarque da Mangueira". Hay gente que me reconoce por eso. Entablé así relación con un público que normalmente no compraría mis discos.
-Pero los compraba antes.
-En la época de "Meus caros amigos", por ejemplo, la gran diferencia era que mi música se pasaba por radio. Ahora no hay espacio. Las emisoras están muy encasilladas. Y las que se dedican a la música popular hecha en Brasil atienden al pagode, a la axé music, a la música sertaneja. Sin embargo -es misterioso- eso no impide que yo, como otros artistas de mi generación, tengamos acceso a una gran sala de shows, como el Canecao, y podamos hacer temporadas de un mes o dos con las localidades agotadas. La radio no incide.
-Pagode, axé, música sertaneja, ¿cómo ves esas modas?
-No tengo nada contra ningún género. Me parece simpática la idea de la gente de cantar pagode. Lo que no me parece tan simpático es la masificación, la monotonía que imponen la industria del disco y los medios.
-Hablemos del show. ¿Es una necesidad o una concesión?
-Yo me formulo la misma pregunta y me quedo en la duda. No me gusta especialmente hacer shows. Sólo me gustan al final: cuando termina el show estoy feliz. Pero por otra parte no hacer shows me parecía una perspectiva desagradable. Y además, estar con los músicos es bueno; los ensayos me gustan, el estudio también. Lo que me gusta menos es entrar en el escenario y ese compromiso del que no se puede uno sustraer aunque esté engripado, o desanimado. Tengo ahora esta pausa impuesta por el carnaval (la temporada carioca empezó el 6 de enero) y en marzo voy para San Pablo a hacer siete semanas.
-¿La gira continúa?
-Continúa. Pero la voy arreglando de a poco. No quiero tener que pensar que voy a estar un año haciendo un show.
-¿Llegarás a la Argentina?
-Es posible. Siempre hay una perspectiva. También está Europa a la vista. Pero para hacer este show fuera del Brasil tendría que modificar un poco el repertorio.
-Da la impresión de que en la Argentina tu imagen está un poco limitada a la del cantante comprometido, de protesta.
-También en Brasil hay quien me ve así. Y yo tengo que explicar siempre que los tiempos son otros y recordar que aun en la época de la dictadura no fui exclusivamente un cantor de protesta. Compuse y canté canciones sobre muchos otros temas; escribí teatro, novelas. En realidad, mi relación con la política fue más como ciudadano que como artista. Sucede que algunas canciones mías fueron creadas en tiempos de la dictadura y utilizadas en momentos cruciales, por ejemplo en la época de la lucha por las elecciones presidenciales directas. También queda esa relación de mi figura con la lucha contra la dictadura. No me arrepiento de esa identificación, pero está claro que como artista es una visión limitada, que ignora realmente buena parte de mi trabajo. Tal vez procede de quien piensa la música de una forma utilitaria: esa música sirve para esto, aquélla para lo de más allá. Pero la música no tiene que servir para nada. El arte no sirve para nada.
Padres e hijos
"As cidades" tiene una asistencia juvenil muy notoria. A Chico le llama la atención que muchos chicos y chicas conozcan y canten canciones nacidas mucho antes que ellos. Es un fenómeno que ya se verificó con "Paratodos" (el CD y el show), comenta. "Y ahora, con estos cinco años de pausa, ya podemos hablar de otro público nuevo", exagera entre risas: "Tal vez piensen que soy un artista nuevo; un poco envejecido, pero nuevo". Y ahí nomás saca a relucir una anécdota graciosa:
"Un día en una estación de servicio, se me acerca una chica y me pregunta: ¿Usted es Chico Buarque?
"-Sí.
"-¿El padre o el hijo?"
Se ríe otra vez, y dice que lo afecta poco el paso del tiempo porque siempre sospechó que era viejo y porque se lleva bien con la idea de tener 54 años y encontrar alternativas aunque carezca del ímpetu de los 20. Sabe que llegará la hora en que le dirán: "Chico Buarque, no molestes, andate a casa". "Entonces -dice-, me iré."
Pero no oculta la satisfacción por el eco que encuentra en los jóvenes.
"Muchas veces vienen a hablar conmigo. Músicos jóvenes o gente que parece estar descubriendo mi música ahora porque compró el CD. Chicos que se me acercan en la calle y me hacen preguntas. Para ellos soy una novedad. Conocían mi nombre pero no sabían bien quién era. Sin embargo, conocen las canciones, las cantan. Quién sabe si siquiera saben que son mías. Las reciben como si fueran de dominio público..."
Lo son. ¿Qué menos podía esperarse de joyas como "Terezinha", "Construcción", "Vai passar", "Samba do grande amor", "Futuros amantes"?
¿Y a qué otra gloria más alta podría aspirar un trovador?
Não, o intervalo de meia década entre dois discos de músicas inéditas nada tem a ver com preguiça, garante Chico Buarque. Se Paratodos saiu em 1993 e o novo As Cidades só chegou às lojas cinco anos depois, isso se deve a outras atividades do dono do par de olhos - verdes, azuis, ninguém sabe - mais cobiçado da MPB. "É tanta coisa que nem tenho tempo de ir a lojas de discos, só ouço os CDs que recebo", diz ele. Desde 1992, além de lançar Paratodos, Chico escreveu dois livros, Estorvo e Benjamim, teve dois netos, Chiquinho e Clara, frutos do casamento da filha do meio, Helena, com o baiano Carlinhos Brown, subiu ao palco algumas vezes (não muitas), lançou um CD de regravações, Uma Palavra, e foi enredo da Mangueira. A associação com a mais tradicional escola de samba carioca - que acabou campeã de 1998, empatada com a Beija-Flor - tomou o tempo do compositor tricolor, que acabou adiando por um ano o lançamento de As Cidades. Rendeu também um belo CD, Chico Buarque Da Mangueira, em que o homenageado cantou ao lado de nobres figuras da verde-e-rosa, como Beth Carvalho, Alcione e Nélson Sargento. Animado para falar do disco novo, da vida e nem um pouco do tri-rebaixado Fluminense, Chico recebeu SHOWBIZZ no Hotel Rio Palace, no Rio.
ShowBizz: Das onze músicas do disco, quatro ("A Ostra E O Vento", "Chão De Esmeraldas", "Assentamento" e "Aquela Mulher") já haviam sido lançadas em outros CDs. Por que repeti-las? Você só compôs essas sete?
Chico: Sim, praticamente só compus essas. Havia outra, um samba chamado "Duro Na Queda", mas o disco demorou tanto a sair que acabei enjoando dele e o deixei de fora. Das quatro que já existiam - e que, aliás, formaram o embrião do disco -, só "Chão De Esmeraldas" está disponível em um CD fácil de encontrar. Mesmo assim achei que deviam entrar no disco e regravei tudo, com novos arranjos.
ShowBizz: Está mais difícil compor hoje em dia?
Chico: Muito mais. Hoje sou muito mais exigente do que quando era jovem. Para cada música que sai são muitas palavras, sons e acordes que vão para o lixo. Calculo que uma música que faço hoje dá o mesmo trabalho de dez que compunha antigamente. E, curioso, revendo músicas antigas para colocar na minha homepage (www.chicobuarque.com.br) e no songbook (a ser lançado no ano que vem), vi muitas letras que gostaria de ter revisado, que poderiam ter ficado mais bem-feitas. Quando era jovem eu tinha um baú cheio de músicas, mais ou menos como o Carlinhos Brown, que tirou as quinze do disco dele de uma coleção de 120. Mas com o tempo você vai esquecendo, vai jogando fora, sobra pouca coisa. Para ter uma idéia meu terceiro disco tem canções que poderiam ter entrado no primeiro.
ShowBizz: Houve pressão para terminar as músicas e finalmente gravar o disco?
Chico: Claro, sem a pressão o disco jamais ficaria pronto. As próprias músicas que já estavam prontas exercem uma pressão, elas querem ser soltas, existir para o mundo. Eu já tinha umas seis músicas prontas, o que não dá para lançar o disco. Então chega a hora de me empenhar, passar o dia com o violão - o que às vezes é infrutífero - e a caneta, ou mesmo canalizar outras atividades, como ouvir música e ir ao cinema, no sentido de buscar sons que vão virar músicas. Tem uma hora que você diz: "Agora vai", aí tudo acontece, é uma coisa até meio mágica. Nesse disco aconteceu de tudo, em dois casos eu tinha idéias de letras, penei, penei e não conseguia vir com a melodia adequada. Então lembrei de fitas que eu tinha em casa com melodias do Dominguinhos e do Guinga que se adaptavam perfeitamente às idéias. (N. do E.: A parceria com Dominguinhos se transformou no "Xote De Navegação", e a música composta com Guinga virou "Você, Você - Uma Canção Edipiana".)
ShowBizz: A canção-título de seu CD anterior, "Paratodos", é um baião, e desta vez você gravou um xote. Qual a sua relação com a música do Nordeste?
Chico: Na minha infância, na casa de meus pais, se ouvia tudo da música brasileira, nordestina inclusive. É claro que o samba era o que mais tocava - ao lado da bossa nova, foi o que me fez querer ser músico -, mas volta e meia rolava um xote ou um baião. Um dos meus primeiros trabalhos semiprofissionais foi a trilha sonora da peça Morte E Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Para compor aquilo eu fui apresentado pelo escritor Roberto Freire, à época diretor do teatro, a um pesquisador (cujo nome esqueci) especializado em cultura nordestina. Ele me passou um monte de fitas, daquelas grandes, antes que existisse o cassete, com tudo da música nordestina. Um pouco daquilo que aprendi deve estar aflorando agora.
ShowBizz: É verdade que você ficou quinze anos com a música do Dominguinhos na gaveta e dez com a do Guinga?
Chico: É, por acaso me lembrei delas tanto tempo depois. A do Dominguinhos tem uma história curiosa. Na fita, ele dizia, como quem fala ao telefone: "Chico, acabei de viajar não sei quantos quilômetros e estou em um hotel em São Luís. Aqui vai um xote russo em tom menor". E, acompanhado pelo acordeão, cantarolava a melodia, que tinha realmente uma relação com a Europa do Leste. Quando resolvi gravar, procurei o Dominguinhos para perguntar se por acaso a música já havia sido gravada por alguém. Contei a história, cantarolei para ele ao telefone e ele me disse: "Chico, se você gravasse essa música dizendo que era sua eu não desconfiaria nada". Depois, ouvindo mais a fita, percebi que um trecho da melodia não estava bem resolvido e o recompus. Aí percebi que Dominguinhos havia feito tudo na hora, por isso ele não se lembrava. Quando ele veio gravar comigo e ouviu a música seus olhos brilharam como quem reencontra um filho, gerado e perdido quinze anos atrás. Foi um momento muito bonito. O curioso do Guinga é que eu tenho diversas músicas mais recentes dele, mas acabei usando essa de 1988. As outras ficam para daqui a uns dez anos...
ShowBizz: Depois de dois livros bem-sucedidos você encara a literatura como profissão ou apenas como uma atividade?
Chico: Não posso ver a literatura como uma profissão como é a música, pois o que me permite ser um escritor é exatamente o fato de a minha profissão ser a música. O músico é o sponsor (patrocinador) do escritor. Eu posso me permitir ficar um ano, ano e pouco só escrevendo um livro, sabendo que, por mais que ele vá vender, jamais vai me sustentar. O meu sustento financeiro vem da música.
ShowBizz: E o desafio de escrever um livro é maior do que o de compor?
Chico: Não, é tão grande quanto; são atividades da mesma família, a da criação. Quando começo a escrever tenho muita dificuldade, porque, por exemplo, se eu começar um livro daqui a uns meses, já terão se passado três ou quatro anos desde o último, Benjamim. Então eu praticamente já terei esquecido como se faz aquilo. Quando eu começar a fazer novas músicas vai acontecer a mesma coisa, já terá se passado um tempo enorme, então eu não vou mais saber. Cada vez que eu escolho uma atividade abandono a outra, o que é mau, porque eu perco a mão, mas por outro lado é bom, porque essa mão quando volta para aquilo está fresca, ela vem do zero e eu vou reaprendendo. Foi assim com os meus dois últimos discos.
ShowBizz: Existem planos para uma turnê?
Chico: Ainda não sei. Com o Paratodos fiquei uns oito meses em turnê pelo Brasil e já tinha uma excursão agendada pela Europa. Mas comecei a ocupar minha cabeça com o Benjamim e falei: "Pelo amor de Deus, vamos desmarcar isso!" Tenho receio de ficar amarrando muito a minha vida e depois resolver fazer outra coisa. (N. do E.: Pelo sim, pelo não, Chico já reservou o Canecão, no Rio, para uma temporada no mês de janeiro.)
"Dos grandes medalhões da MPB, Chico é o que está melhor, cada vez melhor. Não paro de ouvir o disco novo, sou até suspeito pra falar. Aliás, achei desagradáveis algumas críticas que só falavam das letras. As pessoas observam muito o trabalho dele pelo prisma da letra. Felizmente, ele é um dos maiores letristas do mundo, mas é também um dos maiores compositores. Em qualquer canção dele você bota uma flauta, um clarinete, um celo... Todas elas ficariam lindas em versões instrumentais, porque são musicalmente brilhantes. Ele, o Edu Lobo e o Guinga são os maiores compositores da MPB no momento, fazem jus ao legado do Tom. Tenho todos os discos dele em CD, gosto de ouvir ele cantando, além de adorar o repertório. Dos trabalhos recentes, Paratodos é, para mim, um dos vinte maiores discos de música brasileira de todos os tempos. Devo gravar duas músicas no songbook dele."
Ed Motta
"Nos anos 70, eu era muito fã do Chico, me lembro que comprei e curti muito o Meus Caros Amigos. Sempre me impressionou muito nele a facilidade da palavra, do verso, e aquela sensibilidade que o fazia entender tão bem a alma feminina. Também admirava nele a crítica contra o discurso oficial, ele tinha uma posição diferente dos tropicalistas, sempre manteve uma independência em relação à elite poderosa. Com essa história de o presidente ter dito que ele estava repetitivo, achei que ele fosse tomar uma atitude mais ousada, foi meio ambíguo o fato de ele ter ido falar no Fantástico. Do Paratodos só ouvi a faixa-título, gostei da música e do clipe. Estou procurando em lojas o disco novo, quero muito ouvi-lo".
Fred04, do mundo livre S/A
Entrevistadores - Ana Miranda, Regina Echeverria, Plínio Marcos, José Arbex Jr., Carlos Tranjan, Marco Frenette, Jhonny, Walter Firmo, Sérgio de Souza.
Nunca se deu tanta risada em nossas entrevistas. Para quem foi ao Rio pensando encontrar um Chico meio caído, como quiseram certas matérias saídas na imprensa, foi uma alegre surpresa. E houve emoção, não explosão, se bem que ele não deixou de chutar certas fulgurantes canelas.
Sérgio de Souza - Abriria os trabalhos dando a palavra, a primeira pergunta, às damas...
Ana Miranda - Uma das preocupações que tenho é a respeito da função social da literatura. Estive conversando com o Raduan Nassar e ele disse o seguinte: literatura não serve para nada, só serve para divertir o escritor na hora em que está escrevendo e chatear depois que termina, porque se publicar... (risos) Você acha que a literatura tem uma função social?
Chico Buarque - Tendo a concordar com o Raduan, prezo bastante a inutilidade da literatura como das artes em geral, e concordo também que a função principal é divertir quem escreve. Quando estou escrevendo me divirto à beça, quando estou compondo também, quando estou criando encontro o prazer que não encontro nas férias. As férias, pra mim, são um grande aborrecimento, fico aflito, ou porque acabei de concluir um trabalho, ou porque estou procurando o que fazer em seguida - é um intervalo inócuo.
Regina Echeverria - O Raduan diz que a coisa melhor do mundo é dormir...
Ana Miranda - Perguntei pra ele e pergunto pra você: você seria a mesma pessoa se não tivesse lido os livros que leu?
Chico Buarque - Não.
Ana Miranda - Então a literatura tem uma função?
Chico Buarque - Tem a função de alimentar novos escritores, que terão, por sua vez, o prazer em escrever e o prazer em ler. As duas coisas se misturam; na verdade, quando disse escrever, errei: meu maior prazer é ler o que escrevi, além do prazer da leitura, alimenta a sua vaidade - "fui eu que escrevi isso" -, escrevo para ler. O momento mesmo de escrever não é tão prazeroso assim, é um antegosto, você sabe que está escrevendo para ler depois, "quando ficar bom, vai ficar ótimo de ler".
Carlos Tranjan - Como você faz? Reescreve muito, parte de um roteiro, faz planos?
Chico Buarque - Quando começo um livro, não tenho um roteiro, aliás, começo várias vezes até encontrar um caminho que pareça o caminho de um futuro romance ou o que seja, mas só vou definir mais ou menos o que será esse livro, esse roteiro, depois já de alguns passos dados, algumas páginas escritas. Por exemplo, falando dos meus romances, o Estorvo e Benjamim - eles partiram de uma idéia abstrata, não partiram de nenhum planejamento. É claro que chega o momento: "Parece que vou embarcar nesse livro. Aí você traça um roteiro, que muitas vezes no curso da escrita vai se modificando.
Sérgio de Souza - Você tem um método, uma disciplina, xis horas por dia?
Chico Buarque - Não precisa, porque fico vivendo em função daquilo, trabalho o dia inteiro, o dia todo.
José Arbex Jr. - Quando você radicaliza a noção de que arte é o prazer lúdico e só isso, não está criando uma linha de ruptura muito dramática na tua própria história, um "muro de Berlim" entre o Chico artista e o Chico engajado? Você não está criando um conflito aí?
Chico Buarque - Não estou criando conflito nenhum, a não ser que você considere algumas músicas compostas em plena ditadura, onde a noção de arte e de serventia política se misturavam. Mas eu já disse: essas canções mais marcadamente políticas são circunstanciais, canções que eu não incluiria entre as minhas melhores, e não são tão numerosas assim, como às vezes parece. O que há e sempre houve é uma participação do cidadão que se fez conhecido pela sua arte, mas não sei se é o "muro de Berlim" - na minha cabeça, consigo dividir tranqüilamente o artista e o cidadão. O cidadão, na verdade, está usurpando de certa forma o prestígio do artista, aí sim tirando algum proveito disso e se colocando a serviço de alguma coisa. Está sendo de certa forma útil, no seu ponto de vista, para determinados candidatos, mas não necessariamente no momento da criação; até preferia que não houvesse havido a necessidade de misturar política com criação artística, preferia que não tivesse existido a censura, que era uma interferência direta na criação do artista. A música, mesmo a imprensa, quando você está escrevendo um artigo debaixo de censura, ela está interferindo na tua escrita, na tua criação, isso acontecia no começo dos anos 70, principalmente. Não foi uma escolha minha.
José Arbex Jr. - No disco lançado agora, Cidades, você coloca o tema cidades e ao mesmo tempo faz todo um trabalho com a tua cara, como índio, como negro, com etnias, e no mundo contemporâneo a cidade é o local onde se dá o conflito das etnias, é o que está acontecendo na Bósnia, os conflitos raciais na Europa, os neonazistas etc. De uma forma ou de outra, a tua concepção de mundo acaba interferindo, conscientemente ou não, na tua produção estética. Por isso acho estranho você separar o Chico artista e o Chico cidadão.
Ana Miranda - Que é uma pessoa só.
Chico Buarque - Quem disse que é uma pessoa só? (risos) Você está citando um caso que para mim é exemplar; a capa do disco, aliás não foi feita por mim, foi feita pelo Gringo Cardia, e que se presta a esse tipo de interpretação, mas ela foi criada depois do disco, não fiz nenhuma dessas canções pensando no conflito de etnias, isso é uma possível interpretação do Gringo Cardia e a sua já é uma outra possível interpretação do que o Gringo possa ter imaginado, que não sei se foi isso. Não vi um conflito étnico na capa do disco. Vi uma conjunção étnica com a minha cara, mas não pensei na Bósnia. Há uma infinidade de interpretações possíveis, só que todas posteriores à criação, inclusive a minha. A música Assentamento, por exemplo, as fotos do livro do Salgado (Terra) me serviram de motivação, de inspiração, ou o que você quiser, para escrever aquela música, mas ela foi criada dentro do meu universo estético. A partir daí fiquei satisfeito porque a música, enquanto música, entrou no livro do Salgado, e o livro tinha uma finalidade prática mesmo, até pecuniária, os direitos do livro foram cedidos para os sem-terra, aí é outra coisa. "A música já está criada e vamos ver o que a gente faz com ela." A gente cria um objeto de arte, a gente pode criar a partir dessa música uma utilidade prática, mas criar uma música pensando na sua finalidade objetiva me parece perigoso, empobrecedor mesmo.
Plínio Marcos - Na minha opinião, você é o poeta que mais interpreta a alma feminina, isso passa pra todo mundo - quando vai trabalhar com essas músicas, principalmente, você usa a intuição partindo da sua vivência ou deixa fluir na hora?
Chico Buarque - Me surpreende que você faça essa pergunta. (ri) Navalha na carne...
Plínio Marcos - Navalha na carne eram três monstros, e as suas não, são mulheres ricas de delicadeza.
Chico Buarque - Pois é, você, para criar a Neusa Sueli, de certa forma teve de intuir. Monstro ou não monstro, era uma personagem feminina que você criou.
Plínio Marcos - A minha sensibilidade estava violenta, eu estava rebelde, e você não. É sempre meigo e doce com as mulheres.
Chico Buarque - Não, nem sempre, em textos como Gota d'água, por exemplo, que escrevi junto com o Paulo Pontes, aquela mulher também era uma monstra, aquela Medéia do subúrbio. Agora, a canção, de certa forma adocica um pouco essa monstruosidade, então a canção que ela canta, que é a Gota d'água, e a outra, Bem querer, não são canções monstruosas. A melodia, de certa forma, adocica o que poderia haver de literatura em uma letra de música. Tanto é que escrevo livros sem música, quer dizer, é uma literatura desprovida de música, muito mais seca que a letra das canções que são escritas em função daquelas melodias.
Marco Frenette - Existe uma preocupação com o trabalho do seu pai, o grande Sérgio Buarque de Hollanda, principalmente agora, que está fazendo mais literatura, você criou alguma relação com o ofício dele de escritor, de historiador? O trabalho do seu pai lhe vem à mente?
Chico Buarque - Sempre houve isso, como já falei outras vezes. Quando comecei a escrever literatura, antes mesmo de fazer música, era com meu pai que eu dialogava. Tive acesso ao escritório do meu pai através da senha da literatura. Quer dizer o meu ingresso, porque o escritóno dele era fechado, ele ficava lá e crianças eram indesejadas, a não ser a filha preferida - meu pai tinha a filha preferida, ela podia entrar...
Ana Miranda - Quem era a filha preferida?
Chico Buarque - A Ana, tua xará. Todo mundo morria de ciúme dela, porque só ela podia ir lá, na cadeira dele, sentava no colo dele, mexia nos papéis dele, o resto não entrava. Então, só houve acesso ao escritório do meu pai quando levei os meus primeiros escritos, e ele, apesar de eu ser um garoto de quinze anos, levou a sério, me estimulou a escrever. É claro, pichando aquilo que estava escrito ali, dizendo: "Você tem de ler mais." Mas levando a sério, observando, lendo, né? O primeiro conto que publiquei no suplemento do Estado de S. Paulo foi o meu pai que encaminhou ao Décio de Almeida Prado. É um conto de juventude, enfim, isso permanece ainda hoje, aquela história do poema do João Cabral, aquela pessoa que ele imagina olhando seu texto por cima do seu ombro, não é sempre, mas muitas vezes é meu pai. Quando escrevi Fazenda modelo, meu pai ainda era vivo e eu mostrava para ele os primeiros capítulos, ele leu, até gostou. Enfim, eu gostaria, entre outros motivos, de ter o meu pai vivo, sinto falta dele. Quando termino um livro, seria a primeira pessoa a quem eu mostraria o original.
José Arbex Jr. - Quando você teve neto pela primeira vez, pensei o que seria ser filho do Chico Buarque e neto do Sérgio Buarque. É um peso, hem! O teu pai nunca foi um peso nesse sentido, uma coisa de competição?
Chico Buarque - Não, engraçado, só fui tomar conhecimento da importância intelectual do meu pai já homem feito. Quando eu era criança, não sabia exatamente o que meu pai tanto fazia naquele escritório, (risos) aquele cléc, cléc, cléc, o barulho da máquina. Eu não tinha muito essa idéia do meu pai, mesmo porque até professores raramente se referiam a ele como alguém importante. Muitas vezes, durante a minha infância toda, me perguntavam se eu era filho do Aurélio, e muitas vezes diziam: "Olha o sobrinho do Aurélio", (risos) e eu fiquei com uma certa aversão ao Aurélio Buarque de Holanda. Eu dizia: "Não sou filho, não sou sobrinho, ele é um primo muito distante do meu pai. (risos) Porque aquilo me chateava um pouco, não queria ser filho do Aurélio. Poucas vezes, um professor de história dizia: "Ah, filho do Sérgio Buarque de Hollanda. Mas não era uma referência forte como intelectual.
Plínio Marcos - E na bola, teu pai te influenciou?
Chico Buarque - Nada, meu pai não gostava de futebol, dizia que torcia pelo Bonsucesso. (risos)
Regina Echeverria - É verdade que você está mais ligado em literatura do que na música?
Chico Buarque - Não, acho que a entrevista se encaminhou um pouco para esse lado, não sei se estou mais interessado em literatura, tento alternar as duas coisas. No momento, não, acabei de gravar um disco!
José Arbex Jr. - Numa entrevista, você falou que não tinha mais vitalidade para fazer MPB, disse que pra fazer MPB tem de ser jovem.
Chico Buarque - Não, é porque isso aí tem sido muito cobrado, "tanto tempo entre um disco e outro, cinco anos" - tento dizer que não sou um caso isolado, e é até surpreendente que, aos 54 anos, esteja lançando um disco de música popular. Não é natural, natural num compositor de música popular é que ele vá produzindo cada vez menos. Você vai olhar em volta, no Brasil e fora do Brasil, o sujeito faz muita música aos vinte, trinta, quarenta anos. Uma interpretação minha é que isso tem a ver até com o público que consome música popular - não ouço mais música popular como ouvia quando tinha vinte anos, por exemplo. Não gosto mais tanto de música popular como gostava, então acho que é uma arte de juventude.
Plínio Marcos - Impressionante é aos 54 anos ele ser tarado por futebol. (risos)
Chico Buarque - Pois é.
Ana Miranda - Ser tarado, não, ser craque do futebol.
Chico Buarque - Mas, aos 54 anos, "você não corre mais como corria aos 20 anos"... (risos). Acho que correr o que corro já está de bom tamanho. (risos)
Ana Miranda - E você faz outras coisas, nesse intervalo de cinco anos tem um milhão de coisas, não é?
Chico Buarque - Pois é, mas como agora estou falando de música, lançando um disco, as pessoas que vão falar do disco ignoram absolutamente o resto, é como se não existisse, aí são dois departamentos estanques. Quando eu lançar meu próximo livro, as pessoas vão me perguntar: "Mas por que cinco anos entre esse romance e o anterior?" E vou ter de falar, quase que com vergonha: "Porque eu estava fazendo música, e depois de música eu fiz shows, (risos) e essas coisas ocupam muito tempo da gente." E não é esse cansaço que se atribui, porque gosto, como falei antes, meu grande prazer é estar trabalhando. Agora, o ritmo é outro. É normal que seja outro. É menos espontâneo do que era aos vinte anos. Você procura mais, burila mais.
José Arbex Jr. - E qual tua avaliação em relação ao que os jovens estão produzindo hoje de MPB?
Chico Buarque - Ouço muito menos do que ouvia antes.
José Arbex Jr. - Você ouve o que hoje?
Chico Buarque - Quase nada. (risos)
José Arbex Jr. - Por quê?
Chico Buarque- Porque durante meses, agora nos últimos três quatro meses, estive simplesmente dedicado a gravar meu disco. Quando estou compondo e gravando, não tenho espaço para ficar assimilando músicas alheias, a cabeça está toda voltada para a criação, e é assim também quando estou escrevendo um livro. Aí não leio outros livros, a não ser que esteja ligado àquilo que estou escrevendo, uma pesquisa ou coisa assim, mas não leio ficção quando estou escrevendo ficção.
Plínio Marcos - Fale pra mim, entre as tragédias da sua vida, o que você tem a dizer do Fluminense? (ri)
Chico Buarque - Não é tragédia nenhuma, Plínio, é igual à sua com o Jabaquara. (risos)
Plínio Marcos - Aliás, o Djalma, presidente, vai te mandar um emblema do Jabaquara. Provavelmente você será torcedor honorário do Jabaquara.
Sérgio de Souza - Por falar em futebol, o seu time de botão era o Politheama, era isso?
Chico Buarque- O meu time de botão era Politheama, não tenho mais.
Sérgio de Souza - Tinha até um hino, não é, quando você entrava em campo? Você lembra do hino?
Chico Buarque - Lembro.
Sérgio de Souza - Como era?
Chico Buarque - (cantarola) Politheama, Politheama, o povo clama por você/ Politheama, Politheama, cultiva a fama de não perder. (risos)
Plínio Marcos - E quem eram os seus adversários nisso aí?
Chico Buarque - Sabe que eu jogava muito sozinho, não é? (risos). Eu contra eu. (risos) Aí, no tempo do Jabaquara, eu fazia campeonatos. Campeonatos paulistas, campeonatos cariocas, juntava aqueles doze times, que eram doze na época aqui no Rio, e doze em São Paulo. Fazia o campeonato paulista, fazia o campeonato carioca e depois fazia o Rio/São Paulo. (risos)
Plínio Marcos - Sozinho?
Chico Buarque - Sozinho, eu contra eu mesmo, e roubava um pouquinho também.
Ana Miranda - Pra quem você roubava?
Chico Buarque - Pro Fluminense. (risos) Ele era sempre campeão.
Johnny - Você nunca teve um rival de botão?
Chico Buarque - Sim, todo mundo tinha time de botão, eu jogava com outras pessoas também. Mas fazia a seleção, e pra fazer a seleção tinha de fazer o campeonato interno, e esse aí eu ficava horas (risos), e era no chão de madeira, na casa dos meus pais, e pá, pá, pá, horas jogando botão.
Plínio Marcos - E implicava solidão esse jogar botão sozinho?
Chico Buarque - Claro, o que eu mais jogava era sozinho. E ficava narrando.
Plínio Marcos - Narrava o jogo?
Chico Buarque - Narrava, claro. (risos)
José Arbex Jr. - Você compõe, joga campeonatos, planeja cidades sozinho, você mergulha na tua solidão e daí surge um mundão de personagens, no caso, cidades, ruas, vias, e quase tudo?
Chico Buarque - Não, cidades tenho feito menos. Antigamente fazia cidades completas, tinha tudo ali, tinha linha de ônibus, os cinemas, com nome, tudo certo.
Carlos Tranjan - Você falou que preferia não ter composto sob aquela censura toda. Você acha que hoje a gente não está num período menos criativo de MPB, o que vende hoje é axé, pagode, não tem mais a dimensão que tinha naquela época. Você vê isso como uma coisa geral brasileira? Você acha que aquele seria um período tão criativo se não tivesse essa censura?
Chico Buarque - Esse período, o período mais fértil da música e o período que deu início a tudo o que a gente conhece hoje como moderno cinema brasileiro, como moderno teatro, isso antecede a censura. Há um equívoco muito grande. Falam em época dos festivais, mas foi a partir da bossa nova que se desencadeou isso tudo. Foram os finais dos anos 50, ali que a coisa explodiu. E, quando comecei a gravar, a segunda geração da bossa nova e tal foi nos anos 60, até meados dos anos 60 não havia censura. Volta e meia ouço falar: "Não, porque a censura não sei o que..." A censura só passou a existir institucionalizada a partir do AI-5, fim de 68. A partir de 69 é que existe censura. Tive nessa época, antes de 68, um problema com uma música, Tamandaré, que aí a Marinha implicou e proibiu. Mas a censura como censura não existia. Então, entre 64 e 68 - já tínhamos uma ditadura militar -, as artes praticamente não foram incomodadas. A chamada música de protesto, teatro de resistência, tudo floresceu entre 64 e 68. Então, esse período a que as pessoas se referem tanto, "ah, os festivais, hã, hã, hã" não, não havia censura.
Sérgio de Souza - Na própria imprensa, antes de 68, não havia.
Chico Buarque - Não havia. Leio, às vezes, barbaridades sobre isso. A censura começou a existir em 69, e foi abrandando em 75/76. O período Médici foi o de pior censura, e não ajudou em nada. Se você for olhar o que se produziu em música e em cinema, em teatro, vai haver um buraco. Isso são fatos. São fatos. Constatei isso com o meu trabalho, quando fui olhar o primeiro livro compilando as minhas músicas, edição dupla da Companhia das Letras. Você vai ver lá, 61/62 eu vinha produzindo em quantidade razoável, ali aquilo foi esvaziando, e em 75/76 começa a crescer de novo. E vai ver o que é que se produziu em cinema, tudo, nesse período. Não é verdade. Volta e meia surge esse argumento: "Não, porque a censura de certa forma estimulava" - não estimulava nada. Pelo contrário.
Regina Echeverria - É que isso ficou mesmo meio no ar.
Chico Buarque - Mas as pessoas misturam muito 64 com 68. O Plínio Marcos sabe disso. Quando veio aquela coisa, aí sim houve todo um movimento muito grande em torno do teatro e...
Plínio Marcos - Porque queríamos, se você me permite, combater com a nossa arte.
Chico Buarque - E combatíamos, por quê? E a arte tinha uma importância maior, por quê? Porque, a partir de 64, partidos políticos foram banidos, sindicatos, movimento estudantil, tudo isso foi muito afetado em 64. A arte, a cultura, não foi. Deixaram esse espaço livre. Diziam que Castelo Branco gostava muito de teatro. Havia um espaço para produzir. E esse espaço até ficou supervalorizado por causa disso. Pela carência de discussão política onde deveria acontecer, no Congresso, nas universidades, nos sindicatos.
José Arbex Jr. - Mas hoje em dia não está acontecendo uma coisa inversa? Qualquer atitude que um artista toma hoje em dia se torna um fato político, pelo poder da mídia. Porque justamente existe uma crise na ideologia, as pessoas não sabem em quem acreditar; existe uma crise do discurso, crise da narrativa de mundo, o socialismo desabou. Então, se um artista toma uma postura, se o Caetano fala que foi legal o Antônio Carlos Magalhães ter feito o Pelourinho porque restaurou o centro de Salvador, isso se transforma num fato político, querendo ou não. Que dizer, o gesto do artista, querendo ou não, se transforma num fato político, predominantemente por causa do poder da mídia e do mecanismo de identificação que existe entre a população e o artista. Você não acha isso?
Chico Buarque - Mas acho que isso é uma remanescência do papel político que o artista desempenhou no período de exceção.
José Arbex Jr. - Será? O John Lennon, por exemplo, não viveu período de exceção nenhum, mas o gesto dele era um gesto...
Chico Buarque - Estou falando do Brasil. Agora, se você quiser estender para o resto do mundo, vai ver que os artistas tiveram uma função também extraordinária nos Estados Unidos na mesma época e havia a Guerra do Vietnã. Então, a gente via a Jane Fonda, via a Joan Baez cantando, o Bob Dylan que tinha uma importância política, os Beatles estavam nesse negócio também. E havia também toda uma revolução comportamental na época, aí entra todo o movimento de contracultura, e o Paz e Amor, e está tudo ligado àquele momento. E a importância dos artistas daquela geração, você falou de Caetano, falou do John Lennon, mas, antes de tudo, a reação permaneceu porque aquele período foi um período de exceção. Hoje em dia, um artista que não tem esse passado, um artista que está surgindo agora, ele não tem essa expressão política, não se vai dar destaque maior a uma opinião política que ele venha a ter. E porque, outra coisa, hoje em dia, aqui no Brasil, voltando à vaca fria, o artista jovem já encara o período de eleição, por exemplo, como mais um fato do show business. É uma época em que ele vai fazer shows para candidatos, vai cantar nos chamados showmícios, porque é pago para isso. Faz parte da agenda comercial. O empresário deve agendar o artista, chega essa época, ali vamos ter eleição, então o preço do artista sobe.
Carlos Tranjan - E você acha que isso contribui de certa forma para piorar um pouco a música popular que se faz hoje?
Chico Buarque - Mas uma música marcadamente comercial sempre existiu, como existe hoje, e não estou aqui para julgar se tal música é boa ou não é boa, não é meu papel. Agora, sempre existiu uma música mais comercial do que a minha própria música, que é uma música que ganhou, com o tempo, um certo prestígio e destaque na mídia e tal, no seu tempo não foi tão comercial assim. Havia outras coisas que vendiam muito mais, que tocavam muito mais no rádio.
Plínio Marcos - Com a sua música ou com a sua literatura, você continua assustando os poderosos. Eles ficam arrepiados.
Chico Buarque - Bondade sua.
Plínio Marcos - Por que que veio esse Fernando Henrique falar? Porque você assusta ele.
Chico Buarque - Assustar eu não assusto, não, não, não...
Plínio Marcos - Aquele ali tem medo da sombra. (risos) E você é perigoso, por isso você foi subversivo. Foi, não, é.
Ana Miranda - Eu tenho observado uma coisa ainda, voltando à música. Outro dia entrei num restaurante muito elegante, estava tocando um bolerão daqueles que antigamente a gente ouvia em rodoviária.
Plínio Marcos - E na zona (risos)
Ana Miranda - E na zona. Na zona, nunca fui, mas enfim pode ser também. E, no Festival de Montreux, foi a Carla Perez representar a música brasileira, está acontecendo um fenômeno que algumas pessoas chamam de mediocrização da cultura, quer dizer, como é uma cultura de massa, então sempre o nível é muito por baixo. Mas existe uma outra interpretação, que talvez seja apenas minha, não sei se alguém concorda: é que talvez isso seja, efêmera ou não, uma vitória da cultura popular sobre a cultura erudita. Você veria dessa maneira também?
Chico Buarque - Mas você está me colocando onde, na cultura popular ou na erudita?
Ana Miranda - Nas duas, você é completo. Mas você é uma coisa mais elevada, só que...
Regina Echeverria - Faz música popular...
Chico Buarque - Faço música popular.
Sérgio de Souza - Mas não tão popular assim.
Chico Buarque - Isso que eu tô falando, porque há uma tendência de imaginar que nos anos 60 a música era mais popular do que na verdade era. A bossa nova não era popular. Ela tinha um trânsito, assim, no meio universitário, e tal.
Plínio Marcos - Mas você era um curtidor das músicas do Noel. Se bem me lembro...
Chico Buarque - Era e sou.
Plínio Marcos - ...uma vez vi você disputando, nem me lembro quem era a outra figura, quem sabia mais músicas do Noel. Permanece esse gosto?
Chico Buarque - Permanece, mas tudo foi filtrado pela bossa nova. Comecei a fazer música a partir da bossa nova, tocava violão a partir da bossa nova. Depois de um certo tempo, não só eu como muitos bossa-novistas começamos a procurar na música dos anos 30, dos anos 40, um alimento novo para a bossa nova. Quer dizer, a bossa nova de meados dos anos 60 não se parece mais com a bossa nova inaugural. Agora, aqueles elementos harmônicos, tudo o que o Tom Jobim e o João Gilberto trouxeram para a música, eles continuaram valendo. Quer dizer, a minha leitura de Noel Rosa, hoje, passa pela bossa nova. Mas eu insisto, ela não era uma música popular. No tempo em que eu fazia sucesso na televisão, na TV Record e outras, quem fazia sucesso mesmo era Roberto Carlos, era Wanderléia, era Jerry Adriani, eu estava no segundo time, eles vendiam muito mais, tocavam muito mais, levantavam auditório. Não muda muito.
Sérgio de Souza - Em termos mais amplos, de imprensa mesmo, de arte em geral, você acha que hoje a tendência é de decadência ou marasmo e não de ascendência, como teria sido na sua época?
Chico Buarque - O que acho talvez mais significativo tem a ver com o que a Ana Miranda falou, de ela ter entrado num restaurante e ter ouvido uma música que alguns anos atrás ela ouviria numa rodoviária. O que acho é que as pessoas que têm dinheiro hoje são culturalmente muito mais desinteressadas do que trinta anos atrás. Quer dizer, de certa forma, nos anos 60, os ricos se interessavam por cultura muito mais do que hoje. A classe dominante economicamente tinha uma preocupação cultural que hoje a classe dominante, ou emergente, não tem. Muitas vezes também entro num restaurante desses, sento, estou escrevendo um livro, olho em volta e pergunto: "Quem é que vai se interessar por este livro?" Olho em volta e penso: "Ninguém que esteja sentado neste restaurante." (risos) E você se lembra de que nos anos 60 era chique estar bem informado, e assistir a uma peça de Plínio Marcos - desculpe, em nome da verdade -, e ouvir jazz, e colecionar obras de arte, e se interessar, não em comprar, não pelo comércio de obras de arte, mas você se interessar por obras de arte.
Carlos Tranjan - Você liga a TV e não tem mais festivais, tudo bem, mas não tem MPB. Tem o axé, tem o pagode, tem o sertanejo. Então, aconteceu alguma coisa.
Chico Buarque - O que muda muito com relação aos anos dos festivais é que o que se valoriza hoje é a imagem sobre o som. Quer dizer, temos a televisão o tempo todo. Por que não tem MPB? Por que o sujeito sentado no banquinho tocando violão, como era nos anos 60, não só o João Gilberto como nós todos quando começamos, está mostrando uma musica que não tem interesse mais nenhum a para a televisão. Você tem de mostrar alguma coisa, você tem de dançar, você tem de... Já participei de shows e não só no Brasil, na Itália, por exemplo, um show que fiz na televisão lá, o que você está cantando não tem importância nenhuma. O som que você está ouvindo naquele palco não tem importância nenhuma, você não tem ali retorno, não tem nada. Agora, tem uma grua que vai mostrar a imagem daquele estádio lotado, porque o público também faz parte da mise-en-scène toda, do impacto visual, aquilo tudo é mais importante do que a música em si. Então, a televisão não tem interesse porque provavelmente o público que está sentado em casa não tem interesse em ficar vendo o sujeito cantando. Para isso tem o disco, então o sujeito ouve o disco. Não tenho a menor pretensão de fazer sucesso na televisão. A gente grava o clipe porque tem de gravar, enfim, você vê que aquilo, de uma forma ou de outra vai chamar a atenção para o disco. Então estou dando entrevista, batalhando, para chamar a atenção para um disco. Esse disco vai ser ouvido, espero, o sujeito ouve no carro, no meio do trânsito, ouve em casa, agora, não tenho a menor ilusão de fazer sucesso na televisão.
Plínio Marcos - Mas, você que é um dos mais brilhantes letristas da música brasileira, não acha que a tua letra é importante, que os caras vão ouvir e vão curtir? Aquelas tuas letras maravilhosas a juventude curtia, você acha que não há mais possibilidade de eles curtirem?
Chico Buarque - Ah, mas há. Não estou me queixando. Não sei quem compra o disco, mas, de certa forma, o grande comprador de disco é jovem. Claro que carrego uma geração, imagino a minha geração, que parcialmente é responsável por parte da vendagem. Agora, se eu for contar só com o público cinqüentão, a gravadora vai ficar decepcionada. Os shows que dei, a última temporada que fiz também davam uma idéia disso, porque havia o público que é mais cinqüentão sentado nas mesas e havia uma quantidade, acho que até maior, de filhos, e netos talvez, cantando juntos canções de trinta anos atrás.
Regina Echeverria - Você não gosta mesmo de fazer shows ou isso é uma lenda?
Chico Buarque - Não gosto especialmente de fazer show. Entendeu, não gosto muito da idéia de, se tiver de fazer show significa alguns meses do ano já comprometidos. Vou ter que ensaiar muito, porque a cada vez que paro são anos de falta de prática, então vou ter de ensaiar muito para ficar seguro. Tenho de tomar coragem para começar. Depois que começa, vai mais ou menos sem maiores sofrimentos.
Johnny - Quando pego um CD como o teu, fico ouvindo duas, três, quatro, cinco vezes até a compreensão da totalidade de uma letra. Daí dou uma releitura daquilo, e é um tesão. Você tem consciência desse processo, do quanto incomoda a elaboração até pegar na totalidade da gente toda a sua mensagem?
Chico Buarque - Gosto que seja assim. Se eu pudesse acreditar que o disco não vai ser ouvido uma vez, mas diversas vezes por cada um, aí a música vai ter cumprido o seu papel. Tenho absoluta certeza de que uma primeira audição não vai dar a idéia toda. Porque corresponde à criação, a criação também demandou um tempo largo. Há detalhes que são resultado de um grande trabalho, aí parece até com a reescritura dos textos literários.
José Arbex Jr. - Desde que me conheco por gente ouço você, que me provoca uma raiva, às vezes, muito grande...
Sérgio de Souza - InVeja.
José Arbex Jr. - InVeja. Primeiro é o plano dos achados lingüísticos. Onde você achou "gelosia" pra botar no meio da letra, como você foi caçar essa palavra? Isso, uma vertente, a dos achados lingüísticos. A outra vertente é a que o Plínio já abordou e a Ana Miranda também. Você incorpora um personagem feminino, dá vida para aquele personagem que é de uma densidade absurda. Não tem nenhum artificialismo, Ana de Amsterdã, a Geny. Eu queria saber um pouco como ocorrem essas coisas com você? Você se fecha num quarto e começa a pensar e aí desce o Espírito Santo?
Regina Echeverria - Você quer também perguntar se ele usa o Aurélio?
José Arbex Jr. - Você usa o Aurélio?
Chico Buarque - O Aurélio eu não uso. (risos) O meu dicionário é o Caldas Aulete, cinco volumes. (risos) E tem um outro dicionário, aliás, por falar nisso, que é herança do meu pai. Meu pai me deu, e disse: "Isso vai te ser útil." E é tão útil que já comprei três em sebo, porque ele vai se desmilingüindo todo, que manuseio muito, é um dicionário analógico, aquilo é fundamental. Outro dia, li uma entrevista do João Ubaldo, perguntaram qual era o livro de cabeceira dele, ele disse que é esse. (risos) Que é uma leitura maravilhosa. Não lembro de gelosia, por exemplo, pode ser que tenha chegado através disso, quero botar janela mas não quero botar janela aí vai lá janela, persiana, brararanranran gelosia!, é maravilhoso, gelosia, porque a gente sabe que é fácil imaginar outro significado...
Ana Miranda - O significado também do ciúme, né?
José Arbex Jr. - E os pássaros da música Os homens vão chegar, você vai falando um monte de pássaros um atrás do outro, aqueles nomes todos. Aí você foi pesquisar no dicionário nomes de pássaros todos?
Chico Buarque - Ali fui, claro, na velha e boa enciclopédia.
José Arbex Jr. - E as mulheres, como desce o espírito das mulheres?
Chico Buarque - Mas foi o que falei pro Plínio, muitas dessas mulheres são personagens de teatro. Agora mesmo, nesse disco, tem uma canção no feminino, porque é uma personagem de um filme, e me foi encomendada uma música.
José Arbex Jr. - Mas, se alguém me encomendar "faça um personagem x, y, z" vou ficar olhando para a cara do sujeito e dizer. "Tá bom, me procura daqui a um ano".
Chico Buarque - Sou compositor, é a minha profissão, não é?
Plínio Marcos - Você, que é um bom contador de história, qual foi o mais ridículo censor que você encontrou na sua carreira de censurado, perseguido? Tem histórias?
Chico Buarque - Na verdade, não tinha muito contato com o censor. Os poucos contatos que tive com censor foram durante temporadas de shows, aí o censor aparecia, e às vezes se apresentava, ia lá atrás. Nunca tive contato com censor de texto, de música. No caso das músicas, quando iam pra Brasília, tinha um advogado da gravadora que ia tratar disso. Às vezes, por exemplo, havia proibições parciais: "Tal letra só passa se você mudar esse verso." Ele ligava de Brasília, aí eu: "Me liga daqui a dez minutos." Não pode "nasci brasileiro", aí daqui a dez minutos - essa deve ter sido dois minutos, porque eu podia ter pensado um pouquinho mais: "Põe batuqueiro." (risos). Eu estava com pressa, porque podia ter pensado uma coisa melhor. (risos) Mas havia essa pressa, o cara tinha de voltar naquele mesmo dia, a música seria liberada para ser gravada no dia seguinte. Havia toda uma pressa industrial em gravar o disco, e aquilo atrapalhava a mim, sim, mas atrapalhava a indústria do disco também, era uma complicação danada.
Carlos Tranjan - Eles faziam sugestões?
Chico Buarque - Sugestões como "põe essa palavra no lugar de outra" não, não chegaram a esse ponto. Mas era assim: "Muda tal palavra." Aí você mudava, para dar o prazer, eles queriam sentir a satisfação de ser acatados enquanto autoridade. Havia uma exercício de poder. Muitas vezes alterei, aí tive mais de dez minutos, com versos melhores. Mas estava alterado, eles ficavam satisfeitos: "Bom, o sujeito obedeceu." Aconteceu várias vezes, em muitas músicas. Outras, não: proíbem "Teus pêlos atrás da porta", bota o "teu peito", empobrece. Mas aquela outra, até era do Vinícius, eu gostei da minha solução: "Pede perdão pela omissão um tanto forçada", aí eu pus "pela duração dessa temporada", achei que ficou melhor. (risos) A outra, O meu amor, tinha uma coisa assim também (cantarola): "Me deixar em brasa...", não lembro o que era, também foi proibida, aí botei (cantarola): "Desfruta do meu corpo, como se o meu corpo fosse a sua casa" - vem cá, ficou melhor. (risos)
Jhonny - Quando você consegue atingir o feminino com essa propriedade toda, é um estado de paixão, você está vivendo uma paixão, é você viver nesse estado constantemente?
Chico Buarque - Não, a paixão você inventa.
Jhonny - Mas é a paixão pelo feminino, por uma mulher, você está apaixonado por essa mulher. É essa paixão assim ou não é?
Chico Buarque - Não necessariamente. Há uma coisa parecida com isso, mas não precisa ser real. São paixões que você inventa também. Você entra em um estado de paixão, como você falou, essa paixão não precisa estar aí.
José Arbex Jr. - Mas você decide, "vou inventar uma paixão"?
Chico Buarque - É, faço certo esforço... (risos)
José Arbex Jr. - Como você inventa uma paixão?
Chico Buarque - Mas inventa, ué. Se você falar a prática, você não fala nada.
Plínio Marcos - Entre um jogo de botão e outro, você batia uma punhetinha. Porque aí entrou essa riqueza.
Chico Buarque - É possível, sabia que tem um certo tesão em jogar botão sozinho? (risos) Um certo vício solitário, aos catorze anos, acho que no intervalo...
José Arbex Jr. - Esse negócio de inventar paixão é meio contraditório, porque a paixão, por definição, é um sentimento que te assalta, te possui. Ela te joga para determinadas atitudes extremadas, eventualmente. Quando você diz "eu invento a paixão", numa certa forma você está dizendo "eu controlo o meu estado apaixonado". Mas a paixão é a antítese do controle. Como você pode exercer esse controle sobre estar apaixonado?
Chico Buarque - Mas eu não disse que controlo essa paixão. Disse que invento uma paixão e me envolvo, fico apaixonado.
José Arbex Jr. - Então você controla...
Chico Buarque - Não, não, não. Puxo por ela, é diferente. E ela às vezes vem, às vezes não vem. Não preciso estar voltado para uma pessoa, é isso. A paixão começa a existir dentro da tua imaginação. Às vezes é a paixão pela coisa que você está fazendo.
José Arbex Jr. - Quando você compõe Ana de Amsterdã, ou Bárbara, te vem uma figura concreta de personagem feminina, ou é uma coisa abstrata?
Chico Buarque - Aí vinha porque eram personagens de uma peça de teatro. Ana de Amsterdã e Bárbara existiam enquanto personagens na dramaturgia. As músicas surgiram depois.
Sérgio de Souza - Você tem agora a Cecília. Também é fruto da imaginação?
Chico Buarque - Cecília é mais simples ainda. Cecília é simplesmente o nome que corresponde ao que ele está falando. É um nome que não se diz, é um nome que se sussurra, é um nome que se cicia. Cecília é isso. Então ele está falando de uma paixão de um nome que não pode ser pronunciado ou que não deve ser pronunciado, um nome que é soprado, que é sussurrado. A música já estava quase toda pronta e não tinha esse nome. Eu queria um nome para essa canção. A música é feita de parceria com o Luís Cláudio Ramos. Aí eu perguntei para o Luís Cláudio: "Qual é o nome da tua namorada?" - para ver se cabia, mas não cabia na coisa. Aí falei, não, tem de ser um nome assim, só isso. Simplesmente.
Plínio Marcos - É um truque.
Chico Buarque - É, às vezes é um truque.
Ana Miranda -Tem aquela também da mulher que é abandonada pelo cara e, de repente, fica felicíssima. Isso, para as mulheres, é a coisa mais maravilhosa que tem.
José Arbex Jr. - Olhos nos olhos.
Ana Miranda - É. (cantarola) "E sentir que sem você eu passo bem demais." Acho que aí você conquistou uns oito milhões de mulheres.
Chico Buarque - Eu me apunhalando em praça pública. (risos)
Ana Miranda- Exatamente.
Chico Buarque - Quando fiz aquilo, tudo bem, mas quando ouvi... aí me assustei. (risos)
José Arbex Jr. - Quando você compunha com o Tom, vocês discutiam sobre a letra da música? Você lia, ele propunha alterações?
Chico Buarque - É, porque o Tom tinha muito isso de ficar cantando, e ficava mudando a letra depois de pronta. E eu tinha de ficar brigando com ele: "Não, é assim." "E se fosse assim e tal..." Havia umas briguinhas ótimas com o Tom. Mas, quando chegava a letra pronta, já estava pronta para mim, porque eu não fazia ali no calor da hora. Ele me dava a música... e assim é com todos os parceiros. Levo aquela música pra casa, burilo, burilo, quando entrego, não entrego rascunho. Tenho horror de mostrar rascunho. Então, quando tá pronto, estou convencido de que vai ser aquilo. Vai ser difícil o sujeito mudar. Se tiver alguma coisinha, até aceito, mas com o Tom consegui segurar direitinho. Às vezes acontecia isso, depois de pronta a letra, aí ele mudava a música. Eu dizia: "Mas, ô Tom, eu fiz a letra para aquela música." (risos) Mas aí eu não podia fincar pé, porque a música era dele.
Plínio Marcos - Vem cá, você se ligou tanto em Noel Rosa, não se ligou em Wilson Batista?
Chico Buarque - Também. Noel, Wilson Batista, Geraldo Pereira. Naquela época, antes da bossa nova, eu ouvia isso tudo. Ouvia muito Ataulfo Alves, eu reconheço alguma coisa desses autores todos nas minhas músicas.
Regina Echeverria - O que você achou de a Veja ter pedido para você pendurar a chuteira?
Chico Buarque - A Veja pediu para eu pendurar a chuteira?
Regina Echeverria - Você não leu a crítica da Veja?
Chico Buarque - Eu li.
Regina Echeverria - Que está na hora de pendurar a chuteira. Você não viu isso?
Chico Buarque - Não lembro exatamente disso, mas é simpático. (risos) Li a entrevista uma vez só, não entrevista, era uma matéria. Li as matérias todas, então posso estar misturando uma coisa com outra. A da Veja era um pouquinho precipitada. (risos).
Regina Echeverria - Eles foram para o lado pessoal.
Chico Buarque - É, e o trabalho de pesquisa não foi muito feliz, eu soube que eles estavam procurando muita gente. Mas as pessoas acho que têm dificuldade de falar com a Veja. Muita gente me falou: "Ah, não, me procuraram pela Veja, mas preferi não falar." Por algum motivo não quiseram falar com a Veja, então aí o trabalho de pesquisa deles ficou meio prejudicado, porque li que falava do maitre de um restaurante que dizia que eu tomava isso, que tomava aquilo, se preocuparam muito que eu beba ou não beba nessa matéria. E o maitre falava isso... Só que é o maitre de um restaurante que não freqüento, um tal de Dom Camilo, lá em Copacabana. Fui uma vez porque era perto da casa da minha mãe, há muito tempo. Aí ele falou que fiz seis anos de análise para largar a bebida. Nunca fiz seis anos de análise, (ri) e não larguei a bebida. (risos)
Jhonny - Mudando de pato pra ganso: como é a sua ligação com Deus, com Cristo? Porque, de repente, em algumas músicas vejo uma oração, uma coisa assim contemplando a vida...
Chico Buarque - Não, não tenho preocupação religiosa maior. Não vejo isso... Talvez haja algum lado de contemplação. Músicas que falam mais diretamente da natureza, há alguma coisa contemplativa aí. Mas Cristo, não sei.
Ana Miranda - Frei Betto faz a intermediação. (risos)
Chico Buarque - Frei Betto cuida desse pedaço.
Sérgio de Souza - Voltando a essa coisa de imprensa, deve ter havido um estremecimento, que você ficou desagradado, parece, por matérias que publicaram há anos, e ficou meio na defensiva, evitando a imprensa?
Chico Buarque - Já me aborreci bastante com imprensa, mas o que me levou a ficar afastado ultimamente não era isso, era porque eu estava gravando, não tinha nada pra falar. Estou no meio de um disco, no meio de um livro, não tenho o que dizer. É a mesma coisa que mostrar um rascunho, não mostro rascunho nem para os meus parceiros. Então estou numa fase de rascunho, a minha vida é um rascunho. Falar o quê? Dar uma entrevista para a imprensa falando o quê? Aqui estamos conversando sobre diversos assuntos, mas o que está na ordem do dia é o disco que acabei de gravar, então tenho do que falar, principalmente se me perguntarem do meu último disco, que é o que está mais vivo aqui na minha cabeça, que talvez possa interessar ao leitor, de resto...
Plínio Marcos - Você atingiu um nível que tudo que você fala interessa. Eu, por exemplo, fiquei muito interessado quando na França, no meio de uma solenidade, te vejo com uma chuteirinha embrulhada na mão. Isso eu contei e as pessoas: "A chuteira! Numa solenidade." Eles ficam abismados, isso interessa. E isso se tem de descobrir perguntando ou vendo. Acho que tem de ter um jeito de falar quando se está escrevendo.
Regina Echeverria - Você dava muito mais entrevistas, não dava? Uma época você parou de dar, não é isso?
Chico Buarque - Pode ser.
Regina Echeverria - Numa outra época, você se prestava a falar, dar opiniões sobre outras coisas fora a música ou os livros que você estivesse fazendo, não é? As pessoas se acostumaram a ler, a ver, a ouvir as suas opiniões, extra o seu trabalho. Você se pronunciava mais. Era um tempo que exigia isso?
Chico Buarque - Talvez você se refira à época da censura, imagino que seja isso, anos 70. De fato, nessa época eu falava mais freqüentemente com a imprensa do que hoje. Havia assuntos pontuais aos quais eu era chamado a me manifestar, e eu respondia. Havia, talvez, na época, interesse comum, porque de certa forma eu representava alguma coisa contra a censura, e a imprensa era vítima da censura também. Tínhamos um adversário comum, então, de certa forma poderia haver um interesse da imprensa em me procurar. Depois disso, assim como pode haver uma simpatia por parte de jornalistas, ou órgãos de imprensa, há também uma antipatia muito grande. É uma balança, natural que exista. E comecei a ficar um pouco mais precavido em relação à imprensa. Um pouco mais cuidadoso, um pouco mais reservado. Muita coisa foi publicada desde então, era um pouco como essa matéria que a gente estava falando agora da Veja, né? Muitas notícias improcedentes, muitas matérias que me desagradaram.
José Arbex Jr. - Vamos pegar o teu último disco, então. Você retoma o tema cidades, e disse que foi por acaso que surgiu o título. Um nome não surge por acaso. Você estava inventando esse tipo de fruição, quer dizer, o poeta fruindo a cidade, onde ele vai encontrar mitologias, histórias de amor, segredos, é essa a tua relação com a cidade hoje?
Chico Buarque - A presença do Rio é notável no disco. Ele abre com uma canção que se chama Carioca, e fecha com uma canção que fala da Mangueira. Quer dizer, tenho a impressão de que a minha relação com o Rio...
José Arbex Jr. - Mas com qual Rio? Você já disse que o Rio de que fala tua canção não existe.
Chico Buarque - É o Rio visto por um sonhador, é um pouco o Rio que é a geografia do Benjamim ou mesmo do Estorvo. Que são cidades de sonho essas do meu disco, cidades que aparecem, cidades sonhadas, e o Rio não deixa de ser. Agora, é a cidade onde vivo. Durante muito tempo resisti à idéia de ser carioca, morei muito tempo em São Paulo. Agora parece que estou me estabelecendo no Rio, depois de muito tempo. Tenho, sim, claramente, mais tempo de Rio do que de qualquer outra cidade. Me chamavam de "Carioca" quando eu morava em São Paulo.
Sérgio de Souza - Na FAU?
Chico Buarque - Antes da FAU, na rua era Carioca, mais até no colégio, lá no Santa Cruz. Eu era o Carioca quando comecei a tocar violão, o Carioca que dava showzinho, o meu nome artístico era Carioca.
Plínio Marcos - E Paris? Você tem campo lá, joga bola lá, tem time lá, está ficando parisiense?
Chico Buarque - Mas nem um pouco. Gosto muito de viajar porque dá vontade de voltar. (risos) Mas, quando estou escrevendo, por exemplo, estar fora do Rio é um bom negócio. Então, muitas vezes vou para Petrópolis, e, parece esnobe, mas ir para Paris não é muito diferente do que ir para Petrópolis quando estou trabalhando. Porque fico num lugar tranqüilo, o telefone toca pouco, os jornais não chegam, e ando na rua naturalmente. E ando muito, quando estou trabalhando ando, caminho muito. A revista Veja diz que ando para vencer a depressão. (risos) Nunca pensei que andar acaba com a depressão. Não sou dado a depressão, mas, quando estou um pouquinho caidaço, não dá vontade de sair da cama, não dá vontade de sair do quarto, não dá para andar na rua. Não imagino um sujeito deprimido andando. Pelo contrário, quando estou muito bem me dá mais vontade de andar, ando até debaixo de chuva. Faz parte do meu processo criativo poder andar. Não é exagero, quando quebrei a perna, fiquei três meses de cama, não conseguia escrever nada. Falei: "Bom, agora vou aproveitar, vou fazer músicas, agora que vou ficar deitado." Não conseguia! E só sonhava que andava. Isso faz falta.
Marco Frenette - Por falar em processo criativo, acontece de você começar uma composição com música sua e achar que aquilo serve mais numa frase do seu livro? Existe esse intercâmbio, de começar pensando em alguma coisa para o disco e virar um parágrafo de um livro, ou você divide isso perfeitamente?
Chico Buarque - Preciso de estar inteiramente dividido. Quando estou escrevendo, estou escrevendo...
Marco Frenette - Uma frase que você achou interessante, ficar anotada e depois fica para a música ....
Chico Buarque - Não, porque, se estou voltado para a música e me aparecer uma frase que parece apropriada para a literatura, vou transformá-la em música. Vou desliteraturizar, porque não gosto de fazer literatura em música. Às vezes pode até acontecer isso, surgir uma idéia que daria um bom tema, não lembro, mas pode acontecer, daria um bom começo de romance, mas na hora estou querendo fazer música, destruo aquilo, desconstruo de certa forma, e aproveito a idéia pra música. Não guardo num escaninho para aproveitar mais tarde. Não há tempo, há uma certa urgência quando você está querendo fazer música, todas as idéias você vai canalizar para aquilo.
José Arbex Jr. - Quando escreve, você imagina um leitor, dialoga com um leitor imaginário?
Chico Buarque - Não. O que tem é aquilo que falei no começo um pouco, o meu pai, outras pessoas que às vezes eu digo: "Isso tem a ver com fulano." De certa forma, alguma coisa que escrevo estabelece uma ponte com algum autor que eu gostaria de ter ao lado naquele momento. Não dialogar, como quem diz "fulano gostaria disso, meu pai gostaria disso", nunca no sentido de eu achar que estou fazendo uma coisa parecida com esse autor, isso não acontece comigo em literatura, é engraçado. Por mais que eu admire quinhentos autores, se disserem "esse trecho parece com Shakespeare", não vou ficar contente. É evidente que não me acho superior a nenhum desses autores, mas um elogio desses não me satisfaz. É engraçado isso, porque com música, se você disser "essa coisa lembra Debussy, isso lembra Tom Jobim, isso lembra Vila Lobos", fico altamente lisonjeado. Com literatura, isso não acontece. Parece que me sinto mais dono do que escrevo em literatura do que no caso da música.
José Arbex Jr.- Você se considera um perfeccionista?
Chico Buarque - Sim.
José Arbex Jr. - Isso não briga com o prazer de escrever?
Chico Buarque - Não, por que você acha que a busca da perfeição exclui o prazer? Pelo contrário, o prazer está exatamente nisso, nessa procura. Não estou entendendo qual é o conflito.
José Arbex Jr. - A hipótese de um conflito reside no fato de que, se você faz uma imagem de perfeição e vai depois medir aquilo que escreveu, de acordo com os parâmetros dessa imagem de perfeição pode ser uma experiência frustrante, não?
Chico Buarque - Bom, aí, sim, você, quando termina um livro, naquele momento acha que não há nada mais a ser mexido. Você já mexeu ou acrescentou a última vírgula e tal... Você tem consciência do teu limite! Você sabe que dentro da tua capacidade naquele momento não há nada melhor a ser feito. A minha perfeição, quer dizer, a perfeição é uma meta. Defendida pelo goleiro...
Regina Echeverria - ...da selecão.
Chico Buarque - Da seleção. (risos) Naquele momento eu não posso melhorar mais. Mas esse sentimento é altamente favorável a você mesmo. Você acha que está pertíssimo da perfeição. (risos) Agora, se você colocar na gaveta e daqui a dois anos for mexer naquilo, evidentemente você vai mudar mas, se for assim, você não termina nada. Não termina nem uma música, nada. Terminei o disco há nem um mês e já tem coisas ali que, agora, olhando "pô, gostaria de ter feito diferente". E coisas que mexi que não deveria ter mexido, antes estava melhor. Acontece isso.
Plínio Marcos - Já que estamos falando em imaginação, você, quando está sozinho, lembra os gols que fez?
Chico Buarque - Mas sem parar. (risos) Na hora de dormir passam esses videoteipes todos.
Plínio Marcos - E no meio aparecem umas mentiras, né? (rindo)
Chico Buarque - Mas muitas, porque às vezes tem teipe mesmo. Outro dia, lá no estúdio mostraram o teipe de uma pelada que a gente fez, os músicos contra os técnicos do estúdio. Eu falei "Mas está em camara lenta? Porque eu não jogo assim!" (risos) Nos meus "videoteipes" particulares, a coisa é mais rápida. (risos)
Marco Frenette - Que destino foi dado à biblioteca do seu pai? Continua com a família?
Chico Buarque - Não, está na Unicamp. Ficou até muito bom. Eles reconstituíram o escritório do meu pai, esse ao qual eu não tinha acesso, (risos) com a poltrona, a máquina de escrever, os livros. Nesse posso entrar sem bater na porta... (risos)
Carlos Tranjan - Até uma certa idade você não pôde entrar na biblioteca. Quando foi que conseguiu entrar mesmo?
Chico Buarque - Eu entrava e saía de fininho. Entregava coisas para ele ler, ia pro quarto, ficava lá, paralisado, duro, e depois voltava. E aí meu pai dizia: "Tem de trabalhar mais, tem de ler mais, lê isso, lê aquilo e tal."
José Arbex Jr. - Por isso, um texto teu não pode parecer com o de mais ninguém, e a música pode. Fazendo uma interpretação psicanalítica no "caso Chico Buarque de Holanda" - já virou um caso clínico - (risos), é mais ou menos como se um texto teu fosse um passaporte para a tua relação com o teu pai. Não pode se confundir com o texto de mais ninguém, nem de Shakespeare.
Chico Buarque- Gostei disso. (risos)
Marco Frenette - Li uma história que um dia você pegou um livro raro da biblioteca do seu pai e ficou andando com ele pelos corredores da faculdade...
Chico Buarque -Tomei um esporro do Flávio Motta (professor de História da Arte na FAU, e pintor), porque era o Macunaíma, autografado pelo Mário de Andrade para o meu pai, primeira edição. Eu estava lendo e, aquela coisa, vida de faculdade, você ia para o grêmio, bebia e tal. E o Flávio Motta: "O que você está fazendo com esse livro, rapaz?" E esses livros alguns não estão na Unicamp, ficaram com a família. Tenho O grande sertão, primeira edição autografada, dedicada ao meu pai, tenho Vidas secas, História da música brasileira, do Mário de Andrade, tenho Oswald de Andrade, algumas primeiras edições com autógrafo para o meu pai. Tenho O estrangeiro, do Camus, dedicado à minha mãe, quando ele esteve no Brasil. Esse eu roubei da minha irmã. (risos)
Carlos Tranjan - Quais são suas paixões literárias brasileiras, são muitas? Machado, Guimarães Rosa?
Chico Buarque - Se for enumerar agora o que li, o que gostei, o que me marcou, vai ser um catálogo sem fim. O que acontece é que, periodicamente, ou episodicamente, retomo alguma leitura dessas. A última que retomei, não faço sempre, mas foi porque estava procurando alguma coisa para a canção dos sem-terra, foi o Guimarães Rosa, que não lia havia muito tempo. E aí comecei a ler como se não tivesse lido, porque eu não lembrava. Lembro de coisas assim vagas, soltas, uma aqui, outra ali, uma imagem, uma coisa assim. Mas é um horror isso, porque tem tanta coisa para ler, principalmente o que você já leu, não tem fim. Então, não sei, Machado de Assis não leio há muito tempo. De repente, amanhã posso entrar nessa viagem, começar a reler tudo. Vou reler como se estivesse virgem de Machado de Assis.
José Arbex Jr. - Você tem saudade da FAU? Qual é a tua relação com São Paulo hoje? O que você sente por São Paulo?
Chico Buarque - Já não sei mais andar muito em São Paulo. A São Paulo que conheci era pequena. Na verdade, a minha geografia de São Paulo se restringia a Pacaembu, Higienópolis e Rua Haddock Lobo, onde passei minha infância, os Jardins. Era muito andar, e o que eu andava aquilo a pé, antes de ser um homem deprimido (risos), andava muito ali do Pacaembu, onde eu morava, pra qualquer canto desses. Tinha uma namorada que morava lá perto de onde hoje é o MASP, não existia o MASP...
Plínio Marcos - Você pegou o bonde ainda?
Chico Buarque - Peguei. Do Santa Cruz (colégio), no Alto de Pinheiros, ia de bicicleta e subia a Rebouças "chocando caminhão", como se diz. Subia a Rebouças agarrado num caminhão. Muita bicicleta. Eu me lembro de ter ido ao Morumbi, que estava em obras, conhecer o Morumbi, que ainda não estava pronto, de bicicleta. E o pneu estourou naquela ladeira que desce pro Morumbi e voltei a pé carregando aquela bicicleta. (risos) Quilômetros e quilômetros. Hoje, quando vou a São Paulo, já fico em hotel, já sou visita, não é?
José Arbex Jr. - Você nunca mais voltou para a USP, a FAU, visitar, não te dá saudade?
Chico Buarque - Olha, não sou muito de curtir passado, não. Isso me dá até uma certa aflição. A FAU minha era a da Rua Maranhão, a da Cidade Universitária não conheci. Mas, dizer que gostaria de ir lá hoje, não tenho a menor vontade de ver como está aquilo.
Regina Echeverria - A tua casa continua à venda. Passo todo dia e vejo a placa. Alguém devia comprar aquela casa, montar alguma coisa ali. Mas não é mais de vocês, não é?
Chico Buarque - Ainda é da família, sim. Tinha uma idéia do Fernando Morais, que era secretário da Cultura, de fazer uma casa que servisse como local de pesquisa para historiadores. Instalar lá alguma coisa assim. Mas depois não deu em nada.
Sérgio de Souza - Você não gosta de voltar ao passado, mas o passado não tem escapatória. Você falou de uma namorada, você teve quantas paixões, se posso perguntar isso, dessas arrasadoras?
Chico Buarque - Não sei... (risos)
José Arbex Jr. - Não inventadas, bem entendido, inventada não vale.
Chico Buarque - De repente você não sabe o que é inventado e o que não é, né?
Ana Miranda - Tenho conversado muito com a garotada e eles reclamam muito que são "os herdeiros do vazio". Quer dizer, na nossa geração a gente teve a luta política, até citam você: "Vocês tiveram Chico Buarque, tiveram a luta política, tiveram Che Guevara, tiveram um Darcy Ribeiro." E realmente foi uma época fabulosa em termos de produtividade, criatividade, revolução no mundo ocidental inteiro, e o oriental um pouco também. Mas agora parece que está muito fechado para os jovens. Você tem essa sensação também quando conversa com o jovem?
Chico Buarque - Muito. E esse tipo de emigrante vejo muito por lá, em congressos, por exemplo, garotos brasileiros de Minas Gerais, em Paris, fazendo serviço de pedreiro. De repente, o cara é brasileiro, começo a conversar: "O que você está fazendo aqui, e tal." E é um emigrante sui generis o brasileiro, é classe média. Esses eram de uma família de comerciantes bem instalada no interior de Minas, e de repente não têm nenhuma perspectiva profissional ou pessoal. De repente, aquilo é uma aventura. Foram para a Espanha, depois para a Itália, e acabaram se estabelecendo em Paris, e fazem esses serviços, às vezes clandestinos. Garotada assim, amigos de filhas minhas, está a mesma coisa. Vão para lá ou para os Estados Unidos, e vão pegar no serviço pesado. Lavar chão, como essa Iracema que voou pra América, ou são garçons, coisas que não fariam aqui no Brasil vão fazer lá fora. É curioso, porque o brasileiro pobre mesmo não emigra. Não existe isso, eles não sabem o que é um passaporte.
Ana Miranda - Você acha que isso tem uma conotação muito íntima com a situação política, a situação econômica, com a política econômica dos últimos governos?
Chico Buarque - Tem a ver com isso tudo. Com a falta de perspectiva de emprego em relação a um tempo atrás, a facilidade até com que você consegue um diploma, mais a péssima qualidade de ensino. Você está diplomado mas não está habilitado a exercer a profissão, a triagem, que existia antigamente no vestibular, hoje foi adiada para depois da faculdade. E daí? O sujeito está formado numa faculdade qualquer aí, e vai fazer o quê? Nada. Mas não é só isso. Também é a falta de perspectiva pessoal.
José ArbexJr. -Você vai ter ou já tem o site oficial na Internet?
Chico Buarque - Já tem.
José Arbex Jr. - Você navega na lnternet?
Chico Buarque - Não.
José Arbex Jr. - (ri) Eu estava desconfiado. Você sabe entrar na Internet, sabe consultar o teu site, por exemplo?
Chico Buarque - Não, não tenho Internet em casa.
Regina Echeverria - Você escreve em computador ou máquina?
Chico Buarque - Escrevo em computador, uso aquele básico para texto.
Ana Miranda - Você tem um modem para e-mails, essas coisas, ou não?
Chico Buarque - Não.
Ana Miranda - Nem e-mail você usa, é um sortudo. (risos)
José Arbex Jr. - Você não tem curiosidade de entrar na Internet, saber o que está rolando?
Chico Buarque - Tenho muita, mas vou ficar horas naquilo. (risos) Esses joguinhos aí, fico brincando antes de entrar no redator, fico jogando paciência, e perco um tempão. Aí, se eu começar a brincar de Internet... Sei que é útil para pesquisa, mas prefiro não ter. Vou lá na minha enciclopédia, porque tenho certeza de que iria ficar preso e viciado mesmo.
Sérgio de Souza - Você participou da última campanha do PT de alguma forma?
Chico Buarque - Participei apoiando o Lula, o Cristóvão Buarque, o Olívio Dutra.
Sérgio de Souza - Mas fez algum trabalho ou simplesmente apoiou?
Chico Buarque - Como, trabalho?
Sérgio de Souza - Participando de algum comício ou...?
Chico Buarque - Não, não cheguei a esse ponto. Gravei mensagem para a televisão, fui a um evento lá em São Paulo do PT, enfim. E votei não só no PT, aliás, meu voto foi amplo, aqui no Rio de Janeiro foi no PT, PDT, PSB e PV. (risos) Porque é isso o que vejo. Está se anunciando aí de novo, como possível, e acho que é o que interessa, uma aliança suprapartidária. Não me interessa muito o discurso partidário. Sempre fui um pouco avesso a isso. Com o próprio PT sempre tive problemas muito grandes. Já falei isso, o PT é o partido onde estão os melhores quadros do Brasil e os maiores chatos. (risos) E é uma coisa que tem de ser contornada. Fico com uma pena do Lula, e do trabalho que ele tem. Os adversários de fora e os adversários de dentro. O trabalho que essa gente dá ao PT! Um dia, conversando com um pessoal do Espírito Santo, falávamos do trabalho que dá eleger um governador como o Buaiz e daqui a pouco ser impossível governar com o PT. Isso tem que ser resolvido através de uma aliança.
José Arbex Jr. - E o que está acontecendo com o Pinochet, o que você acha do pedido de prisão dele?
Chico Buarque - Acho que o julgamento de certa forma já aconteceu. Eu estava em Paris quando ele foi preso.
José Arbex Jr. - E a comparação que fazem dele com o Fidel Castro?
Chico Buarque - É uma comparação engraçada, porque são trajetórias absolutamente opostas, não é? A começar pela origem. Tem que comparar primeiro o Batista com o Allende. Como é que o Batista ascendeu ao poder, como o Allende ascendeu ao poder, como um caiu, como o outro caiu. Qual era a função do Pinochet quando era ministro do Exército, quer dizer, o homem de confiança do Allende, e o que era o Fidel. Outro tipo de argumentação que leio bastante é "que, apesar de tudo, o Pinochet abriu o Chile para a economia mundial e foi um sucesso a política econômica do Pinochet, e Fidel Castro fechou o país e a economia de Cuba é um grande desastre". Você não pode comparar a economia de Cuba com o Chile. Você pode comparar a economia de Cuba com a Nicarágua, Honduras, países que estão lá próximos, mas não há possível correlação de riquezas naturais, potencial. Depois, pode também tentar não falar apenas em sucesso econômico, e tentar enxergar um pouco o que foi conseguido em Cuba, um país muito pobre, em outros termos. Em termos do que todo mundo já sabe, de medicina, de saúde pública, de educação, de pesquisa científica, é um fenômeno.
Sérgio de Souza- Sem contar o bloqueio.
Chico Buarque - Pois é, aí entra na história quem são os adversários que o Fidel teve de enfrentar esse tempo todo, desde o começo, principalmente a partir de 61. E, ao contrário, com que facilidade Pinochet subiu ao poder, com o apoio de quem ele subiu ao poder, entende?
Plínio Marcos - Mas me deixa um pouco triste a gente ver o Fidel abraçando Antônio Carlos Magalhães, Fernando Henrique...
Chico Buarque - Tem de tentar romper de alguma forma o isolamento em que ele se encontra, não é?
Ana Miranda - Ele foi visitar o Lula também.
Chico Buarque - Foi visitar o Lula também. Tem de ter boas relações com o governo brasileiro, senão, meu bem...
José Arbex Jr. - Por outro lado, é impressionante a paralisia da esquerda brasileira. Pinochet preso lá e não houve nenhuma manifestação exigindo que o Fernando Henrique Cardoso peça a punição dele.
Chico Buarque - Esse tempo todo, quando ele foi preso, eu, lá em Paris, perguntava no telefone: "E aí, o que esta dando aí no Brasil?" E o governo brasileiro parece que pelo menos não assinou um documento do Frei para o Brasil falando de imunidade etc.
Sérgio de Souza - E o que a gente pode esperar nos próximos dois anos ou no próximo ano, com esse governo reeleito? Que tipo de expectativas você tem em relação ao governo brasileiro, diante do quadro atual?
Chico Buarque - Realmente não sei. Não sei porque agora começa um novo governo não só porque houve uma reeleição, mas começa um novo governo porque não há mais a preocupação com a reeleição, que foi o que praticamente conduziu o governo nos últimos meses. Agora caiu na real, veio esse pacote de restrição. Os efeitos sociais e políticos desse pacote a gente vai sentir daqui a pouco. Não sei até que ponto vai permanecer esse alinhamento do PSDB com o PFL, não sei o que vai acontecer... não sei.
José Arbex Jr. - Como rolou a história do MST? Quem te procurou, o Sebastião Salgado?
Chico Buarque - Foi o Tião Salgado.
José Arbex Jr. - Aí vocês contrataram o Saramago, e rolou a coisa?
Chico Buarque - Foi tudo o Tião, o Salgado. Já me trouxe mais ou menos um esboço do que seria o livro (Terra), algumas fotos, não estava ainda todo montado, e me fez a proposta, e depois ele falou com o Saramago.
José Arbex Jr. - É impressionante que você pode quase fazer uma justaposição de discurso - se você pegar o que os generais falavam dos estudantes, dos que faziam manifestação durante a ditadura, "comunistas, subversivos, estão querendo bagunçar o país etc.", e pegar o que o Femando Henrique fala dos sem-terra, dá uma justaposição perfeita. Aquilo que o FHC falou dos sem-terra é o que os generais falavam de quem fazia greve ou passeata nos anos 60/70, o mesmo discurso: "Os sem-terra são desordeiros, querem bagunçar o país..."
Sérgio de Souza - Plantam maconha...
Chico Buarque - Plantam maconha, acho que foi um general que falou, né?
Sérgio de Souza - Você não gosta de fazer crítica ao governo, né? Ou ao Fernando Henrique diretamente?
Chico Buarque - Não, ao Fernando Henrique diretamente não me interessa estar fazendo crítica...
Sérgio de Souza - Como governante, como presidente.
Chico Buarque - Porque acontece o seguinte: como tive uma relação mais ou menos próxima com o Fernando Henrique, tudo o que eu disser sempre pode ser conduzido para uma questão pessoal, e isso estou sempre procurando evitar. Porque essa coisa, aqui no Brasil é muito... não porque é no Brasil, acho que é porque tivemos durante muitos anos ditadura e generais que viviam naquele mundo fechado. Como havia pouco acesso, ninguém sabia o que pensava um general tal, general qual. Depois do Sarney, do Collor, do Itamar, finalmente aparece um cidadão conhecido da mídia, conhecido do mundo acadêmico, conhecido de artistas, de intelectuais, onde parece que há uma intimidade. Todo mundo conhece Fernando Henrique. Outro dia chegou um paulista pra mim: "Ué, por que é que você se afastou do Fernando?" Perguntei: "Que Fernando?" Porque eu conheci Fernando Henrique e nunca chamei de Fernando. Meu pai, professor dele, nunca vi meu pai falar "Fernando". Agora, as pessoas já estão daqui a pouco "Fernandinho", "Fê", e fica uma promiscuidade aí, e um julgamento muitas vezes favorável também, em que entram em consideração as virtudes pessoais, a simpatia, o charme, não sei o que do Fernando Henrique - isso não interessa, não interessa se gosto, não gosto, se gostava, deixei de gostar, e sempre há uma certa tendência de colocar em termos pessoais uma divergência que eu possa ter com o governo, e não é. Não é! Uma pessoa que nunca mais vi, o Fernando Henrique. Vi a última vez um pouco antes da eleição, minha divergência com ele não é, de forma alguma, pessoal.
Regina Echeverria - Mas é pessoal dele quando fala mal da sua música. Bem pessoal quando fala do seu trabalho.
Chico Buarque - Sim, mas ele não tem resposta minha.
Sérgio de Souza - Eu estava perguntando para saber se você tem uma crítica ao governo, ao modelo.
Chico Buarque - Só estou falando isso porque há uma insistência, Fernando Henrique, Fernando Henrique, Fernando Henrique, Fernando Henrique...
Sérgio de Souza - Eu não estava ligando as pessoas, não uma coisa pessoal, acho isso uma coisa muito fechada para o leitor.
Chico Buarque - Você perguntou se eu não gostava de falar mal...
Sérgio de Souza - Se é uma decepção, se é uma coisa que você pode ter acreditado no começo que seria a solução para o país, e o encaminhamento todo te decepcionou, se você está esperando um Brasil pior ou melhor...
Chico Buarque - Nunca fui muito otimista em relação ao Fernando Henrique, desde as eleições de 94, falei isso na época, acontece que, quando ele foi eleito, aí desejei boa sorte, me perguntaram, eu falei: "Não, vamos dar um tempo, vamos ver o que vai ser isso." Mas já desde aquela primeira greve dos petroleiros falei: "Epa! Não é o que eu estava torcendo para que fosse, é mais o que eu estava temendo que acontecesse."
Sérgio de Souza - E agora você vê saídas para o Brasil? Estou imaginando um desastre nacional, breve, estou sentindo isso até dentro da própria editora, desse tamanico. O Brasil mesmo, como você está vendo?
Chico Buarque - Estou assustado com essa coisa toda, a gente vê nas notícias que a gente tem, que invocam gente próxima e tal... a TV Globo demitiu não sei quantos, a TV Globo! Altos funcionários. Para onde é que vai? E estou falando aqui perto de mim, do ambiente que tenho freqüentado ultimamente, pessoal de gravadora, está todo mundo assustado, não é?
José Arbex Jr. - A gente estava querendo que você desse uma declaração explosiva.
Chico Buarque - Sabe o que é? Não vou explodir. O que me dá um certo fastio na questão da política é que parece que qualquer coisa que eu diga já me ouvi dizendo, não tenho nada de novo a dizer.
Sérgio de Souza - Então não tem nada que esteja te enchendo o saco na questão da política?
Chico Buarque - O que acho mais chato em entrevista é quando leio e me vejo repetindo, porque as perguntas às vezes são as mesmas, e em relação ao governo vou repetir o que falei na primeira campanha. Me perguntaram porque que eu votei no Lula, e respondi: "Voto no Lula porque prezo muito o Fernando Henrique Cardoso, prezo muito diversos quadros do PSDB e acho que no governo do Lula eles teriam lugar. O PT não vai governar sozinho, enquanto que, se voto no Fernando Henrique, estaria votando no governo do PFL." Falei em 94 e na época ele disse: "O Chico está equivocado." Disse que o meu voto era sentimental, mas acho que eu não estava equivocado, não.
Marco Frenette - Voltando à produção musical, tem algum disco que você considere mais feliz em termos de música?
Chico Buarque - Não, gosto desse. Normalmente, a gente gosta do que está fazendo, não é?
José Arbex Jr. - A Clarice Lispector declarou várias vezes a paixão dela por você.
Chico Buarque - Isso é com a Ana Miranda. (risos)
José Arbex Jr. - Por que com a Ana Miranda?
Chico Buarque - Ela sabe disso mais do que eu, ela sabe de coisas que não sei...
José Arbex Jr. - Isso ela declarou na imprensa, publicamente, nas crônicas etc. Vejo muito ponto de contato entre as tuas personagens principalmente femininas e o universo da Clarice. Você vê isso?
Chico Buarque - Pode ser, adoro a Clarice Lispector, não sei se os meus personagens femininos têm a ver com ela, isso eu nunca tinha pensado. Mas, naquela lista que não fiz de autores que me marcaram e marcam até hoje, a Clarice está. Há pouco tempo, inclusive, reli e notei algumas coisas, porque é o seguinte: tenho a impressão de ter lido a Clarice antes da hora, quando conheci a Clarice não entendia direito o que que era a Clarice, nem a literatura dela, e outro dia comecei a ler e li e anotei várias coisas do Água Viva. Notei coisas que esse livro que já estava manuseado, eu mesmo já tinha lido aquele exemplar com o autógrafo dela, reli e falei: "Mas que coisa! Nunca tinha percebido isso!" Que coisa maravilhosa, as observações dela sobre a escrita inclusive, coisas que anotei, tinha uma de pescar as palavras, não lembro exatamente como é que era. Aquilo anotei. E é isso, tive um contato com ela pessoal sem na verdade... se tivesse a dimensão da Clarice Lispector naquela época, teria mais pânico do que tive, porque ela era uma pessoa que me deixava um pouco assustado, gozado isso.
Ana Miranda - Você contaria publicamente aquela história que contou pra mim, Chico?
Chico Buarque - Eu conto! A minha versão é a versão real, a sua é que eu...
José Arbex Jr. - Que versão é essa?
Chico Buarque- Um dia, ela me convidou para jantar. Eu já tinha estado com ela algumas vezes, e ela me dizia algumas coisas meio desconcertantes, saía da sala e dizia: "Escreve aí um poema." Ia para a cozinha e voltava, e eu que não escrevo poema tinha de escrever, ficava um pouco assustado (os versos: Como Clarice pedisse/ Um versinho que eu não disse/ me dei mal/ Ficou lá dentro esperando/ Mas deixou seu olho olhando/ Com cara de Juízo Final). Aí ela me convidou para jantar e perguntei: "Clarice, posso levar uns amigos"? (para me cercar) "Pode, mas aqui na minha casa não tem bebida." Eu estava no Antonio's e falei com o Vinícius e com o Carlinhos de Oliveira: "Vamos na casa da Clarice?" "Vamos." "Só que lá não tem bebida, então vamos beber aqui." E a gente já foi bebido, chegamos e ficamos lá, os quatro, conversando, conversando, quando deu 1 hora da manhã, a gente: "Então, Clarice, boa noite." (ri) Não houve jantar, saímos de lá e voltamos pro Antonio's pra comer.
José Arbex Jr. - E qual é a versão da Ana Miranda?
Ana Miranda - Ficcionalizei essa história deles: que tinha uma mesa já posta, e ela esperando o homem que está esperando há anos, para jantar, os olhos, aquela coisa bem ficcional, aí ele chega trazendo uma outra pessoa, então eles sentam e ela fala umas loucuras, invento coisas que a Clarice teria dito, o tempo vai passando, as horas e a conversa, e fica alternando entre o discurso interior dela e as coisas que as pessoas estão falando, até que eles vão embora e no final ela diz assim: "Esqueci de dizer que o jantar era eu!" (risos) Mas fiquei com uma dor de consciência, fiquei noites e noites sem dormir por causa disso. (risos)
José Arbex Jr. - Por que abriu o segredo?
Ana Miranda - Fiquei pensando: será que o Chico está bem nessa história? Uma coisa de consciência.
Sérgio de Souza - Fiquei surpreso quando olhei a tua idade no jornal, eles põem lá, "fulano de tal, 54". Francamente falando, tomei um susto, não sei se todo mundo tomou. Você se vê com 54 anos, internamente, ou não?
Chico Buarque - Eu me vejo, mas tendo a achar que 54 anos não é nada. Não tenho sensação nenhuma de estar envelhecido. Estou com a minha idade. Uma geração que está com 54 anos hoje é uma adolescência, quase. (ri) Falar nisso, tenho uma foto lá em casa, onde tem uma porção de autores de música, no apartamento do Vinícius de Moraes, todos nós garotos e o Vinícius, um senhor. Aí fiz as contas, ele tinha 54 anos! (risos) Isso foi em 67.
Plínio Marcos - Com toda sinceridade, com que idade você vai encerrar a sua participação como jogador de futebol? Vai dar a volta olímpica, vai ter festa de despedida, como vai ser?
Chico Buarque - Rapaz, outro dia fui jogar aqui no Monte Líbano, e tinha um jogador de 78 anos, e se mexia, ficava na frente assim...
José Arbex Jr. - Quando você vai jogar nesses lugares aqui no Rio é assediado pelo pessoal?
Plínio Marcos - O beque marca ele. (risos)
José Arbex Jr. - Fora o beque, quando você anda na rua aqui no Rio, ou quando vai jogar, pessoal te pede autógrafo?
Chico Buarque - No Rio está combinado que ninguém pede autógrafo pra ninguém. Nas férias, aí começa esse negócio de autógrafo. Estranho quando estou dando autógrafo aqui no Rio, mas é o pessoal que vem de fora.
José Arbex Jr. - Você nunca fez uma música para o futebol?
Chico Buarque - Fiz, uma música chamada O futebol. Dedicada a Mané, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro.
Sérgio de Souza - Você tem assistido muito a futebol?
Chico Buarque - Não, nem gosto tanto assim de futebol. Gosto de jogar.
Carlos Tranjan - Teu melhor fundamento qual é, o lançamento?
Chico Buarque - Posso dizer que sou um jogador completo! (risos) Passe, profundidade, passe em velocidade, drible em velocidade, chicote, se bobear, drible do elástico. (risos) E menos um pouquinho finalização, gosto mais de servir.
Regina Echeverria - Você gostou da experiência de escrever para jornal sobre os jogos, na Copa?
Chico Buarque - Gostei. Mas deu trabalho.
José Arbex Jr. - Como é parir um texto jornalístico, foi tranqüilo pra você, ter horário pra fechar e mandar...
Chico Buarque - Na verdade, já fui meio calçado, levei um artigo pronto, que publiquei antes da primeira partida, e o resto usei alguma coisa que já tinha escrito, mas não foi como tinha pensado. Começou a soar falso, porque estava preparado e na hora não acontecia. (risos) As coisas cismavam de não acontecer como eu tinha previsto. (risos)
José Arbex Jr. - Você sentiu pânico em algum momento, tem de fechar, escrever o texto, tem de mandar...
Chico Buarque - Pânico, não. Me senti um pouquinho preso. Achei que ia passar um mês, quarenta dias, me divertindo, vendo futebol, jogando bola, comendo, mas na verdade ficava quatro dias mais ou menos da semana preso, e assistindo, também tinha isso, assistindo um pouquinho preocupado com o que eu ia escrever depois. Então existia uma tensão a mais, não é?
Plínio Marcos - Você não quer escrever uma coluna pra Caros Amigos?
Chico Buarque - Eu não gostaria mais de ter compromisso em periódicos. Foi só essa vez da Copa.
Plínio Marcos - Seria um recurso grande. Você venderia mais revista, e a gente aumentaria o nosso ordenado.
José Arbex Jr. - Você está precisando de prestígio, está pendurando a chuteira...
Chico Buarque - Obrigado, sinceramente.
Sérgio de Souza- Muitissimo obrigado dizemos nós, foi ótimo.
Chico Buarque - Não teve a explosão...
Finalmente as respostas.
E, assim mesmo, somente parte delas. A demora tem seus motivos. Em primeiro lugar, de 6 a 9 de novembro recebemos algo em torno de 200 perguntas. Obviamente, muitas delas repetidas, o que nos obrigou a um trabalho de agrupá-las em temas antes de passá-las ao Chico. Em segundo lugar, nessa época o Chico ainda estava muito ocupado com o lançamento do CD, além do trabalho normal. E, finalmente, a ansiedade de ser avô pela segunda vez, o que acabou acontecendo no dia 23, quando nasceu Clara Buarque de Freitas.
Esta é a primeira parte. Ainda há mais respostas que brevemente estarão aqui.
O Editor
A respeito da capa do CD Paratodos: por que o índio está encoberto?
Porque estava se guardando para a contracapa de As cidades, onde ele aparece enorme e com olhos azuis.
Acabei de ler o livro do Caetano, no qual ele conta o início do Tropicalismo, a época dos festivais e, para minha surpresa, da rivalidade produzida e estimulada pela imprensa entre a turma "alienada" da Tropicália (Caetano, Gil, ...) e a turma dos engajados (você, Vandré...). Como é que você sentia isso na época? Você acreditava no confronto ou, como Caetano, sabia que no fundo tudo era armação e que simplesmente eram artistas com visões e estilos diferentes? Teve mágoa? Queria muito saber do teu lado na história porque fica claro que pro Caetano isso tudo pesou, incomodou.
Também achava - e acho - que havia muita hostilidade nas redações, mais que entre nós, artistas.
Quero saber se há algum novo musical em seus planos de escritor, nos moldes de Gota d'água, Calabar e Ópera do malandro. Na literatura, você vai caminhar mais pelo romance? Se for pelo romance, o que parece uma temática existencialista em Estorvo e Benjamim, será talvez seu norte em futuras obras? Porque não mais um livro infantil, agora que és um vovô dedicado?
Penso, às vezes, num novo musical para teatro, penso em livros infantis, penso num romance, mas não um tenho projeto definido.
Por que você não canta em programas de televisão?
Porque os entrevistadores ficam fazendo perguntas e não me deixam cantar.
Sobre o seu novo CD, você não acha que esse projeto mais elaborado, do ponto de vista melódico, fica menos popular?
É possível, infelizmente. Mas, por favor, não me acuse de fazer música impopular brasileira.
A obra de seu pai lhe deu alguma contribuição na construção de seu repertório de letras de musicas e em alguns livros?
Existe um rigor formal na escrita do meu pai que procuro não desmerecer, quando faço literatura.
Como você encara a perseguição da imprensa e a insistência dos críticos em te denominarem um "mito"? Você se considera um "mito", fica irritado com o título...? Em relação às mulheres, qual a sua posição (é sério!): você as encara apenas como o sexo oposto ou algo com uma grandeza sem parâmetros?
Não me irrito assim com tanta facilidade. Quanto às mulheres, tenho falado bastante delas em minhas músicas. Está clara a minha posição?
Porque você parou por tanto tempo de gravar discos? Acabou a fonte de inspiração?
A fonte de inspiração não seca, mas vai ficando cada dia mais longe. Até chegar à fonte, leva-se mais tempo. Mas, no caminho a gente se diverte.
Como você recebe, letras/músicas de poetas e músicos anônimos, pedindo para que você as analise e emita um parecer, ou as grave? Você se chateia com isso ou não?
Sou muito procurado por autores iniciantes, mas não me sinto à vontade para julgar suas composições. Costumo lhes sugerir que enviem suas fitas à direção artística das gravadoras, ou a produtores e cantores, que estão sempre carentes de repertório.
Como funcionam suas parcerias...você contribui com a letra ou há uma participação efetiva dentro da construção da harmonia e melodia?
Em minhas parcerias habituais com músicos, participo somente como letrista. Levo a música para casa e procuro descobrir a letra que ela está pedindo, sem alterar coisa alguma.
Fora o João Gilberto, quem te influenciou na juventude? Monsueto, Joubert, Assis Valente... Concordas com a comparação de seu estilo com o de Noel Rosa?
De Noel a João Gilberto, fui influenciado por todos esses sambistas e outros mais, e pelas marchinhas de carnaval, e pelos boleros cubanos e mexicanos, pelo tango, pela música italiana, pelos letristas franceses, por Jacques Brel, pelo jazz, pela música clássica, pelas operetas de cinema, por Cole Porter, Gershwin, Sinatra, Ray Charles. Também fui bom imitador de Nat King Cole, Johnny Ray, The Platters (o solista), Elvis Presley, Little Richard, Lucho Gatica, Charles Aznavour, Jorge Veiga e Linda Batista.
Como conseguiu gravar quando começou? Mandou uma fita? Fez uma audição? Já tocava em outros lugares por isso chamou a atenção?
Quando fui convidado a gravar meu primeiro disco, em 65, já era vagamente conhecido no meio musical de São Paulo, porque me apresentava em shows amadores, ou na preliminar de shows profissionais.
Por que você resolveu criar seu próprio site?
A idéia de criar um site não foi minha, mas de um sujeito chamado Cachorrão. A criação é dele e da Casa Paulistana. Ainda não tive tempo de olhar direito o site, porque estou respondendo a este questionário.
Em que você está trabalhando atualmente? Na música, quem você está ouvindo atualmente? Em BH qual o seu time preferido?
Atualmente estou trabalhando nesta sabatina. Em Minas, torço pelo América. Sou um homem de sorte.
Em primeiro lugar, obrigado por você existir - vida longa, com saúde e paz. Como professor de Língua Portuguesa (e Literatura), sempre tive a curiosidade de saber que dicionários e gramáticas fazem parte de sua consulta habitual quando você precisa esclarecer alguma questão de vocabulário ou de gramática? Que outras formas de lidar com estas questões práticas da linguagem você adota?
Consulto habitualmente o Caldas Aulete. Meu livro de estimação é o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa de F.F. dos Santos Azevedo, herança de meu pai. Também recorro a uma gramática do Celso Nunes e a dois dicionários de Francisco Fernandes: o de verbos e regimes e o de regimes de substantivos e adjetivos. Dicionários etimológicos são outra grande curtição.
Você acha também que Vinícius de Moraes era habilíssimo em fazer letras com muitos verbos e poucos substantivos - e insuperável nisso?
Nunca havia reparado nisso. Mas lhe garanto que Vinícius é o único poeta capaz de usar o diminutivo de um verbo no gerúndio.
O que você seria se não fosse cantor e compositor?
Seria topógrafo. Aliás, sou topógrafo.
O que você está lendo?
Estou lendo Da pintura antiga - diálogos de Roma, de Francisco de Holanda, Livraria Sá da Costa, Lisboa.
Você ainda gosta de jogar futebol de botões?
Parei de jogar botão há 28 anos. Outro dia encontrei minha caixa de Catupiry, abri, não havia mais nada. Acho que os jogadores fugiram da concentração.
Você nunca pensou em ser presidente do nosso Flu? Só você e o seu talento para dar um jeito lá!
Não tenho talento para presidir coisa alguma. Sinto muito.
Por que "ser" Fluminense?
Sou Fluminense por culpa de minha mãe.
O que você faz para permanecer jovem? Dieta? ginástica?
Bondade sua. Não faço dieta, nem ginástica. Mas jogo bola, passeio, ando de bicicleta, bebo algum vinho e gosto de pão com manteiga.
Você está feliz? Acha que alguma coisa mudou ou estamos apenas anestesiados demais para reagir?
A gente vai levando.
Você usa a Internet, qual o seu site predileto? Que discos tem ouvido atualmente? O que você gosta mais no Rio e em Paris.
Ainda não uso a Internet. Atualmente tenho ouvido meu próprio disco. No Rio, gosto de andar, de olhar o mar e as montanhas e de planejar viagens. Em Paris, gosto de andar, de jantar fora e de voltar para o Rio.
Gostaria de saber da sua consciência sobre a importância que tem para centenas de pessoas que te admiram e apreciam o seu trabalho, ou esta consciência não te afeta em nada?
Se eu me desse muita importância, certamente meu trabalho seria afetado.
Ao ouvir Xote de navegação, pensei: se o tempo existe, Deus também envelhece. Chico, você se importa com a idade?
Para quem anda naquele barco, o tempo não passa. Quem anda naquele barco não envelhece, é velho e moço ao mesmo tempo. Claro, porque o barco vai com o tempo, o barco é o tempo. Foi o que eu quis dizer no xote.
Como você se enxerga emocionalmente? Você tem fases de depressão e o quanto elas prejudicam sua produção criativa?
Mesmo sem ser o homem mais feliz do mundo, nunca estive deprimido. Já conheci pessoas em estado de depressão e é coisa séria. Não é doença que se combata com bebida alcoólica ou caminhadas na Lagoa, como sugeriu a revista Veja, recentemente. Essa mesma revista, aliás, anunciou em setembro o lançamento de uma nova droga, tipo Prozac. Parecia matéria publicitária, parecia encomenda de algum laboratório, mas vinha em forma de reportagem, assinada. Minha foto aparecia ao pé da página, declarações que nunca dei à revista apareciam entre aspas e o texto insinuava que eu era usuário daquele treco. Acho isso tudo muito estranho.
Ler poesia é fundamental para escrever um bom romance?
Para se escrever o que eu entendo como um bom romance, o conhecimento de boa poesia é fundamental.
Gostaria que você falasse um pouco de Clarice Lispector. No livro A descoberta do mundo eu li uns textos que ela escreveu a propósito de uma visita sua, ou de uma conversa. Gostaria só de saber como você a lembra, como lembra essas visitas. Lembro que ela falou da sua candura. Fale um pouquinho dela, é só o que peço. (Já agora, quando vem a Portugal? Você é sempre bem-vindo aqui.)
Estive com Clarice Lispector algumas vezes. Ela era muito carinhosa comigo e eu ainda não era o seu leitor embasbacado que me tornei mais tarde. Devo dizer que ela me intimidava um pouco. Certa vez, convidado para jantar em sua casa, perguntei-lhe se podia levar dois amigos. Fomos ao seu apartamento no Leme, Vinicius de Moraes, Carlinhos de Oliveira e eu e ali ficamos até duas da manhã, numa conversa de que me lembro pouco. Só me lembro que saímos os três encantados com ela. Quanto ao jantar, não houve. Fomos os três comer no Antonio's.
Porque você, como escritor, não se dedicou ainda a escrever, digamos assim, suas memórias, já que vivenciou um período muito rico de nossa história e teria muito o que contar?
Não sei se gostaria de escrever um livro de memórias. Pode ser que algum dia me venha a vontade, ou a necessidade de escrever um livro assim. Não sei...
Você se considera poeta, quando falamos de suas canções?
Nunca publiquei, nem creio que venha a publicar um livro de poemas. Não escrevo poemas.
Aqui em minha terra há informações de que você teria estudado por seis meses no Colégio Cataguases que à época era particular e funcionava em regime de internato e semi-internato. Todos afirmam ser verdade, mas até hoje não conseguiram provar. Acho que somente você pode nos dar uma palavra final sobre o assunto.
Fui aluno interno do Colégio de Cataguases, no segundo semestre de 59. Com o codinome Bananal, escrevia crônicas para o jornal O pirilampo e para um programa da rádio do colégio, com o título Coisas da vida... Nos fins de semana, praticava o footing na praça da cidade, freqüentava o cinema na mesma praça (era a única), ou ia ao estádio torcer pelo meu colega Napoleão, centroavante do Flamenguinho, nos clássicos contra o Operário.
Quais são as recordações mais bonitas que você tem da Itália, meu país de origem?
Da bambino, mi ricordo del tramonto romano, stupendo. Da giovane, il mio più bello ricordo è la nascita di Silvia, anche lei romana e stupenda.
Você aprovou o casamento da sua filha com o Carlinhos Brown?
É claro que aprovei.
Por que, na letra de Paratodos, faltou citar a eterna Elis Regina, ainda que você não gostasse dela? Adoro você e tenho toda a sua obra, mas esta não entendi.
Quem disse que não gosto da Elis? Ou da Elizeth? Ou do Ciro Monteiro? Artistas que admiro, fazendo as contas, há mais do lado de fora que dentro de Paratodos. Mas a música foi escrita para todos.
Foi publicado, num jornal daqui de Porto Alegre, que o Chico tem "uma gaveta cheia de músicas, arranjos e partituras nunca gravados, incluindo peças de Astor Piazzolla". Coleciono a obra de Piazzolla e forneço material para uma home-page sobre ele. Pergunto: Chico, tem alguma música inédita de Piazzolla? Algum arranjo especial que Piazzolla tenha feito para você? Você pretende gravar alguma coisa de Piazzolla?
O Piazzolla me mandou uma música nos anos 70. Era belíssima, algo dramática, mas a letra não saiu. Mostrei-lhe a fita nos anos 80 e ele reaprendeu a música que já havia esquecido. Escreveu um arranjo para que eu gravasse a música naquele especial da Globo, o Chico & Caetano. Mais uma vez, a letra não saiu. Piazzolla se aborreceu, ficou meio emburrado ali no Teatro Fênix. O Tom Jobim, que participava do mesmo programa, saiu em minha defesa: disse que eu era assim mesmo, que vivia jogando bola e tampouco escrevia as letras que devia a ele, Tom. No ano passado encaminhei a canção e o arranjo ao editor de Piazzolla.
De alguma maneira, as personagens "Beatriz" e a "bailarina" têm a mesma fonte de inspiração? (Sei que as duas pertencem à mesma obra - O circo místico-, mas, independente disso, toda vez que escuto uma das músicas, lembro-me da outra. Às vezes me parecem a mesma pessoa. Pode ser até mesmo "viagem" minha. Mas perguntei a outras pessoas se tinham essa sensação e elas ficaram com a mesma curiosidade).
Acho que você tem razão. No Grande circo Místico, pelo que me lembro, Beatriz e a bailarina da ciranda são a mesma personagem.
Qual foi a sua primeira música censurada? E como se sentiu? Isso de alguma forma fortaleceu a sua obra? (Se sim, como?)
Minha primeira música proibida foi Tamandaré, em 65. A censura partiu de algum almirante. Fiquei assustado.
Por quê, embora ninguém conteste o talento de Luíz Claudio Ramos, nos seus discos recentes você abandonou outros arranjadores que sempre lhe acompanharam, tais como Francis Hime, Edu Lobo ou Chiquinho de Moraes?
Qual foi a importância do seu encontro com o Luíz Claudio Ramos?
Mais que em meus primeiros discos, tenho acompanhado a feitura dos arranjos. O violão é meu instrumento. O fato de Luíz Claudio Ramos ser um violonista facilita o nosso diálogo. Ele é um músico talentosíssimo, muito sensível e afinado comigo.
Como surgiu a idéia da letra espelhada de As vitrines? Uma vez você me disse haver influência da psicologia. Como é isso?
Psicologia? Não me lembro. Patologia, talvez. Acho que me referi a um distúrbio da fala, em que ocorre essa inversão de letras ou de sílabas e a que se dá o nome de espelhismo, ou palavras no espelho. E as palavras no espelho na contracapa de Almanaque produzem anagramas para cada verso de As vitrines. É um jogo de palavras, um passatempo, uma bobagem da família dos palíndromos. Vou lhe mandar um palíndromo que fiz para o Milton Nascimento, em italiano: "Acuti belli, mille, Bituca!" Gostou?
A quem é dirigida a música Meu caro amigo?
Meu Caro Amigo foi dirigida ao Boal, o teatrólogo Augusto Boal, que na época estava exilado em Lisboa.
Gostaria de mostrar minha revolta com você... Minha INDIGNAÇÃO é por conta das entrevistas que você deu à GLOBO e GLOBONEWS, onde concordou com o repórter, que a sua criatividade está se esgotando com o tempo! É revoltante que, no meio de tantas "Carlas Perez" e "Rodolfos e ETs", uma figura como Chico Buarque venha dizer que sua criatividade esteja se esgotando. Chico, você é como um bom uisque, quanto mais o tempo passa, mais raro e precioso ele se torna!
Você me interpretou muito bem, obrigado. Também acho que estou ficando mais velho, mais raro e mais saboroso.
Quando você compõe, escreve a letra antes ou depois das melodias?
A letra vem durante ou depois da melodia.
Até que ponto a vivência dos "anos de chumbo" no Brasil foi um entrave ou um estímulo à sua criatividade.
Esses anos de chumbo foram um entrave em todos os sentidos.
Você considera suas personagens femininas realmente femininas, ou são apenas rebatimentos, espelhos da visão masculina do mundo feminino? Um amigo meu um dia, num debate, afirmou que achava "suas mulheres" muito travestis para o gosto dele. O que você acha desse comentário?
O comentário é original. Que eu seja gay, tudo bem, mas que as minhas mulheres fossem travecas, isso eu nunca tinha ouvido.
De onde vem este seu conhecimento e/ou inspiração sobre a alma feminina? Em suas canções, você consegue desnudar a alma de uma mulher em sua totalidade.
Bem, essa questão de alma feminina vai me dar trabalho, vai me tomar um bom tempo, acho que vai ficar para outra vez. O pessoal está me esperando. Eu vou chegando, me desculpe. Um abraço!
Tesouros do baú de Chico Buarque
O compositor lança um CD com sete canções novas e revela guardar músicas inéditas de Tom Jobim, Astor Piazzola e Caetano Veloso.
Época: Seu disco novo, As cidades, chega cinco anos depois de Paratodos e, das 11 faixas, apenas sete são inéditas. Você está com preguiça de compor?
Chico Buarque: Quem dera... Não tenho preguiça. Se eu ficar com fama de preguiçoso, não vou me incomodar, mas não é isso. Não tenho preguiça de trabalhar. Na verdade, gosto muito de compor, de lançar disco, tudo isso. Não faço mais porque não consigo mesmo, porque hoje me custa muito mais tempo. Cada vez me custa mais tempo escrever uma canção. Isso não é preguiça. Talvez seja mais paciência do que preguiça. Aliás, ao contrário, a impaciência é que é resultado da preguiça.
Época: Como assim?
Chico: Agora mesmo, fazendo a revisão das minhas músicas para um songbook, algumas letras escritas 20 anos atrás me deixaram pensando: "Isto aqui podia ser melhor, aquilo ali também..." Se tivesse tido um pouco mais de paciência, teria dado um acabamento melhor.
Época: Você fica tentado a rever algumas letras?
Chico: Não, porque é impossível. Porque já está gravado. Não teria cabimento fazer uma segunda edição melhorada. Até já fiz isso com harmonias. Em "Pivete", por exemplo, que regravei no último disco, acrescentei uma introduçãozinha e mexi no andamento. Mas mais do que isso não dá para fazer.
Época: As rádios já estão tocando "Carioca", a chamada "música de trabalho" do CD novo. Há alguma que você gostaria que tocassem e teme que não toquem?
Chico: Gostaria que houvesse uma variedade maior. Não gosto desse negócio de "música de trabalho". Depois ainda me chamam de preguiçoso... Adianta gravar um disco com mais de 11 músicas se só uma ou no máximo duas tocam? Antigamente, havia uma variedade maior.
Época: Alguma música que você tenha feito para o disco ficou de fora?
Chico: Ficou. É um samba chamado "Dura na queda". Um samba com harmonia rebuscada. Até gosto dele. Mas o disco demorou tanto que deu tempo de enjoar dele. Alguma coisa na música começou a me incomodar. Precisa de reforma. E reforma de música é que nem de casa: às vezes dá mais trabalho reformar do que construir uma nova.
Época: Há pressão da gravadora para você gravar com mais freqüência?
Chico: Não tenho contrato com gravadora. E não faço contrato para não ficar devendo. Passei minha vida toda devendo. Desde 1966, eu tinha contrato com gravadora. Aí, quando gravei Paratodos e a BMG me chamou para fazer um novo contrato, porque aquele tinha acabado, eu falei: "Ah, não. Agora deixa eu ficar livre um pouco." Então, hoje, para cada disco é um contrato.
Época: Você já andou dizendo que a faixa "Injuriado", um samba, foi feita de última hora para inteirar as 11 do CD. Foi para sua irmã Cristina, que participa da faixa? É verdade que, desde criança, vocês vivem brigando?
Chico: Não... (Rindo.) Imagina... Já li nos jornais que fiz para o Fernando Henrique, olha só! Não há nada disso. Queria que fosse um samba que desse vontade de cantar em roda de botequim, tomando cerveja. É um samba que fala de maledicência.
Época: Pelas recentes declarações que deu sobre você, o presidente Fernando Henrique não gosta tanto do Chico Buarque de hoje em relação ao Chico de 20 anos atrás. E você, o que pensa do Fernando Henrique de hoje?
Chico: Não gostaria que minha questão em relação ao governo se transformasse num caso pessoal. Porque seria uma maneira de banalizar uma posição política minha, que é de oposição há bastante tempo. Já li na imprensa que eu teria gravado um depoimento para o Lula que seria uma resposta ao Fernando Henrique. Isso não existiu.
Época: Que avaliação você faz do governo dele?
Chico: Foram quatro anos de um governo do PFL. E isso não é divergência pessoal com Fernando Henrique. A linha desse governo não é a minha.
Época: Há aspectos positivos?
Chico: Olha, na época da ditadura, observei que os presidentes não eleitos eram tratados com certa distância pela sociedade. Eles eram conhecidos pelo sobrenome, e não pelo nome. Enumerei os presidentes desde que me dou por gente: Getúlio, Juscelino, Jânio, Jango... Aí vieram Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo... Depois veio Sarney, que foi eleito indiretamente, Collor, que foi uma exceção, e Itamar. E pronto! Voltaram os primeiros nomes. Fernando Henrique é chamado pelo primeiro nome, isso é bom.
Época: Como está a vida de solteiro? Você tem sido muito assediado?
Chico: Hummm... Não gostaria de falar sobre isso. Gostaria de falar sobre meu trabalho. Estou lançando um disco, não estou me lançando. (Rindo.)
Época: Mas é uma pergunta que fatalmente vão fazer. As mulheres vivem se perguntando...
Chico: Não... (Rindo.) Só você está me fazendo essa pergunta. Ninguém me faz essa pergunta, não...
Época: No disco novo, você põe letra em duas melodias que dormiam em sua gaveta havia muito tempo: uma, de Guinga, "Você, você", tinha dez anos; outra, de Dominguinhos, "Xote de navegação", esperava letra desde 1983. Que outros tesouros você guarda na gaveta?
Chico: Tenho duas do Tom. Uma, "Bate boca", foi gravada sem letra por MPB 4 e Quarteto em Cy. Para outra, que se chama "Que horas são?", comecei a fazer a letra em 1970 e ficou incompleta.
Época: Você pretende completá-la?
Chico: Não. Gostava da parceria com o Tom porque a gente discutia tudo. A presença do parceiro é fundamental. Eu quero fazer a letra para agradar aquele parceiro. Quero que ele ouça, que interfira se for o caso. O Tom é quem mais interferia nas parcerias. Isso me faz muita falta. Então, fazer uma letra para ele, sem ele estar mais aí, perdeu o sentido para mim.
Época: O que mais você guarda?
Chico: Tenho música do Piazzolla, do Baden, do Caetano, do Gil...
Época: Você espera pôr letra nisso?
Chico: Eu teria de viver uns 200 anos...
Época: Você está sofrendo muito com o Fluminense, agora na terceira divisão?
Chico: Já não sofro com o Fluminense há muito tempo. O único vínculo que tenho com o Fluminense é que não consigo torcer por outro time.
Época: O que vem agora, um livro novo ou um CD novo?
Chico: Não sei. Acabei de terminar o CD e ainda estou incerto em relação a projetos. Mas vou escrever um novo romance. Não sei quando, mas vou.
Triste é minha voz
Chico Buarque, 54, volta às canções inéditas em "As cidades", após cinco anos calado como compositor de álbuns. Na volta, volta disposto a falar e se vê às voltas, mais uma vez, com tema recorrente em sua obra artística: a política.
Desta vez, comenta críticas feitas por Fernando Henrique Cardoso e Mário Soares no recém-lançado livro "O mundo em Português - um diálogo", de que seria "mais convencional" que Caetano Veloso e Gilberto Gil (segundo FHC) e "um pouco subordinado ainda a um certo esquema ideológico do passado" (segundo Soares).
Chico recebeu a Folha em seu apartamento, no Jardim Botânico, para falar de música e política. Leia trechos da entrevista a seguir.
Folha - Você é capaz de definir "As cidades" em palavras?
Chico Buarque - Não sou, não. Mesmo porque foi difícil escolher o título. Nem o próprio título define o disco, só dá idéia de algumas imagens que estão freqüentes nas canções.
Folha - É um disco triste?
Chico - Não. Já me falaram de ser um disco não triste, mas menos solar, mais nublado. Acho que o que é triste é minha voz. Canto canções que são engraçadas, cheias de humor. Vários comentários são irônicos. Na abundância de cordas em "Cecília" há uma ironia com toda a letra, que fala da inveja que este cantor sente dos grandes cantores que cantam em grandes orquestras. Que a voz é triste, é, mas foi uma opção estética que me pareceu adequada.
Folha - Uma opção estética, não ideológica?
Chico - Simplesmente estética.
Folha - O que você pretendia nesse disco? Existe unidade nele?
Chico - Não, no começo não havia unidade nenhuma. Partiu de canções dispersas, que não faziam parte de uma idéia de disco. A idéia surgiu com a entrada das últimas seis músicas. Mas é difícil de definir. É estética, não é ideologia.
Folha - A unidade não pode estar em ser um disco geográfico?
Chico - Daí o título "As cidades". Quando veio o título, vi que era claro que era. São cidades sonhadas, imaginárias. Várias canções falam disso.
Folha - Você está à procura de um lugar?
Chico - É um personagem misto, não sou eu. Ele está viajando aparentemente sem rumo, sobrevoando cidades.
Folha - Você está sem rumo?
Chico - Como não sou eu esse personagem, como "eu" é um outro, posso falar na terceira pessoa. Esse sujeito, esse protagonista está navegando sem rumo.
Folha - Você sempre foi tão atuante na música quanto politicamente, e a despolitização do Brasil é acompanhada por sua despolitização. A falta de rumo vem daí?
Chico - Vou discordar frontalmente, porque se a política interferiu na minha criação, foi de forma nociva. Não me arrependo, mas em termos artísticos não me acrescentou grande coisa. Minhas músicas mais marcadamente políticas são as que tem menor qualidade estética, no meu ponto de vista.
Folha - Não é simbólico você ter sido um dos artistas mais censurados do Brasil?
Chico - Fui atuante, falava muito. Mas foi chegando a hora de ser mais artista e menos político. O fim das ditaduras e a queda do Muro de Berlim já eram sinais de que se encerrava esse conflito e se despolitizava o mundo. A função política do artista se enfraqueceu. Antes nós, artistas, nos reuníamos para lutar pelos direitos autorais, pela numeração dos discos. Talvez hoje quem esteja mais em evidência na indústria tenha menos preocupação social. É normal, o mundo está despolitizado.
Folha - As pessoas mais em evidência hoje são as da axé music e do pagode. O que isso significa?
Chico - Não tenho nada contra, só estou constatando que são pessoas que estão num tipo de roda viva muito mais violento que aquele de que eu falava em 1968. Absolutamente não há como sentar com esse pessoal para conversar. Hoje, até a participação política faz parte do show business. As últimas eleições deram uma idéia de que essa apatia está para se resolver. Até houve um certo rebuliço nesse marasmo político que estava existindo desde a derrota de 89.
Folha - Que derrota?
Chico - A última grande movimentação política nacional foi a eleição de 89, quando a sociedade inteira se dividiu e houve a possibilidade de haver uma mudança significativa com a eleição do Lula. Ali acho que foi a grande porrada.
Folha - Queira ou não, você ainda vai ao noticiário político, quando o presidente do Brasil o chama num livro de artista "da elite tradicional", "que quer ser crítico, mas é mais convencional" que Caetano e Gil. Como você recebe isso?
Chico - Com indiferença, sinceramente. Não estou dando trela para esse assunto. Acho um comentário desimportante, é conversa de cozinha, não sei por que saiu em livro. Não acho que seja surpreendente que ele diga isso, nem que haja motivos para eu me chatear. É um comentário pessoal. Minha divergência com Fernando Henrique não é de ordem pessoal.
Folha - Ele está transferindo uma crítica política ao plano artístico?
Chico - Parece que sim. Não me parece uma crítica musical. Seria estranho que dois chefes de Estado estivessem conversando sobre música popular e se pusessem a fazer considerações críticas. É mais lógico que seja uma crítica política. Não concordo com 90% do que Fernando Henrique tem falado. Já não concordava antes da primeira eleição. Na época, ele falou que eu estava equivocado, porque disse que gostaria que Lula vencesse e formasse um amplo quadro de apoio com lugar para ilustres tucanos. Preferia ver Fernando Henrique num governo do Lula a vê-lo no PFL. Mantenho o que eu disse.
É difícil, no Brasil, o homem público assumir a posição da direita. Em qualquer lugar, quem pratica ideário da direita se diz de direita. Talvez aqui, por causa da ditadura, a direita tenha ficado estigmatizada. Mas não é ofensa para ninguém, na França o Chirac, um político de centro, se diz de direita.
Folha - É verdade que "Injuriado" é dirigida a FHC?
Chico - Isso é uma piada, só rindo. Primeiro porque não fiquei injuriado com nada, segundo porque nunca vou chamar Fernando Henrique de meu bem.
Folha - Você ficou parado no tempo?
Chico - Não acredito. Quando gravo um disco, intimamente tenho a convicção de estar dando um passo adiante em relação ao que fiz antes. Esse passo é talvez mais lento, mais custoso, mais penoso. Estou andando mais devagar, mas acho que estou andando.
Folha - Você acha que compositores deveriam se aposentar?
Chico - Acredito que naturalmente, na canção popular, a tendência seja ir ficando mais lento até deixar de existir. Acho que uma hora vá me desinteressar por fazer música. Talvez esteja me preparando para isso me dedicando à literatura. Acredito mesmo que música popular seja uma arte de juventude. O que componho é com o que me resta de juventude, que já não é tanto. E vai acabar. Vou ficar velho, caduco e vou morrer.
Chico no canto da serenidade
"As cidades", novo disco do compositor que passou a conviver com outra arte, a de escrever livros, traz à tona a introspecção de quem devota cuidado ainda maior às letras e à harmonia das canções
Tarde fria de novembro no Rio. Inacreditável esse tempo em novembro. Chico Buarque posa para fotos no terraço do primeiro andar do Hotel Rio Palace, perto da piscina, tiritando de frio. Atrás, a paisagem cinzenta da praia de Copacabana, a chuva fina, um clima que guarda alguma coisa do disco novo de Chico, As cidades. Triste? Não, ele garante que não é de tristeza o tom que percorre muitas das faixas do CD - "minha voz é que é triste" -, mas quase concorda em que existe uma atmosfera semelhante à do dia lá fora, cinzento, chuvoso. "Tanto que tinha um sambinha chamado Ensolarada que tirei do disco, não combinava com o resto." Tampouco é melancólico, concordamos. A conversa segue na tentativa de achar um termo para definir o clima do disco. Tem um quê de introspecção, quem sabe? Talvez serenidade, completa. "Acho que estamos encontrando a palavra", diz Chico.
Não é de estranhar que a busca da palavra exata seja uma obsessão hoje em dia para o compositor que de um tempo para cá passou a conviver com o ato de escrever livros. Essa atividade, revela, trouxe um cuidado maior com as letras e até com a harmonia das canções. O que no começo da carreira era pura intuição, letras escritas em guardanapo de papel, hoje se derrama de forma mais trabalhada, mais elaborada. E o processo de criação ficou mais demorado. Dias, às vezes, se passam antes que ele encontre a palavra certa, o acorde necessário.
Chico está feliz com o trabalho concluído, anda dizendo a amigos que é seu melhor disco. Enfrentou com galhardia a batelada de entrevistas, que abomina. "Preferia que as pessoas ouvissem o disco, que eu não precisasse falar por ele. Mas não falar na hora de lançar o CD seria uma atitude." Bem magro, sereno, ar de missão cumprida, diz que está vazio de projetos, mas se continuar valendo a alternância disco/livro dos últimos anos, o passo seguinte vai ser outro livro. Então será hora de recomeçar, reaprender a escrever, para depois reaprender a compor. "Cada vez que eu volto, não sei mais onde estava, é um recomeço."
Avesso a falar de sua vida pessoal, Chico expõe seus sentimentos através dos personagens de suas músicas, como se tivesse criado um alter-ego para ingressar protegido no mundo da emoção e do onirismo. Sem precisar expor seu verdadeiro eu. "Muitas vezes o objeto da música é impreciso porque o próprio sujeito é impreciso, porque eu não sou eu." Coisa de poeta
JB - Como se sente quando finalmente termina um disco? Como um pai orgulhoso que quer lamber a cria, ou lidou tanto com aquilo que quer passar logo para outro projeto?
Chico - Não, ainda dura um certo tempo. O disco resiste. Tem um período de lambeção, você volta a ouvir o disco. Mas aí tem uma hora que passa.
JB - Aí quer olhar para frente?
Chico - É. As pessoas começam a ouvir o disco quando você não está ouvindo mais (risos).
JB - Você já disse que esse disco é mais trabalhado, mais elaborado, tanto letra, quanto harmonia. Isso é resultado da sua experiência como escritor?
Chico - Eu elaboro mais tudo. O fato de eu estar me dedicando também à literatura me faz um músico mais exigente. Não só a parte literária, mas também a musical. Quando você volta para a música depois de muito tempo - porque eu largo a música -, volta como se não soubesse mais fazer. É todo um reaprendizado, uma dedicação muito maior do que se viesse fazendo aquilo o tempo inteiro. Você quer equilibrar aquele rigor que dedica à literatura exercendo a música com rigor semelhante.
JB - Esse rigor é então uma conseqüência dessa sua outra atividade e não do passar do tempo, da experiência de compositor? Você elabora mais porque agora exerce uma atividade que o obriga a pensar cada palavra, cada frase?
Chico - É tudo isso. Tem também a noção que vai se ganhando com o tempo de que cada coisa que você faz é uma coisa mais duradoura do que quando se começa. Quando comecei a fazer música não tinha a menor idéia de que 30 anos mais tarde fosse estar fazendo a revisão das minhas músicas para a home page ou o songbook, e tivesse que reler aquelas coisas que foram escritas ali. Escrevia num pedaço de papel e gravava. Era mais inconsciente. Aos 20 anos, aquilo não era sequer ainda uma opção profissional. Era estudante de arquitetura, não era um músico profissional. Hoje você começa a medir mais as palavras, as notas, você está sabendo que aquilo é um legado.
JB - Você sente prazer quando está criando ou é uma atividade sofrida, que o deixa sem dormir, tenso?
Chico - Me deixa sem dormir, mas não por ser sofrido. Não durmo porque não quero dormir. A insônia é muito isso. Enfrento insônias brabas. Mas descobri que você não dorme porque não quer dormir. Quer ficar trabalhando, fica excitado. Fica com um pé no sonho e aparece alguma coisa, pensa que aquela palavra não é bem essa, então dorme com o violão e a caneta ali do lado. É muito prazeroso. Desgastante, mas prazeroso.
JB - O mesmo acontece quando você escreve?
Chico - Mesma coisa.
JB - Você fala de sonho e tem uma canção no disco que fala de sonhos. Você sonha muito? Dormindo e acordado? Você é um sonhador?
Chico - Acho que sou mais pé no chão do que se costuma esperar de um artista (risos). Mas eu sonho muito.
JB - E anota seus sonhos?
Chico - (Risos) Não sou tão organizado, nem tão pé no chão assim.
JB - O seu disco, nas melodias sobretudo, tem um tom um pouco triste, com exceção de duas ou três canções. Isso é só impressão?
Chico - Acho que minha voz é que é triste. A pessoa escuta e diz: "mas que coisa triste!"(risos). É um engano. Para mim tem muito humor. O humor perpassa as letras todas. As letras aparentemente tristes, elas têm um certo distanciamento dessa tristeza. Agora, a voz é que faz tudo parecer meio triste.
JB - Mas tem um tom pelo menos emocionado. Por exemplo, Você, você, da parceria com Guinga, onde um filho pequeno quer saber a que horas a mãe volta, é muito comovente...
Chico - Ah, mas é uma letra muito emocionada. As pessoas às vezes dizem "ah, você fez uma música assim", mas o eu da canção não sou eu. A minha emoção está passando pelo sujeito da emoção, que é, no caso, um filho absolutamente apaixonado pela mãe, enciumado, possessivo. Essa letra é barra pesada. Ela pode ser desesperada, mas não é triste.
JB - E a parceria com Guinga, abre novas possibilidades?
Chico - Tem várias canções do Guinga na minha gaveta.
JB - Como é essa gaveta? Tem muita coisa guardada lá? E de vez em quando você abre a gaveta?
Chico - Tem gavetas cheias, abarrotadas de fitas, inclusive essa do Guinga estava na gaveta. Essa canção está comigo há mais ou menos dez anos. Ela estava lá esperando o momento certo. A idéia da letra nasceu de um episódio que eu vi de uma mãe deixar a blusa no berço do filho...
JB - Para que ele não sentisse falta dela...
Chico - Para enganar (ri). Esse filho é meu neto. Aí pensei: tenho que fazer uma música para isso. Aí lembrei da música do Guinga e falei: é aí que vai entrar essa letra.
JB - Quer dizer que você lembrava de uma melodia guardada há dez anos?
Chico - Um exemplo mais claro é a canção do Dominguinhos (Xote da navegação). Queria fazer uma música que falasse sobre o tempo, sobre a paciência e comecei a tentar fazer essa música e não aparecia nada que prestasse. Aí falei, tem uma canção que o Dominguinhos me entregou há um tempo que é um xote russo, que é mais ou menos o que estou procurando. Fui na gaveta, encontrei a fita e a música. Não lembrava totalmente dela, mas lembrava do clima que eu queria. Aí ouvi e disse, "claro, é aqui que vou realizar essa letra".
JB - De vez em quando então você vai chafurdar nas gavetas?
Chico - É. Quando não consigo fazer a música tenho esse recurso. Com o Guinga foi mais ou menos parecido. Ele me entregou uma fita com músicas novas. Aí apareceu essa idéia para fazer essa letra, que não casava com nenhuma das músicas novas. Mas eu já estava com a idéia de fazer uma música para o Guinga. Lembrava: tem uma antiga dele, lembrava que era uma canção lenta.
JB - É mais fácil ou mais difícil fazer música por encomenda? Em A ostra e o vento, por exemplo, que você fez para o filme do Walter Lima, tinha as imagens na sua frente. Uma página em branco é pior?
Chico - São várias etapas. Cada vez mais escrevo as letras como se fosse um parceiro de mim mesmo. Antigamente, quando começava a fazer uma música, quase sempre a idéia da letra ia surgindo ao mesmo tempo. Hoje, estou terminando canções inteiras sem uma palavra. Então vou escrever as palavras para aquela música como se eu fosse um parceiro. Então não é um papel em branco. Aquelas notas vão sugerindo imagens e sons. A letra entra assim porque a música pediu. Em Carioca (cantarola), aquilo é um vôo, a música está pedindo para botar ali uma gaivota. Eu não sabia por que tinha botado uma gaivota. É como se fosse uma tela onde pintei uma gaivota e depois vou pintar o resto. Para aproveitar essa palavra. O resto da letra geralmente vem puxado por um primeiro verso, uma primeira palavra.
JB - Você tem inspiração?
Chico - Existe um momento em que acontece uma coisa inexplicável. Em que você cria uma imagem ou uma melodia quase independentemente da sua vontade. Isso se pode chamar de inspiração. Alguma coisa que você não sabe explicar como surgiu. É um primeiro momento que depois vai além. O resto aí é trabalho. Você tem que fazer uma coisa que esteja à altura daquele primeiro momento. Conscientemente. Não é tudo um sonho, uma coisa em que se fica esperando baixar um santo.
JB - Acontece de acordar no meio da noite com uma idéia?
Chico - Pode acontecer. Mas tem que estar um pouco disponível para essa idéia. Por isso é que é difícil acontecer no meio da noite. Pode acontecer, mas não é tão fácil assim. Muitas vezes você se predispõe a receber essa idéia tocando violão ou buscando o ambiente e o tempo que proporcionem a chegada de alguma idéia.
JB - Uma característica sua é a capacidade de traduzir com fidelidade absoluta o sentimento de outra pessoa, entrar na pele de uma mulher abandonada, da mãe de um guri marginal, de um filho que espera a volta da mãe, de mulheres que disputam o mesmo homem. Isso é fruto de muita observação do ser humano, de muita leitura ou de muita sensibilidade?
Chico - (Longo silêncio) Não sei se isso vem mais da leitura do que da observação. Não sei. Muitas vezes o objeto da música é impreciso porque o próprio sujeito é impreciso, porque eu não sou eu. Como diria o poeta, eu é um outro. A criação musical é muito isso, é sair de você, do seu mundo. Muitas vezes aconteceu isso. Na época da ditadura, quando você estava centrado em você mesmo, era a pior fase da criação para mim, como compositor. Porque você está muito eu, eu, eu. Aquilo invade e perturba a sua criação. Isso vai existindo cada vez menos. Você sai de você. Não só a musa dessa canção é a mãe, como o autor é o filho. Nessa música nem o você é você, nem o eu é o eu.
JB - Qualquer mãe que tenha um filho se identifica com essa canção...
Chico - No caso dessa música, foi uma observação exata. Exatamente isso. Nasceu de uma observação concreta. Outras são observações mais misteriosas.
JB - Você é também um cronista da cidade, das coisas do seu tempo. Você se sente completamente carioca ou observa a cidade de um ângulo distanciado?
Chico - Nunca me senti inteiramente carioca. Até para batizar essa música de Carioca precisei fazer um certo esforço. Essa música nasceu um pouco da história da música da Mangueira, que me chamou de carioca da gema. Depois lembrei que quem fez a música foram os paulistas, risos, então os paulistas é que acham que eu sou carioca da gema. Até os 40 anos, eu pensava, nem sou carioca, nem paulista. Passei a metade da minha vida em São Paulo. Hoje já posso me dar ao direito de me sentir carioca. É claro que é até um certo arroubo dizer "cidade maravilhosa, és minha", é uma licença poética. Não tenho essa intimidade toda. Mas naquele entusiasmo isso saiu da boca. Eu tenho essa dificuldade de me assumir como carioca. Não sou dado a carioquices, nem a paulistices, ou mineirices ou baianices. Convivo com essa gente toda. Lembro do Paratodos.
JB - Lá ninguém é carioca...
Chico - E nem eu sou carioca. Aí veio essa coisa com a cidade. Não sei se tenho estado mais observador da minha cidade ultimamente. Da natureza também. Tem muito a ver com meu último livro (Benjamim). Essa coisa da montanha que me impressiona muito, do Morro Dois Irmãos. A montanha me impressiona muito, sempre. Mais do que o mar. É a presença da montanha dentro da cidade. E mais a pedra do que a floresta. Isso me fascina muito no Rio e explica um pouco a cara do carioca, em contraponto com o paulista. Essa coisa do paulista de se levar um pouco mais a sério do que o carioca. Tem uma vantagem e uma desvantagem. Aquela cidade foi toda ele que fez, aqueles prédios. E o carioca não fez nada, isso está aqui. O que sou diante dessas pedras?
A seleção não é a pátria de chuteiras
O escritor e compositor torce mais pelos jogadores brasileiros do que pela equipe nacional
Chico Buarque não concorda com a famosa frase de Nélson Rodrigues - "A seleção é a pátria de chuteiras" - e critica Zagallo por confundir a seleção com o Brasil e o técnico da seleção com o Brasil. "A gente ainda vê isso como um ranço que Zagallo traz dos anos 70, uma certa agressividade contra os seus críticos." O compositor, que durante a Copa vai escrever uma crônica por semana para o Estado, fala nesta entrevista sobre sua paixão pelo futebol.
Estado - Você terá uma experiência diferente na Copa do Mundo na França, agora como colunista esportivo. Qual é a expectativa para esse novo trabalho?
Chico - É a primeira vez que vou escrever sobre esporte. A minha única experiência com jornal foi do tempo em que eu morava em Roma e era correspondente do Pasquim. Escrevia algumas crônicas, acho até que falei sobre futebol, mas nem me lembro direito. Na verdade, é a primeira copa a que eu vou assistir assim, direto, do começo ao fim. Cheguei a assistir a uma partida da Copa de 50, quando era criança, e a uma partida do Brasil na Copa da Itália. Fui a Turim e vi Brasil e Suécia. Aliás, faz parte também do trabalho na França jogar futebol. Alguns jogos estão marcados com jornalistas e músicos que jogam lá. A minha expectativa em relação à seleção brasileira acho que é a de todo mundo, é ainda de incerteza, porque a gente não conhece o time que vai jogar, apesar de que a qualidade de jogadores que a gente está levando para mim é superior à das últimas copas. O que vai ser esse time e como é que vai sair no campeonato... Não sei nem exatamente sobre o que vou escrever durante a copa, porque não vou fazer trabalho de jornalista, não sou jornalista, não vou cobrir as partidas do Brasil. É evidente que, conforme as coisas forem acontecendo, eu vou comentar a seleção brasileira, como posso tratar de outros assuntos que chamem a atenção. Não sei se é o jogo em si, se vai ser o ambiente na copa em Paris e na França, se vai ser uma surpresa. Estou muito curioso, especialmente pelo desempenho dos times africanos. Eu gosto muito deles.
Estado - Você acompanha o trabalho de colunistas esportivos e da crônica esportiva?
Chico - Não, muito pouco. Dou aquela olhada por alto, às vezes leio a coluna do Tostão. Também não sou um grande leitor de páginas esportivas. Gosto muito de futebol, mas também não sou maluco por futebol. E gosto de escrever. Então, acho que é um bom pretexto para me exercitar escrevendo. Na verdade, quando convidado, relutei um pouco, mas depois, a título de experiência, comecei a esboçar alguma coisa e comecei a tomar gosto pelo assunto e pela possibilidade de escrever. Eu até tenho uma ou outra coisa mais ou menos entabulada. O primeiro texto vai ser publicado antes do início da copa e está bastante adiantado. Tinha um pouco de receio de chegar lá de mãos vazias e, por não ter essa prática, na hora não saber bem. Jamais seria capaz de aceitar um convite para escrever diariamente. É um artigo por semana. E vai me dar tempo de curtir um pouco. Para quem não está habituado, é muito difícil. Imagino que sim. Aliás, eu não entendo como um colunista como o Verissimo escreve com aquela qualidade toda. Tenho impressão de que terei credencial que me permite até entrar nos treinos, não sei; nunca fui de assistir a treino. A não ser quando era garoto. Vou tentar recuperar aquele meu entusiasmo de garoto. Lembro de ter ido a treino da seleção em 58; lembro da seleção concentrada no Pacaembu. Tinha 14 anos, aí sim eu era maluco por futebol. Eu lembro de ficar vendo aqueles jogadores entrando e era estranho porque você quase não via futebol na televisão. Eu não tinha televisão em casa e a imagem da televisão também não ajudava muito, você via de longe e tal, então você não sabia muito bem a cara dos jogadores, a não ser pelas figurinhas. De repente eu via aquelas pessoas ali que eu conhecia de figurinhas e ficava olhando para a cara delas tentando identificar um ou outro. Ficava no portão principal do Pacaembu, os jogadores entrando no ônibus e uma dúzia de babacas ali olhando a cara dos jogadores. Eu devia estar com cara de bobo mesmo. Lembro do Almir Pernambuquinho. Ele entrou no ônibus, olhou para a minha cara, apontou e fez uma careta. Ele riu da minha cara porque devia ser uma cara de idiota completo vendo aquelas figurinhas se mexendo.
Estado - Naquela época não havia transmissão de jogos e era mais difícil identificar os jogadores...
Chico - Não tinha transmissão. Até vi pela televisão a Copa de 54, porque na época estava morando na Itália e passava na televisão direto da Suíça. Eu lembro muito de Brasil e Hungria. Também não tinha televisão na minha casa em Roma. Tinha uma televisão numa loja e aí ficava aquele bando de italianos assistindo, e eu, aquele garoto brasileiro, no meio. Eles perguntavam coisas, queriam saber se o Nílton Santos era irmão do Djalma Santos e um era branco e outro preto, os dois eram Santos. Nílton Santos era elegantíssimo e, de certa forma, um precursor dessa ala. Era um lateral que avançava e criava.
Estado - Essa paixão pelo futebol nasceu mais ou menos em que período da sua vida?
Chico - Eu me lembro muito disso assim, na minha infância mais remota, em São Paulo. Eu lembro porque a casa onde eu morava era na Rua Haddock Lobo, então isso foi antes de eu viajar para a Itália, antes dos meus 8 anos. Lembro muito de jogar futebol na rua, de colecionar aqueles álbuns de figurinhas que a gente nunca completava, tinha figurinhas carimbadas e umas balas, as balas eram horrorosas, ninguém chupava aquelas balas. A coisa mais emocionante do mundo era quando eu conseguia algum dinheiro para comprar não as figurinhas, mas a caixa. Se não me engano, custava 50 cruzeiros. Era muito dinheiro para uma criança, mas não sei se era aniversário. Eu abri aquela caixa, acho que tinha umas cem balas, se alguém chupasse aquelas balas ia ficar doente. E ia abrindo aquelas balas e tirando aquelas figurinhas, repetidas, repetidas, até que aparecia uma carimbada. Joguei muito botão. A minha infância é cheia de futebol. De 8 a 10 anos morei na Itália e senti essa diferença. Mesmo o italiano que gosta muito de futebol não joga pelada como o brasileiro joga. Tinha dificuldades para arranjar campo de pelada. Jogava um pouco na escola, e ali era difícil porque era escola americana. Na verdade nessa escola jogava beisebol. Durante dois anos fui jogador de beisebol.
Estado - E gostou de jogar beisebol?
Chico - Gostava. É um jogo que eu não assisto nem pago, acho chato de assistir. Mas qualquer esporte que você conheça é bom de praticar. Então durante dois anos joguei mais beisebol do que futebol, o que prejudicou inclusive a minha atuação como jogador de futebol. Eu era um garoto muito habilidoso com a bola. Joguei até como goleiro. Ficava no gol, às vezes, não sei se por gosto ou rodízio. E ficava sempre com o joelho ralado.
Estado - É possível fazer uma comparação entre a antiga geração de jogadores do Brasil e a atual?
Chico - Eu acho impossível. O futebol mudou tanto e essas seleções de todos os tempos que as pessoas gostam de fazer para mim são uma brincadeira. Você não pode imaginar o Garrincha e o Ronaldinho no mesmo time. Mesmo num esforço de imaginação é uma brincadeira. O futebol está muito ligado à infância da gente, então é natural que as pessoas que gostam de futebol quando se encontram e começam a conversar sejam saudosistas, e são. Eu, ao contrário, não sou muito. É claro que lembro daqueles jogos, para mim é uma lembrança formidável, porque eu era criança. Agora, pensando com uma certa distância, eu não acho que o futebol de hoje seja inferior ao que se jogava naquele tempo. Há outro tipo de jogo. Superar a marcação de hoje como o Ronaldinho supera, conseguir o que ele consegue é milagroso.
Estado - Como você analisa a relação da mídia com o astro de futebol? Hoje já não há nem mais adjetivos para o Ronaldinho. Na Espanha, ele era o ET. Na Itália, é o Fenômeno.
Chico - A diferença é que na mesma medida em que eles têm dificuldades de inventar novos adjetivos, esse jogador, um jogador como Ronaldinho, está se pondo à prova a cada domingo. Qualquer craque desses tem o sucesso instável. Dependendo de quem é, então, a cobrança é mais exagerada. Eu fico às vezes impressionado com um jogador como o Romário, por exemplo, a respeito de quem parece que existe uma tolerância zero. E o Romário é um craque, deu a Copa de 94 para a gente e, se ele passa duas partidas sem fazer gol, acabou. E eu já vi o Romário acabar muitas vezes. Aí entra muita coisa, a simpatia, a maneira como lida com a mídia... Gosto muito do Romário e também acho que ele cria uma imagem antipática exatamente por uma grande virtude dele, que é o orgulho, é um sujeito que não se deixa passar a mão na cabeça. E dá a impressão de fidelidade aos amigos.
Estado - Você gosta dessa dupla de ataque? São dois jogadores com características muito parecidas.
Chico - Mas eu já vi os dois fazerem grandes jogadas. Se não me engano foi na primeira partida que jogaram juntos. Vi os dois juntos infernizando a zaga italiana.
Estado - E essa seleção do Zagallo, o que você acha dela?
Chico - Eu não conheço o time do Zagallo. O time que ele escalou outro dia, se não me engano, é um time que nunca jogou junto. Então vamos começar. Mas os jogadores são muito bons, esse time é muito bom, como poderia ser muito bom com metade do time alterado.
Estado - Teve o caso do Raí, que jogou aquela partida, foi queimado, voltou para o São Paulo e tem sido decisivo para o time...
Chico - O caso do Raí foi cruel, incompreensível. Eu me lembro da outra partida, contra a Alemanha, por acaso eu estava em Paris e foi noticiada a volta do Raí à seleção. E ninguém entendeu chamar o Raí e deixá-lo no banco. Nem o colocaram para jogar no segundo tempo. Em determinado momento o Dunga foi expulso, mas aí já era tarde.
Estado - O futebol brasileiro elegeu a Era Dunga desde 1990. Você, que é um defensor do futebol ofensivo, concorda com isso?
Chico - O futebol todo mudou. Eu não entendo muito por que o Brasil, tendo a vantagem natural dos craques, não possa impor o seu estilo de jogo. Jogar com dois Dungas porque essa é a regra geral e todos os países jogam assim? Acho que, ao menos no futebol, o Brasil poderia estar ditando as regras. Imagino que o modelo de jogo possa estar a serviço dos jogadores que a gente tem. Até na Copa de 70, quando foi escalado aquele time, o Rivelino foi jogar na esquerda porque era um craque e não podia ficar fora do time.
Estado - A seleção brasileira entra em campo de mãos dadas desde 94...
Chico - Será que ela vai entrar de mãos dadas de novo?
Estado - Sempre entra, até em amistoso.
Chico - Quando o time entra de mãos dadas eu fico com um pouco de vergonha. Aliás, geralmente quando ligo a televisão eles já entraram para eu não ter de ver aquela cena. Aquilo não quer dizer nada.
Estado - Você acha que o talento do jogador brasileiro tem muito a ver com a miscigenação de raças, com essa cultura brasileira?
Chico - Tem a ver, mas eu não vou me adiantar muito sobre isso senão vou roubar de mim mesmo o assunto da minha coluna. Mas é claro que essa ginga está muito no jogador africano e alguns países europeus. Alguns jogadores italianos têm a habilidade muito grande, os iugoslavos...
Estado - O presidente da Fifa, João Havelange, condena o uso da TV para resolver os erros no futebol. Acredita que isso decretaria a morte do futebol. Você acha que a TV seria importante para arbitrar jogo?
Chico - Não acho que seja o erro que dê graça ao futebol. Só acho que o futebol tem esse grande sucesso em países pobres, como é o Brasil, como são os países africanos, porque é um esporte que dispensa tecnologia. Se aparecer a televisão como tira-teima em jogos oficiais, vai ter de se criar uma coisa parecida no interior do Maranhão. Serão duas categorias. Um futebol de tecnologia, dos ricos, para eventos especiais, e o resto do futebol que se joga quase de forma amadora. Esse futebol será um futebol de segunda classe.
Estado - Há quem diga que, das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante. O que você acha disso?
Chico - É bom isso, bom... O futebol é importante para nós, brasileiros, não porque a seleção seja a pátria de chuteiras, como se diz. Isso é uma besteira. Eu acho o contrário disso. Acho importante o futebol como valorização de um brasileiro que, em sua grande maioria, é alguém por quem a pátria não fez nada. Você vai lá fora e não há nada como o futebol que nos represente tão bem, e o Brasil, como pátria, tira uma casquinha e vai de carona no sucesso desses jogadores, que são, nesse sentido, heróis. Estava lendo uma entrevista do Denílson, que foi criado em Diadema, ele falando dos colegas dele, que muitos morreram, outros estão na droga. Ele vem de um ambiente inteiramente desassistido. E esses jogadores representam o Brasil, apesar do Brasil. O homem brasileiro é capaz disso e fico sempre comovido com isso. Eu torço muito pelos jogadores brasileiros, mais até do que pela seleção brasileira. Acompanho o futebol italiano para ver o Ronaldinho na Inter de Milão, o Edmundo na Fiorentina, para ver esses craques todos. Sobre essa tentativa de exploração, de falar esse tipo de coisa, a seleção é a pátria de chuteiras, a gente ainda vê isso como um ranço que Zagallo traz dos anos 70, uma certa agressividade contra os seus críticos e dizendo que quem está contra o trabalho dele está contra o Brasil, confundindo a seleção com o Brasil e o técnico da seleção com o Brasil. Isso é típico dos anos 70 e não tem mais cabimento hoje.
Estado - Como surgiu a idéia de criar o Politheama, o seu time de futebol?
Chico - O Politheama, na verdade, era meu time de botão, com as cores verde e azul. Há 20 anos, eu e amigos começamos a jogar no Recreio de Bandeirantes. E havia torneios, o Politheama começou a disputar esses torneios e está aí até hoje.
Estado - Além da convivência com Garrincha, na Itália, você teve contatos com outros grandes jogadores de futebol?
Chico - Conheci outros jogadores, como o Pagão, que era meu ídolo de infância. Fui apresentado ao Pagão durante o programa especial que a Bandeirantes fez, depois disso estive com ele algumas vezes, conheci a família dele, estive na casa dele, joguei no clube portuário, onde ele jogava tamborete. Agora, com o Garrincha foi uma relação mais próxima no sentido de que nós estávamos um pouco desamparados em Roma, porque, quando estive com ele, eu não estava trabalhando muito, estava vivendo um pouco de expectativa de voltar para o Brasil, e ele estava lá fazendo alguns bicos como jogador, participava de algumas peladas porque ele gostava e ao mesmo tempo porque ele precisava, era um dinheirinho que entrava. Ele estava duro e eu também estava duro, então foi uma convivência muito especial, diferente de qualquer outra que possa ter. Ele era um sucesso formidável, íamos em lugares com arquibancadas improvisadas e tal, porque os jogadores não eram exatamente o Jordan e outros marcadores que teve, eram times amadores. Fazia umas três a quatro jogadas e saía aclamado de campo.
Estado - A sensação de desfilar pela Mangueira na Marquês de Sapucaí lotada e com o público emocionado seria semelhante ao prazer de marcar um gol?
Chico - Daria para comparar se eu estivesse na seleção brasileira, porque a Mangueira é um pouco isso. Estava lendo outro dia, acho que era o Vavá, dizendo que ele sentia saudade até das vaias. Imagina a falta que não deve fazer isso, é a tragédia de muitos jogadores quando param.
Estado - A seleção brasileira vive uma fase de contusões. Você, como jogador de futebol, já sofreu alguma contusão mais séria?
Chico - Já. Há pouco tempo eu arrebentei tudo, o pé, o tornozelo, o perônio, os ligamentos, tudo. Foi muito tempo de cama, até para voltar a jogar comecei jogando com times femininos. Na época, lembro que a minha mãe ficou preocupada e falou: "Filho, você vai voltar a jogar? Já está com cabelos brancos." Disse: "Mas o Júnior também está, mãe."
A paixão eterna de Chico Buarque
Maior compositor da MPB, cantor, escritor, ator de cinema, autor de teatro, enredo (vitorioso) de escola de samba - de tudo Chico Buarque já fez um pouco. Agora, enquanto grava um novo disco, ele prepara uma surpresa para seus fãs: vai ser cronista esportivo. Durante a Copa da França, Chico será colunista do GLOBO e, em seus textos, poderá mostrar toda a paixão que tem pelo futebol. Nesta entrevista exclusiva, ele fala da infância de peladeiro, da admiração pelo futebol ofensivo, de seus ídolos, da tentativa de ser jogador profissional e da frustração de não ter feito um gol no Maracanã. O prazer que tem de jogar é tão grande que os contratos de show no exterior têm que incluir uma pelada. "Já joguei em Paris, Portugal, Angola e até em Cuba."
RF - Você está indo para a Copa dentro de poucos dias. Qual a sua opinião sobre o time do Brasil: é um timaço ou está com cara de ser um novo 1966?
Chico - Eu não lembro o time de 1966. Engraçado, foi uma Copa que eu não acompanhei muito, estava meio desligado de futebol. Eu acompanhei até 1962 e depois pulei 1966. Agora, comparando com a última Copa - e o futebol mudou tanto - acho que a gente tem mais time, tem mais jogadores, tem mais opções.
RF - A espinha dorsal do time, com Aldair, Dunga e Romário, está mais velha. Isso pode influenciar?
Chico - Eu não entendo de futebol... Eu vou a essa Copa, que é a primeira que eu pretendo assistir do começo até o fim, mas a minha idéia de escrever é um pouco de escrever sobre futebol também para quem não entende de futebol que nem eu. Porque eu acho que a Copa é um acontecimento que interessa até a pessoas que não se interessam por futebol, que não gostam de futebol ou que não acompanham futebol. Eu gosto de futebol, o que não quer dizer que eu entenda de futebol. Geralmente a gente gosta das coisas que não entende exatamente. Eu não entendo nada de música e gosto de música e trabalho com isso.
RF - Eu ouvi bem? Você está dizendo que não entende nada de música nem de futebol?
Chico - A gente gosta das coisas que não entende; as coisas que entende a gente não gosta. Eu entendo de quê? De gramática, de trigonometria! Mas eu não gosto dessas coisas... Futebol eu sou um apreciador, mas eu nem acompanho muito bem uma partida. Estou prevenindo sobre isso porque eu vou escrever sobre futebol e quero que as pessoas saibam que vão ler textos de quem não observa talvez muito objetivamente um jogo de futebol. Eu gosto tanto de futebol que, muitas vezes, assistindo a uma partida, eu me desligo inteiramente do que está acontecendo. Uma jogada bonita, por exemplo, que é interrompida, eu fico imaginando o que é que poderia acontecer e fico ainda um tempo parado naquilo. E aí a bola já está no outro lado do campo, e se me perguntarem o que aconteceu eu não sei reproduzir, porque estava pensando em outras possibilidades. Então é isso: eu não quero que esperem de mim uma análise muito objetiva. Mas, sobre a seleção, vamos lá: a gente tem um time um pouco envelhecido e até entre os jogadores que não vão acho que a gente tem um time de jogadores aptos a jogar pela seleção mais do que há quatro anos. Acho mesmo. Sem falar do Ronaldinho, que já deveria ter jogado nos EUA - até para nos dar o gosto de ver um Ronaldinho jogar uma Copa com 17 anos.
RF - Nesta discussão sobre maior ou menor número de atacantes, como você fica?
Chico - Eu só gosto de futebol ofensivo, só gosto de ataque. Aliás eu não entendo nada de jogador de defesa. E gostaria que tivesse mais jogadores na frente. O Denílson, por exemplo, só é convocado pelo que ele joga no São Paulo, não como marcador. Mas aí o Roberto Carlos, como ala, joga na função que é do Denílson. Eu não vejo por que não possa jogar na função de número 1 o Muller, por exemplo, que faz isso no Santos também. O que eu estou vendo é que as pessoas reclamam que os atacantes estão muito isolados e ao mesmo tempo atrás também falta jogador. Quer dizer: eu não sei onde estão esses jogadores... Estão todos embolados no meio de campo e estão marcando no meio de campo, e todos não atacando no meio de campo e deixando os atacantes isolados e a defesa muitas vezes também desguarnecida, em situação de desvantagem.
RF - Rivaldo e Giovanni, que não vinham jogando, poderiam ser mais bem trabalhados?
Chico - O Rivaldo, pelo que a gente vê pela TV no Barcelona, está jogando muita bola. Na seleção ainda não vi ele jogar o que está jogando no Barcelona. Então, deve ser um problema tático.
RF - Qual a sua opinião sobre o Zagallo?
Chico - Tenho dificuldade de entender o que ele pensa. Eu não me lembro muito do Zagallo se definindo em relação ao futebol. Eu lembro muito do Telê falando, ele tinha uma opção clara pelo futebol bonito, é um sujeito preocupado com a violência no futebol. O Zagallo eu vejo opinar muito pouco. Ele fala muito de vitória, "nós ganhamos, nós perdemos, nós jogamos muito mal", sempre essas coisas. Inclusive aquela coisa meio desagradável de que quando ganha ele fica um pouco enfurecido. Mas ele não é nada bobo: joga muito com essa coisa do resultado e com a superstição, repetindo que é um homem de sorte. E de certa forma as pessoas acreditam muito nisso. As pessoas acreditam que futebol é sorte - e um pouco é mesmo. O Brasil ganhou a última Copa por causa de um pênalti, aquilo foi sorte. Mas realmente não sei o que o Zagallo pensa sobre futebol.
RF - Qual a primeira Copa que você se lembra?
Chico - A de 1950. Na Copa de 50 eu até assisti a uma partida entre Brasil e Suíça. Eu morava em São Paulo na época. Depois, em 54, eu morava na Itália e vi pela televisão, passava direto da Suíça. Me lembro de Brasil e Hungria. E 58 e 62 eu ouvi pelo rádio.
RF - E você se desligou do futebol depois disso por quê?
Chico - Em 1966 eu estava começando com música, estava estudando arquitetura. Engraçado isso, porque eu jogava muito futebol na escola e depois que eu fui para a faculdade parei de jogar e de acompanhar um pouco. Eu gosto mais de jogar bola do que de assistir. Em 1970 eu tinha voltado para o Brasil e em 1974 eu estava aqui também.
RF - Em 1970, depois em 1994, houve muita acusação de uso político das vitórias do Brasil pelos governos. Você acha possível isso acontecer agora?
Chico - Eu acho difícil o Fernando Henrique convencer alguém de que ele gosta de futebol... Em 1970 a gente percebia claramente que havia um uso da seleção. Aí era violento e a gente não pode nunca comparar com 1994 e nem com uma possível exploração política em 1998. Em 1970 era evidente, toda a propaganda era voltada para isso. Inclusive o próprio Médici era supostamente uma pessoa que entendia de futebol e ia ao campo com aquele radinho de pilha. Uma vez eu estava no Maracanã e quase fui atropelado por aqueles batedores chegando com o Médici. Foi a única vez que eu vi o Médici, de longe. Mas quem gosta de futebol, como eu gosto, era incapaz de reagir politicamente ao uso político da Copa a ponto de torcer contra o Brasil. Talvez por causa desse uso político feito durante a ditadura militar, eu fiquei um pouco avesso a essas patriotadas, que são recorrentes. Não é nem por imposição de governo hoje em dia. É uma coisa que ficou impregnada no tipo de uma opção de transmissão, essa propaganda toda que se faz em volta: "Brasileiro gosta de futebol, brasileiro gosta de mulher." Como se os outros povos não gostassem... Fica muito Brasil, Brasil, Brasil, que é uma coisa meio desagradável e lembra um pouco esse período aí. Mas eu torcia pelo time brasileiro sem torcer pelo Governo.
RF - Tem que ter muita frieza para conseguir não torcer pela seleção.
Chico - Principalmente porque o time era bom, o futebol era bonito. Eu não sou patriota a ponto de torcer pelo Brasil quando ele joga mal. Pelo contrário: se estiver jogando mal, se estiver jogando contra um time que está jogando muito bonito, eu sou capaz de torcer para o Brasil tomar um gol. Se tiver uma jogada de ataque de Camarões contra o Brasil e a jogada for maravilhosa, eu vou torcer para aquela bola entrar. Eu gosto de futebol bonito. Essa Copa de 1994... Não me interessa esse tipo de vitória.
RF - A seleção de 1982 marcou muito mais do que a de 1994.
Chico - Mas muito mais! Para mim e para todo mundo. Quando as pessoas conversam comigo de futebol no exterior, na Europa, elas vêm falar toda hora no time de 82. Ninguém fala do de 94... E falam do Falcão, do Zico, do Sócrates. O tempo todo. Ninguém esquece. Então eu me pergunto: para que ser campeão do mundo? Ser campeão e fazer o que com essa taça? Guardar para ser roubada? Não interessa o troféu.
RF - Você jogava muita pelada quando era garoto?
Chico - Eu jogava muito na rua, em São Paulo, onde passei toda minha a infância. Quando eu vinha ao Rio jogava um pouco na praia, mas nunca me dei bem com futebol na areia, não estava acostumado. Mas jogava futebol na rua mesmo, de parar quando vinha carro. É claro que vinha carro muito de vez em quando. Hoje isso seria impossível, a rua que eu jogava é movimentadíssima, cheia de restaurantes, a Rua Haddock Lobo. E era assim: quando vinha um carro lá em cima o pessoal gritava: "Olha a morte!" Parava o jogo, passava a morte, e continuava depois. O futebol que eu jogava era praticamente só esse. Fui jogar em campo só na escola. E joguei algumas vezes em campo de várzea lá em São Paulo.
RF - E como é que você, criado em São Paulo, virou torcedor do Fluminense?
Chico - Porque eu morava em São Paulo mas era carioca, vinha sempre ao Rio, minha família era daqui. Quem me levava para futebol era minha mãe, meu pai não dava bola para futebol. E minha mãe era torcedora do Fluminense, sabia o time tricampeão de 1917/18/19. Até hoje ela sabe de cor esse time. Eu lembro de um Palmeiras e Fluminense até hoje. Lembro bem que o Castilho defendeu um pênalti e o juiz mandou cobrar de novo... Eu fiquei revoltadíssimo. Era aquele time de Castilho, Píndaro e Pinheiro.
RF - Tirando aquela breve interrupção, você nunca mais parou de jogar peladas.
Chico - Depois dessa interrupção, voltei a jogar. Quando eu morei na Itália, em 1969, jogava futebol lá. Cheguei a jogar num time semi-amador, uma vez chegaram a me dar ajuda de custo num treino. Na volta joguei muito futebol de salão, aqui perto, no Clube Carioca, e depois comecei a jogar lá no Recreio dos Bandeirantes.
RF - E hoje você joga em qualquer lugar do mundo...
Chico - Em qualquer lugar. Faz parte do meu contrato, quando tem shows, temporada lá fora, faz parte do contrato uma pelada. E tenho jogado por aí: Paris, jogo bastante em Portugal, em Angola, em toda parte. Até em Cuba consegui jogar futebol... Não jogam nada!
RF - É verdade que você saiu de uma reunião de escritores em Paris para jogar uma pelada nessa última viagem?
Chico - Lá em Paris tem um campinho que eu jogo sempre, aqueles campinhos da Prefeitura na periferia, com grama sintética. Sempre tem uma pelada, com latino-americanos e africanos - o francês de uma forma geral não gosta muito de pelada. Eu não cheguei a largar nenhuma reunião para jogar futebol, mas deixei de ir a algumas...
RF - Você não é um torcedor desses que fica nervoso, nem quando o Fluminense perde?
Chico - Eu não posso ficar nervoso quando o Fluminense perde, senão eu viveria nervoso... Tinha um tempo que eu ia mais ao Maracanã, quando o Fluminense era um time mais de competição, e aí eu torcia. Eu já não esquento com isso. Nem posso... O Fluminense não me anima mais.
RF - Reza a lenda que o seu time, o Politheama, nunca perdeu uma partida...
Chico - Partida oficial o Politheama nunca perdeu. Impressionante esse número. Vinte anos!
RF - Como começou o Politheama?
Chico - O Politheama era o meu time de botão que foi promovido a gente... O time surgiu quando a gente começou a jogar nesse campo do Recreio. Tinha um pessoal de música, um pessoal que jogava salão no Clube Carioca, tinha a turma de cinema também. O difícil é conseguir adversário na mesma faixa etária: não dá para manter essa invencibilidade jogando contra garotos. Agora quem está indo muito ao campo são os filhos dos artistas. Então vão os filhos do Djavan, do Novelli. Lá fora, quando a gente chega, quer adversários de mais de 40 anos. E é difícil conseguir onze jogadores com mais de 40 anos...
O que é mais emocionante: ganhar uma Copa do Mundo ou um desfile de escola de samba?
Chico - Eu nunca ganhei uma Copa do Mundo, nunca fui convocado... Mas imagino que seja uma coisa parecida. É claro que ganhar uma pelada, ganhar uma partida pelo Politheama, não é a mesma coisa que desfilar pela Mangueira. É claro que não! E a platéia é maior...
RF - Embora você tenha dito que não entende nada de futebol, várias músicas suas falam de futebol.
Chico - Tem menos do que eu gostaria. Tem uma música chamada "O futebol", e fora isso o futebol é citado aqui e ali em meia dúzia de músicas.
RF - A primeira foi aquela que você fez para o Ciro Monteiro.
Chico - Essa do Ciro é a transformação da camisa do Flamengo que ele mandou para a Silvinha, quando eu morava em Roma, numa camisa do Fluminense.
RF - Você tem uma música que fala até num jogo Flamengo e River Plate. Onde você foi arranjar esse jogo?
Chico - Acho que foi só por causa da rima. River Plate era para rimar com leite... "O futebol" é a homenagem aos meus cinco atacantes preferidos: Garrincha, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro. É a dedicatória que vira uma linha de passe.
RF - Nessa música você compara o trabalho do compositor ao dos craques.
Chico - O do compositor, do pintor... Eu coloco o futebol acima dessas artes todas. Não que eu considere o futebol uma arte superior a estas. Mas há certos momentos de genialidade do futebol, daquela capacidade de improviso, alguns relances que acontecem no futebol, que artista nenhum consegue produzir.
RF - Tirando Pelé e Garrincha, esses são os melhores jogadores que você viu em atuação?
Chico - Isso tem muito a ver com o futebol que eu assistia nessa época, na década de 50. Normalmente é nessa idade que você gosta de futebol, entre 10 e 20 anos. Depois você começa a se interessar por outras coisas, começa a namorar, vai trabalhar. Eu era como essa garotada de hoje que adora futebol. Quando eu morava perto do Pacaembu, em São Paulo, eu assitia a tudo o que acontecia lá. Na verdade, o que eu queria era ser jogador de futebol. Isso era por volta de 58. O Pelé, o Garrincha e o Didi todo mundo viu jogar, mas o Pagão e o Canhoteiro pouca gente viu. Só quem morava em São Paulo ou esporadicamente em jogo de seleção. Essa linha nunca jogou junta. Esse ataque dos meus sonhos nunca chegou a se juntar. Pagão era um cracaço, mas não jogou muito tempo. Ele foi um dos grandes parceiros do Pelé. Eu vi a dupla Pelé-Pagão acontecer ali no Pacaembu: era uma dupla infernal. E quando via ele jogar eu queria ser o Pagão. Aliás eu sou o Pagão: na súmula do Politheama assino Pagão, e a minha camisa é a 9 em homenagem a ele.
RF - Você joga mais tabelando e servindo...
Chico - ...para o Vinícius (França, produtor de Chico) fazer os gols... Ele é produtor, mas no futebol eu é que trabalho para ele. Mas eu gosto. Eu tenho prazer em servir o centroavante. Estava conversando com o Tostão outro dia e ele falou daquele time famoso do Cruzeiro, que tinha o Natal, o próprio Tostão e o Evaldo, que era um centroavante que não gostava de fazer gol. Eu gosto de fazer gol, mas essa coisa que chamam de assistência é formidável. Entregar uma bola de bandeja e fingir que não foi você que fez o gol. Foi você que fez o gol, claro.
RF - E o Canhoteiro, seu outro ídolo? Esse quase ninguém sabe quem é hoje em dia.
Chico - Canhoteiro era um gênio. As pessoas o comparam ao Garrincha. Ele jogava na ponta esquerda, era um driblador, só que tinha um drible na corrida, mais veloz, não parava como o Garrincha. Ele tinha essa coisa lúdica igual ao Garrincha: você ria vendo o Canhoteiro jogar. O ataque do São Paulo era Maurinho, Dino Sani, Gino, Zizinho e Canhoteiro. Naquele ataque dos meus sonhos falta o Zizinho, que só não está porque não sobrou espaço. Ele é o técnico desse meu ataque. O Pelé me disse uma vez que o ídolo dele era o Zizinho.
RF - O sonho de todo peladeiro, que é jogar no Maracanã, você já realizou. Mas o segundo sonho de todo peladeiro, que é fazer um gol no Maracanã, você não conseguiu. Como foi isso?
Chico - Eu joguei algumas vezes no Maracanã. Na chance mais evidente que eu tive, estava na frente do gol, o gol livre, pela esquerda vinha Vinícius, o goleiro fechou o gol - quer dizer, cabia ao Vinícius simplesmente tocar para a direita que eu estava ali para marcar - e o Vinícius tocou em cima do goleiro. No futebol, é dando que não se recebe.
RF - A sua vontade de ter sido jogador de futebol às vezes lhe faz até se apresentar como se fosse. É verdade isso?
Chico - É verdade. A última vez eu estava no Marrocos. O que o pessoal lá gosta de futebol é impressionante. Essa coisa de que brasileiro gosta de futebol, brasileiro gosta de mulher, brasileiro gosta de carro... No Marrocos, pelo menos de futebol eles gostam mais do que brasileiro. Só falam de futebol. A última vez que eu falei que era jogador de futebol no Brasil foi no táxi. Aí o motorista olhou para minha cara e disse: "Ex-jogador, né?" Mas eu menti bastante. Falei até que tinha ido para a Copa de 82. Só que o cara sabia todos os jogadores. Aí eu falei: "Não, eu fiquei no banco, estava machucado. Eu era reserva do Sócrates." Se bobeasse, ele ia saber quem era reserva do Sócrates, pois sabia o time inteiro. Impressionante o Marrocos: você vai naquelas lojas comprar tapete e só tem figurinha nos balcões, dos times do mundo inteiro. Fiquei procurando a minha...
RF - Do jeito que você fala, parece que você é um jogador frustrado que compõe, e não um compositor que joga bola.
Chico - Mas eu queria mesmo ser jogador. Cheguei a tentar fazer um teste no Juventus lá em São Paulo. Fui à Rua Javari, levei chuteira, fiquei na arquibancada horas e horas e não me chamaram. Acho que o "physique du rôle" não convenceu o técnico. Passou o tempo todo e ele mandou eu voltar outro dia. Eu não voltei. Não cheguei a colocar à prova o meu talento...
RF - Uma passagem que quase ninguém sabe na sua vida é quando você serviu de motorista para o Garrincha na Itália.
Chico - Quando o Garrincha chegou a Roma, foi um pouco como marido da Elza, que tinha ido lá fazer uns shows. Na época, em 1969, ele jogava umas peladas remuneradas, e gostava muito daquilo. Geralmente eram jogos em campinhos perto de Roma. Mas era impressionante a popularidade do Garrincha. Ele foi lá em casa umas três vezes, e eu só sei que ganhei um prestígio imenso com o sujeito do bar que ficava no térreo do meu prédio quando ele soube que eu conhecia o Garrincha. Ganhei um prestígio imenso lá. A gente saía de carro e eu levava ele para essas peladas. Era impressionante como, sete anos depois da Copa de 62, todo mundo ficava atrás: "Garrincha, Garrincha." E eu era o chofer dele.
RF - Nessa época ele bebia muito?
Chico - O Garrincha bebia, e eu não posso falar nada porque eu bebia com ele, na época. Mas ele estava muito bem de espírito, nunca vi ele bêbado. Bebia bastante mas estava sempre alegre, não tinha aquela coisa depressiva do alcoolismo. Eu via nele um sujeito muito sensível, a gente falava muito de música. Fiquei muito impressionado que ele pudesse gostar de João Gilberto. E ele adorava João Gilberto. Nós falávamos de tudo, não era só de futebol. E falávamos tomando cerveja, tomando grapa.
RF - Antes de ir para Paris você ainda termina de gravar o seu novo disco?
Chico - Estou terminando. Ainda falta escrever mais uma ou duas músicas, o resto já está bem adiantado, gravado. Estou dividindo meu tempo entre isso e a idéia de escrever para o jornal sobre a Copa do Mundo. Esse disco, mesmo que fique pronto antes da Copa, não sai antes de agosto. Durante a Copa não se lança nada no Brasil, pára tudo.
RF - E esse disco representa o que no conjunto da sua obra?
Chico - Eu não sei bem ainda. É sempre assim: quando o repertório estiver completo é que eu vou saber a cara do disco, o nome do disco, a capa. O disco não tem cara ainda. Tem oito músicas já gravadas com arranjo pronto e ainda não sei o que é esse disco. É um disco gravado com bastante tempo, tem canções que foram escritas ano passado, como a música do filme "A ostra e o vento". São canções que foram sendo acumuladas esse tempo todo. No último disco que eu lancei com músicas novas, o "Paratodos", as músicas vieram todas de enxurrada. Nesse agora não, elas estão vindo a conta-gotas. Isso dá uma outra cara ao disco, que eu não sei ainda qual é, mas é uma cara diferente das outras.
Rapt generation «Ecrivain potentiel» depuis tout petit, Chico Buarque explique comment il a été kidnappé par la chanson populaire et comme il serait ravi de ne pas écrire de best-sellers.
RECUEILLI PAR MATHIEU LINDON, le 19/3/98
Rio de Janeiro, envoyé spécial.
Chico Buarque a 54 ans et les yeux particulièrement bleus. Il habite à Rio, près du Jardin botanique, un appartement calme avec vue sur le Pain de sucre, le Christ du Corcovado et le lac. Des tableaux s'exposent sur un canapé. C'est qu'une «catastrophe» s'est produite la veille, les pluies diluviennes ayant transpercé le plafond. Célèbre comme chanteur depuis plus de trente ans (l'école de samba de Mangueira lui a rendu hommage durant le carnaval de 1998), Chico Buarque a publié deux romans: Embrouille et Court-circuit, traduits chez Gallimard, le premier en 1992 et le second l'automne dernier. L'ambiance y est lourde, riche cependant d'«humour un peu noir», différente de celle sa musique. Le héros de Court-circuit, devant le peloton d'exécution, tâche de relier tout ce qui l'a mené là. C'est une histoire d'amour, certes, mais c'est aussi toute l'organisation d'une société où il est difficile de tenir tous les fils en main.
Chico Buarque a lu le livre de Caetano Veloso, Verdade tropical. Les deux hommes sont proches depuis trente ans, même si, comme le raconte Caetano, ils se sont séparés quelques mois durant dans la période de l'éclosion du tropicalisme ou du coup d'Etat de 1968 (qui a surenchéri sur celui de 1964). «J'ai aimé ce livre, même s'il y a beaucoup de choses avec lesquelles je ne suis pas d'accord, mais je comprends le point de vue de Caetano. Je n'envisage pas d'écrire un texte biographique. Ecrire, pour moi, c'est être en proie à l'imagination.»
Que vous apporte la littérature que vous ne trouvez pas dans la musique?
J'ai toujours écrit. Dans mon adolescence, j'étais un écrivain potentiel. Après, j'ai été presque enlevé par la chanson populaire. J'avais publié un petit récit dans le journal Estado de Sao Paulo en 1961 ou 1962. Mon père était écrivain, pas un romancier mais un critique littéraire, un sociologue. Je vivais entouré de livres. Mon premier roman est paru en 1989, je pense qu'il a fallu attendre tout ce temps le moment juste pour écrire vraiment de la littérature, même si j'avais déjà fait des nouvelles et des textes pour le théâtre. Le feedback, la réponse extérieure qu'on reçoit en littérature est nulle par rapport à celle de la musique populaire. Mais une des limites terribles de la chanson est que c'est un art de jeunesse. Arrivé à un certain âge, on fait autre chose. Des compositeurs deviennent peintres ou tout simplement ne font plus rien. Qui va au concert, qui achète les disques? C'est la jeunesse. Tout le rapport avec ma génération est un rapport qui reste aux années 60 ou 70. «Et cette chanson de 1970?», me dit-on. On n'est pas au courant de celles que j'écris actuellement. Il y a des jeunes à mes concerts, mais ils ne sont pas ma génération.
On commence à perdre le rapport avec le public et on cherche autre chose, le contraire de ce que la musique m'a donné, l'anonymat, presque l'impopularité. La littérature ne m'apporte rien que du plaisir et des angoisses dans le temps où je suis là à écrire le livre. Embrouille a eu un succès par équivoque, à cause de la confusion entre auteur de musique et écrivain. Des gens m'ont abordé dans la rue pour me dire: «J'ai acheté ton livre en pensant à tes chansons. Je n'ai pas aimé du tout.» Le deuxième livre s'est vendu la moitié du premier, 60 000 exemplaires. C'est encore trop. Le troisième livre sera peut-être la mesure de ce que doit être le public qui s'intéresse à ma littérature: 30 000 exemplaires seraient bien. Mon éditeur ne serait pas très content, mais moi si. Je n'ai aucune intention de devenir best-seller. Je l'ai été en musique populaire. Ce que je cherche est un autre chemin, pas de faire la compétition avec le musicien.
Comment avez-vous été «enlevé» à la littérature par la musique dans un pays où la frontière est lâche entre cultures populaire et érudite?
J'étais adolescent, j'avais 16-17 ans quand est né chez nous un mouvement de musique populaire très très fort qui a enlevé toute notre génération. Le plus important, à la fin des années 50, c'était Tom Jobim, João Gilberto, la bossa nova. C'était un moment très particulier avec la construction de Brasilia, des expériences théâtrales, Glauber Rocha et le cinema novo, et la littérature était hors de ça. Tous les adolescents, les jeunes de 20-22 ans disponibles pour l'art sont devenus cinéastes, hommes de théâtre, musiciens. La littérature, c'était la génération précédente, celle de mon père. Vinicius de Morães était un poète culte. Quand il a abandonné la poésie pour se mêler de la chanson populaire, il a baissé de statut [c'est lui qui a fait les paroles d'A Garota da Ipanema, la Fille d'Ipanéma, dont Tom Jobim a fait la musique, ndlr]. Pour ses anciens admirateurs, c'était une trahison. Il s'est exilé de sa génération pour aller vers la nôtre.
Votre fille est mariée au musicien Carlinhos Brown et votre petit-fils a été insulté dans la presse. Comment expliquez-vous qu'on parle si peu du racisme brésilien?
J'ai reçu un jour un journal de l'intérieur du pays avec un article honteux qui faisait en outre un peu comme si la mère de ma fille et moi étions fâchés contre elle pour avoir épousé un Noir et nous avoir donné un petit-fils métis. C'était deux fois diffamatoire. Ce qui est pire est que, quand on a mis un avocat sur l'affaire, car j'ai fait un procès, on a appris que l'auteur de l'article était noir. Il peut y avoir un racisme des mulâtres envers les plus noirs, des plus noirs envers les moins noirs dans un pays où le métissage est présent partout. Le racisme est dans les entrailles du métissage. Si un ami noir vient me visiter, s'il n'est pas reconnu comme musicien ou joueur de football, le portier ne le laissera pas monter par l'ascenseur principal, même et peut-être surtout si le portier est noir. C'est très difficile pour un Noir d'être médecin, universitaire, même comédien: à part musicien et footballeur, tout est difficile pour grimper l'échelle sociale. Dans les restaurants, les compagnies aériennes, il n'y a pas de Noirs.
Je ne m'en étais pas rendu compte, je l'ai remarqué pour la première fois au début des années 70. Dans ma loge, j'avais une serveuse noire, pour moi seul. Je lui ai demandé si elle travaillait toujours avec les artistes et elle m'a répondu que oui, qu'elle ne faisait jamais le service en salle. On suppose que les clients ne seraient pas à l'aise d'avoir des boissons ou des nourritures apportées par des Noirs. Et ce sont des choses acceptées sans contestation, donc irrécupérables.
Chico Buarque vira Chico da Mangueira
Chico Buarque assistiu sozinho, em seu apartamento no Jardim Botânico (zona sul do Rio), a apuração que apontou a Mangueira e a Beija-Flor como vencedoras do Carnaval.
Depois do resultado oficial, acenou para fãs que o parabenizavam na rua e deu um autógrafo para o menino Pedro Henrique Hasselmann, de 10 anos, em que assinou: "Um abraço de Chico da Mangueira". Leia trechos da entrevista.
Pergunta - O sr. acompanhou a apuração pela televisão?
Chico - Assisti a tudo sozinho. Quando vi o pessoal da Mangueira se abraçando e chorando, confesso que me deu um aperto no coração. Estou muito feliz por mim, mas principalmente pela Mangueira. Foi um ano de convívio e eu sei a importância que tem esse título, ainda mais no aniversário de 70 anos. Mais tarde vou à quadra dar um abraço no pessoal, curtir um pouco.
Pergunta - Chico Buarque foi o pé quente que a Mangueira precisava para vencer?
Chico - Acho que dei sorte, mas não sou muito de superstição. A Mangueira não ganhou por mim. O clima na escola estava muito bom e eles afirmavam que em 1998 viriam para ganhar.
Pergunta - As pesquisas estavam apontando Mangueira e Viradouro como preferidas. Ficou surpreso com a Beija-Flor?
Chico - Foi uma surpresa. Não sou um grande entendido em escola de samba. Acho que chegar empatado também é bacana.
Pergunta - Gostou da sua atuação no desfile?
Chico - Vi pela TV e gostei. Sábado vou estar na avenida, só que dessa vez é mais relaxado, é só alegria. Hoje de manhã, um rapaz da Mangueira veio buscar meu terno para passar. Acredito que eles já estavam esperando o desfile das campeãs.
Pergunta - Vai desfilar em 99?
Chico - Ainda não sei. Minha história com a Mangueira infelizmente termina agora no sábado. Semana que vem vou trabalhar e a Mangueira vai escolher outro enredo.
Chico Buarque canta e fala pela Mangueira
Normalmente arredio ao assédio da imprensa, Chico Buarque quebra o silêncio ao participar de "Chico Buarque de Mangueira", CD e show compostos quase só de reinterpretações de sambas clássicos da escola de samba carioca - que elegeu o artista como homenageado de seu enredo de 1998.
Destinado a angariar fundos para a escola - inclusive para a constituição de um Centro de Memória da Mangueira -, o projeto é produzido por Hermínio Bello de Carvalho (leia texto nesta página).
A única canção inédita é "Chão de esmeraldas", parceria - também inédita - entre Chico e Hermínio. O poema apresentado pelo segundo levou o primeiro ao incomum ato de colocar melodia numa letra já pronta.
Chico falou à Folha no último sábado, no Rio, sobre Mangueira, criatividade, política e o livro de Caetano Veloso.
Folha - Em que medida um projeto como esse da Mangueira retarda o lançamento de um próximo disco de Chico Buarque?
Chico Buarque - Não posso nem botar a culpa nesse disco, não seria honesto. Eu estaria lançando agora também um disco meu. Não vou por incompetência. Não foi nem tempo que faltou, foi assunto.
Folha - Você parece cada vez ter menos pressa de lançar novos trabalhos. Por quê?
Chico Buarque - Pressa eu não tenho. Desejo, sim. Gostaria de lançar, mas com pressa não vale a pena.
Folha - Isso implica um distanciamento seu em relação à música?
Chico Buarque - Implica. À medida que você vai compondo, não quer repetir o que já está feito. Parece que já fez tudo, cada vez é mais custoso. Há sempre uma pressão interior. Se me cansar da música, escrevo um livro, mas preciso estar criando. Senão não vou ser feliz.
Folha - Com que intensidade você é mangueirense?
Chico Buarque - Sou mangueirense desde criancinha, como dizem os torcedores. Garoto, já cantava: "Mangueira, teu cenário é uma beleza..." Achava que era "teu senado é uma beleza".
Folha - Desde sua geração, houve uma queda de qualidade de compositores na MPB?
Chico Buarque - Gente nova há, a permanência é que é difícil de prejulgar. Os compositores hoje parecem mais próximos da letra, é engraçado. Acho, como dizia o Nelson Cavaquinho, a música mais importante que a letra.
Folha - Mesmo os bons letristas não são raros hoje?
Chico Buarque - Tenho lido letras muito boas. Li uma do Chico César que é uma maravilha, falando dos olhinhos do gravador, da cigana lendo a mão do Paulo Freire. Só li a letra. É de alta qualidade.
Folha - Aquela necessidade de ruptura que acompanhava sua geração deixou de existir?
Chico Buarque - Uma ruptura no momento, não vejo. Mas é claro que vai chegar um momento em que aparecerá alguma coisa que - tomara - me enterre de vez (ri).
Folha - Parece haver uma desaceleração nesse processo de superação. Isso não faz com que os artistas de sua geração se tornem mitos cada vez maiores e passem a criar menos, a ficar mais preguiçosos, desacelerando junto com eles seus sucessores?
Chico Buarque - Não vejo preguiça nisso. Poderia até ser, mas me sinto tão criativo quanto há 30 anos. Hoje escrever uma canção me custa mais que fazer dez há 30 anos, mas o resultado, para mim, é positivo.
Folha - Questões políticas e sociais se tornaram menos importantes na sua música com o tempo?
Chico Buarque - Músicas diretamente políticas hoje não estou sentindo necessidade de fazer. As com temática social sempre são feitas.
Folha - Com menos impacto...
Chico Buarque - Sem dúvida. O papel do artista na ditadura é superdimensionado. Não tenho a menor nostalgia disso.
Folha - O governo FHC pode estimulá-lo a criar canções políticas?
Chico Buarque - Uma canção frontalmente de oposição, não. Não é o caso. Na época do Médici, eu queria o fim da ditadura. Hoje não quero derrubar governo nenhum.
Folha - Você leu o livro de Caetano? Qual a sua impressão?
Chico Buarque - Estou lendo. Estou gostando muito, até discordando de algumas coisas. A forma como ele vê Augusto Boal me pareceu um pouco injusta. Ele vê um sectarismo do Boal, eu vejo só uma surdez musical brutal. Páreo para o Boal, só o Zé Celso (ri).
Folha - Chico Buarque escreveria um livro como esse de Caetano?
Chico Buarque - Acho difícil. Normalmente, quando sento para escrever, me sinto um ficcionista. Quem sabe, quando chegar ao final do livro, fale: "Ah, não. Vou contar o lado B dessa história."
"Vou arrepiar no desfile" O DESFILE "Eu preferia desfilar no chão, mas sou disciplinado e aceito o que a Mangueira decidir. Estou contente em ser enredo, é a maior homenagem que um sambista como eu pode merecer. Eu sabia que era trabalhoso ser enredo, acompanhei de perto quando o Tom Jobim também foi e até compusemos um samba em homenagem (Piano na Mangueira, regravado no CD em lançamento). Mas eu sabia que seria também bonito e emocionante. Durante o ano todo aquelas pessoas estão pensando, cuidando da gente. A costureira, os passistas, a bateria, os compositores, a velha guarda. É claro que tenho que aparecer muito, mas é difícil ser Mangueira low profile."
UM MUSICAL, TALVEZ
"Como artista, como criador, sou exibicionista. Gostaria de lançar um disco anual. Não lanço porque já não faço mais 12, 15 músicas por ano. Com o passar do tempo a gente vai ficando mais exigente, mais cauteloso, não quer se repetir. Mas é engano pensar que não faço discos ou shows por timidez ou para me resguardar. Não quero expor a minha pessoa, tenho realmente muito cuidado com a minha privacidade, mas quero escrever música, lançar discos, fazer shows muito mais do que tenho feito. Quando terminar meu novo disco penso em escrever outro livro (já há cinco músicas gravadas para o CD que será lançado após o carnaval, entre elas a parceria Você, você, com Ginga, o tema de A ostra e o vento, com participação especial de Branca Lima, e a canção Assentamento, que está no livro de Sebastião Salgado e José Saramago.) Fui sondado para participar da feitura de um musical, achei interessante, mas a proposta ainda é embrionária."
SER BRASILEIRO HOJE
"Como brasileiro, hoje me sinto um pouco preocupado, mas torcendo muito pelo país, querendo que dê certo. Isso até tem a ver com o musical que eu falei, estou preocupado com o pacote que vai ser anunciado na segunda-feira (hoje), porque espetáculos, shows, todas essas coisas dependem de incentivo. Talvez os patrocínios que incentivam tanto nosso cinema, nosso teatro, estejam correndo riscos."
O DISCO E AS FESTAS
"O disco Chico Buarque de Mangueira foi idéia do Hermínio (Bello de Carvalho), que escolheu o repertório, chamou os cantores, fez tudo. Até a nossa parceria (em Chão de esmeralda) foi idéia dele. O disco tem a ver com o Centro de Memória da Mangueira, um projeto do Hermínio. Reúne um pessoal muito bom. Tem o Jamelão, o João (Nogueira), a Alcione, a velha guarda. Acho que tudo está muito bonito. Já sei que na hora do desfile vou arrepiar. Sou eu que vou estar lá, e não um personagem, uma máscara. Então já sei que vai dar aquele friozinho na barriga, porque, naturalidade, isso eu não tenho mesmo".
"O JORNALISTA, QUEIRA OU NÃO, EXERCE UM PODER"
RELAÇÕES PERIGOSAS
"Eu não gosto de intimidade com jornal e são poucos os jornalistas com quem mantenho amizade. Não gosto da idéia de estar conversando com uma pessoa, porque a tenho como uma amiga, e essa pessoa, por sua vez, possa estar interessada profissionalmente na conversa, tornando depois público o que era particular. Isso me inibe e faz deteriorar qualquer amizade. Há muitos jornalistas que sobrepõem a profissão à amizade. Já houve quem se utilizasse da minha amizade para obter informações usadas depois indevidamente. Então você é obrigado a conversar com um pé atrás e isso não é conversa de amigos. Se um amigo que é jornalista está me entrevistando, eu me comporto como um artista falando para um órgão de imprensa. O jornalista, queira ou não, exerce um poder e eu não quero ser simpático a poderoso nenhum."
CORPORATIVISMO
"Escrevi em jornais alternativos como O Pasquim, fui do conselho editorial do jornal Opinião e de outros que a censura perseguiu e esmagou. Por isso mesmo, não sou simpático a nenhuma medida restritiva à liberdade de imprensa e muito menos à idéia de uma lei que ameace economicamente a existência dos jornais. Por outro lado, acho que deveria haver menos espírito de corpo por parte dos jornalistas. Na ação que estou movendo contra o jornal de Goiás eu acabo aparecendo como racista, já que os jornais dizem que eu estou processando porque alguém falou que meu neto é mulato. E não foi isso (o juiz Itaney Francisco Campos, de Goiânia, considerou justificada a ação, fixando uma indenização de 100 salários mínimos em favor do compositor). Eu também observo que, embora exponham sem cerimônia a vida das outras pessoas, os jornalistas permanecem, por sua vez, a salvo. Há alguns muito conhecidos, pois têm suas fotos estampadas nas colunas, dão entrevistas na televisão, lançam livros, o público poderia estar interessado na vida deles também. Mas um jornalista não toca na vida pessoal de outro jornalista."
MANGUEIRA
"Sou Mangueira como sou Fluminense. Sinto uma vibração pela Mangueira que vem desde criança e chegou através das músicas que falam sobre a escola, aquelas pessoas, aquele lugar. É uma coisa mitológica para mim. Mas eu não conheço a fundo escola de samba, não tenho intimidade com samba-enredo. Vai passar é um samba-enredo estilizado, uma coisa longínqua, de ouvido desatento. Não sei dizer se um samba-enredo é bom ou não. Mas estranho esse comportamento inseguro, temeroso de se criticar o samba vencedor da Mangueira porque os autores são paulistas. Isso não combina com o espírito e o jeito do Rio. Grandes cariocas como João Saldanha, Antônio Maria e Rubens Fonseca não nasceram no Rio. O que é que tem se os autores são paulistas? Comentaram que alguns versos sugerem que eu morri. Quando a gente é homenageado já está um pouquinho morto mesmo (diz isso em tom de brincadeira). O samba mais carioca que conheço é Conversa de botequim, de Noel Rosa, em parceria com o Vadico, que era paulista. No disco que a gente está lançando eu canto Sala de recepção, do Cartola. Alguém comentou sobre a participação de portelenses (entre eles, João Nogueira). Mas o sentido da música é esse mesmo, de conciliação e encontro. Na sala de recepção da Mangueira até o Clinton foi bem recebido."
Chico quebra silêncio e admite devolver cachê
Ao falar sobre show para Tom Jobim, compositor confessou-se abatido por Paulinho da Viola
RIO - O cantor e compositor Chico Buarque resolveu romper o silêncio e falar sobre as polêmicas criadas em torno do show Tributo a Tom Jobim, realizado na passagem do ano na praia de Copacabana, no Rio. "Eu achei o espetáculo belíssimo mas, dois dias depois, fizeram dele uma meleca", afirmou. Na última quinta-feira, o juiz Ademir Paulo Pimentel, da 4º Vara de Fazenda Pública, concedeu uma liminar suspendendo o pagamento dos cachês aos artistas, músicos e empresas de serviço que participaram do show. De acordo com a liminar, os cheques da prefeitura dados aos artistas não poderão ser descontados. "Se prevalecer a denúncia de que o show foi imoral, ilegal e desnecessário, devolverei o dinheiro disse Chico, em entrevista por fax.
A liminar atendeu à ação popular contra a Riotur e a prefeitura proposta pelo advogado Agnelo Maia Borges de Medeiros, que considerou superfaturados os cachês. Na ação, ele afirma ainda que o evento não foi licitado, como determina a lei. "Não entendo como se faria uma licitação para a escolha de cantores e orquestra", pondera Chico, que garantiu nunca mais participar de shows promovidos pela prefeitura do Rio.
Chico falou ainda sobre a polêmica em torno do cachê pago a Paulinho da Viola. Enquanto Chico, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Milton Nascimento receberam R$ 100 mil cada um, o sambista embolsou R$ 35 mil. "Compreendo que Paulinho esteja abatido", afirmou.
Estado - Como você encarou a liminar que pede a devolução dos cachês pagos a artistas e técnicos que participaram do show?
Chico Buarque - Vi a notícia no Jornal do Brasil, com uma foto do show, e fiquei com a impressão de que nós, os artistas ali no palco, somos apresentados como seis estelionatários.
Estado - Você pretende devolver o dinheiro ou recorrer? É verdade que você, Caetano, Gil, Milton, Gal e Paulinho pensam em entrar com uma ação conjunta para reverter a situação?
Chico - Pelo que li, o show não poderia ser realizado porque faltou uma licitação. Não entendo como se faria uma licitação para a escolha de cantores e orquestra. Mas se prevalecer a denúncia de que o show foi ilegal, imoral e desnecessário, devolverei o dinheiro à Riotur, que talvez tenha de repassá-lo aos patrocinadores.
Estado - Durante a polêmica sobre o cachê de Paulinho da Viola você preferiu não falar. Gostaria de dizer algo sobre o assunto agora?
Chico - Compreendo que o Paulinho da Viola esteja abatido, e também é natural a mágoa de outros artistas que, tendo convivido e trabalhado com o Tom, não foram convidados para o espetáculo.
Estado - Chegaram a interpretar seu silêncio (e o dos outros cantores) como falta de solidariedade a Paulinho. Você chegou a conversar com ele depois do episódio?
Chico - Se o Paulinho estivesse em conflito com a prefeitura, ou com os patrocinadores, teria em princípio o meu apoio. A questão é mais delicada porque a culpa pela discrepância de cachês recaiu sobre a produtora executiva do show, que é uma pessoa próxima de todos nós, artistas. Um apoio público ao Paulinho significaria uma condenação a essa profissional. Seria uma atitude grave, e não sei se justa.
Estado - Como foi negociado o valor dos cachês?
Chico - Com os outros, não faço idéia. Comigo não houve negociação. Fizeram-me uma proposta e eu a aceitei.
Estado - Você se apresentaria no show por um cachê de R$ 35 mil?
Chico - Posso garantir que em nenhum outro país do mundo artistas de música popular têm-se apresentado de graça, com tanta frequência, em benefício de tantas causas, como os músicos brasileiros de minha geração. Acontece que este show era patrocinado pela Pepsi-Cola. A imagem dos artistas, para efeitos comerciais, era vinculada não a Tom Jobim, mas à Pepsi-Cola. Para fazer propaganda de refrigerante, alguns de nós têm recusado propostas bastante superiores ao cachê recebido. Para cantar em homenagem ao Tom, num teatro em Bruxelas e sem patrocinador, aceitei muito menos de R$ 35 mil.
Estado - O show foi idealizado para ser uma grande homenagem a Tom Jobim. Você acha que as polêmicas tiraram o brilho da festa?
Chico - Eu achei o espetáculo belíssimo. Dois dias depois, fizeram dele uma meleca.
Estado - Você pensaria duas vezes antes de aceitar um novo convite da prefeitura para shows?
Chico - Eu nunca pensei em convites da prefeitura para shows. Este seria e foi o único.
Chico Buarque canta sobre a terra
Cerca de quinze minutos depois de terminado o evento de lançamento do livro "O espírito e a letra", de seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, na última sexta-feira no Masp, o cantor e compositor Chico Buarque foi embora para sua casa em São Paulo caminhando pelas ruas.
Dispensou seguranças e seguiu a passos acelerados: "Adquiri sotaque paulista nos pés."
Foi apenas interrompido por um guardador de carro: "Oi, estou guardando vosso motor." Cumprimentou-o: "Mas você não me guardou, não, estou a pé." Em uma conversa rápida nesse trecho, Chico falou sobre o projeto que vem fazendo com Sebastião Salgado para o livro "Terra."
Folha - Você prepara um CD para ser lançado com o livro "Terra", do fotógrafo Sebastião Salgado?
Chico Buarque - É um projeto em conjunto com o Salgado e a Companhia das Letras. Na capa do livro vai ter um encarte com o CD, que é um compacto pequeno, com umas quatro músicas, uma coisa simples... Tenho uma música e meia pronta. A que está feita chama "Levantadas do chão", e a outra é um baião, que estou querendo terminar agora.
Folha - Mas você e Salgado trabalharam juntos?
Chico Buarque - Tivemos uma conversa, e ele deixou as fotos que vão constituir o livro. Isso foi do que eu dispus para compor. O tema é a terra, o trabalhador sem terra, o sem-terra na cidade e no campo.
Folha - Tem pesquisa de ritmos?
Chico Buarque - Não, não existe uma fidelidade ao folclore. São canções que me apareceram. Na verdade, a letra que já escrevi foi sobre uma música que Milton Nascimento me mandou para fazer. Falei: "Opa, essa música tem tudo a ver com as fotos do Salgado." Aí fiz a letra em cima das fotos e da música do Milton.
Folha - Você está viajando ao exterior para escrever um livro?
Chico Buarque - Não, tenho um show em San Remo (Itália) e vou terminar o acompanhamento da tradução do livro "Benjamim" para o francês e inglês.
Folha - Você pretende um dia transformar o hobby futebol em um projeto para livro ou disco?
Chico Buarque - Não, futebol eu só gosto de jogar. Aliás, vou perder amanhã porque não vou acordar cedo.
Folha - Você caminha tão rápido para não ser assediado?
Chico Buarque - Não, aprendi a andar rápido morando em São Paulo. Costumo dizer que meu apelido aqui era Carioca porque sempre mantive o sotaque do Rio. Mas adquiri sotaque paulista nos pés, que me faz andar depressa. No Rio, parece que estou fugindo das pessoas, mas não é, é um hábito. É o sotaque que me restou.
Conversa de camarim
Estamos com Chico Buarque, em seu apartamento no Jardim Botânico. Eu estou tomando um uisquezinho, meio sem jeito, e acho que o Chico também está um pouco sem jeito, mas...
Chico Buarque - Sem jeito e sem uísque.
Luiz Roberto - Mas por que sem uísque?
Chico Buarque - Porque eu não bebo!
Luiz Roberto - Você não bebe nada?
Chico Buarque - Eu bebo um vinho, à noite... Aliás, eu parei de beber não por força de vontade, mas por culpa do Tom. Houve uma época em que ele parou de beber, e ele conhecia um feiticeiro. Eu bebia bem, e pedi ao feiticeiro umas ervas para ficar um mês sem beber, eu queria dar uma enxugada. O feiticeiro disse: "Você não vai beber nunca mais." E eu disse: "Nunca mais, não, eu quero beber, mas só quero dar um tempo." Eu só queria dar um tempo, parar um mês, geralmente fevereiro que é o mês mais curto. E você sabe que eu enjoei ? Enjoei de uísque, de bebidas fortes, só tomo uma cervejinha ou um vinho. E o Tom, depois, voltou a beber.
Luiz Roberto - Pois é, o feiticeiro foi-se, e ele voltou a beber... Mas nunca bebeu muito, depois disso.
Chico Buarque - O Tom gostava mesmo é de cerveja.
Luiz Roberto - Mas foi o Vinícius que botou ele no uísque.
Chico Buarque - Pois é, Vinícius era diplomata, viajava muito, mas o Tom era um cidadão carioca. No Brasil, até os anos cinqüenta e sessenta, bebia-se muito pouco uísque. Os nacionais eram muito ruins, e os importados muito caros. O Tom tinha capacidade para tomar muita cerveja e chopp.
Mais tarde, a Brahma até chegou a instalar em casa dele uma choperia, sempre reabastecida.
Luiz Roberto - A Brahma deu isso a ele?
Chico Buarque - Pois é, ele fazia muita propaganda de graça. Na Plataforma, falava de Brahma o tempo todo.
Luiz Roberto - Sem dúvida, a cerveja dele era a Brahma. E ele fala nela até na letra de "Chansong".
Um violão chamado Vinicius
Luiz Roberto - Chico, quantos anos você tem?
Chico Buarque - Cinquenta e dois.
Luiz Roberto - Qual foi a primeira vez em que você ouviu falar do Tom, ou ouviu alguma música dele?
Chico Buarque - Foi num disco em 78 rotações, talvez o primeiro disco que eu comprei, para dar para minha irmã. Eu gostava da música: Teresa da Praia.
Luiz Roberto - Qual irmã?
Chico Buarque - A Miucha.
Luiz Roberto - Que naquele tempo tinha o apelido de Bubu (risos). Aí você deu a ela Teresa da Praia.
Chico Buarque - Com Dick Farney e Lúcio Alves cantando. Mas eu me ligava na música e talvez não soubesse ainda quem era Tom Jobim. Não sabia quem era o compositor, nem que a letra era do Billy Blanco. Não lembro desta época do nome de Tom Jobim. Quem eu conhecia já algum tempo era o Vinicius, amigo do meu pai, Sérgio Buarque de Holanda, historiador e crítico literário. Ambos pertenciam ao mundo da literatura.
Luiz Roberto - Você conhecia o Vinicius desde criança?
Chico Buarque - Desde criança. Durante dois anos, entre 52 e 54, minha família morou em Roma. Meu pai foi dar aulas na universidade de Roma e nesta época o Vinicius era consul em Roma. Morando em São Paulo, a gente não via o Vinicius, mas em Roma, ele como consul volta e meia aparecia lá em casa.
Luiz Roberto - Quantos anos você tinha nesse tempo?
Chico Buarque - Fui com oito anos e voltei com dez. E quando Vinicius aparecia era uma festa lá em casa, festa para a qual nós crianças não eramos convidados, é claro, ficávamos assim de longe, ouvindo.
Luiz Roberto - E você já tinha interesse naquela época, já se ligava no Vinicius, quem era aquele cara e tal?
Chico Buarque - Muito, muito. Tinha fascínio por ele, tinha fascínio porque eu era criança e via a Miucha, minha irmã mais velha , que tinha um violão que se chamava Vinicius. E através também dos meus pais que gostavam muito dele. O meu pai era fascinado pelo Vinicius. Vinicius tinha esse poder de fascinar as pessoas que, no bom sentido, tinham um pouco de inveja da maneira como ele levava a vida. O meu pai de certa forma gostaria de ser como ele. Drummond disse uma vez que o Vinicius era o grande poeta que vivia a própria poesia. Um poeta em vida. E meu pai também volta e meia contava histórias do Vinicius. Por que o Vinicius era um mito. O Vinicius tocava no violão da Miucha aquelas canções dele em parceria com Antonio Maria, outras dele mesmo, aquela "Cem por cento", "Quando tu passas por mim". Quando começou a parceria de Vinicius e Tom, pra mim o Tom não era ninguém, era parceiro de Vinicius. Eu lembro bastante do LP que tocou muito lá em casa, a Elizete Cardoso em "Canção do amor demais".
Luiz Roberto - Em que época você morou em São Paulo?
Chico Buarque - Eu fui com dois anos de idade para São Paulo, e morei lá até os vinte e dois. Morei vinte anos em São Paulo, com esse intervalo no meio de dois anos em Roma
A ruptura
Chico Buarque - Então aí tem um ponto de ruptura, que foi quando realmente aconteceu a música na minha vida. Foi com "Chega de saudade", no compacto de João Gilberto.
O João tocou violão na música "Outra vez", no disco "Canção do amor demais", que já era uma coisa estranha pra mim, mas a estranheza mesmo veio com "Chega de saudade". E era uma estranheza geral, tanto é que houve uma ruptura mesmo de gerações, de pessoas que não gostavam daquilo, pessoas mais velhas que difìcilmente engoliram no primeiro momento a Bossa Nova, aí incluindo a música do Tom e a voz, o violão, e a maneira de cantar de João Gilberto.
Luiz Roberto - O que seu pai achava disso?
Chico Buarque - Meu pai resistiu um bocado, engraçado.
Na época eu tinha uns 14 anos e me pegou em cheio. E eu percebi que com todo mundo foi a mesma coisa. Na Bahia, com Gilberto Gil, Caetano Veloso. Quem ouviu, lembra de quando ouviu e em que circunstâncias... Eu me lembro: "Nossa, tem uma música do Vinicius tocando no rádio..." E eu pedi a meu pai um adiantamento da mesada, para comprar o disco. "Chega de saudade" foi o marco histórico.
Tom ou João?
Luiz Roberto - O Tom já no inicio já fascinou você? As músicas?...
Chico Buarque - A partir daí eu comecei a descobrir que as músicas não eram do Vinicius, eram do Tom Jobim, e eu comecei a me ligar - e cada novo disco do João tinha um punhado de músicas do Tom. Mas o Tom mesmo, quer dizer ele cantando, ele gravando, foi mais tarde...
Luiz Roberto - Naquela época ele era tímido, profissionalmente muito retraído, não queria cantar nem nada, e ganhava a vida como pianista e arranjador. Mas neste começo o Tom já fascinava você ou era apenas um bom compositor - tão bom quanto outros, como Pixinguinha, como Noel Rosa?
Chico Buarque - Não. Ele pra mim desbancou todo mundo, porque eu conhecia bastante música brasileira, essa música dos anos 30, anos 40, porque lá em casa sempre houve muita música, meus pais cantavam muito Noel Rosa, tinha histórias de Ismael Silva, Ataulfo Alves. Chegou a Bossa Nova eu rompi com esse passado todo. Houve um tempo em que eu não podia nem ouvir falar. A não ser que fosse alguma coisa recriada por João Gilberto, por exemplo, João cantando Ari Barroso. Pra mim foi assim... mudou. Mais tarde eu recuperei inclusive essa formação toda, bastante forte, de música popular, música de carnaval - eu ouvia muito rádio na época de carnaval.
Quando chegava no meio do ano, gostava muito de bolero, de sambas, de marchinhas de carnaval, sabia de cor todas as músicas. Mas quando chegou Tom... Mas agora eu não sei te dizer na medida exata até onde era Tom e até onde era João Gilberto, porque a inovação também era João cantando.
CAPÍTULO II - Ciúmes
Luiz Roberto - Quando é que você conheceu o Tom pessoalmente?
Chico Buarque - Foi bem depois. Eu fui levado à casa dele pelo Aloisio de Oliveira. A casa lá em Ipanema, na rua Nascimento Silva. O Aloisio me fez cantar o Pedro Pedreiro, que foi a primeira música que eu gravei . Eu não tinha gravado ainda, então foi entre 64 e 65, uma coisa assim. O Tom muito simpático, muito receptivo, e tal...
Luiz Roberto - E o Tom conhecia você?
Chico Buarque - Não, ficou conhecendo ali.
Luiz Roberto - Mas já tinha ouvido músicas tuas?
Chico Buarque - Não, eu não tinha gravado nada ainda, o Aloisio... talvez eu fosse gravar na Elenco e acabei gravando na RGE. Eu toquei essa música, não sei se outras também, enfim... toquei porque ele me mandou tocar, mas fui lá para ver o Tom. E pronto, foi um contato rápido e depois o Tom foi para os EUA, parece... e só viemos a ter um convívio maior quando ele voltou dos EUA, quando começou a nossa parceria, já em 67.
Chico Buarque - Naquela época eu morava na rua Dias Ferreira, no Leblon, perto da casa dele, e ele morava na Codajás. Quer dizer, dava para ir a pé. Eu ia muito à casa dele, conheci muito a casa dele, mil histórias. O piano que eu comprei foi Tom que foi comigo, me levou num lugar na Lapa e ele mesmo escolheu o piano. Foi quando eu comecei a estudar música. Porque eu não tinha conhecimento teórico nenhum, tocava de ouvido, e a minha primeira parceria com ele foi nessa época: o "Retrato em Branco e Preto".
E foi um pouco o Vinicius também que aproximou a gente.
Luiz Roberto - Sem ciúmes?
Chico Buarque - Ciúmes disfarçados. Grandes ciumes disfarçados.
Luiz Roberto - Como foi esse isso? Ele tinha ciúmes, mas aproximou vocês.
Chico Buarque - O Tom morria de ciúmes do Vinicius: (imitando o Tom) "Ah, o Vinicius fica fazendo letra pra todo mundo, pra qualquer um..." (risos) "Ele conheceu um rapaz de Juiz de Fora e já saiu fazendo músicas..." (risos) Tinha um fundo de ciúmes bravo aí...
Vinícius foi sempre muito carinhoso comigo, até por essa relação de família. Quando ele ia a São Paulo ele ia muito à casa da Rua Buri, e então, nessa época, eu me lembro muito de Vinicius com Baden e com Alaíde Costa; lembro do Baden cantando as parcerias com Vinicius pela primeira vez, lá em casa, "O samba da benção", e tal... E eu ainda não conhecia o Tom - o Vinicius foi muito generoso me apresentando a ele.
Luiz Roberto - Mas ele de alguma forma estimulou vocês para uma nova parceria, ou isso aconteceu naturalmente?
Chico Buarque - Ele sabia o que estava fazendo... Não sei te dizer porque, mas o Vinicius a partir de uma certa época deixou de fazer música com o Tom. Eles continuaram amigos até o fim. Amicíssimos.
Vinicius fez música com o Carlos Lyra, com o Baden Powell, com todo mundo. Com todos os grandes, não é?
Luiz Roberto - Com os pequenos também, muitos...
Chico Buarque - E muitos desconhecidos. E parou de fazer músicas com o Tom - eu nunca soube de nenhum problema entre os dois, pelo contrário, eles se encontravam muito, na época eles iam ao Antonio's, bebia-se muito e tal... No Antonio's, Vinicius, Tom, eu e mais tanta gente. Sempre foram grandes amigos, nunca me explicaram, não sei o que houve.
A primeira parceria
Luiz Roberto - Chico, como é que foi fazer tua primeira letra pra ele? Você achou dificil, foi uma emoção, foi uma coisa especial para você? Como é que foi esse "Retrato em branco e preto", que antes se chamava "Zíngaro"?
Chico Buarque - Quando o Tom me deu essa música para fazer letra... engraçado que nesse comecinho não sei se era uma impressão minha ou se era real, eu tinha impressão que ele estava me dando uma força, ele insistia muito para eu fazer a letra - porque comparando com outras músicas que ele fez mais tarde, quando a gente já tinha uma amizade maior, era mais difícil fazer letra para o Tom, porque ele interferia demais. Nessa letra ele não interferiu nada. Ele "Tá ótimo, tá ótimo, tá ótimo", assim como quem faz cerimonia ou paternaliza um pouco, não sei, porque nós não tínhamos uma relacão ainda assim próxima, eu ainda tinha esse respeito por ele.
Chico Buarque - Entra uma certa cerimonia. Eu não me lembro de problema nenhum, não me lembro de história nenhuma, ele me entregou a música, que já estava até gravada e era "Zíngaro" e tal... e eu fiz a letra em casa e mostrei pra ele: "Ótimo, ótimo, ótimo" e ficou por isso. Não tenho uma lembrança maior. E foi para mim um desafio grande porque eu não era letrista nessa época, quer dizer, eu era letrista de minhas próprias músicas.
Luiz Roberto - O Tom foi seu primeiro parceiro?
Chico Buarque - Não, eu tinha feito uma vez para o Toquinho. Uma música chamada "Lua cheia" em 65 por aí, então eu não tinha prática e não sabia exatamente como ele receberia a letra - aprovar assim de cara, pra mim foi ótimo eu não tinha muita segurança daquilo não, porque eu fui aprender a fazer letra com a prática, inclusive trabalhando com o Tom. De você tentar dominar a música do teu parceiro, entrar naquela música, fazer a letra que você imagina que o sujeito quer fazer com aquela música e tal. Eu era verde ainda para ser parceiro do Tom na época, e mais tarde por exemplo, dez, vinte anos depois, quando eu já estava mais consciente do que eu estava fazendo, eu tinha de discutir com o Tom porque...
Piano na Mangueira
Luiz Roberto - Por que?
Chico Buarque - Porque o Tom era implicante com o negócio da letra, e eu tinha de discutir e tinha de convencê-lo, porque ele nunca me dobrou - só que aí eu tinha certeza do que eu queria, entende, ele brincava muito e tinha aquela coisa dele...
Luiz Roberto - "Monday, tuesday, wednesday"... Aconteceu isso mesmo?
Chico Buarque - É...
Luiz Roberto - "Mandei subir"...
Chico Buarque - É, e aí eu ganhava a discussão, mas ele tinha uma coisa de pirraça de crianca, e depois mais tarde ele era capaz de gravar "Mandei subir o piano pra Mangueira" ele mesmo...
Luiz Roberto - Ele mesmo adaptou....
Chico Buarque - Mas na época ele (cantava a música) "Já mandei..." (e brincava): "monday, tuesday, wednesday..." e tal. Acusei o golpe e falei o seguinte: - ô Tom, é "já mandei" porque o piano está subindo o morro puxado naquelas cordas, está indo todo torto, então ele vai desconjuntar e tem que ter essa sílaba tônica no lugar errado: "já mandei subir"...
E ele parecia concordar: "Até que você tem razão...", e mais adiante, gravando, ele cantava mesmo é "mandei subir o piano"...
E com esta música mesmo tem várias histórias: ele fez a música, mandou a música, e eu fiz a letra respeitando cada nota, respeitando cada movimento, procurando ser o mais fiel e o mais preciso e o mais irretocável. Algumas vezes aconteceu, inclusive com o Piano na Mangueira, que quando eu terminava a letra, ele ouvia, às vezes fazia algumas brincadeiras e tal, mas eu ficava sério, pronto para sustentar o meu ponto de vista, e aí às vezes o que ele fazia? Ele mudava a música!
Depois da letra pronta, sendo que eu tinha feito a letra exatamente para a música como ela era.
Luiz Roberto - Na métrica exata da música...
Chico Buarque - E aí ele mudava a música, respeitando a letra. Eu ficava um pouquinho assim (chateado), e pensava: "Mas me deu tanto trabalho fazer a letra para essa música, e ele faz outra música com a minha letra." Com o "Piano na Mangueira" aconteceu isso - tem um trecho (de melodia) no final que ele mudou, não tinha nem na música nem na letra que eu fiz.
Luiz Roberto - Ah é ?...
Chico Buarque - Não tinha esse troço... (cantarola) "onde a cabrocha pendura a saia no amanhecer da quarta-feira..." Ele fez isso depois...
Luiz Roberto - E essa frase aguda do final ("...no amanhecer da quarta-feira") será que não foi pra dar um certo clímax, uma resolução da melodia?
Chico Buarque - É, mas ele musicou a letra ! Eu tinha certeza de ter feito correto pra música dele, e ele deu a volta, na realidade.
Luiz Roberto - E aí acabou ficando "mandei subir o piano pra Mangueira".
Chico Buarque - O "meu piano" foi outra coisa que eu discuti com ele: - ô Tom, é "o piano...". Aliás, eu trazia a letra pronta e aí ele ia cantando, cantando, e como se estivesse errando, mudava a letra. "Mandei subir meu piano pra..." e estava escrito "...o piano pra Mangueira". Eu pensava, bom, ele leu errado, agora vai cantar certo, e eu dizia: -Tom, não é "meu piano" é "o piano", uma coisa mais vaga assim... E ele dizia "Ah, tá bom" e na vez seguinte cantava "meu piano"...
Chico Buarque - E eu falava: - É bonito "o piano" sem ser "meu", porque em francês, onde tudo é possessivo (e eu tenho essa experiência agora que eu estou traduzindo um livro), tem que ser "meu piano" ou "seu piano", piano dele ou piano dela. Eu lembro de ter comentado isso com o Tom, é bonito na língua portuguesa, "mandei subir o piano"...
Quem fez o que nas parcerias. Ligia, Sabiá, e as parcerias que não aconteceram.
Vou te contar
Chico Buarque - Às vezes o Tom implicava com certas coisas, e uma vez ele abortou uma letra minha.
Luiz Roberto - Qual foi?
Chico Buarque - Não lembro qual foi a música, foi há bastante tempo, eu comecei a fazer a letra e ele começou a fazer piada em cima da letra (risos), e eu perdi (a vontade de fazer). Depois eu até usei em uma música minha. Era uma letra que falava: "Quem vem lá ? Que horas são ? É você ? É o ladrão ?" E ele dizia: "É o sapatão?..." (risos). Abria um caderno que ele tinha, pegava aquele começo de letra e fazia uma letra enorme com as palavras dele. E eu falava: "ô Tom ???!!!" Era engraçado mesmo... Porque a gente nunca brigou mas às vezes ficava nesse ponto...
Luiz Roberto - Meio tenso?
Chico Buarque - É...
Luiz Roberto - Sem querer talvez ele ridicularizava um pouco nesse negócio do "monday", "o sapatão", e tal - isso doía um pouco em você?
Chico Buarque - Não, não doia não, porque eu tinha certeza do que eu queria. Se fosse na época do "Retrato em Branco e Preto" sim, mas depois não, eu discutia com ele a letra pau a pau, e eu também já não tinha mais cerimônia com o Tom, e sabia que tinha uma coisa um pouco dele muito crítica, de querer interferir na letra. Então eu falava: "Tom, faz você a tua letra porque você é o teu melhor letrista."
Muitas vezes, muitas músicas que ele me deu eu não fiz letra, não por não querer ou não gostar - às vezes até por não conseguir - e depois ele fez lindamente. "Luiza" mesmo, ele tinha me dado para colocar letra . O "Wave" também.
Luiz Roberto - Como é que foi "Wave" ? Dizem que você fez "Vou te contar".
Chico Buarque - Exatamente, "Vou te contar" e pronto...
Luiz Roberto - Quer dizer que "Vou te contar" é teu ? (risos).
Chico Buarque - É engraçado, eu lembro do "Wave" quando ele me mostrou, e eu demorando a fazer, não saía nada além de "vou te contar", e aí ele disse: "Pô, Chico, você não quer ficar rico?" (risos)
Ele já adivinhava que "Wave" seria uma das músicas mais executadas, já pressentia que ia ser um sucesso.
Jogando futebol
Chico Buarque - E só para concluir, esta história foi até engracada. O Piazzola uma vez me mandou uma música para fazer letra, música lindissima, em setenta e pouquinhos. E eu nunca fiz, aí uma vez ele veio ao Brasil fazer um programa de televisão, aquele programa que eu tinha com o Caetano. E aí quando ele chegou, ele ia ficar uma semana ensaiando e eu lembrei daquela música e falei: "ô Piazzola, eu vou tentar fazer aquela letra, porque aquela música é tão linda, vai ser legal a gente cantar essa música no programa." Música inédita e tal. Ele me disse que não se lembrava mais daquela música, e aí eu catei a fita e ensinei pra ele, ele pegou a música, fez arranjo, fez tudo o mais. Uma semana depois, no dia da gravação, eu simplesmente não tinha conseguido fazer a letra, porque ou você consegue ou não consegue, não é?
Luiz Roberto - Não saiu...
Chico Buarque - Eu lembro que na hora do ensaio, ele tinha recebido a notícia de que eu não tinha feito a letra, e ele ficou enfurecido, coitado, ele não entendeu...
Luiz Roberto - Achou que era desleixo.
Chico Buarque - Disseram a ele: "O Chico vai chegar mais tarde porque está jogando futebol". Eu não ia fazer a letra se eu não jogasse futebol, eu jogo futebol porque eu jogo sempre... Quando eu cheguei lá, estava o Tom acalmando o Piazzola, que estava à beira de um ataque de nervos: "O Chico é assim mesmo, ele fica jogando futebol" (risos). Ele falando de um jeito tal, que aí o Piazzola, vindo do Tom... ele aceitou.
Sabiá e Ligia
Luiz Roberto - Como é que foi Sabiá ? A letra é sua inteirinha?
Chico Buarque - A letra é minha.
Luiz Roberto - Eu ouvi dizer que, quando vocês estavam fazendo a música, você viajou, e que o Tom completou os últimos versos.
Chico Buarque - Não, essa história é a seguinte: eu fiz a letra, terminei a letra - e quando eu viajei, ou um pouco antes de viajar, o Tom achou que tinha que aumentar a letra , e eu ou não tive tempo, ou porque viajei, ou porque não concordei, não aumentei a letra - e dei a letra por terminada ali. Quando eu terminei a letra, ele achou que era insuficiente porque a música repete outras vezes, ele achou que pedia mais uma letra, e eu achei que não pedia. E aí ele fez à minha revelia, na minha ausência, um pedaço de letra, que depois sumiu.
Luiz Roberto - Você lembra?
Chico Buarque - "Que a nova vida já vai chegar", uma coisa assim "que a solidão vai se acabar", você lembra disso?
Luiz Roberto - Tinha esquecido, agora que você está falando me veio à memória.
Chico Buarque - Isso ele acrescentou depois, eu não aceitei muito essa.
Luiz Roberto - Houve até alguma gravação em que entraram esses versos.
Chico Buarque - Sim, chegou a ser gravado, essa é a parte dele que ele resolveu (fazer), mas depois acho que ele voltou atrás, porque mais adiante cantou mil vezes a música e nunca mais cantou esse pedaço.
Luiz Roberto - Exato...
Chico Buarque - Eu nem falei nada pra ele, fiquei um pouco assim, né... porque não era o combinado.
Ligia
Luiz Roberto - Chico, como é que foi "Ligia", porque tem duas versões, tem "olhos morenos", tem "olhos castanhos"...
Chico Buarque - Olhos morenos. Mas "Ligia" é o seguinte....
Luiz Roberto - Você fez alguma destas versões?
Chico Buarque - "Ligia" é o seguinte: a letra é do Tom. Eu não assino a parceria - na verdade ele me entregou a letra bem adiantada, e eu terminei, ou eu mexi, ou ele me pediu para refazer alguma coisa, e eu dei uma mexidinha na letra.
Mas pelo menos metade da letra era dele, e naquela época, eu estava cheio de problemas com a censura, e gravei um disco só de outros autores. O Caetano fez uma música para mim, o Gil fez uma música pra mim, eu gravei uma música só minha com o pseudônimo de Julinho da Adelaide, e gravei o "Ligia" só com a assinatura do Tom.
Luiz Roberto - Sei.
Chico Buarque - E o Tom falou: "Não, você é parceiro, e tal". Primeiro, porque a letra meio que deu uma consertada, e depois, por motivos técnicos de não querer ter meu nome em uma música daquele disco, e por uma questão de justiça, mais tarde, ele falou: "Tem um dedo do Chico nessa letra". Mas eu não assino essa música.
E ficou parecendo que era minha também, porque eu fui o primeiro a gravar, nesse disco que se chama "Sinal fechado".
Luiz Roberto - Que modificações você fez?
Chico Buarque - Esse começo é todo Tom, a graça toda... "Eu nunca sonhei com você, nunca fui ao cinema, não gosto de samba, não vou a Ipanema, não gosto de chuva, nem gosto de sol"... isso tudo é coisa do Tom. Eu fiz uma coisa segura: "E quando eu lhe telefonei, ...foi engano, seu nome eu não sei..." Aí tem o meu dedo. Mas quando ele me entregou, a letra já estava bastante adiantada.
Bate boca
O caso do "Bate boca", essa música inédita, até agora eu não sei o que eu faço, porque vou sentir falta do Tom implicar comigo, quando fizer alguma letra, entende... porque o Paulinho (Jobim) falou: - Mas você não vai fazer o "Bate boca" ?, e tal...
Quando ele me deu a fita do "Bate boca", a letra estava quase toda pronta. Eu disse: "Tom, faz você essa letra"... E ele: "Não, você tem que terminar, tem que dar um jeito na letra."
Luiz Roberto - Ah, o Tom já tinha feito um esboço dessa letra?
Chico Buarque - Tinha, naqueles cadernos em que ele escrevia, e cada vez que ele cantava, ele dizia umas coisas: (cantarola) "Você não quiz, você não diz, você não é..."
Eu lembro dele cantando com vários pedaços de letras, e eu disse: "Tom, é só você juntar... pede para alguém organizar essa letra para você, que ela está pronta..." E aí ele ficava me provocando para terminar a letra, mas eu não mexi nela.
É engraçado... porque com o Tom eu tive esse tipo de problema que nunca tive com nenhum outro parceiro, mas hoje, ele não estando aqui...
Luiz Roberto - Você sente falta.
Chico Buarque - Eu digo, um cara para implicar com minha letra, para mexer, para recusar, para... ele fazia isso porque ele era danado - eu lembro de "Sabiá", a polêmica do "Sabiá" no feminino...
Luiz Roberto - Uma sabiá...
Chico Buarque - Ele falava: é bom "uma sabiá", porque é linguagem de caçador... caçador não fala um sabiá, fala uma sabiá, uma gambá... e depois, ele gravou "O meu sabiá". (risos)
Ele cantava: "Minha sabiá... o meu sabiá..." O Tom era muito engraçado e eu morria de rir com ele.
Talvez isto escrito pareça uma briga, mas era impossível brigar porque eu achava graça nessas implicâncias dele... era uma coisa de birra meio infantil, então eu achava graça daquele homenzarrão implicando com "Mandei subir meu piano na mangueira" ... (risos)... porque eu sabia que era uma coisa de pirraça, de birra mesmo, e era muito engraçado isso nele.
No tempo do "Retrato branco e preto", ainda havia aquela cerimônia, e se ele tivesse falado qualquer coisa, eu ficaria arrasado - e talvez percebendo isso, ele nunca falou nada, ele aceitou como era...
E mais adiante sempre houve uma intimidade, um certo conflito. Vai ver que é por isso que o Vinicius deixou de...
Luiz Roberto - Vinicius passou o abacaxi para você...(risos)
Chico Buarque - Passou esse abacaxi... vai ver que foi...
I hate music!
O Tom era muito ligado em letra, em literatura. Ele dizia: - Sou um literato... "I hate music!"
Luiz Roberto - Ele dizia isso?
Chico Buarque - Ele gostava de dizer isso. Era difícil falar de música com o Tom... eu falava de todos os assuntos, menos de música.
Luiz Roberto - Eu nunca consegui falar sobre música com o Tom por mais de dez minutos.
Chico Buarque - Pois é, ele não gostava de falar de música... eu nunca vi ele falando de acordes, por exemplo, e também não falava de política.
Luiz Roberto - Política ele detestava...
Chico Buarque - Detestava. E adorava literatura - ele era capaz de recitar trechos inteiros de Guimarães Rosa, poemas de Drummond, T. S. Eliot, "Terra desolada", textos inteiros que ele sabia de cor. Então, ele tinha muita ligação com a parte literária das canções.
Chico tenta reconstruir Tom a seu lado.
CAPÍTULO IV - Eu te Amo
Chico Buarque - Na verdade eu não tocava músicas do Tom. Nunca toquei, porque ele me passava a música no piano, a gente gravava a fitinha, e eu levava pra casa e fazia a letra.
Luiz Roberto - E o Tom gostava muito das suas músicas, mas gostava demais. Dizia: "Pois é, Luiz, você sabe, o Chico tem essa música aqui, ouve só!" E aí ele tocava, sabia todas as suas músicas. Sempre que eu estive com o Tom e que havia um piano por perto ele tocava música sua. A "Modinha", por exemplo, ele adorava.
Chico Buarque - O Tom sempre foi muito generoso e amoroso comigo. Ele também gostava de algumas das minhas primeiras músicas, como "Ela Desatinou", "A sua lembrança me dói tanto" ...
Bororó: "Ele toca mas não grava"
Chico Buarque - Ele tinha isso com muitas músicas de outros compositores também, ele era atento. Só no fim é que ele começou ficar já meio enfastiado, intoxicado de música. Ele dizia "I hate music", mas por outro lado, o tempo todo ele ouvia muita gente nova, e antiga também, o Bororó, o Custódio Mesquita, e tal. E gostava muito do Ary Barroso.
Luiz Roberto - Tocava várias do Bororó sem errar uma nota.
Chico Buarque - Um dia eu encontrei o Bororó num escritório de direitos autorais, e eu não o conhecia. Falei: "Bororó, que coincidência, muito prazer, Chico Buarque, e tal ! Você sabe que ontem, (e era verdade) - ontem à noite eu estive na casa do Tom, e ele ficou tocando músicas suas ?" E então o Bororó respondeu: "Ele toca mais não grava". (risos)
Chico Buarque - E o Bororó é famoso pelo mal humor... Depois o Tom acabou gravando uma música dele.
Luiz Roberto - Deve ter sido "Curare", que o Tom gostava muito.
Meu Maestro Soberano
Luiz Roberto - Que coisa bonita você chamar o Tom de "Meu Maestro Soberano", naquela sua música.
Chico Buarque - Quando eu fiz essa música, em homenagem ao Tom antes de tudo - homenagem à música brasileira, mas através do Tom - eu pedi para fazerem uma cópia em CD só dessa música e mandei para ele. Eu não queria chatear o Tom, sabendo que ele não estava muito afim de ouvir música nova, e deixei um recado assim: "Tom, ouça só uma vez essa música, é uma música só !" (risadas). E ele ouviu e ficou tão contente, tão tocado.
E mais tarde até gravou a música comigo num especial de televisão. Foi uma das últimas vezes que eu estive com ele. Ele ficou todo feliz.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro
Luiz Roberto - Chico, eu quero que esta nossa entrevista se chame "Meu Maestro Soberano".
Chico Buarque - Eu adoro que você coloque esse nome. No Jardim Botânico tem uma árvore grandona, enorme, chamada Sumaúma ou coisa parecida, de que ele gostava muito, que ele abraçava. Puseram lá uma placa: "Maestro Soberano - Tom Jobim". E depois ele deu ao último disco dele o nome de Antonio Brasileiro, que é como eu o chamo nessa música.
Luiz Roberto - Essa sua letra me toca profundamente.
Chico Buarque - E era uma brincadeira com ele o tempo todo, ele tinha um pouco essa mania: "O meu pai era gaúcho, o meu avô era de Leme, em São Paulo, o meu bisavô era cearense, e eu sou até primo de Vinícius".
Aí eu comecei essa letra lembrando: "O meu pai era paulista, meu avô pernambucano..." e desembocou nele.
O Tão
Chico Buarque - Eu chamava o Tom de Tão, e ele falava: "O pessoal na roça me chama de Tão, lá em Poço Fundo."
Luiz Roberto - O (Leo) Peracchi também o chamava de Tão. "Porque o Tão é um bom menino, o Tão faz umas músicas bonitas."
Imagina
Chico Buarque - O Tom dizia que era difícil fazer letra para Imagina, porque a música tinha sido composta como instrumental. Era quase impossível botar letra naquelas notinhas todas - na verdade, não era adequada para letra. Mas a gente estava fazendo a trilha de um filme, e eu resolvi fazer a letra pra essa música. E era dificil mesmo, mas consegui fazer. Ele estava em Nova York quando recebeu essa letra, e mandou um telegrama dizendo: " It's very exquisite !" Mas no fim, ele gostou muito do resultado.
Luiz Roberto - É uma bela letra, música lindíssima. Depois veio "Anos Dourados" - e o "Piano na Mangueira" foi a última que você fez para o Tom. Contam as más línguas que você demorou para fazer a letra de "Anos Dourados".
Chico Buarque - É verdade, atrasei, mas eu não sou muito rápido não. "Anos Dourados" era pra ser tema de uma mini série com o mesmo nome, e entrou sem letra porque a letra não ficou pronta. Depois que a mini série saiu do ar, é que a letra apareceu.(risos)
Luiz Roberto - Valeu a pena esperar, sem dúvida.
Chico Buarque - (brincando) A mini série é que foi precipitada...
Olhando por cima do ombro
Luiz Roberto - O que é o Tom para você ? O que ele representa ? Na música, como pessoa, como amigo?
Chico Buarque - Para mim como artista criador é um buraco, uma falha muito grande, a ausência do Tom. Agora que eu estou voltando a fazer música depois de uns dois anos, eu procuro ressuscitar um pouco o Tom ao meu lado...
Às vezes eu tenho a impressão de que ele ainda está por aí, de que ele não vai me abandonar.
Eu disse num momento de emoção: "Tudo que eu faço é para o Tom", e realmente isso saiu de forma impensada, mas é uma verdade. Tem um poema de João Cabral (de Melo Neto) que fala numa pessoa que estaria por cima do seu ombro, vendo o que você está escrevendo - o Tom é muito isso. Muitas coisas que eu escrevi, músicas que eu fiz, eu tinha a impressão, ou gostaria, que o Tom estivesse por cima do meu ombro vendo aquilo, aprovando ou não. Mesmo porque já mais pro fim da vida o Tom não tinha mais muita paciência para ouvir coisas novas, e eu já não tinha muita esperança, já não tinha muito desejo ou intenção de mostrar música nova pro Tom, mas a existência dele ali valia como uma referência. Eu pensava: se o Tom tivesse paciência de ouvir essa música, ele gostaria. Com a ausência dele você tem uma noção mais clara do que ele representava.
Chico Buarque: um artista soberano.
Visite o site do Clube do Tom: www.nortemag.com/tom
Vou te contar o que está acontecendo
"Fale baixo. Vou te contar o que está acontecendo. Preciso da sua ajuda para sair dessa. Você será bem recompensado."
Essa era a fala que Chico Buarque estava decorando para representar um personagem que pensava ser Chico Buarque, no filme ''Ed Morte procura Silva'', do cineasta Alain Fresnot.
A entrevista, exclusiva para a Folha, foi realizada entre um set e outro, dentro de um trailer estacionado numa rua que desemboca no largo de Pinheiros, em São Paulo.
Satisfeito com o resultado final, Chico Buarque comentou, sob vários ângulos, o processo de criação de "Benjamim'', seu segundo romance que estará nas livrarias na semana que vem.
É difícil resumir em poucas linhas o enredo de ''Benjamim''. Não porque seja uma obra difícil ou hermética, muito pelo contrario, é dotado de humor e sua leitura se faz de uma forma até mais fluente do que ''Estorvo".
A complexidade está nas inúmeras variantes que a história apresenta. Mas, em linhas gerais, a história está centrada em Benjamim Zambraia, um modelo fotográfico quase aposentado. Como o próprio nome do personagem principal sugere, ele se constitui no elemento de ligação entre os diferentes triângulos amorosos que se entrelaçam ao longo da narrativa.
Mesmo reconhecendo que viveu momentos de impasse e várias vezes chegou a jogar fora uma semana de trabalho, Chico pode tranqüilamente se dirigir ao leitor, utilizando a mesma fala do personagem que interpretou no set de filmagem: "Fale baixo. Vou te contar o que está acontecendo e preciso de sua ajuda para sair dessa. Você será bem recompensado".
Releitura
Comecei a escrever o livro enquanto fazia alguns shows. Talvez por isso ele só tenha adquirido empunhadura no terceiro capítulo, quando pude ficar totalmente recluso. Ao chegar no final do quinto capítulo, reescrevi os dois primeiros Tenho a sensação de que mais reli do que escrevi.
A história se passa em sete semanas. O tempo da narrativa pode ser calculado pelo intervalo entre os sete capítulos, todos correspondem ao espaço de uma semana.
Primeiros Leitores
Não tinha certeza de que conseguiria escrever o livro. Só mostrei para alguém quando estava na metade do sexto capítulo. Os primeiros leitores foram a Marieta, minha filha Silvia e o Luiz Schwarcz.
O Rubem Fonseca só leu quando eu estava escrevendo o último capítulo, o livro praticamente pronto. Ao contrário de ''Estorvo", para o qual fez uma série de sugestões, com ''Benjamim" não propôs nenhuma alteração. Como insisti em saber se não tinha nenhum reparo, ele disse: "Você quer mesmo saber? Acho o sobrenome do Alyandro, Escarlate, muito alegórico''. Eu gostava e esbocei uma explicação. Então ele voltou a carga: ''Pra dizer a verdade, esse sobrenome é uma merda". : Mudei para Aliandro Sgaratti.
As Cidades
Gosto de desenhar cidades, ficar imaginando. Mas. quando escrevo, minhas cidades são sempre plágios do Rio de Janeiro
Condição de Escritor
O primeiro livro podia dar a impressão de um acidente. Já o segundo. permite comparações com o anterior, determina uma trajetória, delineia o universo literário do escritor.
A questão de ser ou não ser escritor, sinceramente. não me preocupa. Senti prazer em escrever este livro. As coisas aconteceram na hora certa. A impressão que tenho é a de que compus todas as músicas para poder escrever esses dois livros.
Benjamim
Ele só nasceu como personagem quando viu Ariela no Bar-Restaurante Vasconcelos Sua existência projeta-se entre premonições e flash-backs. Ele já sabia tudo que ia acontecer. É a inexorabilidade do seu destino. Imaginei seu rosto semelhante ao de Chet Baker.
Nomes
Procurei evitar certo realismo. Inventei uma série de nomes. Pelo menos pensei que tivesse inventado, muitas vezes tive de mudar, porque a realidade me desmentia. Benjamim inicialmente se chamava Augusto Melântonio. Pensei que não existia. Conversando com o Luiz Schwarcz ele me disse que se lembrava de ter cursado uma escola de datilografia e empostação de voz com este nome. Depois, abriu a lista telefônica e encontrou mais de oito Melântonios.
Outro dia, com o livro já escrito, abri a Folha numa seção que normalmente não leio, a de anúncios fúnebres, e, pra minha surpresa encontrei um "Sgaratti".
Parágrafos
No momento em que sento para escrever me aborrece a obrigação de ter de contar uma história. Sinto como se houvesse a cada parágrafo uma quebra, um buraco entre um parágrafo e outro. Me atrapalha. Me divirto mais quando não sei o que vai acontecer.
Geometria
O realismo de muitas das minhas descrições corresponde ao que em arquitetura se chama de geometria descritiva, ou GD. Utilizo esse procedimento, por exemplo, na cena final quando descrevo, por intermédio de Benjamim, a porta tombando no assoalho do sobrado onde se encontravam o Professor e Castana Beatriz: "A poeira assenta na sala vazia, e Benjamim vê a porta deitada sobre as tábuas do assoalho, e vê o chão da casa como a fachada de uma casa sepulta".
Realismo
Combino em algumas passagens o máximo de realismo com uma sensação intensa de delírio, como se a observação fosse uma faculdade imaginativa. No último capítulo, há uma cena em que Ariela suspeita que o helicóptero no qual Alyandro Sgaratti viaja vai cair no precipício. De início, minha idéia era descrever o helicóptero ganhando altura. Conversando com um primo que trabalha numa companhia de aviação, perguntando como eram os heliportos, ele sem querer me deu uma informação nova, "você sabe, quando o aparelho decola do alto de um edifício, inicialmente, perde um pouco de altura''. Aproveitei este dado e construí a cena de modo que Ariela, ao ver o aparelho ultrapassar o terraço, o imaginasse despencando no vácuo. Mas, ao se aproximar da borda do terraço Ariela "vê o helicóptero que paira uns cinco andares abaixo com o nariz reclinado, ascender em linha oblíqua sobre a cidade".
Pedra do Elefante
Esse capítulo saiu um pouco do mesmo núcleo que gerou a música ''Morro Dois Irmãos'': como se a rocha dilatada fosse uma concentração de tempos. Não há nenhum enigma, nenhum estranhamento. As pedras no Rio de Janeiro fazem parte da paisagem, é algo muito concreto, eu moro rodeado de pedras.
Agora, é claro que há algo premonitório quando digo que o destino de Benjamim está vinculado à Pedra. Inclusive neste sentido a mobilidade da Ariela se opõe fortemente a imobilidade do Benjamim. Quando ela entra no apartamento dele, evita olhar para Pedra, sente o cheiro da Pedra em Benjamim.
Insisti nessa idéia quando mudei o "rosto empedernido" para rosto escalavrado, só para aproveitar esse adjetivo "empedernido" que muita gente não se lembra que vem de pedra e significa petrificado - no último capítulo quando Benjamim "à saída do quarto fita Ariela, empedernido''. Isso para mostrar a repulsa que ela sente, como a sua imobilidade é insuportável para Ariela.
Intenção
A linguagem conduz a história. Parece uma construção poética. Parece uma palavra que você escolhe e de repente encontra uma rima lá adiante. Você não havia previsto, a primeira palavra aparece solta, mas a segunda já parece um jogo de amar. Um estranha combinação entre ação e intencionalidade. Não armei tudo direitinho.
Flaubert
Nesse período li apenas as "Cartas" do Flaubert. Era uma espécie de consolo. Ele pensava escrever "Madame Bovary" no prazo de um ano, levou seis. Enquanto eu lia, pensava, um século depois ele ia economizar anos de sofrimento. Ele merecia um computador.
Em outros momentos representava um consolo para mim. Na medida em que Flaubert dizia que aquilo tudo era um exercício, eu pensava, se não servir para nada, pelo menos serve como exercício.
Humor
Ele está mais presente em Benjamim. Não se trata de um humor negro. Meu humor tende a ser escurinho. Cortei muita coisa que poderia ficar engraçada. Minha preocupação foi oposta, não queria ser engraçado. Mas achava que deveria haver um humor atravessando todo o livro.
Profissões
Quando comecei a escrever, certos assuntos não estavam evidência. O fato de Benjamim ser modelo fotográfico não tem nenhuma relação com a presença de modelos nas telenovelas, até mesmo porque se trata de um anti-modelo, de um modelo envelhecido e quase aposentando. O mesmo pode ser dito do pastor-político, Aliandro Sgaratti. Não há nenhuma releção com fatos recentes ou com a televisão. Jamais escolheria a profissão dos personagens movido por este propósito. Evitaria exatamente por ser um assunto da atualidade. Por exemplo, quando estava terminando o romance, a discussão sobre os desaparecidos políticos Começou a ser ventilada insistentemente na imprensa e, em função da história, isso me incomodou profundamente. Não quis abordar a realidade brasileira.
Diferenças
Eu tinha medo de ''Benjamim" ser uma continuação de "Estorvo". Me coloquei algumas condições: fugir da primeira pessoa, dar nomes aos personagens, tentei outro tempo verbal. Esse último, foi o único do qual não consegui me afastar totalmente.
Conexão "Estorvo"
Alguns personagens de "Estorvo" reaparecem em "Benjamim". Esse é o caso do pastor Azéa: "O zelador do edifício não perde um programa do pastor Azéa, muito menos agora que é pela televisão. E também da rádio Primazia: "A índia responde à Rádio Primazia (...)"
Quero passar um mês dormindo
Cansado de escrever, Chico diz que em breve voltará a compor
Foi difícil fazer o arredio Chico Buarque falar sobre Benjamim. Durante o último ano, em que se dedicou exclusivamente ao livro, ele quase não saiu de casa, não ouviu nem fez música, não foi ao cinema e só abriu concessão ao ir teatro - e chorar de emoção - na estréia de Torre de Babel peça protagonizada pela mulher Marieta Severo. Pedindo desculpas pela voz sonolenta ao meio-dia, e pensando muito antes de responder, ele falou de Benjamim ao JB, por telefone.
JB - Quanto tempo depois de Estorvo nasceu Benjamim?
Chico - Só comecei a trabalhar nele há um ano. Não consigo fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. Ou é música, ou é literatura. Eu pensei numa linha mestra onírica, parti da morte do protagonista e fui desenvolvendo a história conforme escrevia, porque acima de tudo sou um formalista, só sei mexer com palavras. De uma certa maneira, as imagens é que vão me guiando.
JB - Qual a diferença entre os dois livros?
Chico - Estorvo era em primeira pessoa. Por isso. a distinção entre sonho e realidade era muito difusa, muito subjetiva mas, ao mesmo tempo, estava claro que ela existia. Benjamim apesar de ser todo um sonho honestamente mostrado assim, desde o começo, toma ares mais objetivos porque é narrado em terceira pessoa. A difusão desta vez está no fato de o narrador ver pelo olhar de cada personagem, parcialmente
JB - A impressão cinematográfica que o livro passa vem daí, da sensação de uma câmera passando de mão em mão?
Chico - Certamente, além das próprias referências cinematográficas de ritmo e imagem. Além disso, como no cinema, as emoções não são descritas, são insinuadas pelas imagens. Não quero fazer nada descritivo, quero que o leitor tenha espaço para suas próprias conclusões.
JB - A cidade onde se passa o sonho parece o Rio, tem Marina da Glória, tem Ilhas Cagárras, tem subúrbio e Zona Sul, ainda que com outros nomes. Por que não falar do Rio mesmo?
Chico - Porque eu queria falar de um sonho de Rio de Janeiro. Não queria nada jornalístico e cheguei a tentar usar os nomes de verdade, mas quebrou o clima onírico e deu um tom realista demais. E um plágio descarado do Rio, a partir da minha observação da cidade.
JB - Como uma pessoa que sempre teve participação política, não deu vontade de falar das coisas que impedem que o sonho de Rio se torne realidade?
Chico - Não quero cair na denúncia social nos livros. Quero que o público compreenda que o cidadão não tem nada a ver com o compositor nem com o escritor. Há referências no livro à violência, mas o policial que está entrevado por causa de uma bala não aparece sendo baleado. Não me sinto compromissado com bandeira nenhuma por causa da minha biografia de participação política.
JB - As comparações com João Gilberto Noll, em Estorvo, ou com Rubem Fonseca, em Benjamim, são quase inevitáveis. Elas o incomodam?
Chico - Não, mas não acho que o livro se pareça com outros autores. Rubem Fonseca é um grande amigo e meu maior incentivador. Mas o que escrevo é muito diferente. Se tiver que apontar uma influência literária, esta influência não vem da literatura, mas da música. Nenhum nome em especial mas o que escrevo é resultado do meu trabalho musical. Não quero que ninguém vá ao livro buscando o discurso político do cidadão que sou ou o lirismo das canções. Quero fazer literatura. Só isso.
JB - Já existe idéia de um novo livro?
Chico - Eu não durmo há um ano escrevendo Benjamim. Você passa a viver o livro, a ir dormir com ele na cabeça, a sonhar com ele, acordar, escrever, voltar a sonhar. É muito cansativo. Agora só penso em passar um mês dormindo. Depois vou voltar a compor.
Jogando por música
Conheço Chico Buarque há muitos anos e o futetol fez a aproximação. Foram muitas peladas descontraídas no campo do Polytheama e em nossas viagens a Angola e Paris, onde aproveitávamos as folgas para não pensar em nada, como afirma meu compadre. Quando fui convidado a gravar para o produtor Almir Chediak o projeto Letra e música - Chico Buarque, descobri o desafio de cantar suas melodias muito bem elaboradas. Nesta entrevista, após mais uma partida de futebol, falamos da inspiração, das várias maneiras de se compor, dos parceiros, de samba, de nossos mestres geniais: Noel, Ismael, Tom e muitos outros. Fiquei feliz e surpreso quando me perguntou sobre meu querido pai, também João Nogueira, considerado em sua época grande violonista, sobre minha atividade anterior à música, filhos, os netos. . Muito me emocionou gravar este disco, cantei os tradicionais sambas deste sambista maior e ainda me aventurei em suas canções. Chico me falou de sua surpresa ao me ver interpretar Bastidores, Olhos nos olhos, Gota d 'água e, grato, ouvi também seus elogios. Posso até ser um bem sucedido intérprete, mas acho que, na condição de repórter e centroavante, sou melhor como sambista...
JB - Quando gravamos o disco desse projeto do Letra e música, queríamos mostrar o Chico musicista, que, embora muita gente deixe de observar, é tão maravilhoso quanto o Chico letrista. E eu notei que mesmo em canções aparentemente de melodia mais simples, escondem-se nuances harmônicas complexas. Queria saber a que você dá mais importância na hora de compor: à música ou à letra?
Chico - Isso me lembra uma conversa com o Nelson Cavaquinho, em que ele chegou para mim e disse: "O importante é a música, não a letra " Achei engraçado ele falar aquilo As minhas primeiras músicas eram bastante simples, até por falta de maior conhecimento harmônico. A partir do meu contato com Tom Jobim, quando começamos a fazer nossas primeiras parcerias, foi que eu comecei a estudar e a me preocupar com a harmonização. E eu me considero um bom harmonizador. Aliás, eu acho, às vezes, que eu sou melhor músico do que letrista.
JB - Mas o que vem primeiro?
Chico - Se alguma coisa nasce antes, é a música. A letra procura vir atrás, acompanhar a música. É como em todas as minhas parcerias, com Tom, Edu, Francis, quando tento descobrir a palavra que merece aquela frase musical.
JB - Nas minhas parcerias com o Paulinho Pinheiro (Paulo César Pinheiro), a gente procura fazer junto...
Chico - Ah é? Como é que é isso, hem?
JB - Eu entro um pouquinho na letra e ele, na música. Acho mais fácil assim, e também dá mais tesão. Quando acaba a música, dá aquela alegria e a gente começa a cantar ela junto, umas 300 vezes...
Chico - É, isso é muito bacana, mas não consigo fazer assim, não. Eu faço escondido. Quando componho letra e música fico trancado, sozinho. Quando é parceria, levo a música pra casa numa fitinha e depois mostro quando está pronta ao meu parceiro. Mas eu gostaria de fazer do teu jeito. Vinicius também sabia escrever na sala de jantar e Villa-Lobos compunha no meio da bagunça
JB - Você faz muitas músicas como se fosse uma mulher falando, usa esse seu lado faminino...
Chico - A primeira música que eu fiz no feminino, a Com açúcar com afeto, foi uma encomenda da Nara Leão. O tema que ela me pediu era essa coisa da mulher sofredora, que fica em casa. Depois passei a fazer canções para personagens do teatro. Mas isso é uma tradição antiga da música brasileira. Eu me lembro do Ary Barroso, compondo, cantando no feminino. Era engraçado ouvir Camisa amarela na voz dele. Misteriosamente, nós temos mais compositores do que compositoras e mais cantoras do que cantores. Temos muitos cantores compositores, mas cantor, cantor são poucos. Agora o que mais me surpreende no repertório desse seu disco é você estar tão à vontade cantando as minhas canções no feminino. Essa sua súbita feminilidade tem alguma coisa a ver com sua antiga profissão de vitrinista?
JB - Não, tem a ver com o autor mesmo...(risos)
Chico - Agora fala como é que você arrumava uma vitrine.
JB - De vez em quando eu tinha que fazer uma pose de macho, porque sempre aparecia alguém me olhando meio esquisito...(risos)
Chico - Mas aquilo era o teu lado feminino, não?
JB - Era o meu lado financeiro. Mas, mudando de assunto , você se considera um sambista?
Chico - Aprendi a tocar violão tocando bossa nova, que é samba. Quando pego o violão, a tendência natural é que dali saia um samba, é a minha formação. Então, me considero um sambista.
JB - Todo mundo diz que você é o herdeiro musical do Noel Rosa, embora já tenha ouvido você dizer que sua maior influência era o Ismael Silva...
Chico - Teu pai tocou com Noel, não foi?
JB - Tocou com ele, com Jacob do Bandolim, era craque do violão...
Chico - Quando eu falei que a minha maior influência era o Ismael foi um pouco para lembrar o nome dele, que andava esquecido. O Noel também já esteve um pouco esquecido, mas tem um apelo maior. Mas fui influenciado por todos eles.
JB - Aracy de Almeida é considerada a melhor intérprete de Noel. Quem seria o ou a melhor intérprete de Chico Buarque?
Chico - Não tenho nenhum preferido, João. (pausa, pensativo) Bem, eu deveria dizer que é você, né? (risos)
JB - Seria a resposta que eu não esperaria nunca. Comecei agora, pode ser que eu ainda venha a ser um grande intérprete do Chico...
Chico - Comecei a fazer músicas sem pensar em cantá-las. Minha grande ambição era ser cantado por outros cantores...
JB - Então você não tem ciúmes de ouvir suas músicas na voz de outra pessoa?
Chico - Muito pelo contrário. Eu gosto mais de me ouvir cantado por outras pessoas do que por mim mesmo. Eu tinha 2O, 21 anos quando a Nara gravou três músicas minhas no disco dela. A Nara, na época, era a grande estrela da MPB.
JB - Eu também comecei assim, com a Elizeth Cardoso. Mas gosto muito de te ouvir cantando, gosto dessa coisa do compositor interpretar a própria música. Te incomodam declarações como a do Billy Blanco que recentemente brincou dizendo: "A única coisa que eu faço melhor que o Chico é cantar mal"?
Chico - Não me incomoda, não. Quando comecei a cantar, naqueles festivais, ficava nervoso mesmo. E um sujeito nervoso tem menos fôlego, não sustenta as notas, pode desafinar. A gente depois amadurece, fica mais tranqüilo, a voz sai melhor. E eu fiquei 13 anos sem fazer um show sozinho, aparecia apenas em algumas participações especiais. E quando você começa um show, a voz só começa a esquentar lá pela quarta, quinta música
Aí você vai fazer uma temporada, você vai, estréia lá e daqui a... (pausa para cálculo) daqui a cinco meses a coisa começa a funcionar bem. (risos)
JB - Mas você progrediu muito...
Chico - Obrigado. Mas não ligo para essa história não, até porque tenho mais prazer em cantar músicas de outros compositores do que as minhas próprias. Nesse show tão falado aí do réveillon, eu me lembro do prazer que senti ao cantar músicas do Tom que eu nunca havia cantado.
JB - Você vem alternando projetos de música e literatura. Agora, que lançou Benjamin, já vem por aí disco novo?
Chico - Por enquanto ainda não sei o que vou fazer. Estou com vontade de fazer música, mas o livro ainda está me ocupando muito, com as traduções lá de fora, que eu tenho que acompanhar essas coisas....
JB - Sobra tempo pra bater uma bolinha? O futebol ainda é uma paixão?
Chico - São três peladas po semana. Jogo bola para não pensar em absolutamente nada .
JB - É por isso que você ensinou o teu cachorro Minguilin a não tirar aquela bola de tênis da boca?
Chico - Jogar bola é isso, você volta a ser aquele cachorro que no fundo você é (risos). Existe uma certa mania de intelectualizar o futebol, mas eu acho isso uma bobagem, não consigo falar mais de dois minutos sobre futebol. Eu gosto é de jogar.
JB - Maracanã, então, nem pensar...
Chico - Sou tricolor e vou ser a vida inteira, mas não me identifico com a torcida do Fluminense. Até hoje não consigo entender por que cantam aquela música da "bênção, João de Deus". Eu ouvia cantar aquilo, morria de vergonha. Deixei de ir ao Maracanã. Além do mais, gosto do futebol ofensivo, o que foge à tradição do Fluminense. Aí vem o Palmeiras e...
JB - Se você pudesse escolher outra vez, você escolheria o Fluminense?
Chico - Não existe isso, porque você não escolhe um time. Você escolhe um time por influência de alguém, ou para contrariar alguém. Fui levado por minha mãe, que era tricolor, e passei a torcer pelo clube. Ou você é ou não é. Sou tricolor, e acabou.
JB - Do atual time do Fluminense, de quem você gosta?
Chico - Gosto muito do Vampeta. Muita gente fala mal dele, mas ele é muito bom. Semana passada mesmo fez dois gols. O engraçado é que ele introjetou tanto essa avalanche de críticas, que outro dia chegaram para ele dizendo: "O Chico Buarque anda elogiando o seu futebol." Aí ele respondeu ao repórter: "Não é ironia, não??" (risos)
JB - Você conta os gols que faz pelo Polytheama?
Chico - Não sou artilheiro, então conto apenas as assistências. (risos) Você é que quase foi profissional...
JB - Não, jogava direitinho, mas nunca passei de time de várzea. Agora, era dificil tomar a bola de mim, enquanto eu estava inteiro, né. Mas você é que, está inteirinho, tá fumando pouco, aí fica mais fácil, né? Só bebendo café... é por isso que você corre tanto? (risos)
Chico - Que isso... Nem tanto.
JB - Você concorda quando dizem que depois da nossa geração a MPB entrou em crise?
Chico - Não acredito que exista crise. Nos anos 60, quando escrevi a Rita, que falava daquele bom disco de Noel, o tempo de Noel Rosa me parecia remotíssimo. Mas é que, entre os anos 30 e 6O, Noel morreu tuberculoso, Ismael Silva esteve preso, Cartola lavava carros, Assis Valente suicidou-se, Ary Barroso virou vereador e locutor de futebol. Agora eu faço as contas e vejo que se passaram os mesmos 30 anos, desde que surgiu a minha geração. Se parece que ocupamos muito espaço é porque não houve solução de continuidade, estamos aí trabalhando. Mas ao mesmo tempo surgiu, e continua surgindo, um monte de gente boa: de Djavan, Fagner e Belchior até Paulinho Moska, Cássia Eller e Zélia Duncan. Essa é uma pergunta que me fazem há 20 anos. Não acredito em crise.
JB - O que está achando da perspectiva de ser avô?
Chico - Estou felicíssimo. Mas você é que já é avô, sabe melhor do que eu. Como é que é, conta pra mim...
JB - É fantástico. Minha netinha, Juliana, já tem cinco anos. Quando soube que minha filha estava grávida, pedi muito a Deus para não morrer antes de escutar ela me chamar de vovô... O que que você está esperando, um menino ou uma menina? Acho que um menino é mais legal, hem...
Chico - É menino.
JB - É menino!? Pôxa, foi tua filha que veio te dar essa forra, hem Chico! (ele tem três filhas mulheres) E já pintou alguma parceria com o genro, o Carlinhos Brown?
Chico - Por enquanto, não. Mas sou fã do Carlinhos Brown, é uma grande figura, um grande músico.
JB - O que você achou das declarações do Bruno Tolentino dizendo que era um absurdo cantores-compositores como você e o Caetano serem tratados como poetas nos currículos escolares?
Chico - Não acompanhei muito isso, não. Essa questão é meio antiga. Letra de música não pretende ser nada além de uma letra de música. Mas pode ter uma qualidade poética maior do que uma poesia sem música. Por outro lado, se eu for musicar um poema do João Cabral de Melo Neto ou da Cecília Meirelles, no momento em que eu coloco a música, aquilo deixa de ser poesia, vira letra de música? Não tenho dúvida de que as letras do Caetano tenham qualidade poética para serem estudadas e virarem tema de vestibular. Mas não faço questão de ser chamado de poeta.
JB - Ainda confundem o Chico escritor com o compositor?
Chico - Sem dúvida. Tem gente que compra o meu livro achando que vai encontrar ali o compositor. Mas a tendência do leitor é saber discernir uma coisa da outra, o músico do escritor. Benjamim deverá vender menos que Estorvo, e o meu próximo livro provavelmente vai vender menos ainda, até cair na realidade do público de um escritor de uma literatura que não é fácil, que não pretende ser popular.
JB - A censura foi um pesadelo na sua vida na época da ditadura. Agora que ela acabou, fazer música com temática política também virou coisa do passado?
Chico - Não tenho muito gosto pela política, para dizer a verdade. Tive uma atuação política mais evidente naquela época, porque era necessário, não havia outra solução para mim. As circunstâncias me levaram a fazer aquilo. Mas se você contar as músicas que fiz naquela época, vai ver que as engajadas eram poucas, se comparadas ao resto da obra. E eu tive canções de amor que também foram censuradas e, no entanto, não tinham sido compostas com a intenção de entrar naquela briga. As músicas de temática social são uma tradição da MPB e tinham uma característica única de serem cantadas no carnaval. E isso acontece até hoje, nos blocos, como o teu, o do Clube do Samba. O deste ano mesmo, qual foi o tema?
JB - No bloco da Federal, a pasta rosa é a maioral... (risos)
Chico - Como é que era mesmo?
JB - O refrão era assim: Nossa terra tem gente muito generosa/se pintar uma sujeira passa a pasta rosa... Há 17 anos a gente faz isso.
Chico - Dava pra contar a história recente do Brasil através desses sambas de bloco. Poderia até cair no vestibular. Mas não em Literatura, em História, para poeta nenhum reclamar...(risos)
JB - Dia 1° a gente vai estrear o show de lançamento do disco, no Teatro Joso Caetano. Eu sei que você não pôde ir à estréia do Ney (Matogrosso, que também acaba de lançar um disco em que só interpreta composições de Chico Buarque e estreou semana passada no Canecão) , mas eu queria deixar aqui o convite.
Chico - Tá querendo me deixar mal com o Ney, né...(risos)
Chico quer ser um sambista que escreve
Chico quer ser um sambista que escreve. O compositor, que está finalizando um novo livro, tem seu romance "Estorvo" lançado por uma editora alemã. Chico Buarque, o astro principal do Brasil na 46.ª Feira do Livro de Frankfurt, sente-se "um peixe fora d'àgua" entre os escritores. Ele está na Alemanha para divulgar o lançamento do seu romance "Estorvo" pela editora Hanser. Em seu hotel em Frankfurt, ele falou à Folha sobre sua divisão interna entre compositor e romancista, e comentou as eleições brasileiras. Só evitou falar do romance que está escrevendo: "Ainda sei muito pouco sobre ele."
Folha - Incomoda a você ser visto como um compositor popular que eventualmente escreve, e não como um escritor?
Chico Buarque - Não me incomoda nada. Outro dia, num jornal, um sujeito para falar mal de mim me chamou de sambista, como se fosse um insulto. E eu sou um sambista. Quando eu morrer, quero que digam: "morreu um sambista que escrevia livros." Não estabeleço nenhuma hierarquia.
Folha - Como é que o compositor Chico Buarque vê o escritor Chico Buarque?
Chico Buarque - Um não se dá com o outro. Voltar a fazer música depois do livro foi muito difícil. Era como se fosse um ofício que eu não conhecesse mais. E agora para voltar a escrever, também. Fiquei meses tentando escrever e não saía nada.
Folha - Você escreveu livros antes, mas é com "Estorvo" que começou essa sua divisão?
Chico Buarque - Eu acho que sim. As peças de teatro eu considero uma extensão do meu trabalho musical. "Estorvo" e esse livro de agora correspondem a uma necessidade íntima. Não há nenhuma pressão externa para que eu escreva. Meus amigos músicos vivem me dizendo: "não escreve não." E o público também. Acho que a única pessoa que quer que eu escreva é meu editor (risos).
Folha - "Estorvo" foi lido como um testemunho do Brasil de hoje, com seu caos social e sua falta de perspectivas. É assim que você vê o país?
Chico Buarque - Quando escrevi "Estorvo", sim, sem dúvida. Mas em nenhum momento tive a intenção de simbolizar o que quer que fosse. Não me incomoda que haja essa leitura, mas se eu tivesse pensado nisso, eu não conseguiria escrever.
Folha - Você acha que o fato de o Brasil ser tema da Feira de Frankfurt vai contribuir para mudar a situação da literatura brasileira no exterior?
Chico Buarque - Espero que sim, porque é muito mais difícil ser escritor brasileiro aqui fora do que músico. A gente encontra livros brasileiros nas estantes de espanhóis ou hispano-americanos nas livrarias. É difícil mostrar que não temos nada a ver com essa coisa do realismo mágico. Tem uma passagem interessante do livro "Visão do paraíso", do meu pai (Sérgio Buarque de Hollanda), em que ele compara os relatos dos exploradores portugueses e os dos espanhóis na América. Enquanto os espanhóis faziam relatos exuberantes, os portugueses atenuavam as coisas para torná-las verossímeis. Acho que essa diferença se reflete ainda hoje na literatura da América Latina.
Folha - Você apoiou Lula. Como vê a perspectiva de um governo Fernando Henrique?
Chico Buarque - Acho que, dos presidentes da história do Brasil, ele é o que tem a melhor biografia. Espero que ele respeite o seu passado, embora eu tenha minhas dúvidas. Não quero, sinceramente, dizer depois: "Está vendo, eu não disse?" Mas não quero também que façam como depois do Collor, que diziam: "Com o Lula seria pior." Como sabem, se ele não tem uma chance? Admiro muito o Lula, considero-o muito preparado, mas parece que está proibido que ele governe o país. É uma pena.
Chico Buarque completa 50 anos amanhã
O compositor carioca fala sobre seus 30 anos de carreira, seu processo de criação, cinema e o disco "Paratodos"
O compositor Chico Buarque de Hollanda, responsável por uma das mais consistentes obras musicais da MPB, completa amanhã 50 anos. O aniversário será comemorado em Paris (França).
Em entrevista concedida à Folha à época do lançamento de seu último disco, "Paratodos", Chico fala sobre seus 30 anos de carreira.
Criação
Não faço um disco quando quero, faço quando preciso. Não sei exatamente o que dita esta necessidade. Não é uma pressão de fora, é uma pressão que eu mesmo me coloco. Não sei explicar qual a sua natureza, mas a verdade é que isso vale para todos os meus discos. Outro dia eu li que o pintor Pierre Bonnard ia com seus pincéis para o museu onde suas obras estavam expostas. Quando o guarda não estava olhando, ele dava uma pincelada e corrigia um trabalho de dez anos atrás. Eu me identifico perfeitamente com isso.
Na primeira pessoa
Muito do meu trabalho nos anos 70 estava ligado ao teatro. Eu falava através de personagens, enxergava através de outros olhos. Deixei de compor para teatro e para cinema. A partir desta mudança, penso que uma existência mais isolada como a que me foi exigida para escrever "Estorvo" acabou resultando num caminho mais solitário e numa linguagem mais individual.
Lirismo atual
Muitas de minhas canções amorosas também por conta do teatro eram sempre dramáticas. "Olhos nos olhos" por exemplo é uma canção muito teatral. As músicas mais recentes como por exemplo "Valsa brasileira" e "Futuros amantes" são mais líricas e mais poéticas. Já não há tipos, nem personagens femininos. De qualquer forma, sem precisar me expor pessoalmente, eu assinaria todas essas canções teatrais como experiências minhas. São canções pessoais.
Cinema
Gosto muito de Fellini e de Buñuel. Me sinto mais em casa com Buñuel, mas não é um juízo de valor. É apenas uma questão de afinidade.
Auto-retrato
Eu sou uma pessoa muito afetiva, que age sempre por afeto. Eu sou o homem cordial.
Chico redescobre a música em 'Paratodos'
Cinquenta mil pessoas foram vê-lo no Rio, após seis anos de ausência dos palcos, e o mesmo deve se repetir em São Paulo. No show "Paratodos", que estréia hoje no Palace, Chico Buarque redescobre a música. "Depois desse hiato, me dedicando à literatura, voltei à música com muito tesão. Passei a tocar mais violão, como eu não fazia há 30 anos. Foi uma redescoberta", diz o cantor e compositor.
Em entrevista exclusiva à Folha, Chico Buarque falou do início de sua carreira, comentou a polêmica Gal Costa / Gerald Thomas e revelou que fará uma nova parceria com Tom Jobim.
Folha - Hoje, a três meses dos seus 50 anos, como você vê o Chico Buarque que estreou três décadas atrás?
Chico Buarque - Acho que eu sou o mesmo com um arranjo novo. Já estava tudo ali.
Folha - Mesmo no palco?
Chico Buarque - Bem, no palco eu estou muito mais ousado do que naquela época. Lembro que quando eu comecei a fazer shows e programas de TV, participei de um programa do Fernando Faro, chamado "TV de Vanguarda", cantando "Pedro Pedreiro" e aquelas minhas primeiras músicas. Ele precisou inventar uma posição de câmera meio à Orson Welles. Colocava a câmera lá em baixo, porque a pretexto de olhar o violão eu cantava com a cabeça para baixo. Hoje em dia eu já encaro uma platéia. Eu ainda sou um filho da Bossa-Nova. Ela tinha uma estética de palco que me convinha.
Folha - O que você achou da polêmica em relação ao show de Gal Costa com Gerald Thomas?
Chico Buarque - No fato de ela mostrar os seios eu não vejo nada de mais. Achei o show muito bonito, só que já estava bastante modificado quando eu vi, no domingo. É um show difícil para a Gal. A direção não a ajuda, mas ela supera aquilo de maneira brilhante. O resultado é formidável para ela. Agora, a direção não ajuda mesmo.
Folha - Pelo que se conhece da sua timidez, você jamais faria um show usando uma sunga...
Chico Buarque - Acho que eu não faria muito sucesso (risos). Eu não faria um show com esse tipo de direção. Na verdade, a Gal trabalha ali como uma atriz também. Mesmo no meu último show, em que fui dirigido pelo Naum de Souza, era uma direção bastante discreta. Ele pedia que eu fizesse o que eu já sabia fazer. Mesmo o que não sabia fazer ganhou uma forma mais cômica. Mas eu não poderia me levar a sério como ator. A Gal já tem uma postura dramática bem acentuada há muito tempo. Nem me surpreende tanto que ela tenha optado por esse caminho.
Folha - É verdade que você vai participar do novo disco de Tom Jobim?
Chico Buarque - Na verdade, eu estou devendo uma letra para o Tom.
Folha - Mas as gravações já começaram. Dá tempo?
Chico Buarque - O Tom grava devagar (risos). Eu trouxe a fita com a música aqui para São Paulo. Assim que passar a estréia do show, vou ter que guardar um tempo de hotel para terminar essa letra. Talvez daqui a duas semanas eu já tenha que gravar.
Folha - Ela já tem título?
Chico Buarque - Não. Na verdade, ele me pediu para escolher entre duas canções que ele escreveu para um filme do Marcos Altberg, baseado em um romance da irmã dele, Helena Jobim.
Folha - Corre por aí que após a temporada desse show você começa um novo romance...
Chico Buarque - Eu gostaria, mas é mais "wishful thinking" do que outra coisa. Eu gostaria de escrever um livro novo, talvez um romance, mas ainda não tenho um projeto.
Folha - Você não tem compromisso assumido com a sua editora, a Companhia das Letras?
Chico Buarque - Eu prometi ao Luiz Schwarcz me dedicar a isso e gostaria mesmo. Mas eu não sei me planejar assim com tanta exatidão. Eu preciso fechar uma porta para abrir a outra. Para escrever o livro, preciso parar de fazer o show.
Folha - Já tem alguma idéia?
Chico Buarque - Não. O que normalmente acontece comigo é um buraco entre um trabalho e outro. Tenho necessidade de ficar vazio de uma coisa para começar outra.
Folha - O que você acha desses novos grupos de pagode? Eles seriam os Leandros e Leonardos do samba?
Chico Buarque - Eles fazem um samba mais produzido, em todos os sentidos. É resultado de um trabalho de gravadora, é produzido visualmente. Mas eu não tenho nenhuma antipatia por esse tipo de samba.
Folha - A diluição do samba não te incomoda?
Chico Buarque - Acho que a música popular, o samba e mesmo a música sertaneja estão sujeitas à diluição, estão sendo diluídos o tempo todo. Eu não vou comparar esses grupos a João Gilberto ou ao Paulinho da Viola. O problema é que a diluição da diluição da diluição acaba numa coisa muito rala. E cansativa também. As pessoas sempre perguntam por que a minha geração continua. Eu acho que naquela época não havia essa velocidade toda na substituição de um produto por outro. Não havia nem mesmo a noção de música como produto. Era um trabalho bastante amador. Não existia essa visão de mercado que existe hoje.
Folha - E o "Samba da Barata"? Você gosta?
Chico Buarque - Eu acho muito engraçado (risos). Visivelmente, ele tem muito mais humor do que a canção sertaneja. Além disso, a canção sertaneja sofreu um desgaste ainda maior por causa do uso político que fizeram dela, que acabou gerando uma antipatia muito grande. Mas até que eu não achava muito ruim quando um deles começava a cantar "Rancho Fundo" e o outro já emendava uma terça no vocal. Em princípio, eu não acho nada muito ruim em música. A coisa ruim vem em torno dela.
Folha - URV e calcinha dão samba?
Chico Buarque - Essa me pegou no contrapé. São assuntos que aconteceram enquanto eu estava fora do Brasil. Na verdade, eu nem cheguei a ver direito as famosas fotos da moça sem calcinha. Eu estava de férias, em Paris, e me mandaram um fax, mas a foto ficou borrada. Eu nem sei como era a moça na intimidade (risos). Quanto à URV, eu ainda estou tentando entender. Assisti à entrevista do Fernando Henrique no programa do Jô Soares e confesso que ainda não consegui entender direito nem a diferença entre esse plano e a dolarização, nem a questão da perda salarial. Eu ainda estou em descompasso com as pessoas mais bem informadas, porque eu tirei essas férias. Mas foram merecidas.
Chico Buarque volta ao samba e rememora 30 anos de carreira
Chico Buarque volta ao samba e rememora 30 anos de carreira. Ele fala de música e literatura, diz que tentou conhecer o irmão alemão e afirma que está "mais leve"
Chico Buarque de Hollanda está de volta, em CD, videoclip e show. Depois de cinco anos sem gravar - o que não quer dizer sem produzir - e de ter se aventurado pelas águas da literatura, com "Estorvo", um romance de qualidade surpreendente, Chico retorna ao samba com o disco "Paratodos". A volta tem um sabor de reencontro do músico com o seu público e assinala um momento de maturidade de um artista que sempre soube conciliar tradição e inovação, erudição e cultura popular, trabalho cerebral e intuição. Nesta entrevista, realizada em duas etapas, na casa do compositor, no Rio, ele fala sobre sua formação literária, sobre suas ligações com a música e sobre sua família. Filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, autor do clássico "Raízes do Brasil", Chico comenta a relação com o pai e revela a existência de um irmão alemão, por ele desconhecido. Dizendo-se um "homem cordial" (conceito cunhado por seu pai), Chico também fala sobre seus amigos, seus parceiros e, apesar da timidez, não evitou temas delicados, como vícios e manias. Quase um cinquentão, Chico comemora 30 anos de carreira em plena forma e diz que hoje se sente mais leve do que na época das cobranças políticas.
Folha - Começando por sua formação literária: o que você leu quando jovem? Que autores foram decisivos? Você lê bem em outras línguas?
Chico Buarque - Eu leio bem francês, italiano e espanhol. Quando criança, falava italiano e inglês porque morei em Roma durante dois anos e estudava em escola americana. Com 10 anos de idade eu falava italiano e inglês correntemente. Eu tenho até hoje uma carta em que uma professora americana, ao despedir-se de mim, disse que um dia ainda leria um romance "written by Francisco Buarque de Hollanda". Depois parei e esqueci ambos. O italiano eu retomei quando fui morar novamente na Itália, em 1969. Mais tarde quis retomar o inglês e fui tomar umas aulas. Foi engraçado, minha professora disse que eu tinha uma boa pronúncia, mas que o meu vocabulário era muito infantil...
Na tradução do "Estorvo" para o inglês eu fiquei em Londres uns dez dias, diariamente, com meu tradutor. Consegui entender o suficiente para detectar o que não estava correto - mas não conseguia apontar soluções.
A partir dos meus 15, 16, 17 anos, na minha adolescência, eu comecei a ler muito. E comecei a ler muito em francês - que ainda hoje eu escrevo melhor do que falo. Era influência da biblioteca do meu pai. O que ele mais tinha era literatura em língua francesa. E ler foi uma maneira que encontrei de me aproximar dele.
Folha - Você poderia explicar melhor essa relação?
Chico Buarque - A minha tentativa de aproximação com meu pai foi através da literatura. Ele vivia fechado na biblioteca, e eu, que tinha medo de penetrar naquele território, começei a ler algumas coisas. Ele me indicava desde clássicos, como Flaubert, até Céline, Camus e Sartre. Li, ainda em francês, Kafka, Dostoiévski, Tolstói e uma boa dose de literatura russa. Mais prosa do que poesia: meu conhecimento de francês sempre foi suficiente para prosa e insuficiente para poesia. Eu me lembro de, lá pelos 18 anos, ir para a Faculdade de Arquitetura com esses livros em francês, o que era uma atitude um pouquinho esnobe. Talvez para me valorizar dentro de casa ou talvez para agradar meu pai.
Folha - Quando a gente começa a ler sempre surge aquele primeiro livro capaz de transcender o próprio mundo da literatura, aquele autor que sozinho passa a constituir um universo, que nós dá um susto e muda a nossa vida. Diante de que autor você sentiu a vontade de escrever?
Chico Buarque - Como eu dizia, eu tinha amigos com quem falava e discutia literatura em francês. Era uma atitude um pouco exibicionista, até que um colega me deu uma debochada: "Mas você só vem com esses livros para cá, por que não lê literatura brasileira?" Eu respondi: "Você tem razão". E comecei a ler o que não havia lido até então, de Mário de Andrade, Oswald de Andrade até Guimarães Rosa, por quem me apaixonei. Guimarães Rosa talvez seja esse marco para mim. Foi uma descoberta. Durante um bom tempo, queria escrever à la Guimarães Rosa. Participei de diversos concursos de contos naquela época, textos cheios de neologismos.
Folha - Você começou pelo "Grande Sertão: Veredas"?
Chico Buarque - Comecei com "Sagarana", "Corpo de Baile" e cheguei até o "Grande Sertão".
Folha - E na área de poesia, você chegou a conhecer o Manuel Bandeira?
Chico Buarque - Conheci Bandeira, Drummond, e conheço João Cabral. Bandeira eu conheci desde pequeno, porque ele era muito amigo de meu pai e padrinho de meu irmão mais velho, Alvaro Augusto. Tem até um daqueles poemas...
Folha - Do "Mafuá do Malungo"...
Chico Buarque - É, tem um para o meu irmão Alvaro Augusto. Já mais velho, quando fui morar no Rio de Janeiro, mas garoto ainda, fomos visitá-lo. Fui com o Tom e o Vinícius. Foi um encontro interessante. Ele tocou um pouco de piano e começou a contar umas histórias do meu pai. "Ah! o Sérgio"... e no meio de algumas lembranças ele mencionou "aquele filho alemão". Eu perguntei: "Que filho?" Eu não sabia que meu pai tinha tido um filho na Alemanha. O Vinícius me perguntou: "Você não sabia?" Eu disse: "Não". Era um pouco segredo lá em casa. Meu pai tinha tido um filho alemão antes de casar. Eu fiquei muito chocado e quando pude ir a São Paulo perguntei ao meu pai sobre isso. No começo ele não quis falar, mas depois abriu o jogo.
Folha - E você chegou a conhecer esse irmão?
Chico Buarque - Não. Eu até tinha vontade. Numa entrevista antiga, que meu pai deu para o Jorge Andrade, na revista "Realidade", ele falava uma coisa engraçada. Ele dizia que tinha a pele muito branca e quando viajava perguntavam se ele era filho de alemão. Ao que ele respondia: "Não, sou pai de alemão." Meu pai viveu na Alemanha no começo dos anos 30, morou dois anos e veio embora. Tinha uma namorada que ficou grávida. Eu não sei bem a história desse namoro. Mas ele chegou aqui e, passado um tempo, casou-se com a minha mãe. Eu só sei que mais tarde, durante a Guerra, a mãe desse menino mandou uma carta a meu pai pedindo para ele enviar documentos provando que não tinha sangue judeu. Minha mãe, que sempre se ocupava das coisas práticas, foi quem descolou os papéis provando que meus avós e bisavós não tinham sangue judeu. Os papéis foram entregues ao Consulado Alemão aqui no Brasil. Foi a última notícia que se teve dela e do filho. Volta e meia eu e meus irmãos tentamos descobrir o paradeiro desse irmão, que hoje teria uns 60 e poucos anos. Há algum tempo surgiu uma pista interessante. Um senhor, afinador de piano, disse que conheceu um Buarque de Hollanda.
Folha - Ele foi registrado como Buarque de Hollanda?
Chico Buarque - Não, foi registrado com o nome da mãe, que é um sobrenome comum, Ernest. Mas o primeiro nome dele é Sérgio, um nome que não existe na Alemanha. Ele é Sérgio Ernest. Eu já fui à Alemanha e já procurei na lista: Ernest é que nem Oliveira. Havia alguns com a inicial "S". Eu ficava especulando se poderia ser um deles. Pensava em telefonar, mas achava bobagem. O que ia dizer? "Oi, sou seu irmão." Ou: "Você é meu irmão?" Sabemos que ele ficou em Berlim, mas se no Leste ou Oeste, se morreu na Guerra, se a mãe contou ou não contou, isso não se sabe. Então, aparece um afinador de piano dizendo que conheceu um colega da fábrica de pianos com sobrenome Buarque de Hollanda. Achamos que de repente o cara, sabendo o nome do meu pai, poderia ter recuperado o sobrenome. É uma história um pouco inverossímil. Mas, enfim, o cara poderia ter assumido o nome paterno e ter tentado entrar em contato com o pai. Mas, um Buarque de Hollanda, afinador de piano na Alemanha era muito inverossímel. Finalmente descobriu-se que ele existia mesmo, mas não era o meu irmão. Não conferia com a idade. Era filho de um outro Buarque de Hollanda que andou por lá.
Folha - É muita coincidência, ainda por cima na área da música! Não era carregador de piano, não?
Chico Buarque - Pois é, não era... Bom, eu estava no Manuel Bandeira.
Folha - Foi o Manuel Bandeira que entregou...
Chico Buarque - Foi ele que entregou. Era compadre do meu pai, assim como o Vinícius, que conheci também desde pequeno. Na verdade esses amigos de meu pai da área literária estavam um pouco distantes quando eu fui morar no Rio de Janeiro. Naquele tempo ia-se pouco a São Paulo. Não é uma coisa como hoje, que você vai e volta. E quando foi morar em São Paulo meu pai se distanciou um pouco do meio literário. Ficou mais ligado à história, ao mundo acadêmico.
Folha - Você chegou a conhecer o Oswald de Andrade?
Chico Buarque - Não lembro de ter conhecido, mas meu pai também não tinha uma relação muito próxima com o Oswald, ele era mais próximo do Mário.
Folha - O Drummond comentou numa entrevista, em tom de crítica, que você ligou uma vez à noite, já meio tarde, para dizer que tinha uma pessoa da Nicarágua querendo conhecê-lo. Houve isso?
Chico Buarque - Era o embaixador da Nicarágua no Brasil. Não me lembro o nome dele agora, mas você sabe que na Nicarágua todo mundo é poeta. Ele era fissurado pelo Drummond, que tinha escrito uma crônica anti-sandinista e ele queria explicar essas coisas. Fomos à casa do Drummond, já meio tarde. Mas ele foi muito simpático.
Folha - Você teve outros contatos com o Drummond? Em pelo menos duas músicas você faz referência explícita à poesia dele - "Flor da Idade" (75) e "Até o Fim" (78). A leitura de poesia brasileira é uma coisa presente para você?
Chico Buarque - Claro. Li tudo de Bandeira, Drummond e João Cabral. Com Drummond eu tinha contato. Não posso nem dizer que era uma amizade. Eu o visitava esporadicamente, mas ele sempre foi muito carinhoso, me mandava livros com dedicatórias, bilhetes, enfim, a gente se comunicava. Ele era muito fechado, muito tímido, eu também já não sou muito... E acho que havia um problema: uma vez ele brigou com meu pai...
Folha - É?
Chico Buarque - É, por causa de mulher.
Folha - E quem era?
Chico Buarque - Quem era o pivô eu não sei. Ambos eram solteiros na época.
Folha - Como é o seu contato com o Rubem Fonseca?
Chico Buarque - Sou amigo do Zé Rubem, gosto muito dele. Ele sempre me dizia que eu era um escritor. Ele tem um pouco isso de incentivar novos autores, de dar força. Ele leu o primeiro capítulo de "Estorvo", que foi traduzido para o inglês, porque o Luis Schwarcz (editor) estava trabalhando a possibilidade de vender o livro para o exterior. Esta primeira tradução, acompanhada do original em português, foi enviada ao Zé Rubem, que conhece muito bem o inglês, para ver se estava boa. O Zé Rubem, que já vinha me atiçando para escrever um livro, teve uma conversa comigo. Fez algumas observações muito interessantes. Quando o livro ficou pronto, entreguei a ele e ao Luis. O Zé Rubem veio aqui em casa cheio de anotações e até sugestões de mudanças.
Folha - Você foi receptivo?
Chico Buarque - Sim, sim. Já na primeira leitura ele observou que havia duas ou três construções que ele considerava inadequadas. Tinha uma palavra em inglês - e ele falou: "Isso é um horror". Era "flash". "Tira esse flash", ele disse. Eu não sei nem se deveria falar sobre isso, porque o Zé Rubem não gosta de dar entrevista e eu não posso dar entrevista por ele. Mas, enfim, eu tenho que dar esse crédito a ele, que foi a primeira pessoa, junto com o Luis Schwarcz, a me instigar a escrever o livro, dizendo, "você é escritor, você é escritor". Outra observação curiosa é que em certa passagem de "Estorvo" o personagem está numa festa e de repente uma moça, na frente dele, baixa o vestido e os seios ficam prá fora. O Zé Rubem me perguntou se havia baixado uma Dercy Gonçalves. Eu não concordei muito, achava justamente interessante, aquele absurdo, assim meio nonsense. Para contentar o Zé Rubem, deixei mais suave, só um seio de fora.
Folha - E como foi a recepção crítica no exterior?
Chico Buarque - Foi muito diferente em países onde me conheciam e em outros onde eu era absolutamente inédito. Na França eles souberam respeitar minha opção literária. Mas isso depende também de como é conduzido o lançamento, do nível dos jornalistas que destacam para a entrevista etc. Na Espanha, por exemplo, de vez em quando eu me via falando com rádios para as quais o foco era o compositor. As perguntas que faziam eram ao autor de músicas. Já na Noruega não tinham a mínima idéia, assim como na Holanda, onde ninguém me conhece como músico. A dificuldade nos países onde a música era mais conhecida é exatamente o fato de que eles recusam um pouco a possibilidade de um escritor brasileiro ser, de certa forma, inovador - ao contrário do que acontece com a música. Eles aceitam a originalidade da música popular brasileira tranqüilamente, mas a literatura eles vêem com mais surpresa. Imaginam o Brasil como um país ainda em grau de civilização inferior ao deles, o que favorece a criação musical. Era difícil explicar por que é que eu estava largando um ofício, que para eles era tão mais viável, tão mais apropriado, por um outro que os europeus dão banho nos brasileiros. Mas o livro foi muito bem aceito de uma forma geral. Houve críticas muito boas.
Folha - Você acha que em relação ao Brasil esse problema poderia ser colocado de que forma? Você acha que foi diferente?
Chico Buarque - Na verdade eu estava fora, não quis nem estar aqui na época do lançamento. Eu sentia que havia uma desconfiança brutal, mas brutal, antes de o livro sair. O livro estava pronto para ser muito mal recebido. Isso eu tenho certeza. As pequenas notinhas, as ironias que me chegavam...
Folha - Mas, você ficou de modo geral satisfeito?
Chico Buarque - Fiquei. De modo geral o livro foi muito bem recebido. Houve críticas negativas, mas houve um respeito por essa minha opção. Afinal - não posso ser modesto - foi uma opção corajosa. Não é muito fácil você abandonar o que sabe fazer durante tanto tempo por uma aventura.
Folha - Algumas coisas que você não estava conseguindo dizer através da música foram transmitidas através do livro. Houve essa questão? Ainda que intuitivamente você se voltou para a literatura?
Chico Buarque - Não, isso não é intuitivo. Eu tenho bastante claro que a música me conduz para algumas coisas e me limita. Eu sempre disse que conhecia os meus limites literários diante da música. Eu sabia que para mim era insuficiente aquilo como literatura. As coisas que eu digo no livro, não tenho música para dizer. Eu também não estabeleço terrenos hierarquicamente superiores. Através da música digo coisas que eu não conseguiria dizer sem ela. Em relação à música eu sou um autor muito mais passivo do que na literatura. É evidente que eu sou um músico intuitivo e não sou um escritor intuitivo. Eu tenho noção perfeita do que estou escrevendo.
Folha - A grande imprensa fez uma leitura genérica do livro. Certos detalhes passaram despercebidos, como o núcleo da amizade, como a questão da figura do delegado, da relação familiar, com o pai sempre ausente...
Chico Buarque - Só que a história para mim não tem muita importância. A história do amigo ser homossexual não é clara porque eu não quero que seja, porque não é importante que seja. Mas uma crítica que se publica num jornal qualquer precisa de gancho e os ganchos são os mais pobres possíveis. Eu reconheço que é muito difícil fazer uma resenha desse livro. Onde é que está? Por onde vai pegar? Esses problemas eu enfrentei muito nas traduções. O tradutor não percebia exatamente o que era e achava que estava mal contado ou que ele não havia entendido direito por problemas de compreensão do português.
Folha - Como você chegou ao título "Estorvo"?
Chico Buarque - O título surgiu já com o livro quase pronto. Ele surgiu no texto. Não tinha título. Tirei de um trecho, em que o sujeito caminhava pela multidão, que era um estorvo. Troquei a palavra no texto por obstáculo ou empecilho e fiz o título. Houve até uma certa resistência no começo, pelo título ser estranho, um pouco repulsivo.
Folha - Como compositor, você parece ocupar lugares e ângulos diferentes. Por exemplo, em Samba de Orly (70), dá uma visão de quem está fora do país e já em "Meu Caro Amigo" (1976) dá uma visão de quem está de dentro. O mesmo ocorre com "Pivete" (78), retrato do próprio, e em "O Meu Guri" (81), sob o ponto de vista da mãe. Usando uma metáfora musical, sua música sempre tem lado um e lado dois. A visão de Chico como artista político reduz bastante a apreensão destas outras facetas. Ou seja, o fato de você dar voz a outros personagens, paradoxalmente, acabou restringindo a sua individualização artística.
Chico Buarque - Essa tendência de enxergar sempre através do político de certa forma cristalizou uma idéia que não me satisfaz, absolutamente. Muitas vezes isso aconteceu por que eu queria. Mas eu canto uma música no show que fala disso e que agora não tem mais nada a ver com o momento em que ela foi composta. Me perguntaram por que essa música política no meio do show. Mas ela é na verdade um pouco a negação disso tudo. A música se chama "Pelas Tabelas". É um sujeito procurando uma mulher, apaixonado, no meio da manifestação pelas diretas. É essa confusão do individual com o coletivo e apontando muito para o individual naquele momento coletivo. Mas a leitura predominante é a política, que é uma leitura viciada. "Pelas Tabelas" é um samba que eu gosto de cantar e que estou cantando nesse show, porque ele também tem um pouco essa confusão do "Estorvo", essa barafunda mental.
Folha - Você está mais em paz com isso hoje?
Chico Buarque - Estou mais em paz com isso. A partir do momento que eu escrevi o livro acho que já estava assumindo uma opção atrevida. O fato de escrever o livro já era uma recusa em atender a expectativas.
Folha - A sensação que eu tenho é que você está mais leve.
Chico Buarque - Parcialmente, porque a cobrança ainda existe. O artista está sempre devendo alguma coisa, algum tipo de explicação. A gente tem que encontrar a sabedoria de ficar com várias dívidas e não pagar o que é cobrado. Eu me sinto muito mais livre em relação a isso, e não é de hoje, é dos anos 80 para cá.
Folha - Eu queria que você pontuasse alguns momentos de virada de sua obra.
Chico Buarque - Eu considero "Tem Mais Samba" (64) como minha primeira música, o marco zero da minha obra. Meu disco "Construção" (71) também é um momento importante. O disco anterior ao "Construção" é muito confuso. Há atenuantes para isso: eu gravei a voz na Itália, os arranjos foram feitos aqui, mas a própria criação das músicas é confusa, você percebe que eu estava um pouco perdido. Já não queria fazer o que estava fazendo e estava sem encontrar uma linguagem. "Construção" foi um disco de chegada ao Brasil e de reencontro com uma linguagem de renovação. Eu não sei te fazer essa cronologia, datar exatamente, através das músicas, uma evolução clara. Mas entre a primeira música e "Construção" houve todo um momento de reaprendizagem, que foram os anos de 67 e 68, quando eu tomei contato com Tom Jobim, contato real com a música, que para mim era muito de ouvido. Eu comecei a fazer música por causa da bossa-nova, uma coisa muito à distância, eu morava em São Paulo, não sabia nada de música, era absolutamente intuitivo. As minhas primeiras parcerias com o Tom e o meu contato com ele me levaram para esse caminho da música mais consciente, menos primitiva. Hoje eu sou um músico mais preparado evidentemente do que há 30 anos, quando escrevi "Tem Mais Samba", e isso eu tenho a impressão que se pode perceber.
Folha - Trabalhar sob pressão pode ser produtivo?
Chico Buarque - Trabalho mais por necessidade do que por desejo. Eu não faço um disco quando quero, faço quando preciso e não sei exatamente o que é que dita essa necessidade. Com certeza não é uma pressão estranha, de fora, é uma pressão que eu mesmo me coloco e não sei qual é a natureza dela. Mas a verdade é que isso vale para todos os meus discos. Vale para tudo, porque na realidade você nunca acha que está pronto. Tem uma hora que você coloca um ponto final para não ficar maluco. Mas quando passa um certo tempo você olha para trás e pergunta: "Por que eu não fiz isso? Por que não fiz aquilo?" Sempre dá um certo arrependimento. Outro dia eu li que o pintor Pierre Bonnard ia com seus pincéis escondidos para o museu onde estavam as obras dele expostas. Quando o vigia não estava olhando ele dava uma pincelada e corrigia um trabalho de dez anos atrás. Eu me identifico perfeitamente com isso.
Folha - Bom, eu queria que você comentasse "Piano na Mangueira", que está em "Paratodos", e falasse de sua parceria com Tom Jobim. Penso que "Eu te Amo" e "Anos Dourados" são verdadeiras obras-primas da canção popular brasileira e um casamento perfeito entre letra e música. Você não acha que falta uma crítica mais atenta, capaz de ressaltar a importância destas músicas?
Chico Buarque - O que eu digo, já disse e repito é que há muito pouca crítica de música. Há muita crítica de letra. É muito difícil alguém que compreenda a parte musical mesmo. Então é dificil encontrar quem saiba escrever sobre Tom Jobim. Nem compensa, é claro. Você não vai publicar uma partitura num jornal, publica uma letra, porque qualquer um pode julgar aquilo. Para mim isso é frustrante, porque eu vejo a letra tão dependente da música e tão entranhada na melodia, meu trabalho é todo esse de fazer a coisa ser uma coisa só, que, geralmente, a letra estampada em jornal me choca um pouco. É quase uma estampa obscena. Mas voltando ao Tom, ele é o meu maestro soberano. Na verdade, foi meu primeiro parceiro. Eu tinha feito uma música com o Toquinho, no comecinho de 65. Eu nem sabia fazer letra, entendeu? Eu demorei um pouquinho, fui aprendendo a fazer. Foi o Vinícius que me aproximou mais do Tom, que deu uma força para essa parceria. Era difícil fazer letra para o Tom. Ele já era meu mestre. E é um excelente letrista. Geralmente, quando ele me mostra uma música, eu digo: "Faz você, faz você." Mas, às vezes, ele me convoca mesmo. Foi o caso desse "Piano na Mangueira".
Folha - "Paratodos" tem uma marca que é a "volta ao samba", a volta à estrada da música, que vai sendo reforçada numa sequência de canções: "Paratodos", "Choro Bandido", "Tempo do Artista" e o "De volta ao samba", que completa a idéia.
Chico Buarque - É. A quarta foi para esgotar mesmo o assunto, até correndo o risco de ser redundante. Ela entrou no finzinho, no último fim de semana de gravação. É engraçado, eu já tinha material suficiente para um disco, 11 faixas já era bom, mas aí eu falei: tem mais uma, segura que eu tenho um samba novo, um samba que vai completar uma idéia que para mim é importante.
Folha - O disco tem uma cara, inicialmente, mais densa, que aponta para um sentido "sério". Mas a partir de De volta ao samba, entra em outro registro, há mudanças de tom, há brincadeira e humor, como em "Biscate", por exemplo.
Chico Buarque - "Biscate" é uma brincadeira com as palavras, é uma brincadeira com a harmonia. A harmonia do "Biscate" é inusitada, está quebrada. Aliás, eu acho que o próprio "Paratodos" tem uma certa leveza. Tem alguma coisa de épico, mas é uma música leve. Mas o humor está mesmo presente. A própria "Foto da Capa" tem humor.
Folha - Pensando na figura feminina, o que você acha que mudou desde o primeiro Chico para cá? Você é uma pessoa apaixonada?
Chico Buarque - Eu sou uma pessoa muito afetiva, uma pessoa que age por afeto. Eu sou o homem cordial. Eu sou um homem que age por impulso. Esse meu lado afetivo está talvez na música, que sofre esses arroubos afetivos. Eu faço uma distinção bastante clara: na literatura sou um cidadão sem afetos. O fato de estar solitário escrevendo um livro que vai ser apresentado em público e que vai ser lido individualmente, isso me despe um pouco desse sujeito atirado e algo ingênuo. Já a música me emociona, eu fico em lágrimas. Eu sou um bobo como músico. Mas tenho o outro lado, racional e muito crítico, muito seco, que é um lado que quase não cabe na música, que precisa de outro veículo.
Folha - Tem alguma coisa que você acha que não fez, uma canção, algum sonho?
Chico Buarque - O que eu gostaria realmente e que eu me sinto incapaz é na hora de cantar, o artista em cena, no palco. Me sinto preso, me sinto exposto, não me sinto livre para ousar. Quando eu vejo um show do Caetano, dessas cantoras todas, do Gil, o prazer deles de estar no palco! O que também me atraiu na bossa-nova foi a estética da timidez. Estar com o violão e mostrar aquela sua música - você é um compositor que canta. Se não fosse isso eu não teria virado cantor. Eu pude me apresentar no palco porque havia uma permissão e até um estilo, numa época, para esse tipo de artista, o compositor que canta com o seu violão, protegido. O movimento tropicalista quebrou isso e me deixou um pouco atordoado. Enquanto artista eu já era insuficiente para a performance intimista. Naquele momento era quase inaceitável. Eu tenho quase um pudor de estar ali cantando.
Folha - Além de jogar futebol (atualmente Chico joga três vezes por semana e é bom jogador), o que você mais gosta de fazer fora da música?
Chico Buarque - Tenho muita vontade de reler. Tem um livro que volta e meia eu leio sem compromisso, porque é um diário lindíssimo, do Ernest Junger. Agora estou lendo "A Caixa Preta", do Amos Oz. O último livro brasileiro que eu li é um livro escrito em portunhol, chama-se "Mar Paraguaio".
Folha - Qual seria seu cineasta predileto?
Chico Buarque - Fellini e Buñuel. Mas eu me sinto muito mais em casa com Bunuel, não é um juízo de valor, é uma questão de afinidade.
Folha - E qual a cantora que você tem mais afinidade?
Chico Buarque - Eu acho que a Gal, a Bethânia, a Nara. Eu sempre gostei mais da minha música cantada por outras pessoas. Não vou fazer aqui uma distinção entre elas, que eu não sou louco - até porque elas são muito diferentes. Acho que eu sei que música Gal cantaria melhor, que música seria mais adequada para Bethânia e Nara, que não está mais aí.
Folha - Existia o mito de que você bebia muito. Você diminuiu?
Chico Buarque - Não era mito não, eu bebia muito. Bebia todo dia e bebia coisas fortes. E fui parando, comecei a enjoar, não é nenhum mérito meu não, acho que meu organismo é que foi pedindo água. Então hoje eu só tomo vinho, cerveja, e nem todo dia.
Folha - Droga você nunca experimentou?
Chico Buarque - Já experimentei drogas também, experimentei e gostei. Mas parei com as drogas ilegais. Cocaína, nunca mais. Na verdade as drogas nunca foram um problema sério para mim, mas poderiam vir a ser, porque eu tenho uma certa propensão ao vício. Sou uma pessoa que cria hábitos, se eu fosse supersticioso seria impossível de tratar, tenho facilidade para criar manias e luto contra isso. A única droga que realmente me afeta hoje é o cigarro, sou um fumante compulsivo, então procuro me disciplinar. Isso poderia ter acontecido em relação ao álcool, ter virado um alcóolatra e talvez tenha chegado perto. Consegui, por algum motivo que não é tanto disciplina, poder beber socialmente, de vez em quando. Mas ainda assim, se eu entro numa temporada de shows, tenho que tomar vinho.
Folha - Você dança?
Chico Buarque - Não, sou meio desajeitado, sou desengonçado. Quando eu danço as pessoas acham graça...
Folha - E das manias do cotidiano?
Chico Buarque - Gosto de andar. Eu sou um andarilho, ando, ando e penso melhor andando. Daria uma entrevista mais brilhante se tivesse um outro andarilho ao meu lado com gravador.
Folha - A gente pode tentar da próxima vez.
Em Paratodos estou mais músico
O Chico Buarque que sobe ao palco do Canecão hoje à noite – vestido impecavelmente, do azul dos sapatos ao blazer, pelo figurinista Cao – está mais contido do que no último espetáculo, "Francisco", realizado há seis anos. Anteontem, no seu penúltimo ensaio, Chico falou sobre "Paratodos".
O show
"É mais um recital do que um show. O que importa são as canções, as letras. Nele, estou mais músico do que nos outros. Toco violão o tempo todo, participei mais dos arranjos. É o show que mais exerço esse lado de músico. É um show de clima tranqüilo, mas não é morto. Tem umas músicas animadinhas."
O Repertório
"Escolhi músicas que sinto prazer em tocar. São as 12 do novo álbum e outras 12 antigas, menos conhecidas do público. As novas exigem mais do público do que normalmente, porque eles têm que prestar mais atenção nas letras. As antigas são canções que fui redescobrindo."
Palco
"Toco o tempo todo no show, tenho que me preocupar com os acordes, que são muitos. E olha que não estou errando quase acorde nenhum (risos). Não dá para dançar como no outro show, até porque tenho que fazer algo diferente. Não sou um artista de palco, por isso não sou assíduo. Seis anos longe não é tanto tempo assim. Já fiquei 13 anos sem fazer show. Sou um compositor que esporadicamente faz shows."
Academia
"O Tom Jobim falou essa história de me levar para a Academia Brasileira de Letras de brincadeira. Ele próprio não é candidato de verdade. O candidato dele é o Antonio Callado. Mas mesmo assim eu respeito uma posição tomada por meu pai (o historiador Sérgio Buarque de Hollanda). Quando a ABL elegeu Getúlio, meu pai, Drummond e outros intelectuais assinaram um documento se recusando a pertencer à academia. Esse documento é hereditário."
Política
"Li nos jornais que Caetano e Gil defendem a candidatura do Jaime Lerner. Eu me reservo o direito de aguardar mais um pouco. Não tenho candidato ainda."
Campanha da Fome
"É claro que tem algo de assistencialista nela. É claro que as questões estruturais têm que ser atacadas. Desde 64, ouço falar em reforma agrária. Precisamos investir em educação. Mas enquanto isso, temos que fazer alguma coisa por quem morre de fome."
Semana Chico Buarque
Pra começar, pedimos ao Chico para falar sobre a música popular e por que é tão expressiva no Brasil?
Olha, eu, como estou dentro da música, nem me sinto muito à vontade de fazer uma comparação desse tipo.
Fora daqui, na Europa, nos Estados Unidos, a música brasileira, a música popular brasileira tem consumo. Ela goza de um conceito muito alto. Eu não poderia comparar com outras artes para não ficar indelicado. Mas se chegou até a um casamento feliz, como aliás, eu tenho impressão que só acontece nos Estados Unidos e em Cuba. O casamento, quer dizer, a mestiçagem que gera a música brasileira, que é semelhante à mestiçagem que gera o jazz e toda música caribenha. O casamento entre a música e a letra, a formação européia dos nossos letristas, isso vem de muito tempo. A formação européia dos nossos melodistas, mas basicamente o ritmo. Os ritmos brasileiros é que dão um cunho muito especial à música popular. Acontece, como eu disse, aqui como lá nos Estados Unidos, como no Caribe. Você não vê esse mesmo casamento, essa mesma harmonia em músicas onde há menos presença do negro. Nos países andinos, por exemplo, tem a música popular, mas, ao nível internacional, ela não tem o pique que tem a música brasileira.
Na música brasileira esse elemento negro é fundamental. E a forma como ele entra, como ele se casa com os outros elementos que compõem a música. Eu vejo por aí.
No Brasil, a música popular... se você quiser considerar a música como música pura, vai levar desvantagem em relação à música mais elaborada, à música de vanguarda, à música erudita, porque recolhe elementos dessa música e assimila esses elementos, e produz junto com a letra, que também não é uma poesia, produz uma obra de arte única.
Eu não sei se as pessoas, tanto os criadores como os críticos, têm consciência disso. É uma opinião minha, pessoal. Em relação ao meu trabalho e de outros compositores, sempre falam muito nisso: "Ah, precisa publicar as letras e tal." Eu resisti sempre a isto porque me parecia sempre que era mutilar o resultado final que é a procura desse casamento entre música e letra.
Esse casamento já está na tradição da música brasileira. Na música brasileira dos anos 30, 40, aquela que eu ouvia quando era garoto, nos anos 50 com Dorival Caymi, sem falar em Noel Rosa, Ari Barroso, isso já existia. Tanto assim que eu acho que o pai da minha geração é o Vinícius de Moraes, o poeta do nosso pai é o Vinícius, que a certa altura renunciou um pouco à poesia erudita e foi fazer música popular, e foi muito criticado por isso. Mas, eu acho que ele tinha essa visão, não estava renunciando a uma coisa maior em troca de uma coisa menor. Não, estava, simplesmente, se dedicando a uma outra tarefa, tarefa não é a palavra boa, mas a outra arte.
Chico fala agora de suas primeiras preferências musicais.
Engraçado, eu fui descobrir Dolores Duran, o samba-canção, essa coisa toda, não exatamente na época que isso fazia muito sucesso. Eu nem gostava tanto assim, não. Eu gostava mais que tudo da música americana.
E gostava da música brasileira... gostava de música de carnaval, gostava de ritmo. Era um garoto. Queria pular, queria dançar. Então, o samba-canção e muito bolero que tocava nos anos 50 não me dizia muito não. Eu fui recuperar isso um pouco mais tarde, porque... até harmonicamente têm coisas muito interessantes nessas músicas, nas canções dos anos 50. O próprio Tom Jobim, que eu não conhecia, fui conhecer o Tom a partir da bossa-nova. Mas a época dele pré bossa-nova também é muito interessante. Mas a mim não dizia grande coisa não. Eu adorava rock, adorava Elvis Presley.
Na música brasileira eu gostava, sobretudo, das músicas de carnaval, das marchinhas e dos sambas de carnaval. Porque naquela época tinha isso, as músicas de carnaval tocavam só na época do carnaval, depois o que se tocava era isso, samba-canção e bolero. Havia um contraste muito grande entre o que se executava em rádio entre dezembro e o carnaval. A partir daí, a quaresma era uma quaresma musical mesmo. Você só ouvia canções lentas.
A seguir Chico fala de seus compositores prediletos.
Noel Rosa, sem dúvida, Ismael, Wilson Batista, Geraldo Pereira. Em outra linha: Custódio Mesquita, Ari Barroso e outros que estou me esquecendo agora.
Conheço, por exemplo, muitos críticos que sempre te alinharam mais ao lado do Noel e nem sei se de tua parte ou da parte do próprio Ismael Silva muita gente te... você mesmo indicava o Ismael como uma das maiores influências. Tinha alguma?
Não, o que havia era uma (riso), uma tentativa até de dizer: olha também do Ismael, porque eu fiquei muito marcado como uma espécie de um novo Noel, até porque havia algumas coisas. Havia até citações. Eu citava Noel no samba A Rita. Eu fiz algumas canções à maneira de Noel. Claro que Noel me marcou muito.
Mas eu queria dizer: também tem o Ismael. Eu gosto tanto de Ismael quanto de Noel. Mas eu não posso negar que Noel, pra mim, representou uma influência mais forte até do que o Ismael. Mas eu queria fazer justiça: Ismael estava aí vivo e esquecido. Ismael eu conheci muito, era um grande personagem. Noel era uma lenda pra mim.
Conviver mesmo eu não diria. Porque a vida que eu levava, a chamada roda-viva, pra cima e pra baixo. Eu me encontrava com eles muito naqueles programas da TV Record que juntava essa gente. Eu convivi bastante com o Ciro Monteiro, com o Ismael. Mas principalmente com o Ciro Monteiro. Aí entram motivos extra-musicais. A gente ia junto pro Maracanã. Ele era flamenguista, eu era tricolor. Motivos gastronômicos também, porque tinha um feijão que a mulher dele fazia, a Lu, que era uma maravilha. Ele tinha isso de reunir muita gente na casa dele. Vinícius era muito amigo dele também. Com o Ciro eu convivi bastante. Os outros não. Eu cruzava muito com Ataulfo Alves, que era outra antiga admiração minha. Tenho músicas feitas a la Ataulfo, pelo menos uma claramente, que é Quem te viu, quem te vê. A gente se cruzava nos bastidores do Teatro Record.
Influências
Chico fala sobre sua relação com o poeta Vinícius de Moraes.
Eu tinha já um carinho pessoal por ele. Mas isso não interferiu tanto. Eu conheci Vinícius quando eu era criança. Mas eu passei a ser fã de Vinícius a partir da bossa-nova. Foi aí que eu me interessei... Eu não lia muita poesia. Acho que eu não conhecia o poeta Vinícius de Moraes. Eu conhecia o boêmio e compositor Vinícius de Moraes, amigo lá de casa, e a partir de Chega de saudade passei a conhecer. A bossa-nova foi que desencadeou a minha paixão pela música popular e a paixão da minha geração inteira. É um ponto comum de referência de todos nós. É João Gilberto, é Tom Jobim e é Vinícius. Virou uma página mesmo. Foi a partir daí que eu comecei a me interessar pelo violão e querer fazer música mesmo. Eu gostava muito de musica. Mas eu seria talvez um arquiteto que gostasse de música.
Conheci João acho que em Nova Yorque. Depois ele voltou pro Brasil e aí tive mais contato com ele. O João vive um pouco isolado e eu respeito esse isolamento dele. Ele gravou Retrato em branco e preto bem mais tarde. Não faz tanto tempo. Há menos de 10 anos. Acho que já faz dez anos que eu não vejo o João Gilberto.
Chico fala sobra a possível influência dos Beatles.
Era, mas não tanto. Eu conversei isso outro dia com o Djavan, que é pouco anos mais novo que eu, apesar daquela cara de garoto, não é tão mais novo assim. Os Beatles pra ele representaram o que a bossa-nova foi pra mim. Existe uma idade, 15, 16 anos, quando você está aberto pras novidades musicais. Quando apareceram os Beatles eu já estava fazendo minha música. É claro que eu gosto dos Beatles, mas não teve o mesmo impacto que teve pra mim a bossa-nova. Ela me pegou veia, no momento certo, na idade exata da definição até profissional minha. Foi João Gilberto, foi a bossa-nova. Os Beatles já me pegaram dentro do bonde. Eu já estava fazendo música.
Chico fala agora sobre a presença da música estrangeira no Brasil e do fértil período da bossa-nova.
Nos anos 50 eu ouvia, sobretudo, música estrangeira, e gostava de música estrangeira. Você não pode recriminar o jovem de hoje por gostar de rock. E não poderia fazer isso porque eu só gostava de rock até o aparecimento da bossa-nova. Agora, também não foi de graça que apareceu a bossa-nova. Não por coincidência, bossa-nova apareceu num momento em que estavam germinando o Cinema Novo, os novos movimentos de teatro no Brasil, a arquitetura de Oscar Niemeyer, Brasília. Foi numa época em que havia uma euforia, um sentimento, não vou dizer ufanista porque essa palavra foi descaracterizada mais tarde, mas havia um sentimento nacional de orgulho bastante forte. Você era brasileiro e gostava de ser brasileiro, e queria construir uma nação. Isso foi abafado mais tarde, por motivos que todo mundo conhece. Vai ser difícil, hoje, forçar, através de um decreto-lei, de uma proteção de mercado, criar o mesmo espírito que resultou no aparecimento da bossa-nova e dos outros movimentos de que eu falei em todos os setores da cultura brasileira.
Chico fala agora da dificuldade do trabalho após 64 e de suas esperanças.
A partir de 64 a cultura brasileira esteve cerceada. Houve dificuldades em dar continuidade aos projetos. Os movimentos eram encarados com suspeitas. Acho que está na hora de aparecer gente nova. Inclusive porque tem gente com muito talento, às vezes desperdiçado, querendo fazer coisas. Eu tenho esperança, é claro, não sou pessimista. Tenho quase a certeza que mais cedo ou mais tarde essa página toda da bossa-nova vai ser uma página viradíssima. A bossa-nova existe até hoje. Volta e meia ela renasce porque ainda é uma música moderna. Foi criada em cinqüenta e poucos. Eu fico torcendo pra bossa-nova ser uma coisa do passado mesmo.
Antecipamos a solução de um problema que era esdrúxulo: a ausência de relações diplomáticas entre Brasil e Cuba. São dois países muito ligados atavicamente, culturalmente. Os mesmos escravos que foram dar na Bahia foram dar em Havana. Isso gera uma miscigenação muito parecida. E gera uma simpatia imediata entre os dois povos. Havia motivos políticos até pra eu me manifestar por isso, porque havia uma perseguição a tudo que dissesse respeito a Cuba. Mas a minha aproximação foi mais até com os artistas do que outra coisa. Havia a necessidade de se conhecer a cultura cubana, mesmo porque eles também tinham muito interesse pela cultura brasileira e havia essa barreira intransponível, ou quase. Eles conheciam tudo via Paris. Conheciam os discos de música brasileira que eram editados em Paris. Essas coletâneas misturando fulano e fulano. Chegava lá ele sabiam mais ou menos quem era quem, não sabiam exatamente.
Era uma barreira danada. E vice-versa. As relações foram cortadas em 64 e a visão que se tinha da música cubana aqui remontava àquela época. Era o cha-cha-cha. Não se conhecia nada do que foi feito depois. Eu acho que ajudei a trazer essa música pra cá. Não só a música. Depois houve um intercâmbio muito rico em termos de teatro, de cinema. Hoje em dia a cultura cubana é muito conhecida aqui.
Perguntamos ao Chico sobre as canções feitas de encomenda para alguns intérpretes.
É você tem que partir de alguma coisa. É um velho tema: o papel em branco..." O que que eu vou escrever?
Pra que que eu vou escrever? Se você tem pelo menos "pra quem que eu vou escrever", isso já ajuda. "Vou compor uma música pra GAL." É estimulante. Sou apaixonado por ela. É uma cantora maravilhosa. Aliás, tenho que fazer uma música pra ela nesses dias. Você acabou de me lembrar que eu tenho que terminar a música. Pensando na maneira dela cantar, isso sempre ajuda, estimula. Como é que eu vejo a Gal? Eu sinto a Gal tão claramente aqui, na minha cabeça, que eu sei que tem uma música com cara de Gal. Mas não sei te traduzir.
A Nara mais de uma vez até me ajudou um pouco mais. A Nara me encomendava temas. Pelo menos uma vez ela encomendou. Por exemplo: Com açúcar, com afeto foi uma canção que eu fiz pra ela sob encomenda. Ela pediu: "Eu quero uma canção que fala que a mulher sofre, a mulher espera o marido etc. e tal." Eu fiz pra Nara e pro tema exato que ela pediu. Uma canção sob encomenda mesmo. Mas, normalmente, não acontece isso não. As cantoras deixam a gente à vontade. O que ajuda e não ajuda.
A Bethânia é a mesma coisa que a Gal. Quer dizer, inteiramente diferente, mas eu também sei o que que é uma canção pra Bethânia. A Bethânia tem uma coisa teatral. Eu fiz muitas músicas para teatro, as famosas canções no feminino que eu fazia pra determinados personagens. Mas o personagem, às vezes, pra mim, não era tão claro quanto quem iria cantar. Então, às vezes, eu pensava no ator ou na atriz que iria cantar. Mas, às vezes, a atriz que iria cantar, iria cantar só teatro, porque não era uma cantora profissional. Então, misturava, na minha cabeça, a encomenda do personagem, a atriz e a cantora que eu gostaria que gravasse aquela música. Então saíram canções como Folhetim, que tinha a cara de Gal, que servia pro personagem, mas que eu já compus pensando que a Gal iria cantar lindamente; Olhos nos olhos, que não foi pra teatro nem encomenda pra ela, mas quando eu terminei eu falei: "Essa música tem a cara da Maria Bethânia."
Pedimos, a seguir, para o Chico falar sobre a versão de Cauby para Bastidores.
Bastidores eu fiz pra minha irmã Cristina.
Mas ele encarnou.
É. Ele encarnou. Eu lembro que eu estava pra viajar e um jornalista amigo meu, Tarso de Castro, me pediu uma música para um disco do Cauby que ele estava produzindo. Eu disse: "Não tenho nenhuma música nova. O que eu tenho é isso aqui, que a Cristina gravou. Se ele quiser gravar..." Mas o disco dele atropelou, acabou saindo antes e ele encarnou, como você disse. Ficou sendo a música do Cauby.
Quando chegava na hora do disco, muita vezes eu não tinha o material pra completar um disco. E então eu era obrigado a pegar de volta canções que eu tinha dado. Por exemplo, Olhos nos olhos eu gravei num disco meu; O meu guri eu gravei, regravei na verdade nos meus discos. Isso não responde a um projeto. Tenho a música, eu dou. Fulano está gravando, eu não estou gravando, eu dou pro cantor gravar. Eu só seguro pra mim, quando estou, realmente, em cima da gravação. Durante os dois três meses em que eu estou gravando um disco eu tenho que ser um pouco egoísta. Aquela músicas que eu compus ali, são pra mim, eu vou gravar no meu disco, são pra mim, e eu não dou pra ninguém. Senão meu disco só sai com regravação, com repeteco. E eu tenho a impressão que as pessoas compram o meu disco pensando no compositor. Eu ainda sou considerado um compositor que canta as suas músicas. E é natural que as pessoas esperem encontrar músicas inéditas.
Eu não posso dizer que eu me apresente em público com naturalidade. Tenho muito a sensação de super-exposição. Eu tenho a impressão, a impressão não, eu tenho certeza de que os grandes intérpretes usam uma espécie de uma máscara. Eles são intérpretes. Na hora que ele estão no palco eles são personagens. Eu cantei com Bethânia durante cinco meses no Canecão. É impressionante a transformação da Bethânia quando ela entrava em cena. Eu estava com ela até cinco minutos antes no camarim e era uma pessoa. Daí a pouco ela encarnava o personagem e entrava. E eu não. Eu levava pro palco os meus problemas todos. Era uma extensão de quem estava no camarim pouco antes.
A seguir, Chico comenta a nova mulher dos anos 70 e sua produção para teatro.
Nos anos 70 a mulher deu um salto incrível em direção a sua própria liberdade. Quando a Nara me pediu uma canção em 66, era da mulher submissa, não é à toa. Mais tarde a mulher começou a sair e vieram os movimentos feministas etc. Mas eu acho que essas canções são mais conseqüência do meu trabalho pra teatro, onde por algum motivo as mulheres sempre foram muito fortes. Desde a Joana que a Bibi Ferreira fazia no Gota d´água, até as personagens de Calabar. Calabar é a história de Calabar contada, na verdade, pela sua mulher, sua viúva, que é a grande personagem da peça. Na Ópera do malandro a Teresinha é a personagem que dá a volta na história. As mulheres são muito fortes nesse meu trabalho pra teatro. E eu compus para essas personagens femininas. Então era natural que as canções refletissem essa força da mulher, da mulher independente.
Caso Calabar 1973.
O episódio foi bem significativo do período que a gente estava vivendo. Aconteceu o seguinte: havia uma censura prévia (parece uma coisa tão distante: uma censura prévia). Você mandava o texto pra ser examinado pela censura federal. Esse texto era aprovado ou reprovado, ou aprovado com cortes. Ele foi aprovado com cortes. Alguns palavrões aqui, uma coisa ali, que a gente não podia levar ao palco. O resto estava aprovado. Quer dizer: sinal verde para montagem da peça. Então, nos reunimos, o Ruy Guerra, que é meu parceiro na peça e eu, mais o Fernando Torres, produzimos a peça. O espetáculo estava pronto. A estréia marcada. Aí tinha a segunda censura, a censura ao espetáculo, que é pra conferir se o que está em cena corresponde ao que foi aprovado no papel. Ou seja, ver se estão respeitando os cortes, se os palavrões foram realmente cortados, se não há um nu proibido, enfim, essas coisas que não eram possíveis na época.
A estréia é marcada. O ensaio geral pra censura é marcado e a censura não foi assistir ao espetáculo. Não foi, adiou, adiou...não foi, não foi, não foi... e aconteceu o quê? Chegou uma hora em que não havia como manter aquela produção em pé, então, falimos. Eles não proibiram. Eles obrigaram os produtores a jogar a toalha. A gente recorreu e meses mais tarde ela foi proibida pelo general Bandeira, que era o chefe do serviço de censura. Ele era superior ao chefe que tinha aprovado anteriormente. A peça foi proibida dessa forma esdrúxula, e foi proibida a divulgação da proibição na imprensa. E a palavra Calabar foi proibida na imprensa.
O resultado é que a gente não podia dizer que a peça havia sido proibida, ou falida. O disco que se chamava Chico canta Calabar teve o nome Calabar proibido. Então retiraram as capas que estavam impressas e que tinham um muro pixado com Calabar, e publicaram capas brancas mantendo Chico canta. A capa era a mesma do livro, mas com álbum que abria e tinha fotos dentro. Uma capa toda incrementada, muito bonita. E foi isso: foi uma proibição branca.
Como eram feitas as proibições da censura?
Havia proibição de músicas integralmente, e havia proibição de palavras dentro do texto. Ou você era obrigado a mudar essas palavras ou simplesmente não podia pronunciá-las. Você podia optar. Em algumas músicas eu desisti. Outras eu troquei palavras. Não só em Calabar como em outras músicas desse período. Por exemplo, em Partido alto, onde estava brasileiro, eu botei batuqueiro, onde estava titica eu botei coisica. Ou, então você cortava simplesmente a palavra. Ou como no disco ao vivo com Caetano na Bahia, o recurso foi aumentar os aplausos na hora das palavras proibidas. Atrás da porta tinha: "me agarrei nos seus cabelos, nos teus pêlos". Pêlos foram proibidos. Já a Elis quando gravou eu mudei para no teu peito. Já, aí, eu não podia mudar porque eu tinha cantado. Por um descuido eu cantei a letra correta no dia do show. Então o quê que a gente fez no disco? Aumentou o volume dos aplausos. Na hora dos teus pêlos sobe um aplauso assim, ah!!!!
Como era o esquema de funcionamento da censura para liberar as músicas?
A censura prévia que valia pra teatro valia para letras de músicas também. Antes de gravar qualquer música tinha que mandar a letra pra censura federal. E espera até a volta dessa letra, com carimbo e assinatura do chefe de censura. O que, aliás, provocava problemas graves porque gerava uma burocracia muito grandes, atrasos... E às vezes não era nem implicância. As letras se perdiam no meio do caminho. Os produtores ficavam desesperados. Era um atraso de vida danado.
É evidente que, uma vez proibido, ficava marcado. Eu e outros autores que tinhamos uma ou outra música proibida, ficávamos numa espécie de index da censura. Então a música que chegava com o meu nome chamava a atenção. E eu comecei a sofrer uns cortes bastante arbitrários. Tinha uma música que eu fiz pro Mário Reis e que não era nada, era brincadeira, e eles proibiram alegando que era uma ofensa à mulher brasileira. Chamava-se Bolsa de amores. Era uma brincadeira que eu fiz com o Mário Reis porque ele gostava muito jogar na bolsa, tinha mania dessas coisas... Era a época em que só se falava em bolsa...
Tem dupla leitura. Caberia no Naji Nahas hoje, pela letra que eu li...
Poderia até caber no Naji Nahas hoje, mas eu não estava prevendo isso não.
É que naquela época tudo tinha outro sentido...
As pessoas atribuíam às vezes outros sentidos que eu mesmo não tinha atribuído. Era uma brincadeira pro Mários Reis, sem nenhuma implicação política, mesmo porque o Mário era uma pessoa absolutamente distanciada da política. Ele ficou tão revoltado com esse caso... Ele morava no Copacabana Palace, e vivia com os grã-finos. Ele ia pra esses lugares, ele cantava a música nos cabeleireiros, pra madames...
Enfim, aí eu senti que a barra estava pesada e aí falei: vamos experimentar com outro nome que pode ser que melhore. E realmente melhorou. As três primeiras músicas que eu mandei, onde eu assinava como Julinho da Adelaide, passaram. Se fossem com o meu nome, provavelmente, não passariam. Foi um artifício que funcionou durante pouco tempo. Depois ficou meio marcado, porque só se gravava esse tal de Julinho da Adelaide, e começou a correr a suspeita de que o Julinho da Adelaide seria um pseudônimo, até que o Jornal do Brasil publicou uma matéria falando sobre a censura e divulgou a verdade: que o Julinho da Adelaide era realmente um pseudônimo.
O quê você mais gosta da obra do Caetano?
Eu gosto de tudo que o Caetano faz. Não tem o que eu gosto mais. Inclusive, porque ele continua fazendo e me surpreendo. Tenho uma relação pessoal com ele muito boa. Sempre tive.
O que que você acha que tem de mais diferente dele?
Eu sou inteiramente diferente dele. Por isso mesmo que a gente se entende bem. Essa história desse Fla-Flu que se criou... Eu até comentei com ele esses dias... é uma coisa artificial. Vai ser difícil me jogar contra ele. Apesar dos esforços que são feitos nesse sentido continuamente. Mas eu acho bobagem esperar que eu faça as músicas do Caetano ou que o Caetano faça as minhas músicas. Acho bom que ele faça as dele e que eu faça as minhas, que têm até uma origem comum, como eu disse no começo. A nossa formação é comum: a bossa-nova. Mas a cabeça dele é.... da minha. Eu me entendo com ele e acho que a minha música se entende com a dele também.
O que você acha que mais aproxima vocês, além da relação pessoal?
Eu não diria que é a música não. Diria o tempo. A gente tem uma história comum. Nós começamos juntos. E na relação pessoal é difícil você separar isso. Nós temos muita história vivida juntos. Essa geração toda, com Caetano, com Gil, com Milton, com Edu. Tem tanta coisa em comum que quando a gente se encontra não tem muito o que falar não.
Em 1979, num ensaio intitulado O minuto e o milênio, registrado no recém lançado songbook de Chico pela Companhia das letras, o crítico e músico José Miguel Wisnick dizia: "As correspondências, afinidades e diferenças entre Chico e Caetano precisam ser acompanhadas de perto. Não é a toa que, freqüentemente, um é jogado contra o outro. Sabe-se que são, realmente, duas forças. No entanto, temos a mania maldita de só enfrentar a complexidade da cultura brasileira na base da exclusão: de Emilinha ou Marlene, a Mário de Andrade ou Oswald de Andrade, e daí, a Chico Buarque ou Caetano Veloso."
Autocrítica
Para começar este quinto programa da semana Chico Buarque, pedimos ao Chico para falar sobre seu início de carreira.
Esses primeiros discos que eu gravava,(vou confessar uma coisa) eu gravava entre um show e outro. Eu fazia muito show. Durante onze anos não fiz outra coisa senão cantar e às vezes em condições precárias pelo Brasil a fora. Hoje em dia você tem todo um aparato que te permite mil comodidades. Naquele tempo era difícil. Às vezes eu chegava num lugar, sozinho, com o violão e um microfone só, e auto-falantes daqueles do tempo do onça. Hoje em dia é mais fácil. Eu fazia show pelo Brasil inteiro e entrava no estúdio os arranjos já estavam feitos, já estavam gravados, eu chegava lá, botava minha voz em cima. Hoje quando vou gravar um disco me dedico só a gravar o disco. Então eu estou lá trabalhando junto com arranjador, fazendo o que eu quero. Hoje eu assino inteiramente. Naquele tempo não. E ia conhecer a capa dum disco (aliás, umas capas horrorosas) quando já estavam impressas, prontas. Não posso nem culpar tanto a gravadora, porque era um pouco displicência minha também. Porque eu estava viajando, porque eu estava fazendo show pra cima e pra baixo e não era muito cuidadoso com relação aos discos. Esse ano andei trabalhando em cima desse songbook, o que me dá uma perspectiva do que foi meu trabalho esse tempo todo. Eu comecei a perceber coisas que na época eu não percebi. Eu estava fazendo as coisas sem perceber o que estava fazendo. Eu tenho a impressão que eu gravava esses discos sem a menor idéia que vinte anos depois eu iria ter que falar sobre eles. Eram produtos inteiramente descartáveis.
Chico aceita nossa proposta e analisa sua carreira através de seus próprios discos.
Eu tenho três discos que são praticamente iguais. São discos que reúnem as músicas que eu fiz ainda quase não profissionalmente. Eu era um estudante de arquitetura que fazia música e tomava cachaça. No meu terceiro disco tem músicas que eu já tinha composto na época do meu primeiro disco. Um disco é continuação do outro. São de uma fase (hoje eu falo de carreira), mas na época eu não tinha a menor idéia de que estava criando pra mim uma profissão, uma carreira. Era uma brincadeira. Uma extensão da minha vida de estudante.
Chico continua avaliando sua obra.
Já o quarto disco é um disco complicado, porque eu gravei na Itália, eu morava na Itália. É o disco mais irregular que eu tenho. Eu gravei esse disco, que chama-se Chico Buarque de Hollanda nº 4, quando eu morava na Itália. Eu mandei as fitas com as canções pro Brasil. Aqui no Brasil foram gravados os arranjos todos, as bases. O produtor, que se chamava Manuel Berimbau, voltou pra Itália com essas bases e eu coloquei a voz em cima. Eu não podia voltar pro Brasil, ou não devia voltar pro Brasil. Compus as músicas também a toque de caixa porque eu tinha que gravar, eu estava morando na Itália e vivendo com uma certa dificuldade. Esse disco é um disco de transição. É o disco da minha maturidade, não como compositor, mas como ser humano. Eu estava morando na Itália, com problemas pra voltar pro Brasil, com uma filha pequena... Virei um homem. Eu era moleque. Virei um homem e não sabia o que dizer. Então, as músicas estavam com um pé ali e outro aqui. Um pé no Brasil e outro na Itália. E eu sem saber exatamente o que ia fazer da minha vida: Ah! Bom...vou ser compositor? Vou viver disso... vou ter que encarar isso a sério... vou ter que encarar a vida a sério. Uma série de circunstâncias me levaram a isso. A estar morando fora do Brasil e estar casado e com uma filha, e a ter que pensar pra valer na vida. Eu tive dificuldade. São as músicas mais arrancadas a fórceps que eu tenho. Essa fitinha que eu falei que mandei pra cá, o Manuel Barenbein, que eu chamava de Manuel Berimbau, ficou lá, eu me lembro, durante uns quinze dias em Roma, sentado diante de mim a dois metros de distância, e eu terminando a música e dizendo: espera aí Manuel, estou terminando aqui essa música... Tem músicas que eu terminei nas coxas porque eu tinha que gravar esse disco. Tinha obrigação profissional de gravar esse disco senão... Eu tinha assinado contrato com a gravadora. Esse contrato profissional foi que me permitiu através de um adiantamento continuar vivendo na Itália, porque eu não tinha condições financeiras de me sustentar na Itália. Então eu tinha que cumprir esse contrato. Tinha que gravar as músicas pra pagar o dinheiro que eu tinha pedido emprestado. A história é essa. É um disco feito por necessidade. Os outros três discos anteriores são desnecessários (ri). Eu precisei passar por isso pra chegar ao disco seguinte, que é Construção, que já é um disco maduro como compositor. Aqui é um disco em que eu estou maduro como homem, como ser humano. Pera aí. Sou gente grande. Tenho uma filha pra criar. Acabou a brincadeira. Mas eu não sabia ainda como exprimir essa perplexidade.
Tua idéia seria os três primeiros discos, depois o Chico 4, gravado na Itália, e a partir de Contrução você entrou no teu padrão.
Eu não sei se daqui a vinte anos, quando eu olhar pra trás, eu não vou ter outra visão do que eu estou fazendo hoje, do que eu fiz há pouco tempo atrás. A gente não tem essa perspectiva. Eu fui obrigado a fazer essa revisão e entender o que se passava comigo há vinte e cinco anos, que foi quando eu comecei, há vintes anos, que foi quando eu gravei esse disco na Itália. Consegui entender isso agora.
Perguntei, a seguir, sobre um possível alívio de produção, a partir do disco branco, com ilustração de Elifas Andreatto. Como era um momento de conflito com a gravadora, ele discordou.
Parecia que aquele disco branco marcava já um Chico mais sereno...
Já vejo diferente. Vejo um disco bastante angustiado. Sem dúvida, isso que você está dizendo, agora, é outra história. Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde Construção até Meus caros amigos, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto... eu nem acho que eu faça música de protesto... mas existem músicas aqui que se referem imediatamente à realidade que eu estava vivendo, à realidade política do país. Até o disco da samambaia, que já é o disco que respira, o disco onde as músicas censuradas aparecem de novo. Não havia mais a luta contra a censura. Enfim, a luta contra a censura, pela liberdade de expressão, está muito presente nesses cinco discos dos anos 70. São discos com a cara dos anos 70. Construção, Quando o Carnaval Chegar, Caetano e Chico ao vivo, Calabar, que nem se chamou Calabar, ficou sendo só Chico Canta, Sinal fechado, onde eu canto só músicas de outros compositores, e Meus caros amigos. Disco por disco, você vai ver isso. Fica bastante claro que a partir de 78 minha música está respirando melhor.
Processo de criação.
Não existe um processo. Se houvesse me facilitava muito a vida. Às vezes eu tenho vontade de fazer, tenho a música encomendada, ou mesmo pra eu fazer um disco, e a coisa não aparece com tanta facilidade. A gente vai acabar chegando na história da encomenda. De repente, eu consigo trabalhar mais sob pressão. De onde vem eu não sei te dizer. Normalmente elas vêm em série. Uma puxa a outra. Há períodos em que não acontece nada. Posso passar 4, 5, 6 meses sem compor uma única canção. Tentando e não conseguindo. Já desistindo de tentar. Já pensando que não dá mais pé. Pensando que tem que partir pra outra. Quando eu comecei a gravar tinha na gaveta 40 músicas. Gravei meu primeiro disco, gravei o segundo e ainda gravei o terceiro com resto de músicas que estavam na gaveta. Há aquele entusiasmo juvenil, quando não se tem nenhuma autocrítica. Vai dizendo qualquer coisa. Mais adiante começam as dificuldades porque você não quer se repetir. Os caminhos começam a ficar mais estreitos. Você sabe exatamente o que não quer fazer. O que você quer fazer, às vezes, a gente perde de vista.
Quando eu aceito uma encomenda, assim como quando eu assino contrato pra gravar um disco, eu assino com a consciência de que estou blefando, que estou assinado um cheque sem fundo, porque eu não sei de onde é que eu vou tirar aquilo. Isso mais adiante vai me criar problemas. "Por que que fui aceitar tal encomenda? Por que que eu fui aceitar fazer esse disco? Por quê que eu fui aceitar escrever pra essa peça?" Mas tem funcionado. É claro que isso gera uma angústia muito grande. Uma insegurança. Você sofre.
Perguntamos ao Chico se essa paúra da encomenda, no fundo não é proposital. Se isso não torna a coisa mais quente.
Realmente se você me pedir uma música pro seu programa de rádio do ano que vem eu vou dizer: "OK. Pode deixar." Quando chegar uma semana antes eu vou lembrar: "Ih! Eu tenho que terminar essa música." Você perguntou pelo processo de criação, pra mim é um mistério. Eu não sei porque que existe isso. Eu não gostaria de ficar me criando essas angústias. Trabalhar em cima da hora não é nem saudável, porque quando você vai trabalhar vira a noite, se desgasta. Se eu pudesse ter uma disciplina de trabalho, uma organização de vida que me permitisse fazer as músicas uma por mês, direitinho, guardar ali no escaninho e amanhã apresentar, entregar sempre no prazo, seria formidável, acho. Mas não é assim. Não sei trabalhar assim.
E quando as composições não são sozinhas, são composições em parceria. Eu vi que na estante da sua casa você tem fitinhas com músicas. São músicas tuas ou de outros compositores?
Eu guardo músicas minhas que ficaram incompletas e que eu posso mais tarde retomar, como já fiz. Agora, mais do que tudo o que eu tenho lá é acervo imenso de outros compositores. Quando eu comecei a fazer letras pra outros autores... no começo eu não fazia. Depois comecei a fazer, pro Tom, uma coisa ou outra. Depois comecei a incrementar esse tipo de trabalho que é um trabalho bastante diferente do trabalho de música e letras. É outra coisa. Outro departamento. Talvez até por uma certa carência de letristas, porque a gente tem muito mais músicos do que letristas, e um pouco talvez pra suprir a falta de Vinicius. Eu herdei vários parceiros do Vinicius. O próprio Tom, Francis Hime, Edu, tinham o Vinicius como seu principal letrista... Toquinho... Então eu fiquei sendo o letrista dessa gente e de outros. Eu comecei a gostar. Eu gosto de fazer letras. Eu recebo muita encomenda. Não é tudo que eu consigo fazer. Também não é fazer porque gosta ou não gosta. Aí entra outro mistério. Você não consegue às vezes encaixar uma letra. É difícil. Tudo é difícil.
Chico fala agora sobre seu trabalho como letrista.
Você tem que entrar na cabeça do compositor. Tentar adivinhar. Se você fosse ele, o que você estaria dizendo com aquela música. Às vezes você adora uma música... eu tenho músicas lindíssimas do próprio Tom, do Piazzola, do Baden Powel, que eu não consegui fazer letra. Eu faço questão de respeitar cada nota do meu parceiro. Faço exatamente como ele quer. O fato de eu fazer música ajuda, evidentemente, porque eu fico conhecendo melhor o som das palavras, a musicalidade das palavras. Se não soubesse música eu não saberia fazer letras pra música. Mas eu respeito cada nota musical que o parceiro me manda.
O tema agora são os parceiros do Chico. Adivinhe quem é o primeiro.
O Tom é o que mais interfere. O Tom, às vezes, entrega a música, já com uma idéia do que ele quer como letra. Então, às vezes, isso cria dificuldades. Agora mesmo tem uma, que se chama Bate-boca. Ele já me entregou a música com a letra quase toda pronta. Eu falo: "Tom, essa letra você mesmo vai terminar." Mas ele quer que eu mexa ali, pra ele remexer, por sua vez. O Tom é um caso muito especial porque ele é, além de tudo, um grande letrista. Eu digo pra ele: "Tom, você é o seu melhor letrista." E ainda tem mais um agravante: eu não consegui me libertar do culto ao Tom, que é muito forte desde Chega de saudades. Eu tenho intimidade com o Tom de sentar com ele lá na Plataforma, onde ele está almoçando sempre, e conversar com ele como um amigo. Mas quando chega a coisa profissional eu fico um pouco intimidado, além de ele não me ajudar (risos), ele me intimida. Ele não me ajuda por isso, porque eu fico intimidado. "Poxa!! Fazer uma música pra Tom!!"
Chico fala agora sobre Francis Hime.
Acho que o Francis nunca escreveu uma letra. Aí é o contrário do Tom. Ele não me dá nem sugestão. Nem título nem nada. Deixa comigo e está lá... em aberto.
Chico continua falando sobre seus parceiros musicais (Milton).
Cada música tem uma história. Cada parceiro tem uma história. Quando faço eu música pro Milton, eu quero fazer com a cara do Milton. As músicas que eu fiz pro Miltom, foram pro Milton cantar. Procurei fazer uma letra que eu achasse com cara de Milton Nascimento cantar.
SIVUCA
Cada música tem uma história. Eu tenho uma parceria com o Sivuca que é engraçada. Ele fez a música, que ficou se chamando João e Maria. Ele mandou uma fita com uma música que ele compôs em 1944, por aí. Eu falei: "Mas isso foi quando eu nasci." A música tinha a minha idade. Quando eu fui fazer, a letra me remeteu obrigatoriamente pra um tema infantil. A letra saiu com cara de música infantil porque, simplesmente, na fitinha, ele dizia: "Fiz essa música em 47." Aí pensei: "Mas eu criança...". e me levou pra aquilo. Cada parceria é uma história. Cada parceiro é uma história.
Trabalho de dança e de teatro com Edu Lobo.
O Edu é diferente porque quase todas as músicas que eu fiz com ele, senão todas, foram compostas pra projetos. Pra peças de teatros e dois balés, O grande circo místico e Dança da meia-lua, do Teatro Guaíra. Então, tanto ele quando faz a música e me manda, como eu quando faço a letra, nós temos um objetivo: fazer a música pra um determinado tema, personagem. Não é em aberto como é com Francis. O que apareceu desses trabalhos, em disco, é a parte das canções. E tem todo um trabalho dele que não foi gravado porque há pouco interesse por música instrumental no Brasil hoje, mas é um trabalho muito bonito. O desenvolvimento dessas canções instrumentais é uma coisa preciosa. Ele tinha idéia de lançar em disco, mas estava difícil. Não há muito interesse por música instrumental.
Trilhas para filmes.
No caso do Cacá, Joana Francesa, ele me mostrou o roteiro. Eu li e gostei muito. E eu tinha que compor a música antes dele filmar porque a Jeanne Moreau ia cantar a canção-tema no filme. E em Quando o carnaval chegar foi a mesma coisa. Mas, normalmente, essas músicas entram quando o filme já está pronto. Eu vou compor em cima das imagens que eu assisto em banda dupla ou na moviola. É o caso do próprio Cacá, em Bye, bye, Brasil; do Bruno bsarreto, em Dona Flor e seus dois maridos, Miguelzinho Farias em República dos assassinos. Normalmente eu faço em cima das imagens.
Como é que é a tua vida hoje? Você continua tendo tempo pra ouvir?
Tenho. Agora eu estou saindo do estúdio. Praticamente saí há um mês. Fiquei durante quatro meses sem ouvir nada. Mesmo porque você tem medo até da interferência de fora. Então não vai ao cinema, não ouve música, não vai ao teatro, não faz nada disso. Agora eu vou entrar num período de alimentação. Aí vou ouvir coisa que eu deixei de ouvir ou ouvi com menos cuidado na época do lançamento. Vou ouvir isso tudo. Faço questão de ouvir. Faço questão de me informar.
Hoje, seu tempo de lazer ou profissional é um tempo mais de leitura?
Depende da época. Em período de eleição eu leio os jornais de cabo a rabo. Leio tudo. Leio todos os jornais. Vou à banca comprar jornais de outras cidades, de outros Estados. Tem épocas que eu leio desbragadamente, um livro atrás do outro. Depois fico um tempo sem ler. Mas geralmente no período em que não estou criando.
Perguntamos a seguir ao Chico se a celebridade o incomoda.
Não. Não me incomoda. Eu não assumo ares de celebridade nem ando por aí vestido de celebridade. Ando por aí normalmente pela rua. Ando um pouco depressa pra não ter que ser interrompido. Mas convivo naturalmente com isso.
Mas quando você viaja pra fora você se sente mais livre?
Eu confesso que às vezes eu gosto de dar um pulinho... Vou a Paris. Gosto muito de andar pela ruas e não ser reconhecido, ninguém perguntar nada. Às vezes preciso desse descanso. Também de ser tratado normalmente, como um ser humano comum. Aqui sempre tem aquela coisa....te fazem muita festa. Faz falta você dar um pulo aí fora e às vezes ser maltratado por aquele motorista de táxi ou aquele cara do café que joga aquela xícara de qualquer jeito....Você sente o maior prazer. "Opa!!! Sou anônimo."
Chico segue falando sobre sua rotina de vida.
Eu gosto muito de andar. Eu sou um andarilho contumaz. No Rio, apesar da ladeiras, eu ando bastante. Mas me param muito na rua e oferecem carona, pensando que eu estou com o carro quebrado. Ninguém anda nessa cidade! "Olha o Chico!!! O que está fazendo aí?" "Eu tô andando." As pessoas ficam com pena de mim subindo a ladeira e tal... Eu ando, se puder, duas, três horas seguidas. Adoro cidades. Adoro entrar num buraco e me perder num bairro. Isso aqui fica um pouco difícil.
Lá fora você faz mais isso?
Faço sem parar. Só gasto sapato. Aqui eu faço também. Eu procuro não me incomodar. Como eu disse, não saio por aí com ares de celebridade.
A seguir, Chico fala sobre morar no exterior.
Com a Itália, mais especificamente com Roma, eu tenho mais intimidade. Eu morei lá dois anos quando era criança e morei um ano e meio agora adulto. É uma cidade que eu domino perfeitamente. Conheço meus cantos. Minhas querências. Gosto de Paris também. Mas pra morar fora, nunca!
Aí perguntamos ao Chico qual é o país dos seus sonhos.
Eu sonho um Brasil onde todo mundo tenha satisfeitas as suas necessidades básicas. Isso me incomoda profundamente. A miséria nas ruas me incomoda profundamente. A falta de oportunidade de trabalhar, de estudar, de ter acesso à saúde. É um país incompleto enquanto não resolver isso. Enquanto não resolver a questão básica. Isso me incomoda porque é um absurdo um país como o Brasil estar no estágio que está. Também acho, e isso não é novidade, que a solução para o Brasil tem que ser uma solução brasileira. A gente não vai importar modelo nenhum. Quando eu falava de Cuba, e continuo falando, é um país tropical que resolveu seus problemas básicos. Então, a partir daí tem muita coisa pra ser discutida. Mas em primeiro lugar, todo mundo tem que er acesso à educação, à saúde, à moradia, transporte, enfim, viver dignamente. Eu estou falando de Cuba porque é um exemplo latino-americano. A Europa tem outra história. E a história do Brasil é a nossa história. A gente vai ter que resolver isso à nossa maneira. Não estou querendo importar nem o modelo social-democrata da Europa, nem o modelo socialista cubano. Eu não sou político, não sou candidato a nada, mas sonho com isso.
Sobre o futuro que queremos. Ele descarta a existência de modelos ideais.
O que me assusta é que o Brasil não tem nada em termos satisfação de necessidades básicas... não chega aos pés nem da Europa Ocidental, nem da Oriental. Quando ficam falando da ditadura, da falta de liberdade lá fora, eles colocam isso como empecilho pra luta pela justiça social no Brasil, isso é que me deixa um pouco irritado. Vamos resolver os problemas básicos daqui! Assustar com essa história do comunismo não cola mais. Muito menos agora. Vai-se caminhar pro socialismo, se for o caso, tendo em vista o socialismo democrático, que pra mim é o sistema ideal. Durante a época da ditadura se falava sempre no comunismo como sendo um monstro que come criancinhas, e se falava isso como justificativa para não se lutar por nada. A greve era sempre considerada subversiva e tentavam assustar as pessoas com o fantasma do comunismo. Não é por aí! A gente não podia deixar de lutar porque o comunismo devora criancinhas.
Iniciamos agora a última hora da semana Chico Buarque. Continuamos conversando sobre a vida.
Você já falou que gostaria que as condições básicas de vida fossem preenchidas para a maioria da população. Mas o que você acredita que vá acontecer nesse tempo?
Isso virá mais cedo ou mais tarde. Por bem ou por mal. Porque não é possível que continue assim. Não sou eu que estou achando. Isso salta aos olhos. A desigualdade social, a violência que isso gera. A gente vive nas cidades com uma série de muros de Berlim. Eu mesmo, vivo num condomínio, onde quem está fora não entra e quem está dentro não sai.
É a história da gafieira.
É a história da gafieira. Está se criando isso no Rio de Janeiro, São Paulo... são uns núcleos de riqueza cercados de miséria. Isso vai ter que ser resolvido, mais cedo ou mais tarde. Tomara que mais cedo e tomara que por bem!
Vamos entrar agora num terreno de dificílimo acesso: o ato de criar.
Humberto Werneck: Um dia eu cheguei na casa dele e ele falou: "Olha tem uma coisa aqui que você vai gostar." E me mostrou uma fita. E nessa fita que ele me mostrou ele está tentando arrumar, dar uma forma final a um refrão do samba Dr. Getúlio, que ele tinha feito com o Edu Lobo pra peça de mesmo nome, do Ferreira Gullar e do Dias Gomes. Então você vai ouvindo aquele refrão. Ele cantando e tocando violão, e de repente você percebe. Daquela música nasce uma outra. Feita um galho. Mas é um galho de uma outra árvore. Com uma emoção extraordinária, eu percebi que era o Vai passar. Que estava começando a nascer aquela coisa muito informe, aquela coisa meio fetal ainda, mas já se percebia a música ali. Foi uma experiência absolutamente emocionante pra mim. Você percebia que ele ia tocando aquele pedacinho de música, caía outra vez no refrão do Dr. Getúlio, voltava pro Vai passar, ainda sem letra, sem nada. Eu percebia ele se acercando da música como se a música estivesse pronta fora dele e ele estivesse tentando pegar aquilo com a mão.
Essa história não terminou aí. O Chico explica a nova idéia.
Eu tinha até o registro de eu fazendo essa música. Eu estava terminando uma música com o Edu e comecei a ter idéia desse samba. Comecei a ter a idéia musical e algumas pinceladas do que eu queria como letra. Foi na época daquela euforia das diretas. Eu imaginei que podia se fazer um samba composto a vinte mãos. Juntei lá em casa um dia uma porção de amigos e mostrei o samba como estava sendo feito. A música não estava pronta. Tinha um problema, que eu não conseguia chegar ao tom original. A música ia modulando e eu não conseguia voltar. E foi o Francis que, no fim, virou meu parceiro, concertou a melodia. Aí começamos a cantar. É claro que foi uma bebedeira e não saiu letra nenhuma. Eu acabei chegando à conclusão de que a música só pode ser feita no máximo por duas pessoas. A não ser esses sambas de carnaval. Cada um começou a dar um palpite mas não saiu nada. Era uma idéia bonita. Fiquei depois um ano com ela parada e falei: "Um dia vou fazer ainda." Aí desisti e acabei retomando um ano depois e terminei sozinho a letra.
Só agora Chico tem editado o seu songbook. O nome é Letra e música, editado pela Companhia das Letras, em dois volumes, com histórias, letras e partituras. O texto do primeiro volume é de Humberto Werneck, e é ele quem faz um balanço do trabalho.
Humberto Werneck: Uma coisa que me agrada muito de ter feito esse trabalho é ter podido devolver ao Chico uma série de memórias dele mesmo. Ouvindo mais de 50 pessoas, como a mãe, irmãs, colegas de ofício como Caetano, Gil, Milton Nascimento, Tom Jobim, a colegas de faculdade, de colégio, pessoas que testemunharam episódios diferentes da trajetória dele, eu recolhi muita coisa de que o Chico não se lembrava mais. Vou dar um exemplo: ele, numa certa altura, na época da jovem guarda, se divertia muito fazendo uns rocks. Pra tirar um sarro em cima da jovem guarda, pra rir um pouco daquilo, bem dentro do espírito moleque dele. Eu consegui reconstituir, com o Toquinho, algumas passagens dessas letras. À medida em que eu ia fazendo os capítulos eu ia mandando pro Chico. Não pra que ele avalisasse, ou desse o nihil obstat. Mas pra que ele ajudasse a filtrar algumas incorreções. A minha esperança era que ele viesse a acrescentar, como fez, algumas coisas. Eu percebi que ele se divertiu muito.
E a vida também, com o passar do tempo, a vida vai mudando. Suas filhas estão crescendo. Uma filha já casou. Pode ser que mais dia menos dia você seja avô. Com a possibilidade de ser avô, você prevê de novo uma possibilidade de um disco infantil?
É engraçada essa história de disco infantil. Na época eu tive uma dificuldade muito grande pra lançar esse disco (Saltimbancos) porque não havia o menor interesse por parte das gravadoras em lançar um disco infantil. Eu batalhei esse disco e praticamente fiz sozinho. Eu só fiz esse disco porque eu tinha um contrato com a gravadora que permitia tomar algumas liberdades. Eles não tinham interesse em lançar esse disco. Hoje em dia acho que há um excesso de música infantil. Descobriram a criança como mercado comprador de disco. Isso me incomoda um pouquinho. Então, eu não tenho muita vontade de gravar um disco infantil. Agora, se você me ameaça com essa perspectiva de ser avô, talvez o avô, daqui a uns tempos, ceda sentimentalmente ao apelo e componha pra criança de novo.
Quais são teus planos?
Autobiografia, com certeza, não. Dirigir um filme, também não. O que eu sinto no momento é uma total ausência de planos. Terminei esse disco. Depois veio a questão da eleição e eu tirei um tempo. Não tenho a menor idéia do que eu vou fazer. Não tenho essa rotina. Até gostaria de ter, já falei, talvez fosse mais saudável. Mas não. Eu estou com aquela folha de papel branco na frente agora pra fazer qualquer coisa, que não vai ser uma autobiografia, mas pode ser um disco novo, pode ser uma peça de teatro, um livro, qualquer coisa. Não estou com plano nenhum pela frente.
A busca solitária e silenciosa de quem conta e reconta a vida em textos e canções
Desde que em 1965 iniciou sua carreira como compositor profissional e principal intérprete de suas próprias canções, Chico Buarque de Hollanda tornou-se uma espécie de fenômeno único no Brasil. Nascido no Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1944, filho de Sérgio Buarque de Hollanda - um dos mais prestigiosos intelectuais do século no país, autor de alguns dos estudos fundamentais da História do Brasil - , sua carreira extrapolou rapidamente os limites das de seus contemporâneos. Se é verdade que ele pertence à geração mais marcante da música brasileira contemporânea - a de Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento, entre outros - também é verdade que sua obra estendeu-se ao teatro, ao cinema e à literatura.
Algumas de suas mais de trezentas canções fazem parte definitiva da memória coletiva do país nos últimos vinte anos. Observador agudo e sensível de seu tempo e sua gente, soube registrar nelas esperanças e angústias, sonhos e pesadelos, e antecipar alegrias.
Como escritor, publicou em 1974 Fazenda modelo, que ele chama de "novela pecuária, e recentemente (1991) teve lançado seu primeiro romance, Estorvo, um dos maiores êxitos literários de público no Brasil e com a melhor acolhida possível da crítica, elogiado por professores universitários de grande calibre, como Alfredo Bosi e Roberto Schwarz. O livro será lançado, este ano, em inglês, francês, espanhol e italiano.
Como dramaturgo, escreveu as peças Roda-viva (1968), Calabar (1973), Gota d'água (1975) e Ópera do malandro (1979).
Compôs, também, temas para filmes - Dona Flor e seus dois maridos, Joana Francesa, Bye bye Brasil, Quando o carnaval chegar, Ópera do malandro, entre outros.
Dividindo seu tempo entre o trabalho criativo e esforçadas partidas de futebol no Politheama, time que ele mesmo fundou há mais de dez anos, Chico Buarque é um caminhante incansável - um "andarilho extremamente apressado", como diz Fernando Morais -, que aprendeu todos os truques para preservar sua privacidade e garantir seu direito de ir e vir - direito esse, aliás, especialmente tolhido nos anos em que o Brasil viveu sob regime militar. Naquela época, ele tornou-se uma espécie de vítima favorita da censura oficial, foi obrigado a exilar-se durante quase dois anos e, depois, a assinar algumas músicas com pseudônimo, já que a simples aparição de seu nome como autor implicava a proibição sumária de uma canção, por mais ingênua e aparentemente inocente que fosse.
Hoje em dia, diz apenas que o importante é não parar. Isso vale para o trabalho e para suas caminhadas. "Se você fica parado sempre aparece alguém perguntando se você é você mesmo. É como se as pessoas ficassem com pena de ver o artista ali, solitário, abandonado. Então, a saída é não parar."
Para conversar com nossaAmérica, porém, Chico parou. A entrevista foi feita pelo jornalista Humberto Werneck, que escreveu o texto de apresentação do song-book do compositor, lançado em 1989, e pelos escritores Fernando Morais e Eric Nepomuceno, autor do texto final.
nA - Durante uma época houve intenso intercâmbio entre diversos países latino-americanos na área cultural - uma espécie de projeto coletivo de trabalho na música, na literatura. Agora isso parece ter declinado. A América Latina saiu de moda?
Chico - A impressão que tenho é a seguinte: durante determinada época, boa parte dos países latino-americanos estava unida pela via da tragédia. Ditaduras, sistemas repressivos, cujos métodos eram muito parecidos e se repetiam. O drama de determinado país era a repetição do que acontecera pouco antes em outro, e um aviso do que aconteceria em um terceiro logo depois. Estou falando dos anos 70, época em que começou a circular com maior intensidade aquilo que a gente poderia chamar - com certo cuidado, porque a expressão está muito desgastada - de cultura de resistência. Na música, havia canções de protesto no Chile, na Argentina, no Brasil, em toda parte. Para simplificar: os governos agiam com os mesmos métodos, pareciam mais unidos que nunca, e os artistas também, uns oprimindo, outros resistindo. Havia, então, uma atmosfera de unidade latino-americana, que depois foi se dissipando, principalmente no que se refere ao Brasil. Hoje, vivemos como antes. Nunca houve um intercâmbio cultural real, que nos incluísse. Na América Latina, e no Brasil sobretudo, as elites sempre viveram voltadas para fora. A elite intelectual também.
nA - Muito antes do período generalizado de regimes militares no Cone Sul a produção cultural e artística foi um meio de comunicação coletiva na América Latina. Havia a música, o cinema mexicano e o Brasil também participava, até mesmo com edições da revista O Cruzeiro, que circulava de Cuba até a Patagônia. Os ecos desse trânsito chegavam até você? Fazem parte da sua memória?
Chico - Em primeiro lugar, é preciso lembrar que na minha infância e adolescência a informação circulava de maneira muito mais lenta do que circula hoje. A televisão, por exemplo, não era tão desenvolvida e poderosa. Mas a informação chegava, é claro, e era bastante. Lembro que a música latino-americana era ouvida, e o bolero faz parte da minha memória: Agustin Lara, o trio Los Panchos, Lucho Gatica, que todo mundo achava que era mexicano e é chileno, e ainda Pérez Prado, a música cubana... Havia também a música latino-americana de Hollywood, Xavier Cugat - que é espanhol da Catalunha - , essas coisas. A música mexicana e a cubana fazem parte da minha formação, mas é bom lembrar que a gente ouvia também música francesa, música italiana, uma variedade muito maior do que a que se ouve hoje no Brasil. Do cinema mexicano, não lembro. Os ecos hispânicos vinham na música, mas a América Latina era para mim uma coisa um tanto remota. Eu não lia, por exemplo, autores do Continente: minha adolescência foi dedicada à leitura de autores brasileiros, europeus e norte-americanos. Antes do chamado boom eu praticamente desconhecia o trabalho dos escritores da América hispânica.
nA - Você foi, porém, um dos primeiros a falar de um autor que no Brasil era praticamente desconhecido: Gabriel Garcia Márquez. Como ocorreu essa descoberta?
Chico - É que em 1969 eu morava em Roma, e o livro Cem anos de solidão fazia muito sucesso. Lembro das pilhas nas livrarias, as capas azuis do livro, que li em italiano. Não consigo lembrar exatamente em que ordem, mas naquela mesma época li Jorge Luís Borges e Julio Cortázar. Só que, para mim, eram autores isolados. Eu não via no trabalho deles uma literatura do Continente: havia Borges e Cortázar e García Márquez. Com o boom acho que o mundo inteiro percebeu que eles eram parte de uma literatura feita em um continente chamado América Latina...
nA - A partir do final dos anos 70 você virou um dos mais ativos promotores do intercâmbio cutural entre o Brasil e os países do Continente. Como se deu essa aproximação sua com a América Latina?
Chico - A partir de janeiro de 1978, quando fiz minha primeira viagem a Cuba. Antes, da América Latina, eu só conhecia a Argentina, mas tinham sido visitas rápidas, viagens profissionais, quatro ou cinco dias, com apresentações, shows, entrevistas, enfim, tudo muito rápido, muito superficial.
nA - E nessas viagens você teve oportunidade de conhecer artistas e intelectuais argentinos?
Chico - Tive, e também de outros lugares. Durante um certo tempo, lá por volta de 1973, Buenos Aires foi uma espécie de amostra daquilo que eu encontraria anos depois em Cuba: pessoas de um outro universo chamado América hispânica. Foi a época em que conheci grupos de teatro, intelectuais de esquerda, e como havia muitos exilados uruguaios - os chilenos chegaram logo depois - , conheci alguns: o músico uruguaio Daniel Viglietti, por exemplo, com quem depois fiz vários trabalhos, ou o escritor Eduardo Galeano. Mas, enfim, eram sempre viagens de poucos dias. Já com Cuba a história foi outra. Na minha primeira viagem, em janeiro de 1978, passei um mês, como integrante do júri de teatro do prêmio Casa de las Américas. Não havia preocupação de show, ensaio, nada disso. Aliás, eu já não fazia shows no Brasil e não queria saber de vida de cantor. Eles logo descobriram que eu era el cantante que no canta... Até hoje brincam comigo por causa disso.
nA - Como aconteceu essa aproximação sua com Cuba?
Chico - Em 1976, Fernando Morais, que tinha ido a Cuba, fez lá em casa uma projeção de slides. Naquele tempo esse negócio de vídeo não era tão difundido. Lembro até hoje da parede de casa com as imagens de Cuba. O Fernando falava da ilha, e um grupo ouvia e fazia perguntas. Para nós, tudo era novidade. Naquele tempo, só se ia a Cuba exilado ou clandestino. Fernando foi o primeiro jornalista a fazer uma viagem às claras. Depois daquela noite, veio o convite da Casa de las Américas. O grupo era formado por Ignácio de Loyola Brandão, Antonio Callado, Fernando Morais e eu. Era a primeira vez desde 1964 que brasileiros do Brasil participavam do júri: antes, só brasileiros que estavam fora, exilados. Então, as imagens projetadas na parede da minha casa foram o começo.
nA - E antes da viagem, das imagens na parede, o que Cuba significava pra você?
Chico - Para falar a verdade, uma coisa remota. A Revolução, a Crise do Mísseis, a própria morte do Che Guevara eram fatos muito distantes. Acho que a morte do Che na Bolívia, em 1968, talvez tenha sido o último impacto que recebi de Cuba. A partir daí, e com tudo de retrógrado que aconteceu no Brasil, com o fechamento de todas as portas, Cuba ficou distante. Claro que antes havia uma imagem que posso chamar de romântica. Lembro até que, em 1964, no dia do golpe de Estado no Brasil, havia na Faculdade de Arquitetura de São Paulo, onde eu estudava, uma exposição de cartazes de cinema e teatro feitos em Cuba. Assim que a gente soube do golpe, um grupo de alunos invadiu a exposição e literalmente saqueou tudo. Eu levei para casa um cartaz da peça de Gorki, La Madre. Nós todos sentimos que, com o golpe, se rompia para sempre um elo com Cuba, e queríamos preservar alguma coisa. Isso faz parte da pré-história da minha ligação com Cuba. Mas essa imagem romântica não se estendia à América Latina. Cuba era um caso separado, à parte.
nA - E como a ilha se transformou em ponte entre você e o Continente?
Chico - Em Cuba eu comecei a encontrar gente, conhecer pessoas de vários países latino-americanos: músicos, artistas, intelectuais. Antes, havia antecedentes isolados, como as viagens à Argentina e um pouco da música dos exilados chilenos. Minha primeira ida a Cuba coincidiu com um momento muito forte daquela espécie de movimento de resistência que era muito ativo nos anos 70: cinema, música, teatro, literatura. O tempo da latino-americanização, um movimento coletivo espontâneo. Cuba deixava de ser apenas refúgio de perseguidos políticos, dos banidos pelo sistema, dos grupos que seqüestravam aviões e iam parar lá. Vendo as imagens dos slides percebi, na hora, que alguma coisa mudava na minha cabeça. Deu vontade de ir lá ver. Quando recebi o convite, aceitei de imediato. Eu quase tinha me esquecido de Cuba... Além do mais, devo confessar que aceitar o convite significava a atração do desafio, da transgressão, de ir ao lugar proibido. Viajar clandestino era meio difícil, no meu caso. Fui, então, às claras: no começo de 1978 viajei para Lisboa, fiz um programa de televisão e em seguida embarquei para Havana.
nA - Antes mesmo da viagem você fez, com Francis Hime,uma música para Cuba, chamada Maravilha.
Chico - Essa música é de antes? Não me lembro. Acho que foi depois. O que lembro é que quando fiz a música para o filme Dona Flor e seus dois maridos, do Bruno Barreto, o que eu tinha na cabeça eram as imagens dos slides de Cuba na parede da minha casa. A música se chama 0 que será. A influência está no ritmo, no que eu achava que era a mistura de Cuba com a Bahia, e batizei de "Cubaião", um baião cubano.
nA - E na letra?
Chico - A letra dessa canção é libertária, até um pouco anárquica, mas não tem nada a ver com Cuba. Acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se soubesse, não teria cabimento explicar. A letra, afinal, é uma pergunta, não uma resposta. Mas não é, com certeza, da Revolução que ela fala. Em, outras canções, a influência de Cuba e da América latina aparece nas letras. É o caso de Tanto amar, que fala do circuito comum aos latino-americanos que eu encontrava em Cuba. Fala da Bodeguita, de Havana, de Manágua e de Porto Rico, mas é uma canção de amor.
nA - Durante muito tempo, vários intelectuais latino-americanos disseram que através de Cuba descobriram o Continente. Com você aconteceu a mesma coisa?
Chico - Eu não diria que compreendi a América Latina a partir de Cuba. Minha explicação é, talvez, mais prosaica: é que em Cuba conheci pessoas de diferentes países latino-americanos e, através dessas pessoas, de seu trabalho, que no Brasil a gente não conhecia, descobri a América. Na primeira vez que fui a Cuba, conheci o poeta argentino Juan Gelman, o escritor nicaragüense Sérgio Ramírez, o mexicano Efraín Huerta, o venezuelano Miguel Otero Silva, o poeta e padre nicaragüense Ernesto Cardenal, enfim, pessoas que não faziam parte do meu circuito, realidades que para mim não eram próximas. Era gente de lugares que não faziam parte da minha geografia, da minha cultura. No começo, os nossos contatos eram meio difíceis. Lembro que nosso grupo, naquele júri, ficava espantado com a familiaridade que havia entre o pessoal dos outros países.
nA - Foi uma espécie de retomada de raízes perdidas?
Chico - Não. O brasileiro, na verdade, nunca teve essa raiz latino-ameriana, nenhuma ligação com o resto do continente. No máximo, havia aquela rivalidade furiosa no futebol - ódio de argentino, de uruguaio - e um certo desprezo, uma certa carga negativa, pelos bolivianos, paraguaios... O que me impactou em Cuba, ao ver aquelas pessoas todas, é que entre elas havia uma certa identidade, um trânsito livre, e que um brasileiro sentia-se isolado. Anos mais tarde, quando fui convidado para integrar o Comitê de Intelectuais pela Soberania dos Povos Latino-americanos, continuei sentindo isso. O Comitê tinha grandes nomes, a companhia era a melhor possível, mas volta e meia eu me pegava no ar. Uma vez, falavam muito em um tal Carlos: "A gente pede isso para o Carlos", e "O Carlos foi falar com ele", e eu pensando em quem seria aquele Carlos tão familiar a todos. A certa altura, não agüentei mais e perguntei: "Mas que Carlos é esse?" Aí todos me olharam espantados: era Carlos Fuentes, escritor mexicano. Para eles, naquelas circunstâncias, Carlos só podia ser Carlos Fuentes. O diálogo entre Garcia Márquez, Cortázar, o pintor chileno Roberto Matta, corria fluido, natural. Para mim, nem tanto: outra cultura, outra geografia... Eu era o caçula do grupo e, apesar da camaradagem, às vezes me sentia meio excluído.
nA - E com os músicos? Naquela sua primeira viagem, em 1978, você acabou cantando...
Chico - É verdade: os cubanos armaram uma festa em um teatro enorme, e na platéia havia muitos exilados brasileiros. Foi muito emocionante. Na volta ao Brasil, quando fui preso, no interrogatório queriam saber quem eu havia visto em Cuba, com que exilados havia mantido contato. Estavam mal-informados, porque, àquela altura, em Cuba só havia exilados mais velhos, viúvas de guerrilheiros, de operários, crianças... Exilados da ativa, a gente encontrava em Paris ou Lisboa, não em Cuba. Aquela festa marcou o início do meu contato mais estreito com músicos e compositores cubanos. Foram muitos os motivos da minha aproximação com Cuba, e a música foi um dos mais fortes. Afinal, a ligação entre a música cubana e a brasileira é muito profunda.
nA - O trabalho dos brasileiros era conhecido lá?
Chico - Era, e de um modo estranhíssimo. Eles confundiam as coisas, havia equívocos tremendos. Os cubanos recebiam música brasileira através de cassetes gravados em casa de amigos e mandados para lá. Então, não sabiam direito quem era quem. Além disso, chegavam alguns discos feitos na França, essas coletâneas que algumas gravadoras fazem com seu elenco, e isso confundia ainda mais. Havia um que era incrível: na capa, a Nara Leão aparecia como sendo a Gal Costa, e vice-versa. Durante muito tempo, alguns músicos cubanos achavam que Nara Leão cantava Baby e a Gal Costa era a cantora de Carcará. Nesse mesmo disco, aparecia na capa um francês louro, como se fosse o Edu Lobo. A gravação era mesmo do Edu, mas durante um tempão os cubanos achavam que o cantor era aquele louro da capa... Confundiam ainda o Gilberto Gil com o Jackson do Pandeiro... Enfim, uma complicação danada. Seja como for, desde 1967 ou 68, quando começou o movimento da Nueva Trova, a influência da música brasileira era importante no trabalho de jovens cubanos, como Silvio Rodriguez e Pablo Milanés.
nA - Mas quando os músicos brasileiros começaram a viajar para lá essa confusão não desapareceu?
Chico - Desapareceu, mas ainda assim houve coisas engraçadas. A primeira vez que um grupo foi para lá, participar de um festival de música do Caribe, aconteceu uma. Gabriel Garcia Márquez havia descoberto que o Brasil é caribenho, e mandou convidar um grupo. Passei os nomes por telefone e, quando cheguei lá, levei um susto: havia cartazes anunciando a noite brasileira, com os nomes escritos de maneira mais ou menos correta - as ligações telefônicas com Cuba eram terríveis - e, no final, aparecia uma Jazz Band. Nenhuma banda de jazz havia viajado com a gente; fiquei curioso e, aí, descobri: era o Djavan...
nA - Como essa aproximação com músicos e intelectuais de Cuba e do resto do Continente influiu em seu processo de criação?
Chico - Fazer essa identificação é difícil para mim. Influenciou, com certeza, e não apenas minhas músicas. Uma série de outras coisas em mim sofreram essa influência.
nA - Como você vive o processo de criação?
Chico - É muito difícil explicar esse processo. É muito misterioso.
nA - É diferente o processo na hora de escrever uma canção, uma obra de teatro ou um livro?
Chico - É sempre muito misterioso. Os rumos são absolutamente inesperados. Gosto de trabalhar sob encomenda, mas muitas vezes pedem uma coisa e sai outra completamente diferente. É o caso do filme Dona Flor e seus dois maridos: vi a cópia várias vezes para fazer a música, mas, na hora de trabalhar, o que vinha eram as imagens dos slides de Cuba... O trabalho sob encomenda acaba dando espaço para que eu faça uma terceira coisa.
nA - Seria então o que aciona os gatilhos interiores?
Chico - Talvez. E só tem graça aceitar uma encomenda quando você pode ser infiel ao que foi encomendado, quando você pode tomar certas liberdades. Quando eu estava fazendo as letras para as músicas de Edu Lobo, no balé O grande circo místico, havia um tema para a equilibrista que eu não conseguia solucionar. No poema de Jorge de Lima, a equilibrista se chamava Agnes, que aliás é um belo nome, mas a letra não saía. Então troquei Agnes por Beatriz, transformei a equilibrista em atriz e coloquei-a no sétimo céu, em homenagem à Beatrice Portinari, de Dante. Beatriz carregando minhas obsessões...
nA - Você escreve a letra antes da música?
Chico - Não. Nunca escrevi uma letra sem ter antes a melodia. Ou a melodia de meus parceiros, ou as que faço sozinho: é sempre a música que conduz a letra. E quando uma avança mais rápido, é sempre a música: a letra vem depois.
nA - E o processo interior é penoso?
Chico - Bem, acontece de tudo. Muitas vezes, insônias tremendas. Viro noites com uma imagem na cabeça, uma idéia, amanheço exausto, sem conseguir me livrar. Isso acontece durante a escritura, ou até depois. As vezes vou deitar com papel e lápis na cabeceira, mas não durmo, tento escrever, rabisco alguma coisa, e de repente amanhece, desço, vejo minha filha tomando o café da manhã e indo para a escola, e eu torno a insistir, sem conseguir me libertar da imagem que me obsessiona. É um processo misterioso, sempre.
nA - Qual a música que foi escrita assim nesse clima de obsessão?
Chico - Nos últimos muitos anos, isso vem acontecendo cada vez mais. As primeiras músicas, na verdade, não me deixaram a lembrança de tanto penar. Acho que naquele tempo - estou falando de vinte anos atrás, ou mais - era como se eu tivesse um enorme espaço pela frente e fizesse músicas de maneira mais espontânea, com mais facilidade. Agora, esse espaço é mais estreito. Sinto a coisa mais rarefeita.
nA - Por que mais rarefeita?
Chico - Porque já fiz muita coisa, e isso não ajuda, dificulta. Sei que sei fazer, e isso acaba virando um obstáculo terrível. Volta e meia alguém me diz na rua: "Por que você não faz mais aquelas músicas?"
nA - Quais?
Chico - As que tocavam no rádio dez, doze, vinte anos atrás. Mas eu não quero fazer as músicas que já fiz. Eu só quero fazer a música que estou fazendo.
nA - Você acha que suas músicas mais recentes são melhores?
Chico - São mais enxutas, por um lado, e mais ricas harmonicamente. Fui aprendendo, conheço melhor meu instrumento.
nA - E por que você acha que suas músicas faziam mais sucesso há dez ou doze anos?
Chico - Esse é outro problema, não tem nada a ver com a qualidade delas. Em geral, quem chega e pede que eu torne a fazer aquelas músicas é gente da minha geração. Ou seja, gente que se refere a músicas que remetem a um tempo passado, no qual essas pessoas provavelmente eram mais felizes do que são hoje. Ou, pelo menos, acham que eram. Então, é uma coisa um tanto saudosista. E também porque as pessoas com quarenta e tantos anos já não mantêm com a música a mesma ligação que mantinham na juventude.
nA - E a questão do sucesso, hoje?
Chico - Olha, para falar a verdade, eu tenho certeza de que as pessoas gostam dos artistas por equívoco, ou por motivos que são mais delas do que do artista. Você nunca sabe o que faz determinada pessoa gostar da sua música, ou por que ela gosta de tal música sua. Outro dia, parei em uma barraquinha de coco, na praia, e o vendedor olhou para mim e disse: ''Chico Buarque, o bispo dos olhos vermelhos!'' Na hora, não entendi nada; levei um susto. Só depois do susto é que me lembrei que na letra da música Geni, que é de 1979, falo de um bispo de olhos vermelhos. Como é que um vendedor de coco guardou essa imagem durante tantos anos?
nA - Mas serão sempre tão misteriosos os mecanismos do sucesso?
Chico - Para mim, são. Embora às vezes o mistério se desfaça, pelo menos em parte... Outro dia, encontrei em um restaurante o diretor de uma gravadora onde fiz vários discos. Conversamos um pouco sobre os problemas do mercado hoje em dia, a questão da programação das rádios, o jabá cada vez dominando mais...
nA - Jabá?
Chico - É o que as gravadoras pagam aos programadores de rádio para tocar determinadas músicas, para que os cantores apareçam em programas populares. Aí, eu comentava com ele que minha atual gravadora, que trabalha basicamente com o sistema do jabá, estava tendo dificuldades comigo, porque escapo do esquema do artista que faz muita televisão, ou que canta em shows patrocinados por esta ou aquela rádio. Aí, meu antigo patrão me explicou que a questão do jabá sempre existiu. Eu disse que sabia, é claro, mas que a coisa hoje é muito mais violenta. E, então, veio a revelação: "Você lembra do sucesso de Construção, uma música difícil, pesada, muito longa para a época, e que tocava no rádio o dia inteiro? Pois paguei muito jabá por ela."
nA - Mas isso não explica a existência do seu público.
Chico - Os grandes consumidores de disco, tanto nos tempos de Construção - 1971 - como hoje, são o público jovem, entre 15 e 25 anos. Isso quem me disse foi aquele mesmo diretor de gravadora. E as gravadoras investem mais em artistas que se situam aproximadamente na mesma faixa etária. Isso é natural. Como é natural que esse público, daqui a vinte anos, ouça menos música e tenha nostalgia do que ouviu na juventude. No meu caso, estabeleci um público mais ou menos estável, mas que não vai chegar nunca a um milhão de compradores.
nA - O fato ter abandonado os shows, a vida de cantor, não contribuiu para essa diminuição do sucesso?
Chico - Nem tanto, porque sempre fui mais conhecido como compositor do que como cantor. Mas é lógico que, se não apareço no palco, na televisão, nas revistas, o público pode guardar meu nome, mas a minha imagem vai ficando meio vaga. Outro dia, parei em um bar da Rio - Petrópolis, e uma moça me perguntou se eu era mesmo o Chico Buarque. Confirmei, mas ela ficou desconfiada. Daí a pouco voltou e perguntou: "Mas é o pai ou o filho?"
nA - E o que você respondeu?
Chico - Que eu era o filho, é claro.
nA - E os recursos tecnológicos que existem hoje para as gravações, essa parafernália toda, o que você acha?
Chico - Se eu quiser entrar de cabeça no universo da música pop, terei irremediavelmente de usar esses recursos. Já não será suficiente compor canções no violão, trancado em casa. Terei de entrar no estúdio com o engenheiro de som e me atualizar a cada disco, talvez gravar em Nova York ou Los Angeles, acompanhar a mixagem, essas coisas.
nA - E você é solicitado para promover essa mudança, entrar no mundo da tecnologia?
Chico - Há poucos dias, conversando com Gilberto Gil, falávamos sobre esse aspecto instigante do universo pop, que ele conhece bem. Falamos do Caetano que, no último disco, também deu um grande passo no sentido de dominar esses teclados de ultíssima geração que eu não lembro como se chama. E o Gil quase me convenceu a fazer uma espécie de estágio em um estúdio superequipado, antes mesmo de compor, para ver o que acontece. Claro que, se eu fizer isso, mudo meu processo de criação.
nA - Essa idéia atrai você?
Chico - Não sei. Não me recuso a ela. Pode ser o mesmo processo por que passa um escritor, quando troca a máquina pelo computador. Pode ser estimulante. A máquina não me assusta. Só precisaria me acostumar à idéia de fazer música ao lado do engenheiro de som.
nA - Você já teve alguma experiência de criacão utilizando a tecnologia, ou limitou-se apenas ao violão?
Chico - Hoje em dia, dá para se ter um estúdio completo em casa. Eu, é claro, não tenho. Trabalhei, algumas vezes, com um gravador de quatro canais que permite fazer gravações superpostas. Há dez anos, esse gravador era uma novidade. Eu comprei há cinco, de segunda mão. Hoje, é peça de museu...
nA - Como você trabalha com ele?
Chico - Consegui bons resultados, mas é difícil explicar sem mostrar a música. Por exemplo: eu estava fazendo uma música, A volta do malandro, e na minha cabeça havia duas batidas de violão completamente diferentes, um contraponto rítmico que me interessava. Eu tocava uma e ouvia outra ao mesmo tempo - ouvia na minha cabeça. Usando aquele gravador, ficou mais fácil: gravei a primeira batida, que era seca, constante, quase de rock, e em seguida a outra, sincopada. Depois, ouvi as duas juntas, e pronto: em cima delas arrematei a melodia. Na hora, eu não tinha muito clara a idéia do que ia sair, mas acabou ficando melhor do que eu imaginava.
nA - Então, esse recurso tecnológico - embora, como você mesmo diz, já um tanto antiquado -, acabou influindo em seu processo de criação.
Chico - É, e às vezes tenho vontade de estudar música a fundo, de me tornar um músico mais completo, para dominar toda a linha de criação, do primeiro lampejo ao resultado final. A canção é enriquecida pelo trabalho dos músicos, do arranjador, do produtor, pelos recursos do estúdio, e isso me dá um pouco de ciúme. Muitas vezes, tenho idéias que não aparecem em uma gravação, porque não sei verbalizar o que quero.
nA - Você já compôs em estúdio, na hora da gravação?
Chico - Nenhuma música minha nasceu no estúdio, mas muitas foram retocadas durante a gravação. O próprio clima de feitura de um disco favorece a criação de novas canções, o contato com os músicos... Ultimamente, quando começo a gravar, não tenho idéia do que será o disco. Entro no estúdio com quatro, cinco músicas, e o resto vai no embalo.
nA - Quando você termina uma canção, ela corresponde ao seu estado de espírito? Já aconteceu de você estar alegre ao terminar uma canção triste?
Chico - Não existe necessariamente uma ligação. Eu me lembro muito bem de uma tarde em que fiquei conversando horas com o dramaturgo Paulo Pontes, meu parceiro em Gota d'água. Ele tinha voltado de uma viagem ao Nordeste e estava doente. Eu sabia que a doença era terminal. Mas ele não sabia, ou fingia que não, e passou a tarde falando do que tinha visto no Nordeste. Era 1976, e Paulo Pontes cheio de dúvidas em relação ao Brasil, a questão social, enfim, uma conversa densa, e eu muito impressionado com aquilo tudo, na verdade mais impressionado com a doença do que com o Nordeste. Voltei para casa agoniado e louco para tocar violão. Naquela noite, eu escrevi Olhos nos olhos, uma canção de amor que não tinha nada a ver com nada, vai ver que por isso mesmo...
nA - Quando você termina uma música ela está realmente pronta. Mas quando termina uma peça de teatro existe um caminho longo entre o final da escritura e a montagem. Qual a diferença entre o processo de criação da música e de uma obra de teatro?
Chico - As minhas experiências como autor de teatro sempre foram compartilhadas, ou porque escritas em parceria, ou porque discutidas com o diretor ou o grupo que ia montá-las. Além disso, os dois processos se confundem, porque minhas peças sempre foram musicais.
nA - E seu livro Estorvo?
Chico - O processo de criação? Não é muito diferente da música. Foi como escrever uma canção ao longo de treze meses. O mais difícil, o mais penoso, é entrar no clima, encontrar o veio.
nA - Você demorou muito para entrar no livro encontrar o caminho?
Chico - Muito. Eu sabia mais ou menos o que queria, qual era a idéia, aos poucos fui entrando na atmosfera, mas demorei um bom tempo até sentir que tinha o livro na mão.
nA - E quando você sabe que está com o livro - ou a canção - na mão?
Chico - Ah, isso eu não sei dizer. É uma coisa mágica, que acontece e ponto. Vem assim, e de repente, pá! pega você. E aí é como se tudo se abrisse à sua frente.
nA - E como você se sente nessa hora?
Chico - Um mergulho, uma viagem. É como se alguém estivesse soprando em seu ouvido, uma coisa que viesse de fora, de longe. Quando acaba, ou seja, quando você termina de escrever, está absolutamente exaurido.
nA - Você pode fazer alguma comparação entre a sensação de terminar uma peça de teatro, uma canção ou um livro? O que é mais pleno?
Chico - A sensação é muito semelhante. Você terminou um trabalho feito no maior recolhimento, cheio de pudor, e no instante seguinte vira um exibicionista, precisa mostrar aquilo urgentemente. Com a música é mais fácil, você canta para a mulher, para os amigos, canta em público, grava em disco e tem um retorno imediato. Você acaba de compor e já pode ver a reação na cara dos outros. No teatro, você acompanha os ensaios, assiste à estréia, vê quando o público ri ou não ri, aplaude ou não. Com o livro, você não sabe o que acontece, não sabe se as pessoas estão lendo mesmo, se vão ler devagar ou depressa, se vão levar pro banheiro, se vão pular uma página, se vão rabiscar, dobrar de qualquer jeito, esquecer no avião...
nA - O trabalho sob encomenda no seu caso pode servir de estimulo. Estorvo foi encomenda?
Chico - Foi, na verdade, uma série de encomendas... Minha mulher, Marieta, me deu de presente o computador, no qual o livro foi escrito; o escritor Rubem Fonseca, meu amigo, vivia me dizendo que eu tinha de escrever um livro; o editor, Luiz Schwarcz, chegou a me propor um adiantamento, para que fosse escrever; e, finalimente, eu mesmo me encomendei... Estava há tempos sem escrever nenhuma música, anotava coisas, idéias, aí fiquei dando voltas e resolvi escrever um romance.
nA - Voltando aos estímulos que você recebe para criar: hoje, o cotidiano dá os mesmos de dez ou quinze anos atrás?
Chico - Não.
nA - E não viria daí a sua dificuldade para compor?
Chico - Não, porque o meu trabalho depende mais da imaginação do que desses estímulos cotidianos. Mas se é para falar da realidade política, é evidente que havia antes a expectativa das pessoas, que queriam ouvir coisas, uma espécie de encomenda ampla, anônima. Em 1984, por exemplo, estávamos todos envolvidos na campanha pelas eleições diretas que iriam mudar o país. Aquele clima efervescente era, em si, uma espécie de encomenda, como já fora o clima político entre 1964 e 1968 e, muito antes, e por outros motivos, a agitação cultural dos anos de Juscelino até o golpe militar. Em 1984, eu sentia necessidade de dizer o que as pessoas queriam ouvir. Era, sim, um estímulo que vinha do cotidiano. Uma encomenda.
nA - E hoje?
Chico - Hoje, esse tipo de encomenda é zero. Já não sei o que as pessoas esperam que um artista diga. Por outro lado, fazer somente o que as pessoas esperam, ou o que eu acho que elas esperam, é muito perigoso, pode virar um processo vicioso. Hoje pode ser mais difícil compor ou escrever, mesmo pensar é mais complicado, mas não se pode culpar a perplexidade como se ela fosse uma censura. É necessário lidar com essa perplexidade, e acho que Estorvo é um pouco isso.
nA - Você não estaria vivendo um processo de mudança de meio de expressão? Em Estorvo, nota-se um cuidado mais apurado, como se o autor se aproximasse da literatura com certa solenidade, como quem chega a outro patamar.
Chico - Eu recuso e sempre recusei essa visão. Quando comecei a fazer música, meu caminho natural talvez fosse a literatura. Minha geração foi seqüestrada pela música, que teve um impacto enorme em nós, mas nunca concordei com essa distinção hierárquica, que relega a música popular a um patamar inferior. Por outro lado, tenho consciência de que estou trabalhando com outra linguagem, que um romance não é uma letra de música. A letra acompanha a música, que vai muito pelo instinto. Um romance exige mais rigor em termos puramente literários.
nA - Escrever ficcão é mais ou menos solitário que escrever canções?
Chico - Muito mais. Se eu soubesse que iria levar treze meses escrevendo um livro, talvez não tivesse coragem de começar. Mas acho que no fundo eu estava desejando esse tempo de isolamento, de não-exposição.
nA - E a possibilidade de estar mudando de meio de expressão?
Chico - Não sei. A música pode me abandonar. É uma possibilidade.
Profundo conhecedor de música popular, ele afirma que a influência da música estrangeira se manifestou na MPB desde seu surgimento e que uma simbiose dos dois gêneros inevitavelmente tomaria conta do mercado. Uma aula nada preconceituosa sobre essa e outras matérias (música latino-americana, estruturas rítmicas e melódicas) é o que mestre Chico dá para os leitores de BIZZ. Thomas Pappon anotou a lição e Hermano Vianna mapeou os diversos ritmos da América Latina.
Quem ouve rock hoje, certo de que está tendo acesso a uma música inovadora, diferente da careta MPB, pode não estar sendo tão moderno assim. Mesmo porque desde seus primórdios, os artistas mais avançados da música brasileira são acusados, pelos puristas, de fazer "música americana". O problema é que justamente nós, que ouvimos rock, já não temos mais acesso às iguarias emepebísticas que fizeram a cabeça de outras gerações. Nem sabíamos das várias fusões que ocorreram no passado, que poderiam indicar atalhos para um futuro musical mais próspero. Nem sabíamos da comum identidade do Brasil com Cuba, Caribe e Angola. São informações importantíssimas - fundamentais para quem quer se situar num universo despojado de pudores rítmicos ou melódicos. A América Latina, por exemplo, tem um imenso campo musical vazio - mantido improdutivo e ocioso pelos latifundiários do éter e do vinil - à espera de posseiros ousados. Não seria exagero afirmar que as novas gerações, apesar de terem crescido em clima de "distensão política", correm o risco de ser mais alienadas do que as que o foram à força nas décadas passadas, graças ao desinteresse e às imagens borradas divulgadas pelos nossos meios de difusão musical. A MPB não é "chata", a música latino-americana não é apenas "chorosa" e a influência dos ritmos negros pode ir muito, mas muito além do samba. O rock nacional estará vivendo um novo período, se posicionarmos nossas antenas para outras regiões e elas captarem os débeis sinais que nos chegam. Os relatos de Chico Buarque dão uma boa idéia das áreas que podem ser exploradas e de suas experiências pessoais no assunto.
BIZZ - Quantas vezes você foi a Cuba?
Chico - Ah, eu já perdi a conta, porque fui a diversos eventos. A primeira vez foi em 78. Fui como jurado de um festival de teatro. Fui várias outras vezes para encontros que tratam de política cultural na América Latina e fui para festivais de música pelo menos umas oito vezes.
BIZZ - Você tem acompanhado a produção musical cubana?
Chico - Tenho. Toda a música cubana me interessa muito. Posso dizer que a conheço muito. Me interessei também porque durante muito tempo foi uma música que não chegava ao Brasil. Eu recebia discos, ia para lá levando discos daqui - funcionava como uma espécie de pombo-correio de música. Existe uma ligação muito forte, sempre existiu... Na Bahia é mais do que evidente esta ligação, porque as raízes são as mesmas. Foi uma mesma nação yorubá que chegou na Bahia e em Cuba - em Havana e Santiago de Cuba. Isso gerou não só ritmos parentes. Por exemplo, todo o candomblé e o próprio sincretismo do candomblé com a religião católica existe em Cuba e é igualzinho ao que tem na Bahia e no Brasil todo. A Bahia é o foco de onde saiu a música negra para o Brasil, inclusive para o Rio. O samba carioca foi trazido pelas baianas. Não é à toa que o Vinicius falava: "O samba nasceu na Bahia" - nasceu mesmo. O culto aos orixás em Cuba é a mesma coisa. Só que os nomes são um pouco diferentes. Iemanjá tem a pronúncia espanhola -(com acento no 'man'), Xangô pronuncia-se "Tchango ", e por aí afora. São as mesmas origens. O escravo africano da mesma raça por algum motivo que desconheço foi dar na Bahia e em Cuba.
BIZZ - Me parece que os ritmos seguiram ramos diferentes em Cuba e na Bahia. Existe algo semelhante ao samba em Cuba?
Chico - Não, mas eu tenho a impressão de que uma música negra original dos escravos gerou o samba - que já é uma conseqüência e uma vertente dessa música - e outra foi dar nos ritmos caribenhos. Em Angola mesmo - estive lá também - a música se parece mais com a música do Caribe do que com o samba. Eu tenho a impressão - agora estou dando um palpite também porque tem pouca coisa estudada, sólida, neste sentido - que o samba já é um estágio mais evoluído, e ao mesmo tempo mais corrompido, mais híbrido da música negra. A música caribenha se assemelha muito mais à música original africana do que ao samba. É sintomático que na Bahia - onde existe uma concentração negra mais forte e mais autêntica, mais ligada às raízes negras do que no Rio de Janeiro - , nas camadas sociais mais baixas, a receptividade da música caribenha é imediata. (Gabriel) Garcia Márquez, que foi um dos que me convidaram quando fui para Cuba pela segunda vez, participar do Festival Califiesta, defende a teoria de que o Brasil, da Bahia para cima, faz parte do Caribe.
BIZZ - Mas como aconteceu de a música caribenha, com tanta influência de ritmos espanhóis, se aproximar mais da música de Angola do que o samba? Creio que o samba é uma evolução mais direta e pura dos ritmos africanos do que a música caribenha.
Chico - Não sei se houve essa evolução no Brasil. Com certeza a música brasileira assimilou mais influências do que a cubana, que está, com certeza, mais próxima da africana. E a rítmica do Caribe não tem muito a ver com a música espanhola. Ela é negra mesmo. Acho que tem elementos de música espanhola, assim como a nossa música tem da música portuguesa - mais a nível de melodia, harmonização... O que nós conhecemos deles aqui é uma coisa mais estilizada. Eles têm lá ritmos muito diversificados. Numa ilha que é relativamente pequena, você encontra, de província em província, batidas diferentes, marcações diferentes, tônicas de marcação diferentes... Na província de Matanzas, por exemplo, o som é diferente. O som matanzero é uma coisa, o som do Oriente, onde fica Santiago de Cuba, é outra.
BIZZ - E os instrumentos que eles usam... são muito diferentes dos nossos?
Chico - São. Eles têm mais variedade na parte dos couros, dos tambores...
BIZZ - Houve algum movimento em Cuba semelhante ao da Tropicália? Como é vista a guitarra elétrica em Cuba?
Chico - É bem interessante essa história. Houve um movimento, sim, exatamente por influência da música brasileira em Cuba. Em 69 esteve aqui no Brasil, em missão "extra-oficial", o então Ministro da Cultura de Cuba, que era amigo do Gláuber Rocha e do pessoal do Cinema Novo. Ele levou para Cuba vários discos e fitas de música brasileira, para um grupo de compositores como Pablo Milanes, Silvio Rodnguez... Eles pertenciam ao Grupo de Experimentacion Sonora, do Instituto de Cinema e Artes Cênicas Cubanas, que fazia música para cinema. Eles ouviram com a maior atenção a música que se fazia no Brasil da época e se entusiasmaram especialmente com a incorporação da guitarra elétrica. Foi também deste grupo que saiu a Nova Trova cubana. Ou seja, a música cubana feita a partir da década de 70 foi desenvolvida a partir do cinema e diretamente influenciada pela música brasileira e pelo modo que esta se apropriava de elementos da música inglesa e americana.
BIZZ - Só poucos tiveram acesso a esse material em Cuba, ou chegou a haver um intercâmbio maior?
Chico - Não. Isso foi feito como um trabalho mesmo. Na verdade, há que se fazer uma distinção. O grande público cubano evidentemente é muito arraigado às raízes. Esse pessoal (da Nova Trova) enfrentou sérias dificuldades pra chegar às rádios, televisão e tal. Quando estive lá a primeira vez, o que acontecia é que só havia concurso de cha-cha-cha, muito bolero. O gosto musical do povo cubano também é conservador. Essa música era uma música de elite, se bem que é difícil falar em elite em Cuba... Mas existe uma elite cultural, gente com mais acesso à informação. É um pessoal que trabalha, que estuda. Eram todos formados na Escola de Música. Então não havia uma divulgação maciça. Foi um laboratório de música o que gerou a Nova Trova. Hoje é um movimento relativamente popular em Cuba, mas mesmo assim o grande público ainda é ligado aos ritmos dançantes antigos: cha-cha-cha, rumba...
BIZZ - E como é hoje em dia? As pessoas podem comprar discos brasileiros em Cuba?
Chico - Podem, porque a própria companhia de discos estatal, a EGREM, tem lançado discos de música brasileira. Não com muita assiduidade, e nem com a preocupação de abranger tudo o que se faz aqui, porque - todo mundo tem que entender isso - Cuba é um país pobre. Tem poucos recursos pra estar lançando discos com freqüência. A rádio transmite muito - toca qualquer tipo de música. Muita música americana e muita música brasileira também.
BIZZ - E o contrário? Aqui saem poucos discos de música cubana?
Chico - Poucos. Quando estive lá pela primeira vez; vi que esses músicos muito ligados à música brasileira conheceram-na de uma forma pirata. Eles tinham fitas piratas - cópias cassete sem créditos, sem capa, sem nada. Me lembro quando eles me perguntavam: "Ah. e esse cara quem é? Gilberto Gil? E esse?" E me lembro até hoje que eles me mostraram um disco que era uma miscelânea de música brasileira, dessas que se editam na Europa. Na capa do disco tinha fotos das pessoas, só que elas eram trocadas! Então para eles Gal Costa era a Nara Leão, e a Nara era a Elis Regina... Tinha o Edu Lobo com uma cara que eu não conheço, era um tipo francês. Tive que esclarecê-los. Eles tinham um programa que tocava música brasileira e eles anunciavam "Chiclete com Banana", de Gilberto Gil e eu dizia: "Não. O Gilberto Gil gravou isso mas a música não é dele" (N. da R.: é do compositor baiano Gordurinha). Eles não tinham como saber que não era dele. Hoje, não. Os artistas brasileiros começaram a ir lá com freqüência, alguns discos são editados lá... Aqui aconteceu a mesma coisa. Não havia relações diplomáticas, a comunicação era muito pequena. Mas a tendência agora é incrementar o intercâmbio cultural. As facilidades estão aí, já tem até vôo direto pra Cuba. E, segundo estou informado, eles (os cubanos) pretendem abrir um escritório aqui, para cuidar dos interesses não só da música mas também do balé etc... As artes cubanas viajam pelo mundo inteiro, e para chegar ao Brasil sempre foi essa dificuldade. Esses músicos, não só da Nova Trova - mas também os grupos de son, gênero que nos EUA virou a salsa (N. da R.: Chico explicou depois que son é uma corruptela de song), viajam pela Europa inteira, Argentina, Venezuela... E só no Brasil quase não se vêem esses grupos.
BIZZ - Tem alguma coisa que tenha te fascinado de modo especial na música cubana?
Chico - Muitas coisas me impressionaram lá, mas o que mais me impressiona mesmo é a rítmica cubana. Eles têm um sentido de ritmo que pra nós é absurdo. Vi um grupo de dança e ritmo de Matanzas, uma província de lá, fazendo uma exibição para um grupo de artistas brasileiros. Eles dançavam só ao som daquelas tumbadoras todas, não havia melodia. E você via aquilo e não entendia onde estava o tempo um! O Robertinho Silva, um pessoal de ritmo,. ninguém entendia como é que todos estavam dançando. Como eles sabiam onde estava o tempo um?! Você não percebe. Depois eu soube que esse grupo ainda tinha sido montado na hora, especialmente para essa apresentação, que, quando eles dançavam e tocavam entre si, nem mesmo os músicos de Havana conseguiam achar o tempo um! E é engraçado, porque eles têm dificuldades para tocar o samba, o que pra nós é o normal. Para eles o normal é noutro lugar. A tônica da rítmica está em outro lugar, está subentendida, não é explícita, não tá marcada, mas está na cabeça de todo mundo.
BIZZ - Voltando um pouco aos discos que fizeram a cabeça dos compositores cubanos, você se lembra se eles ouviram os Mutantes?
Chico - Pode ser, não posso te garantir. O Alfredo (Guevara) levou malas e malas de música brasileira pra lá. Provavelmente tinha Mutantes no meio.
BIZZ - Você tem ouvido rádio no Brasil?
Chico - Não. Tenho ouvido pouca música. Aliás. em geral ouço pouca música. Principalmente quando eu estou num ritmo de trabalho como estou atualmente. Desde julho estou trabalhando e fazendo músicas - é uma época onde eu não paro para ouvir música. Interfere no meu trabalho, interfere na minha cabeça. Terminei o disco e comecei direto a preparar o show, não deu para ouvir rádio. Engraçado, estava conversando com um diretor de teatro que me disse que não vai muito a teatro. É muita informação pra mim. Já assimilei tantas músicas na minha cabeça, não consigo mais ouvir música como ouvia antigamente, como amador, deixando entrar tudo o que viesse. Parece que chega uma hora na vida em que a gente quer selecionar o que vai ouvir. A rádio não permite muito isso.
BIZZ - No geral, você se interessa mais pela música norte-americana ou pela música latino-americana?
Chico - Não tenho nenhuma discriminação. A minha formação musical básica é de música brasileira e música americana, mais do que qualquer outra coisa. O que me aproxima da música latina são determinadas circunstâncias da minha vida, e isso não é intencional. O que talvez seja intencional é o interesse em trazer alguma coisa que esteja um pouquinho marginalizada, como a música cubana, por motivos políticos, e, por outros motivos, toda a música latino-americana, como a jamaicana, que o Gil de certa forma introduziu no Brasil. Esses gêneros estiveram inteiramente ausentes da programação de rádio, da produção de discos. Acho isso uma pena. Tem uma limitação gritante aqui no Brasil. Em qualquer parte do mundo o que você vai ouvir mais é a música americana, inglesa, rock e tal. Mas se você vai pra Argentina, que em termos de indústria fonográfica é muito mais atrasada que o Brasil, lá tem uma edição e distribuição razoável de música brasileira, cubana, latino-americana; não há divisão. É claro que o que mais toca é o que mais toca no mundo inteiro. Mas existe espaço para tudo.
BIZZ - Você passou um tempo na Itália. Chegou a assimilar elementos da música italiana no seu trabalho?
Chico - Não. A música italiana na verdade não me interessa muito. O que gravei lá foi só música brasileira. Conheço a música italiana, mas acho que a música européia em geral está um pouco estagnada. O que me interessa é basicamente o ritmo, e esse aspecto foi praticamente abandonado na música européia. O que há de novo vem da África. A música negra é que está revitalizando a música popular no mundo inteiro. Isso através do Brasil, do Caribe, do jazz, do rock. É por aí, não tenho dúvida nenhuma quanto a isso. A própria Itália, a França e tal têm alguma coisa de ritmo, mas tudo chega de segunda mão.
BIZZ - Você gravou com Ennio Morricone, na Itália. Como foi essa experiência?
Chico - Bom, ele é um grande orquestrador. Ele pegou umas músicas minhas e fez aquele som dele, o som do Ennio. O disco se chama Per un Pugno de Samba. "Por um Punhado de Samba" (N. da R.: referência ao filme Por um Punhado de Dólares, que tem trilha de Morricone). É um disco híbrido. É samba e tal - são canções minhas - , tudo gravado lá. O som do Ennio, que é da maior competência, é muito bonito, mas a marca dele é muito forte. O disco fica a meio caminho entre música brasileira e música italiana. Mas foi uma experiência interessante. Esse disco é raríssimo. Eu mesmo não sei se tenho (N. da R.: Per um Pugno de Samba não foi lançado no Brasil).
BIZZ - Por razões musicais, creio que o programa Chico & Caetano (cujos nove episódios foram ao ar pela TV Globo em 86) foi um dos mais importantes desta década. Um programa que reunia, numa mesma apresentação, Elizeth Cardoso, Baden Powell e, na outra, Mercedes Sosa, Gal, Milton, ou grupos emergentes como a Legião Urbana. Você curtiu essa experiência?
Chico - Curti muito. A Globo é uma máquina muito grande. Quando ela propõe uma coisa nova aparecem muitas dificuldades na hora da execução. Quando a gente começou, praticamente não havia mais música ao vivo na TV brasileira. Você não imagina a dificuldade que foi fazer um programa ao vivo de novo. E o programa deixou claro que isso pode ser feito, que vale a pena fazer música ao vivo de novo, tanto que agora o Globo de Ouro já não tem mais playback. As pessoas se acostumam com playback e se perde toda a vitalidade... Acho que o Chico & Caetano foi feito com muito calor humano, muita emoção e com a intenção, que foi satisfeita também, de trazer alguma coisa que não se ouvia normalmente nos programas de TV e nas rádios. Tanto música de fora, latino-americana, como os próprios cantores e instrumentistas brasileiros. Como o Baden Powell, por exemplo. Ele esteve fora do Brasil por muito tempo e a garotada quase não conhecia mais o Baden. O Piazzolla também, por exemplo, não é mais conhecido.
BIZZ - Senti algumas ausências importantes. Por exemplo. o Luiz Melodia, o Tim Maia. Vocês chegaram a convidá-los
Chico - O Tim Maia foi convidado, só que no dia ele não gravou - ele deu bolo. O Melodia não foi, mas se você for contar todas as pessoas que não foram convidadas veria que não caberiam em nove programas. E a intenção era fazer só nove mesmo. Não tinha como continuar isso. Apesar de que, se eles continuassem, poderiam suprir uma ou outra falta.
BIZZ - Por que vocês não passaram a bola para outro apresentador?
Chico - Eu achei que a Globo ia aproveitar o esquema, que estava dando certo; Ao contrário do que andaram publicando, deu uma audiência muito boa, a não ser pelos primeiros programas, quando havia aquela coincidência de horário com Dona Beija (novela da TV Manchete) - e a audiência da Globo toda caiu. Mas o problema é que saía muito mais caro do que qualquer outro programa da Globo, pois, afinal, trazíamos até gente de fora. Acho que eles deveriam ter realmente passado a bola para outra pessoa ou outra dupla.
BIZZ - Nos EUA, atualmente, fala-se muito numa nova onda de música brasileira. O próprio Quincy Jones afirmou que daqui há uns anos só vai dar música brasileira. O que você acha disso tudo?
Chico - Não sei até que ponto a música brasileira pode chegar. O caminho que ele (Quincy) deve estar apontando deve ser via Estados Unidos... Por aí é bem possível, porque a música brasileira tem uma penetração imediata muito grande. O que dificulta isso, ou dificultava, é justamente o fato de a música ser produzida no Brasil. Quem realmente se internacionalizou pra valer foi através dos EUA - Sérgio Mendes, Tom Jobim, João Gilberto. Agora está havendo uma tendência de um pessoal (o Milton, o Djavan) gravar lá e, a partir de edições norte-americanas, chegar ao mundo inteiro. É evidente que a música brasileira deve chegar lá através dos músicos. Se isso não acontecer, ela vai ser absorvida e transformada em outra coisa. Vai acabar acontecendo o que aconteceu com a bossa nova - de vinte anos depois, porque despertou o interesse de um grupo inglês, volta para o Brasil e é (re)conhecida aqui.
BIZZ - E no Brasil a situação caminha para o lado oposto. Toda uma geração de músicos e ouvintes está privada de conhecer os valores que, por exemplo, influenciaram gente como você, o Caetano, o Gil... Não se ouve Waldir Azevedo, Tom Jobim, Jacob do Bandolim, João Gilberto, música latino-americana, soul e tanta coisa mais na rádio. As referências vão se perdendo...
Chico - É o que venho dizendo há muito tempo! As pessoas dizem que sou contra o rock. Não sou contra. Sou contra, por exemplo, a só se ouvir sambão o dia todo, ou só rock. Não há quem agüente. Eu não agüento. E mais, acho empobrecedor para o ouvinte, principalmente para o garoto que tá com 16, 17 anos de idade, quando ele está aberto para tudo... Eu vejo isso na geração da minha filha. Qualquer coisa, se for boa, eles gostam mesmo! Não têm distinção, não há preconceito algum. E música boa se faz, pô, em toda parte.
BIZZ - Como você enxerga o rock nacional?
Chico - Tenho ouvido e lido coisas bem interessantes. A nível de letra, tem coisas muito boas. A linguagem rock... é muito interessante. Musicalmente confesso que não posso dar muitos palpites, porque não é minha especialidade. O rock me influenciou quando eu tinha 15, 16 anos de idade - eu ouvia Elvis Presley. Acho que há elementos de rock na música brasileira há muito tempo; aliás, sempre houve influência da música estrangeira - principalmente a música americana - o que sempre foi combatido pelos grupos radicalmente tradicionais, mas sempre acabou sendo assimilado. Só que depois as pessoas se esquecem que, por exemplo, o Pixinguinha foi acusado de ser fortemente influenciado pelo jazz, ou que a bossa nova, para muitos, era música norte-americana. Hoje tem essa coisa de querer hostilizar o rock; isso é besteira. Eu me interesso pelo rock na medida em que ele vá sendo assimilado ou que ele assimile também elementos de música brasileira. Porque senão a música brasileira vai ficar sempre a reboque da música de fora. Acho que, assim como podem entrar elementos de rock na minha música, o rock nacional tem de assimilar elementos da música brasileira, rítmicos ou harmônicos. Pode se criar uma coisa inteiramente nova. O Brasil é capaz de uma contribuição musical a nível universal, porque a música brasileira é universal, é muito forte - você pode colocá-la no primeiro time da música universal. O próprio rock nacional, quando for mesmo brasileiro, vai ter condições de sair por aí, ser exportado e de arrebentar.
Por Carla Rodrigues, Melchíades Cunha Júnior e Sérgio Vaz
Quando esteve há pouco na pequena e bela cidade mineira de Tiradentes, gravando para o Fantástico o videoclip de sua nova música O Velho Francisco, Chico Buarque de Holanda foi abordado por um velho senhor que fez questão de apertar sua mão e de anunciar, orgulhoso: "Eu sou comunista". Chico conta essa história rindo muito, mas, na realidade, o que ele mais quer é se libertar dessa aura, dessa imagem de porta-voz da resistência à ditadura, de um ativista político que lutou contra o governo militar, contra a censura, pela anistia, pelas causas populares. Não que se arrependa, é óbvio, de sua história de lutas. Mas ele gostaria que sua arte - ele diz "meu trabalho" - fosse encarado sem mistura de estações, sem informações paralelas cruzando. "Gostaria de estar despojado de qualquer imagem anterior", deseja.
Ao lançar, esta semana, o disco Francisco-o 15° LP solo como cantor, e o 25º' de sua carreira de 22 anos -, Chico prepara-se para voltar ao palco depois de 12 anos de ausência. Desde sua temporada em 1975 no Canecão ao lado de Maria Bethania, ele não faz um show com carreira regular, um show só dele mesmo. Nestes 12 anos, participou de diversos shows coletivos, no Brasil, em Cuba, na Nicarágua, na França, na Suíça - mas sempre para apresentar apenas duas ou três músicas; aqui, foram em geral shows de sentido político, como os organizados pelo Centro Brasil Democrático no Morumbi, em São Paulo, no Beira-Rio, em Porto Alegre, ou no Riocentro, no Rio de Janeiro; e depois vieram os comícios políticos, pelas diretas ou por candidatos da esquerda. Eram acontecimentos, ele diz hoje, em que a preocupação artística ficava em segundo plano. Essa fase acabou. O encerramento oficial está marcado para o próximo dia 6 de janeiro, com a estréia de seu novo show no Canecão do Rio de Janeiro, de onde seguirá em março para o Palace, em São Paulo. "Quero chegar ali e cantar, e gostaria que as pessoas ouvissem com ouvidos novos."
No show, Chico pretende mostrar para ouvidos novos músicas velhas - desde A Rita, de seu LP de estréia, em 1966 - até as mais novas, que estão no LP Francisco e que ele suspeita desde já que não tocarão muito no rádio ("As rádios resistem muito a tocar música brasileira", diz). Nesse disco - que foi saudado por parte da imprensa como a volta de Chico Buarque depois de cinco anos de silêncio, embora ele tenha lançado um LP solo em 1984 e dois LPs com composições suas cantadas por outros intérpretes em 1985 -, Chico reconhece haver uma característica diferente de muitos dos anteriores. Traz músicas feitas exclusivamente para o próprio disco, e não criadas por encomenda para a trilha de um filme ou de uma peça. Apenas uma faixa, Bancarrota Blues, é da peça O Corsário do Rei. Todas as outras nove são criações recentes, e inéditas (quando fez seu LP Vida, em 1980, que ele hoje considera "sombrio", teve que regravar várias canções suas que já haviam sido registradas por outros cantores).
O disco traz outra característica absolutamente inédita: tem três capas diferentes. O artista gráfico Noguchi usou três fotos diferentes, e Chico gostou da idéia. Hoje acha que poderiam até ser mais capas, poderiam ser 20, 50. Um terço da tiragem do LP será vendido com cada uma das três diferentes capas, aleatoriamente. Não é de se estranhar o ineditismo: um ano antes de os Beatles revolucionarem a história das capas de discos colocando as letras de Sgt. Papper's na contracapa, Chico já havia lançado seu primeiro disco com as letras, prática absolutamente incomum na época.
No sábado, 7, um Chico Buarque de Holanda de 43 anos que aparenta no máximo 35, magro, saudável, sem barriga - há mais de dois anos só bebe vinho, em geral branco e moderadissimamente, às vezes passa um mês inteiro sem tomar um copo; faz planos de não beber absolutamente nada durante a próxima temporada do show -, conseguiu conciliar a visita de Afinal com sua rotina de todos os sábados. Por volta de 4 horas da tarde, dirigiu seu Gol de placas absolutamente enferrujadas - nunca a menos de 80 por hora - de sua casa no alto da Gávea até o campo do Polytheama, no Recreio dos Bandeirantes, meia hora ao Sul. O jogo contra o Nacional (20 minutos em cada tempo com 10 de intervalo) valia pelo Torneio de uma Nota Só que inclui seis outros times: Cachaça, Mambembe, Pelotudo, Raça e Simpatia, Trem da Alegria e Vento Forte. Terminou em 1 a 1, Chico correu muito, deu bons passes mas não fez gol, e o resultado, como analisou Ruy, do MPB4, "não espelhou fielmente o andamento da partida '. Estavam no campo do Polytheama os atletas" Evandro Mesquita (que joga no time), Raimundo Fagner, Luiz Gonzaga Jr., Vinicius Cantuaria e Aquiles, do MPB4; o público não-pagante (não se cobra entrada) era formado basicamente por gente humilde da região ou por aficcionados por futebol, mas incluía gente conhecida como Nelson Rodrigues Filho. Depois de um banho no vestiário do clube, vestindo de novo a mesma roupa com que recebeu Afinal às 2 horas da tarde em sua casa - camiseta azul-escuro sem mangas, calça clara, sandálias tipo havaianas -, Chico rumou, a 100 por hora, para o restaurante onde almojanta todo início da noite de sábado com os amigos do Polytheama, o Florentino, no Leblon. De lá passou rapidamente em casa, onde Luisa, de 12 anos, a caçula de suas três filhas, recebia dezenas de amigas para uma festa de Dia das Bruxas, e em seguida foi para a casa do amigo e produtor Vinicius França, na Lagoa, onde reuniu-se com os jornalistas de Afinal, o escritor Antônio Torres e o amigo Tarso de Castro, em volta do gravador, e falou de política, mau jornalismo, drogas, seu pai, suas filhas, desânimo nacional, saúde, e sua música.
Afinal - O Nelson Rodrigues dizia que você era a única unanimidade nacional. Todo mundo gostava do Chico Buarque, que era sinônimo de 100% de aprovação em termos de música. Depois você começou a escrever peças teatrais, a se expor com suas posições políticas e vieram as críticas. Como você viu tudo isso?
Chico - Em primeiro lugar, quando o Nelson Rodrigues fez a frase, ela não era, não chegava a ser um elogio. Primeiro porque não existe unanimidade nacional. Alias, o próprio Nelson disse que toda a unanimidade é burra. Mas isso foi uma história que rolou no tempo da Banda, é a história da Banda. De lá pra cá muita coisa aconteceu. E essa história de me malharem depois da Ópera do Malandro e tal não confere direito com a realidade, porque muito antes, nos fins dos anos 60, eu já estava descartado por uma faixa ponderável. Havia quase uma unanimidade contra, né? Você não se lembra porque não foi em você que doeu. Porque no tempo em que eu morava na Itália, no início dos anos 70, não era fácil. Era muito difícil até trabalhar, por diversos motivos. Não havia nada parecido com unanimidade. Pelo contrário, havia uma forte corrente contra o meu trabalho.
Afinal - Eram críticas contra o seu trabalho, ou críticas porque era um momento político conturbado no País?
Chico - É claro que eu não agradava a quem estava no poder. Mas não é isso o que eu estou falando. Estou falando é da crítica especializada. Em 1968, 1969, eu já era inteiramente superado para eles. Essas coisas são muito cíclicas. Você vai, depois aparece de novo, daí você é o maior ou é uma porcaria. Isso vai e vem, sobe e desce, há muito tempo. Eu já estou acostumado com isso, já não é novidade nenhuma para mim.
Afinal - Isso que você está dizendo coincide com o tropicalismo, aquele negócio de "ah, o Chico está ultrapassado"?
Chico - Isso começou na época do tropicalismo, quando havia uma coisa de colocarem uma rivalidade, uma disputa. Mas depois disso, algum tempo, eu não estava aqui, morava na Itália. Rapaz, quando eu voltei, e tinha aquele negócio de Lux Jornal, que mandava os recortes que falavam de você... Rapaz, não era brincadeira. Eu recebia aquele negócio e tinha que queimar, porque me fazia o maior mal. Era uma derrubação violenta.
Afinal - Que tipo de coisa tinha?
Chico - Tudo, tudo. Acabado, eu voltei para o Brasil como um artista terminado, isso em 1970, 1971...
Afinal - Mas a lembrança é de que você era endeusado, nessa época.
Chico - Não, a crítica em geral, a opinião impressa era muito desfavorável. Meus discos eram mal-recebidos, assim que saíam. A crítica era um pouco apressada. Depois que eu fiz o show no Canecão, em 1971, é que começou a haver um certo reconhecimento.
Afinal - Você tinha acabado de lançar o Construção?
Chico - Tinha lançado o Construção, aí saiu aquela crítica que não deixava pedra sobre pedra, "Chico Buarque com sua musiquinha de sempre... " Depois eles foram descobrir, inventaram que Construção era muito bom e aí começou o negócio a favor, um movimento a favor. Depois começou uma onda contra, mais outra a favor, outra contra... E aí é bom porque você pode detectar onde estão os motivos, as origens dessas ondas. Muita coisa você não pode detectar, muitas coisas permanecem misteriosas. Agora acontece também que essa onda, quando ela passa, traz muita coisa atrás. Você vê que uma notinha de jornal, uma notícia de coluna social do Rio de Janeiro, é reproduzida no Brasil inteiro. E a gente que mora aqui sabe a quantidade de besteira e de mentira e de distorção que sai numa coluna social no Rio de Janeiro, evidentemente de má vontade, de desonestidade. Eu não tenho a menor ilusão de que o Jornal do Brasil, O Globo ou colunistas sociais vão gostar de mim. Não gostam e eu acho ótimo que não gostem. Mas isso assume às vezes um ar de campanha, de noticiazinha plantada...
Afinal - Chico, você está olhando para caras que fazem imprensa e que são também malhadores da imprensa. Qual é a opinião que você tem da imprensa?
Chico - A minha opinião da chamada grande imprensa brasileira não é muito favorável. Evidentemente que eu não gosto e que também não precisam gostar de mim. Não é em tom de queixa, não. Eu estava constatando é que esse tipo de posição (da imprensa) interfere até no meu trabalho como artista. Como cidadão não concordo com a linha editorial de nenhum jornal ou revista brasileira. Não tem um que me satisfaça, nenhum. Eu não posso estar de acordo com a linha editorial do Jornal do Brasil, O Globo, da Veja, da IstoÉ, ou da Afinal. Não posso, a gente pensa diferente. Só que eu pretendo trabalhar, sou um artista e vivo da minha arte, meu disco etc. Estou lançando um disco ou fazendo um show numa casa noturna e tal, e estou querendo ser julgado por esse trabalho. Entendo que existam pessoas que não gostem, e existem mesmo, mas o que incomoda é essa carga negativa que vai influir na divulgação desse meu trabalho. Já enfrentei isso algumas outras vezes. Eu sei que as coisas vêm muito a reboque das outras e tal. E quando começa essa onda da reprodução de noticiazinhas, que é uma mediocridade, uma falta de originalidade, você sabe que ela vai percorrer o Brasil. E até acabar a onda você tem que ficar quietinho, quietinho, porque não adianta a gente ficar se queixando.
Afinal - Você separa, por exemplo, o cara que vai te entrevistar da publicação para a qual ele trabalha?
Chico - Eu não tenho um prazer especial em dar entrevistas. Eu só dou entrevistas para os amigos, mas acontece muitas vezes de dar entrevistas para amigos ou pessoas de confiança e a coisa depois ser manipulada, ser editada de uma forma desagradável. É chato isso, mas também não adianta você brigar, porque você sabe que não tem futuro essa briga. A última palavra é sempre do jornal. Já percebi isso várias vezes, uma coisa a favor, outra coisa contra. E vira moda ser a favor, e vira moda ser contra. Eu acho que quando vira moda ser a favor, dizem: " Mas por que que tem que ser a favor?" Então, o sujeito bate no peito e diz: "Eu tenho a coragem de ser contra". Aí todos os outros viram e vira uma fila de gente corajosa, todo mundo falando mal. E você vê isso muito claramente ao longo dos anos. São 22 anos de estrada: nada me surpreende nesse sentido e nada me ofende mais tanto, também.
Afinal - Nesses momentos em que você sentiu o movimento contrário, as críticas mais pesadas, você sentiu também alguma influência disso sobre o seu público?
Chico - É difícil sentir, se eu tivesse assim um contato direto maior...
Afinal - Mas influi ou não na venda do disco, no seu trabalho, na sua obra?
Chico - Se eu dissesse que essas coisas não me incomodam, seria mais elegante e bem mais inteligente, porque iria dar um desprazer grande a quem tem um certo prazer em destruir as coisas, o trabalho dos outros. Mas essas coisas me incomodam sim e atrapalham até na continuidade do meu trabalho. De repente uma carga muito violenta contra o teu trabalho... Eu sou uma pessoa insegura com relação ao meu trabalho o tempo todo. Eu sou crítico também do meu trabalho, demoro a resolver, tiro isso, ponho aquilo. E quando há uma carga muito forte, aquilo mexe comigo. Mas se você identificar bem, a origem ideológica, ou pessoal, tem muito disso, quer dizer, isso é um jornalismo provinciano. De repente você tem uma desavença pessoal com o fulano e não sabe de onde é que parte tal intriga. Aí, se você identificar direito, você supera com a maior facilidade. Mas se você não identifica, você fica um pouco mais perturbado. Você pode ficar paranóico, achando que está havendo um complô. Aí também é uma loucura. Você pode também questionar o seu trabalho e achar que ele vale a pena. Não estou querendo que aplaudam tudo o que eu faço, não. O que estou dizendo é que existe, muitas vezes, uma coisa manipulada, uma coisa dirigida.
Afinal - Há realmente esse poder todo da crítica sobre o produto cultural?
Chico - A crítica em si até é uma coisa menor, porque o que acontece hoje é que temos poucos críticos profissionais de música. Aliás, o crítico de música não faz crítica de música, ele faz só da letra. Publica um pedaço da letra e fala dela. Se o jornal não gosta do teu trabalho você está ferrado, porque o crítico pode ser até independente, publicar uma matéria isenta, mas a maneira como isso é colocado dentro do jornal, como é editado, muitas vezes não é.
Afinal - Tem algum crítico que você respeita no País?
Chico - Há críticos sérios. O Tárik de Souza é um crítico sério, a gente pode não concordar com isso ou aquilo, mas é um crítico honesto. Tem outros que eu não lembro o nome, estou falando dos que eu leio mais constantemente. O que acontece é que tem gente que exerce a crítica esporadicameme, que não é crítico de música, que é escalado para escrever sobre determinado disco. Mas eu quero sair dessa coisa queixosa, dessa coisa pessoal, de malhar fulano ou sicrano. Eu acho que não é por aí. O crítico de música popular muitas vezes funciona como o elo de uma cadeia que inclui gravadora, rádio, televisão e imprensa escrita. Isso tudo anda junto.
Afinal - É o problema da execução da música no rádio. o tal do jabá?
Chico - O problema do jabá, a corrupção que existe aí dentro... Isso é mais grave do que uma crítica negativa num jornal, muito mais crítico. Eu não vejo um jornal tomar a questão do jabá, por exemplo. Eu acho que não é a mim que vocês têm de entrevistar para ir fundo nesse assunto. Os jornais também são proprietários de rádios e televisões, então é uma questão que não interessa aos jornais tocar. As gravadoras multinacionais são anunciantes dos jornais, então no fim das contas...
Afinal - Você está dizendo que existe uma coisa conspiratória.
Chico - Você acha? E a culpa é de quem? Do crítico da Folha? Eu acho que a crítica da Folha é de menor importância para a vendagem do disco, o êxito do disco, o sucesso do disco. O que eu acho mais grave é a política cultural que a Folha ou outro jornal possa ter como uma constante em relação à música, ao cinema ou ao teatro brasileiro. Quer dizer, uma posição destrutiva, destrutiva mesmo, de dar destaque e abrir grande espaço só para esculhambar a cultura brasileira.
Afinal - E você acha que existe uma central para comprar isso?
Chico - Sem dúvida nenhuma que existe dinheiro para comprar uma página inteira de O Globo de hoje para lançar um produto qualquer. Eu não estou falando de jornalista, estou falando de jornalismo. Estou falando que tem críticos honestos, tem críticos desonestos, tem críticos esporádicos, tem críticos volantes, qualquer coisa, tem críticos subservientes que escrevem o que o editor mandar, tem críticos independentes. Mas o certo é que existe em alguns setores da imprensa uma posição sistemática de esculhambar tudo o que é brasileiro.
Afinal - É conspiratório, então?
Chico - Eu não tenho a menor dúvida de que existe isso, uma coligação para acabar com o Brasil, para desmoralizar a cultura brasileira. Eu acho que desde 1964 vocês conhecem isso.
Afinal - Mas ao nível de um negócio, assim de conspiração, muito ao gosto dos adeptos da teoria conspiratória da história?
Chico - Eu acho que existem aí - ou eu estou sendo paranóico - grandes interesses em jogo. Basta você ligar a televisão e ver a programação comercial. Então sempre existiu e está existindo cada vez mais. E quem sai perdendo com isso? Quem não tem dinheiro para financiar a mídia. E a imprensa é cúmplice disso, é evidente, porque ela tem interesses. Eu comprei uma briga com a PolyGram. A imprensa vai ficar do meu lado ou do lado da PolyGram. O que você acha'?
Afinal - Eu não sei. Você está dizendo que a imprensa fica sempre do lado do empresário.. .
Chico - Mas é evidente que fica. Eu acho que quando começa uma campanha em cima do Tom Jobim por causa da Coca-Cola a briga não é com a Coca-Cola nunca, a briga é com o Tom Jobim. Se o Tom Jobim está vendendo a música dele para a Coca-Cola, como disseram nos jornais, e se a Coca-Cola é ruim, então os jornais não deviam pegar anúncio da Coca-Cola. Deviam denunciar que em Bonsucesso morreu um cara talvez por causa da Coca-Cola, que havia Coca-Cola contaminada. Mas, não. Isso abafaram. Ninguém fala mal da Coca-Cola e todo o mundo fala mal do Tom Jobim. Por que? Se Tom Jobim começar a anunciar no Jornal do Brasil, na Afinal, na Veja, em O Globo, vão dizer que o Tom Jobim ficou riquíssimo com o dinheiro da Coca-Cola e começou a colocar anúncio. Aí talvez parem de falar mal do Tom Jobim, entende? Eu acho que há uma briga um pouco inglória, porque Tom Jobim nunca vai ganhar da Coca-Cola, e artista brasileiro nenhum vai ganhar.
Afinal - Nós sabemos bem como é que funcionam essas coisas.
Chico - Eu estou falando da imprensa, não estou falando dos jornalistas. Estou falando que existe muitas vezes uma campanha difamatória, e não é queixa pessoal, que eu não tenho mesmo. Agora, muitas vezes eu vejo jornais, por achar que não-sei-o-quê vende, dedicarem os seus espaços para esculhambar a cultura brasileira, que já não anda bem das pernas, porque está difícil. Você sabe lá o que é fazer um filme no Brasil? Eu não sou cineasta, mas tenho amigos cineastas. O Carvana, por exemplo, teve que parar um filme dele agora no meio. É muito difícil mesmo fazer arte no Brasil. Mas quando você consegue fazer alguma coisa por que não tratá-la com um pouco mais de respeito, quando se sabe que outras que não valem nada são colocadas nas alturas? Pode ter até uma crítica ruim, com o bonequinho sempre dormindo, mas o espaço que se vai dar etc. e tal é uma coisa doida. Você não vai me dizer que é de graça...
Afinal - O erro básico do jornalista brasileiro é ser leviano, pelo menos é o que acham todos os que estão te entrevistando neste momento.
Chico - Muitas vezes é leviano, é preguiçoso, etc. e tal. Agora, muitas vezes ele é muito mal pago, não tem tempo e não tem condições de trabalho. Eu não quero fazer a defesa do jornalista agora - mesmo porque não estou aqui atacando os jornalistas, estou atacando os jornais, os donos das empresas. Senão eu não estaria aqui dando entrevista para os meus amigos, que são jornalistas da maior responsabilidade, que eu respeito muito. Tem jornalistas fantásticos neste país e o jornalismo que se faz é uma merda, entende? Então eu acho que alguma coisa está errada e o jornalismo independente não está dando certo, porque não conseguiu unir a qualidade à quantidade.
Afinal - Você está falando dos jornais como empresa, não é? Eu falei disso: jornalismo como empresa.
Chico - Então eu sublinhei o que você (Tarso de Castro) falou, porque pouco tempo antes de você entrar queriam que eu falasse sobre os críticos. Então eu não acho que você tenha razão e nem motivo para ter vergonha de ser jornalista.
Tarso - Eu não tenho vergonha não. Eu não gosto de jornalista, essa é que é a verdade.
Chico - Eu acho que a diferença em tudo isso é que é mais fácil atacar o empregado do que o patrão. Aliás eu não ouço muita gente falar mal do Roberto Marinho, nem mesmo no Jornal do Brasil, porque o Jornal do Brasil quando briga com os outros briga por baixo, não briga por cima. Eu acho, e já falei disso, que há jornalistas subservientes, aqueles que estão lá para fazer o que o patrão mandar, como há jornalistas independentes. Agora, o que estou discutindo, é que em termos de cultura não entramos nem no primeiro caderno.
Afinal - Mudando um pouco de rumo: esse seu novo disco tem um certo toque de melancolia e eu parei pra pensar sobre isso. Se essa melancolia é uma coisa inerente à própria arte, se a beleza da arte encerra uma certa melancolia, principalmente a música, ou se essa melancolia tem algo a ver com a lágrima. O que você acha disso?
Chico - Não sei dizer exatamente e nem acho que o disco seja especialmente melancólico. Mas eu acho que a música brasileira tem um quê de melancólica, sempre.
Afinal - Você quer dizer que a música latino-americana tem isso?
Chico - Teria que pensar um pouco. Eu não sei, não, porque na música latino-americana os ritmos todos puxam para cima. Agora, no caso da música brasileira, o próprio samba, que é um ritmo negro e tal, ele carrega uma melancolia maior do que a rumba cubana, do que a música jamaicana. Eu teria que pensar um pouquinho para responder, porque o meu disco, inclusive, procura fugir um pouco do tom melancólico. Eu estou querendo desviar um pouquinho, mas quero terminar essa coisa da imprensa aí, inclusive para passar a limpo essa história. Faço questão de deixar clara a minha posição: eu não gosto da imprensa, tenho meus motivos para não gostar e acho que, ideologicamente, está inteiramente afastada a possibilidade de uma reconciliação. E entendo que isso não afeta profundamente o meu trabalho, nem a repercussão do meu trabalho junto ao público. Realmente não afeta. Então, não é o caso de eu ficar me queixando: "Ah, estou assim porque a imprensa não sei o quê..." Mas quando eu vejo, por exemplo, o caso do cinema brasileiro, que depende da situação econômica do Pais, que sofre hoje muito mais do que a música... O cinema está quase inviável no País, além de ser bombardeado, está quase falido. Daqui a pouco nós não vamos mais ter cinema brasileiro, com essa mentalidade colonizada de gostar de tudo que vem de fora..
Afinal - Mas o cinema brasileiro é de qualidade?
Chico - É claro que é de qualidade, e o teatro brasileiro também é de qualidade.
Afinal - Mas você tem resposta do público. Porque que o cinema brasileiro não tem?
Chico - Também tem, também tem. Vá ver a sabotagem que existe por parte das distribuidoras. Vai me dizer que não existe interesse aí? Quando um filme brasileiro está bem em cartaz eles tiram, porque é mais barato um pacote de filmes estrangeiros, porcaria. Então, o que eu quero dizer é o seguinte: de todas as artes, o cinema é a que mais depende de público. Agora então está ferrada, não pode aumentar o ingresso porque o povão não tem dinheiro. O povo está sem dinheiro e vai ver o quê? Vai ver aquilo que tem condição de anunciar a cada cinco minutos, em intervalo nobre da TV Globo. Para o teatro brasileiro teve uma época em que a Rede Globo dava um negócio chamado "janela", dava assim de graça, como um anúncio. Suspenderam isso porque houve uma briga com o sindicato e cortaram esse favor que a Rede Globo fazia ao teatro brasileiro
Afinal - Você está falando de coisas que parecem ser uma defesa do nacionalismo, que dão a idéia de um discurso que todos nós fizemos a uma certa altura, de entusiastas defensores da cultura nacional, dos valores brasileiros. Não há um certo ranço protecionista nessa colocação?
Chico - É, no fim vai acabar soando como isso, né? Mas realmente há um desprestígio tão grande por tudo o que se faz no Brasil...
Afinal - Mas essa história toda começou com o Estado autoritário, interferindo em tudo...
Chico - E a cultura ficou fora do projeto deles, né? Deixaram continuar prosperando? Não, o cinema como a indústria farmacêutica brasileira acabou. E por que a indústria do disco iria continuar? Existia, não existia? Mas acabou. Eu era contratado, inclusive meus três primeiros LPs foram gravados numa gravadora nacional. Hoje, existe uma, endividada, que é a Continental, uma só. Cinema, então, nem pensar, eles estão acabando com tudo. Aí, daqui a dez anos, você vai me dizer se eu tenho razão. Acabou. Quando acabar tudo, ninguém mais vai poder gravar seu disco. E quando ninguém mais puder gravar um disco, quando ninguém mais puder fazer um filme, quando ninguém mais escrever uma peça, porque não vai ser montada, a cultura brasileira vai ser uma merda mesmo, porque não vai mais poder existir. E eu não estou falando que o Estado vai ter que socorrer.
Afinal - Qual é a saída então?
Chico - Eu acho que o Estado que está aí é incompetente, é ilegítimo porque, em primeiro lugar, não tem nenhum respaldo popular. Em segundo lugar, as leis que protegiam o cinema brasileiro e a música brasileira são anteriores a esse Estado que está aí, e não são respeitadas. Se o Estado não tem força, se não tem moral para enfrentar a Autolatina e nem empresário nenhum, vai enfrentar quem? Vai enfrentar a Rede Globo? Não vai enfrentar e nem vai obrigar a Globo a apresentar a porcentagem de música brasileira, que é uma lei do tempo de Jânio Quadros. A lei de proteção ao cinema brasileiro, por exemplo: os Estados Unidos se protegem contra o calçado brasileiro; por que a gente não faz o mesmo em relação ao cinema americano?
Afinal - Então qual é a saída, Chico? Porque nós tivemos o Estado intervindo de forma violenta e agora você vê, por exemplo, a Autolatina desafiando o Estado. Esse negócio deixa a gente meio perplexo, né?
Chico - Olha, o Estado nesse tempo todo de ditadura e tal só interferiu contra a cultura brasileira, só contra. Então vamos dizer que, no mínimo, acabe a censura, acabe a repressão aos artistas criadores. Não queremos que atrapalhe mais.
Afinal - Quer dizer que você é contra a intervenção do Estado?
Chico - Quer dizer, leis de proteção de mercado, o mínimo, isso você tem que ter evidentemente. Você tem que proteger os pequenos porque senão vale o que tem mais dinheiro. Se valer o poder da grana, abrem as reservas indígenas para catar minerais e cortar aquela madeira toda. Acaba tudo. Acaba o índio, acaba a música, acaba o cinema, acaba o teatro. Então, é claro que o Estado tem que proteger, porque aí nós somos os mais fracos. Qualquer multinacional é mais forte do que qualquer gravadora brasileira, qualquer multinacional de cinema é mais forte do que qualquer cineasta brasileiro que arrisca numa produção caseira, porque é assim que se faz cinema no Brasil. Você vê a Embrafilme: está falida.
Afinal - Você acha que o artista tem que ser livre para criar...
Chico - É evidente que tem que ser livre para criar...
Afinal - Tudo bem. E as outras pessoas que não sejam artistas?
Chico - Também têm que ser livres para trabalhar. Eu sou a favor da liberdade.
Afinal - Você acha que estamos correndo o risco de cair no marasmo cultural?
Chico - Se a produção cultural brasileira continuar assim tão maltratada, vai para o marasmo mesmo.
Afinal - Mas hoje há marasmo cultural, na sua opinião?
Chico - Não, hoje não há ainda marasmo cultural porque existe gente nova fazendo coisas. Existe uma porção de gente nova com vontade de fazer as coisas e muitas vezes sem poder fazer, porque não há condições econômicas, por exemplo, de se montar uma peça de teatro. Existem inúmeras pessoas de qualidade e talento para fazer tudo: representar, cantar, dançar com entusiasmo, e sua oportunidade é mínima. Ou se tem a janela da Rede Globo ou então, elas não aparecem. Tem muita coisa boa, sem dúvida.
Afinal - Você não acha que estamos sofrendo a pior coisa que um país pode sofrer, que é a total desesperança que advém do fracasso das diretas, do fracasso do Tancredo, do fracasso do Cruzado, do fracasso do governo civil? Não é este o nosso problema?
Chico - Esse é o problema. Ninguém gosta mais deste país. E quem gosta - porque a gente fica fazendo música porque gosta, porque a gente se alimenta deste país - vai cantar no deserto daqui a pouco. Se continuar assim, porque aqui só prospera quem não gosta deste país, quem está aqui para explorar, cobrar os juros da dívida e não sei do quê, ou pra botar uma grana e tirar fora, ou pra roubar e botar no banco da Suíça.
Afinal - E você acredita neste país?
Chico - Eu tenho que acreditar. Eu acho que cada disco meu que sai, ou de qualquer um - tem uma safra de discos agora, tem o meu, o do Caetano, o do Djavan, o disco do Milton - dá uma força danada, porque é uma proeza conseguir ainda fazer isso. E estou falando de gente assim, para não falar do pessoal mais novo, do pessoal do rock, que conheço menos mas que está aí trabalhando, fazendo coisas. Esse pessoal do rock, que diziam há algum tempo que estava acabando com a MPB, eles próprios já estão sendo alijados da programação de rádio, porque agora existe a música brega.
Afinal - O brasileiro está num baixo astral tão grande que está difícil segurar, não é mesmo?
Chico - Eu estou sentindo um clima de fascismo nas ruas, no trânsito, na cara das pessoas, como eu nunca tinha visto neste país. Essa prepotência de quem tem alguma coisa, de quem é dono de alguma coisa, que tem um Mercedes do ano, é lógico que também está ligada a isso, a essa violência que a gente está vendo. A classe média que está se salvando com medo de cair de status; a classe média alta com medo de virar classe média baixa, e a classe media baixa com medo de se proletarizar. Isso tudo é uma doença terrível. Olha, me desculpem, mas uma parcela considerável da classe média que partiu para as diretas-já é a mesma que 15 anos antes botava "Brasil, Ame-o ou Deixe-o" no vidro traseiro do carro. Não é que a classe média é uma bosta, é que existe uma maioria silenciosa que realmente é facilmente manobrada. Eu já disse isso em 70 e poucos, quando estive na Argentina, quando a classe média do "Brasil, Ame-o ou Deixe-o", "Brasil, Ame-o ou Morra" ia a Buenos Aires para comprar coisas na Calle Florida. Eu estive lá mais de uma vez e via brasileiros lotando as churrascarias e ficavam lá cantando "Eu te amo, meu Brasil, eu te amo". Eu tinha nesse momento uma vergonha profunda de ser brasileiro, maior do que a vergonha que o Tarso falou.
Afinal - Aqui no Brasil há uma dificuldade muito grande de as pessoas se assumirem: ninguém é de direita, todo mundo é de centro, de esquerda, ou de centroesquerda.
Chico - Não se diz que é de direita nem nos cadernos culturais dos jornais, porque existem pensamentos de direita bastante sólidos. Na França, por exemplo, as pessoas que escrevem no Figaro, que é um jornal sabidamente conservador, não têm vergonha de ser de direita. A nova direita tem seus ideólogos, essas coisas são repetidas aqui, só que ninguém diz: "Somos de direita". Por que? "Nós somos modernos", respondem. Ou então dizem: "Não existe direita, não existe esquerda", ou uma coisa assim.
Afinal - Você não acha que neste momento a direita está perdendo a vergonha de se manifestar?
Chico - Você está falando de quem'? Da UDR da UBE, ou alguma coisa assim?
Afinal - De todos os segmentos. Essa vergonha de ser de direita está desaparecendo. Não te parece isso não?
Chico - Ninguém diz que é de direita. Diz o Amaral Neto e aí o outro que vem atrás diz: "Eu sou de esquerda, mas concordo com o Amaral Neto". Eu prefiro o Amaral Neto ao que vai atrás e diz isso.
Afinal - O fato é que a esquerda se retraiu e a direita se assanhou, e tudo bem. E perfeitamente explicável, porque nós tivemos aí um carnaval incrível de incompetência da esquerda, e você inclusive foi um dos caras que se preocupou muito com isso, porque achava que as coisas não estavam bem postas, que precisavam mudar. Acontece que o poder permaneceu com a direita e nós ficamos a ver navios, porque nós fizemos a campanha das diretas, fizemos aquela coisa toda, elegemos o Tancredo e o Tancredo morreu, e estamos com Sarney, nesse clima de descrédito, desconfiança, de lassidão. Qual é a saída?
Chico - Não sei. Estou muito cansado para saber qual é a saída. Realmente estou cansado, já falei bastante. Eu estou falando sozinho e realmente é muito desagradável, com as pessoas ao meu redor, ficar falando de política. É uma conversa cansativa, ninguém quer saber e então eu me sinto um pouco cansado também de falar de um assunto que não vai interessar a ninguém.
Afinal - Pronto, mudou. Acabou esse papo. Ô Chico, como é que os "enta" estão tratando você. Como está sendo a vida depois dos 40?
Chico - Bem. Estou bem disposto. Eu acho que me dei conta de que tinha 40 anos. Eu acho que mudou porque você não se dá conta antes da tua idade. Então nesse sentido eu acho positivo, o balanço final é positivo.
Afinal - Você está muito jovial. Isso tem a ver com a saúde?
Chico - Bom, é claro. Você se cuida um pouco mais, você briga contra a tua idade, quer correr mais do que você pode e começa a enfrentar probleminhas aqui e ali, que antes você não tinha.
Afinal - Achaques?
Chico - Não, eu não me queixo muito da minha saúde, não. Sou uma pessoa bastante saudável. Só que você tem que se cuidar um pouco mais.
Afinal - Esses cuidados de que você fala, por exemplo, você não bebe mais uísque?
Chico - Não.
Afinal - Você parou de beber?
Chico - Estou tomando vinho, moderadamente. Hoje fui obrigado a tomar mais do que a minha média. Não que eu tenha ordenado a mim mesmo "eu vou parar de beber". Eu acho que o meu próprio organismo começou a querer menos algumas coisas. Ou o meu organismo está muito saudável ou ele falou "chega". Não dá, simplesmente eu estou enjoado de uísque. Não gosto nem de cheirar, não gosto e não quero tomar. Ou você acha que estou fazendo algum sacrifício para não tomar uísque? Às vezes passo três meses sem beber coisa nenhuma. Estou pensando em ficar sem beber para fazer o show, coisa que eu nunca fiz. Sempre tem aquela coisa, aquele rito de que você não pode entrar de cara limpa, careta.
Afinal - Você já experimentou drogas?
Chico - Já experimentei, sim. Maconha, cocaína, mescalina, ácido e haxixe...
Afinal - Para fazer shows?
Chico - Não, para fazer show você está maluco. Para fazer show não dá, não dá aliás para nada. Eu não sou um drogueiro. Sou contra as drogas, eu as conheço e te digo que não vale a pena. Pelo menos no meu caso não vale a pena mesmo, até porque se bobear eu sou uma pessoa que, por temperamento, é capaz até de ir longe em qualquer viagem dessas, até pelo desafio, pelo gosto da aventura.
Afinal - Nesse seu último disco tem uma faixa em que parece que você está falando sobre suas três filhas, que está com ciúmes, que está muito preocupado com elas. É isso mesmo?
Chico - Não, eu não digo isso. Nessa música eu digo que tenho ciúme, que sou possessivo e que tudo isso é uma grande besteira. Que é inútil eu ser ciumento, que é inútil eu ser possessivo, que é inútil eu dizer que são minhas, são minhas, são minhas, porque elas não são, elas já vão embora e essa sensação de perda é sem parar. Isso faz parte também dos "enta". A gente começa a perder muita coisa...
Afinal - E por falar nisso, os "enta" estão mesmo te tratando bem?
Chico - Então, você não vai conseguir que eu desminta isso. Estão porque eu não estou me sentindo mal. Antes já me senti até mais angustiado, porque está muito ligado também a essa coisa, para ser sincero, ao processo de criação. Quando você está fazendo as coisas você se sente muito melhor. Qualquer artista, eu acho, passa por isso, passa pela crise de criação. Nessas horas eu fico angustiado.
Torres - Eu te acompanho há muitos anos, praticamente desde o começo, e noto uma coisa: os artistas de um modo geral, vá lá, eu também sou um deles, são levados muito para o individualismo, o narcisismo, acho até que eles precisam dessa carga narcisista... Mas no seu caso, eu observo que você - desculpe falar isso de corpo presente - é um brasileiro voltado para a solidariedade. É impressionante esse seu traço, você tem uma consciência das pessoas como pouca gente neste país tem. Você sabe quem está fazendo tudo no Brasil, você acompanha tudo, o que não é um traço muito comum nas pessoas do seu nível, da sua fama.
Chico - Eu receio que tenha que desmascarar um pouco isso porque eu não concordo com tudo. Em primeiro lugar, como eu já falei. vem o ato da criação. Então é um ato muito isolado, muito individual e narcisista também. E eu preciso dele, porque sem ele eu sou incapaz de ser solidário, eu só até incapaz de pensar no outro. Quer dizer, a minha atividade fora da criação, fora da música e tal, é uma conseqüência desse trabalho. Eu preciso estar bem comigo para poder ir além. Agora eu não vejo isso como uma exclusividade minha. Eu acho que os artistas brasileiros são extremamente atentos ao que se passa em volta deles, muito atentos a tudo, cada um a sua maneira, que eu vejo até com muita inveja. Aí eu falo em inveja e a revista põe que eu tenho inveja dos outros, como se a inveja fosse um sentimento horroroso. A inveja é ruim quando é aquela inveja paralisante. Eu tenho inveja no sentido de dizer: "Poxa, eu gostaria de fazer isso ou aquilo". Então não é paralisante, é mobilizante. Existe uma gama imensa de artistas que prestam atenção em tudo, que têm uma noção do que é o povo brasileiro e isso você percebe na obra deles. O Caetano Veloso saca tudo o que está se passando no Brasil e ele expressa isso na sua música e não precisa dizer também num comício. João Gilberto pode ficar trancado na cobertura dele, pode ser pessoalmente até egoísta. Mas está sacando tudo. Você vê Guimarães Rosa e vê a vida dele. Ele não teve uma atividade pública especialmente solidária. O sujeito está lá dentro do quarto dele, um músico maníaco, um diplomata, e está sacando pela buzina que está lá fora. Não precisa sair aí e ver a face de cada pessoa; ou ver a beleza que existe no interior de Minas. Vim de lá agora e vi a beleza que existe, uma coisa tão rica, tão bonita e tão necessitada de ser protegida. Então as pessoas manifestam isso assim numa sala. Eu vejo um show do Gilberto Gil, como eu vi agora em Cuba, e vejo que sacação, não só do Brasil como também do negro, que daí vai para a Nigéria, para a Jamaica. Ele mostrou aquilo em Cuba e o pessoal sem entender uma palavra do que ele dizia, mas sacando tudo. Porque aquilo é o espelho de uma sacacão pessoal de vida. Ele está transmitindo numa língua que o povo não está entendendo e entende, porque é profunda, é sincera. O artista é isso.
Afinal - Quando você sacou que seu pai era genial? Ou você ainda não sacou isso?
Chico - É meio difícil falar de pai...
Afinal - Mas você leu a obra de seu pai?
Chico - Tive dificuldade Resisti muito. Engraçado, isso é uma coisa que não dá nem para explicar, mas resisti muito. Até que uma vez eu cheguei pra ele e disse: "Eu estou lendo Raízes do Brasil". E ele disse: "Leia Visão do Paraíso, que é muito melhor, eu gosto muito mais". Mas é muito difícil falar sobre isso que você está me pedindo. Eu não tenho essa isenção para julgar meu pai e dizer que meu pai era genial. Eu sou incapaz de falar isso, porque há tantos sentimentos misturados aí. Eu o li, com dificuldade inclusive, depois de ele ter morrido. Porque eu parava em determinado parágrafo e ficava pensando nele, entende? Ficava na ligação, no meu contato pessoal com ele, e essas coisas se misturam quando leio seus livros.
Afinal - Como é que era o seu relacionamento com o seu pai?
Chico - Genial! (risos) Quando eu era pequeno meu pai era um cara que metia medo, porque ele trabalhava muito e eu fazia muito barulho e ele não gostava de barulho e tal. Ele ficou meu camarada, meu amigo, já na minha adolescência, quando comecei a dar sinal de independência, porque meu pai não tinha ligação com criança, não era do jeito dele. Ficou próximo, ficou meu camarada, até no sentido de cumplicidade, quando eu virei homem...
Afinal - Mas nunca puxou o saco assim: "Ah, meu filho!"
Chico - Não, mas de jeito nenhum. Imagina meu pai me puxar o saco (risos). Imagina, e meu pai ia ficar incomodado ou deslumbrado com o meu sucesso, mas de jeito nenhum. Ele devia achar meio engraçado, devia ficar às vezes um pouco orgulhoso disso ou daquilo. Ele não dava muito palpite na verdade. Às vezes, quando tomava um pilequinho, ele deixava escapar alguma coisa, mas ele nunca interferiu não.
Afinal - Você acha que seu pai cresceu ainda mais tendo um filho como você?
Chico - Eu não posso falar isso para você. Quer saber o que meu pai achava de mim? É isso? Pois bem, dessas coisas não se falava em casa, tem coisas que não se diz. Ficava quieto, mas havia aquela cumplicidade, aquela coisa. Agora tem uma coisa gozada: eu fui criado com muitas pessoas me perguntando se eu era filho do Aurélio. Eu fiquei com horror dessa história de ser filho do Aurélio o tempo todo "Você é filho do dicionário?" (risos) Daí um dia eu dei uma entrevista pro Pasquim e falei que não tinha nada com o Aurélio, que ele nem era meu parente...Depois um tio meu me esclareceu que realmente ele é meu parente, um parentesco distante, mas é. Mas tem gente que acha que eu sou filho mesmo é do Aurélio, e não do Sérgio Buarque de Holanda. E o chato é que o Aurélio sempre vendeu mais livros do que meu pai (risos). Há algum tempo eu estava fazendo um programa na Rede Manchete e aí passa o Adolpho Bloch e diz: "Ah, Chico Buarque, como é que vai seu pai? Eu gosto muito dele, eu o vejo sempre lá na Academia". (risos). Meu pai já tinha morrido e eu fiquei assim sem clima para dizer. Quer dizer, o Adolpho Bloch pensa que eu sou filho do Aurélio.
Afinal - Se você sempre insistiu em dizer que seu pai era Sérgio Buarque de Holanda é porque você já tinha sacado que tinha um pai genial. Ou não?
Chico - Não vou entrar por aí. Talvez saia pela tangente. Vou dizer o seguinte: é um pouco difícil julgar meu pai, o intelectual com essa frieza, com essa distância. Vou dizer que eu fui tendo aos poucos, e cada vez mais, uma consciência da dignidade dele como ser humano. Aí é uma coisa que me marcou mais que qualquer outra, é uma coisa que, aí sim, me marcou para sempre. Quer dizer: eu sou filho de Sergio Buarque de Holanda e eu tenho que fazer jus a esse nome.
Afinal - Mudando, outra vez, de rumo: Chico, e o público jovem?
Chico - Eu não acredito absolutamente que haja alguma incompatibilidade entre o que estou falando e o ouvido dos jovens. E evidente que eu não pretendo falar na linguagem dos jovens, não pretendo "empatotar" com os jovens. Mas também não acho que a minha conversa, o meu discurso, que a minha música seja uma música que não interessa a eles. Eu espero que o pessoal novo vá assistir ao meu show, gente que nunca me viu no palco. Tem que ter gente nova, porque eu não vou fazer show só para os quarentões. Eu preferia não ter imagem nenhuma e chegar e apresentar o meu trabalho pra gente que não o conhece, sem nenhum preconceito, sem nenhum juízo formado. Gostaria muito que fosse assim. É claro que estou sonhando. Tem uma garotada que tem uma informação meio estratificada. Essa coisa toda da participação política, isso tudo pesa muito na minha imagem. Não pesa no sentido positivo, não; pelo contrário. Eu gostaria de estar despojado de qualquer imagem anterior. Não que eu me arrependa do que eu fiz, não é nada disso. Mas eu gostaria de chegar ali e cantar o que eles não conhecem, ou porque é novo, ou porque é velho, e que as pessoas ouvissem aquilo com ouvidos novos, sem nenhum tipo de informação paralela cruzando, que eu acho que só vai atrapalhar. Eu estou entrando ali de cara limpa; eu vou fazer um show como na verdade não faço há uns dez, 15 anos. Um show só meu, eu ali mostrando o meu trabalho, desde talvez A Rita até o meu último disco, um trabalho que não é maior nem menor, mas é separado dessa imagem criada pela mídia. Você cria uma imagem, depois que você cria essa imagem, se você não brigar com ela, você tá ferrado. Você tem que estar sempre quebrando a tua imagem, porque senão você se acomoda. A imagem é mais forte do que você. Se você bobear; você se deixa devorar por ela.
Afinal - Você tem idéia do que você se transformou na cultura brasileira?
Chico - Não, porque esse é o tipo de balanço de vida que eu não faço, balanço de obra. Eu não escuto nem mesmo as minhas musicas. Às vezes, na rua, alguém grita: "Ô, Chicão, Ô Chicão, tudo certo"? É um chofer de ônibus, que provavelmente não tem o meu disco e sabe vagamente quem eu sou. E isso é uma coisa boa. Mas essa coisa de "aaahhh", de "aue" no meio da rua nunca me seduziu.
Afinal - Chico, por que você não virou um bundão? (risos).
Chico - Aí vai voltar ao meu pai, de novo; vai voltar aos valores que eu conheci. Quando eu falo do meu pai eu vou sem querer para Carlos Drummond, eu vou para Antonio Candido, vou para Manoel Bandeira, vou para Mario de Andrade, e vou para Vinicius de Moraes, e vou para Tom Jobim. Vou para os meus amigos, para as pessoas que eu respeito, e vou para o meu pai, que eu não posso decepcionar.
Entrevista com Chico Buarque
Quais foram os tipos de música que mais marcaram o início de sua carreira musical?
Chico - Musicalmente, minha influência vem muito do rádio que eu ouvia na infância, principalmente música brasileira, mas também música americana, um pouco de jazz, alguma coisa de música francesa, principalmente alguns letristas como Brassens e Jacques Brel, música italiana, que na época eu tocava, os próprios boleros de Lucho Gatica... Tudo isso faz parte da minha formação musical. Agora, fundamental, pra mim, foi a entrada em cena da bossa-nova, quando eu realmente comecei a tocar violão e tentar fazer música. Eu compunha musiquinha no colégio e aquela coisa toda, muito de brincadeira, mas com a bossa-nova eu comecei a tomar contato com o instrumento e tentar fazer harmonias parecidas. Tentava imitar as harmonias do Tom Jobim, a maneira de cantar do João Gilberto... A influência é muito vasta, muito confusa até. Agora determinante mesmo pra minha formação como profissional foi a bossa-nova.
Houve alguma influência do movimento tropicalista na sua produção musical?
Chico - O tropicalismo assumiu e assimilou bastante rapidamente, por exemplo, a guitarra elétrica, coisas que até então eram consideradas sacrílegas - era um sacrilégio usar guitarra elétrica no samba. E ao nível de comportamento também, aquela influência dos Beatles e tal. Eu, de certa forma, não remo contra a corrente a vida inteira, mas, por temperamento, por natureza, eu resisto um pouco aos modismos e à penetração da música estrangeira aqui no Brasil, porque ela entra de forma maciça e ao cabo dos anos acaba realmente se integrando na música brasileira. Por exemplo, a bossa-nova se diz que tinha influências do jazz e tinha. Eu já peguei o bonde andando. Já peguei a música com harmonia mais sofisticada, mais tarde fui obrigado a introduzir nas minhas músicas os instrumentos eletrônicos - nas gravações, porque eu continuo sendo um compositor de pau e o meu violão é aquele violão careta mesmo, onde apreendi a fazer música e até hoje faço. É claro que de lá pra cá houve uma evolução muito grande na minha música, na medida em que eu fui não só tomando aulas teóricas como fui tomando uma intimidade muito maior com o meu instrumento. Hoje eu conheço o violão bastante, eu procuro harmonias, eu me divirto muito com isso, eu crio. Tenho uma preocupação na construção harmônica que eu não tinha nas primeiras músicas que, apesar da influência da bossa-nova, eram harmonias quase simplórias, era um pastiche porque eu queria fazer bossa-nova mas não sabia. Hoje eu tenho um caminho meu, eu sei o que estou fazendo com o meu instrumento. Em outras palavras, sou menos intuitivo do que era antes.
E essa sua mais recente ligação com a música cubana, a que se deve? Há muita semelhança entre as músicas cubana e brasileira?
Chico - A música cubana e a música brasileira sempre caminharam juntas, ou melhor, sempre trilharam caminhos paralelos. Se tomarmos conhecimento da música cubana é claro que ela é diferente da brasileira, mas as origens são as mesmas, a mestiçagem é a mesma. Como eles tem lá a rumba ou som que lá fora ficou sendo conhecido - comercializado - como salsa, aquele ritmo dançante corresponde um pouco ao samba no Brasil. Por exemplo, nos anos 50 eles tiveram um movimento chamado "filin", do inglês sentimento, que se formos ver, é muito parecido com o samba-canção: Dolores Duran, as harmonias de Johnny Alf. Era uma coisa bem sofisticada, bastante próxima do samba-canção. Mais tarde também a bossa-nova influenciou os cubanos. Essa questão da entrada dos instrumentos eletrônicos via Brasil chegou a Cuba. É um fato curioso: na época o diretor do ICAIC, o Instituto do Cinema Cubano, esteve no Brasil, por volta de 69. Ele era muito amigo dos cineastas todos e levou uma quantidade de discos brasileiros pra lá. E nessa época estava se formando um grupo que se chamava: Grupo de Experimentação Sonora, que estudava teoria pra fazer música para cinema. O ICAIC foi fundado no ano da Revolução. O cinema cubano já estava bastante evoluído e a música continuava um pouco aquilo: era o cha-cha-cha, a rumba, o som. E essa geração que se formou pra fazer música pra cinema é a geração que se conhece hoje como a Nova Trova do Silvio Rodriguez e do Pablo Milanés. Há uma série de coincidências e hoje eles têm a música deles, essa influência já é longínqua, mas eles têm um parentesco conosco. Por exemplo "Pequeña serenata diurna" do Silvio Rodriguez e uma homenagem explícita à bossa-nova na criação dele, é uma bossa-nova cubana.
A partir do seu disco "Pelas tabelas" parece haver uma preocupação bem maior com os arranjos de sua música. Como foi que isso aconteceu?
Chico - Nos primeiros discos as músicas passavam do violão para o arranjador, que criava o seu arranjo. Hoje em dia eu continuo precisando do arranjador, mas faço questão de acompanhar no estúdio cada passo da gravação; cada acorde meu eu quero que seja respeitado e ele é respeitado. E não é desde agora, já em discos anteriores, com o Francis Hime, ele transpunha pro piano os mesmos acordes que eu tinha criado no violão. Já a partir do penúltimo disco, esse que tem o "Pelas tabelas", eu participei mesmo da produção do disco ao lado dos produtores: o Homero Ferreira no caso dos dois discos, naquele primeiro com Chico Batera e agora com o Carlinhos Vergueiro co-produzindo. Acompanhei todo o trabalho, na escolha dos músicos também eu dava palpite. Não encontrava o prato feito como era antigamente: eu entregava a música e depois ia botar a voz lá adiante; tinha um lapso no meio do caminho que eu não acompanhava e agora não, eu faço questão, tomei gosto pelo estúdio. Antigamente eu fazia discos e outras coisas ao mesmo tempo, por exemplo shows, e hoje não. No caso atual, estive gravando durante quatro meses, normalmente gravando e compondo ao mesmo tempo, e fazendo somente isso.
Houve, ao que nos parece, uma acentuada mudança na sua interpretação a partir do show Caetano e Chico Juntos. Como se deu essa mudança?
Chico - Em primeiro lugar tem a ver com o Caetano, porque como foi um show em dupla e o tom do Caetano é mais agudo que o meu, eu era obrigado a soltar mais a voz. Ao lado disso está a entrada dos instrumentos eletrônicos - porque antigamente eu estava fazendo show e, de repente, era só eu e o violão, muitas vezes eu com o violão e mais o Toquinho também com o violão acústico. A partir dos anos 70 era obrigatório, já de cara, o baixo elétrico, porque ninguém mais carregava aquele trambolho de cima pra baixo, e também a guitarra elétrica. Já não havia mais aquela coisa intimista da bossa-nova e eu, que cantava querendo imitar João Gilberto e aquele som todo acústico, era obrigado a soltar mais a minha voz, em função do acompanhamento que era todo mais gritante, mais estridente. Fui atingindo outros níveis que eu normalmente não ousava, fui soltando mais a voz.
No disco "Sinal Fechado" você praticamente só interpreta canções de outros compositores. Isso se deve unicamente à censura da época ou não?
Chico - Era uma idéia que já existia, não foi uma emergência. Foi também uma emergência porque foi um ano especialmente difícil em termos de censura, eu não tinha material liberado para fazer um disco. Daí a idéia de fazer um disco com música dos outros. Um pouquinho pra me afirmar como cantor, já que era muito contestada essa afirmação. Eu já há muito tempo pensava: "Ah! Um dia eu vou gravar um disco como cantor." Porque eu gosto de cantar música dos outros, sempre gostei. Agora, tem esse lado mesmo circunstancial, pra preencher um vazio, eu não tinha material, a única música que eu tinha liberada na época era com pseudônimo, era o Julinho da Adelaide que eu assinava. Então, juntei as duas coisas e gravei esse disco, "Sinal Fechado".
Logo no início de sua carreira você foi considerado como sendo a "única unanimidade nacional", unanimidade essa que não durou muito, a se julgar pela crítica que, já em 68, passou a tratá-lo de forma bastante severa. Como é que você vê essa questão?
Chico - Essa questão da unanimidade é muito perigosa porque quando se afirma que fulano de tal é uma "unanimidade nacional", no mesmo momento deixa de ser, porque vem alguém que logo toma a iniciativa e diz: "Ah! Eu não acho." Na época da "Banda" eu era um garoto de 21 anos que não despertava realmente nenhuma controvérsia maior. Era uma coisa inocente e, principalmente, nem eu mesmo me posicionava profissionalmente, eu era um amador, um estudante de arquitetura que cantava sem maiores ambições. Não representava perigo para coisa alguma, para ninguém, e era facilmente assimilado, acho que é lógico: a pessoa está aparecendo, tímida com aquele violãozinho, não havia assim tanto motivo para despertar uma oposição mais forte.
Qual foi a primeira música que você gravou?
Chico - "Pedro Pedreiro", em 65. "Pedro Pedreiro" ainda era resquício do movimento que havia da chamada resistência, que foi logo depois de 64, quando veio aquela onda toda do "Opinião", da oposição que se fazia dentro dos teatros, na música popular, já que noutros campos a oposição foi abortada, calada e então ela se transferiu das fábricas, da praça pública e do Congresso para as artes: o teatro, o cinema, e a música. Agora, essas coisas se desgastam sozinhas, porque quando vira moda é um perigo, acontece isso, esses movimentos são sempre pendulares. Quando compus a "Banda" eu me lembro que - pra não dizer que havia unanimidade - havia, sim, uma discreta condenação por parte da esquerda que ainda insistia em ouvir o grito de "Opinião", o grito de um "Carcará" e tal. A Nara Leão, aliás, me acompanhou nesse movimento porque ela também já estava um pouco cansada dessa tal música de protesto que se fazia então e que não passava das portas do teatro e que no fim das contas era ineficaz. A "Banda" era uma retomada do lirismo, proposital mesmo, porque eu não era tão inocente assim quanto parecia. Eu tinha um passado, também discreto porque eu era muito garoto, de luta estudantil. Eu já estava na faculdade, sem ser militante, porque eu era mais anárquico do que seria até de se imaginar hoje, brincava muito, mas o golpe de 64 me feriu bastante. É claro que com o tempo eu, de repente, me vi na "roda-viva" mesmo. E a peça, um pouco mais do que a música "Roda-viva", era uma espécie de desabafo, uma afirmação de onde eu estava me metendo sem ter percebido, eu já não podia mais levar adiante, a vida inteira, a careta do menino de 21 anos que cantava a "Banda". Já não era mais a minha realidade e isso chocou as pessoas que esperavam que fosse só o lirismo - a gente não é só uma coisa. Existe sempre a tendência a catalogar: fulano é assim, fulano é assado. E depois, hoje, eu acabo tendo que lutar contra a imagem oposta, como sendo aquele guerreiro que também não sou. Nós somos contraditórios e a música é abrangente, não tem filiação partidária, acho que ela corre mais livre do que isso. Eu, pessoalmente, como cidadão, posso ter filiação partidária se quiser, posso assumir posições políticas até rígidas se for o caso, até radicais. Mas isso não deve, a não ser em momentos extremos da nossa vida política - e nós passamos por alguns momentos assim - interferir na minha criação artística. Hoje, por exemplo, eu me sinto livre pra criar, independentemente da situação do país que continua sendo calamitosa. Mas não sou eu quem vai conduzir uma reforma agrária, não sou eu quem vai produzir um reforma ou uma revolução social. Eu posso como cidadão opinar. Agora, minha música tem uma identificação com o povo brasileiro, com a cultura brasileira, isso é importante, a identidade cultural brasileira, e disso eu não abro mão.
Até que ponto o público interfere na sua produção?
Chico - Eu tenho pouco contato com o público, faz dez anos que eu não tenho contato com o público e isso me distingue de outros artistas, talvez. Eu trabalho dentro do estúdio, de casa pro estúdio. A receptividade do público à minha música não é mais imediata, leva um certo tempo. Isso me descompromissa um pouquinho com o êxito imediato de uma canção, o que pode ser bom, o que pode ser ruim também; é uma faca de dois gumes. Pode, de certa forma, me afastar desse público, ao mesmo tempo também me libera de um compromisso, eu fico mais solto. É uma coisa que eu penso bastante: até que ponto é um prejuízo ou não. Antigamente eu compunha uma música, às vezes no meio de uma temporada de shows, quando eu estava empolgado, e no dia seguinte já cantava essa música pro público, apresentava: "Olha, em primeira mão, saidinha do forno." Isso era vivo. Hoje não, eu faço shows por acaso, não tenho feito show meu propriamente, não tenho uma agenda de shows. É claro que isso interfere na minha criação, mas não sei se pode interferir pro bem ou pro mal, eu estou disposto a correr esse risco.
E a crítica, ela interfere?
Chico - A questão da crítica já até suscitou várias polêmicas e mal-entendidos e muitas vezes tenho que ficar repetindo a mesma coisa: eu acho a crítica que se faz no Brasil paupérrima, acho podre, o que não quer dizer que eu não goste da crítica. Eu gosto de crítica, por isso que eu estou dizendo que ela é ruim. Meu pai, inclusive, foi crítico literário. Há críticos formidáveis; no campo da música popular há poucos, há alguns que realmente gostam de música. Agora, a maioria ou está ali porque não tem outro espaço pra ocupar, ou tem um espaço muito pequeno e não tem tempo de desenvolver suas idéias. Na verdade a crítica me incomoda pouco, às vezes irrita um pouco quando o tom é muito agressivo e pessoal; isso acontece também, mas corresponde a andar na rua e alguém te xingar a mãe sem motivo nenhum aparente, ou te atirar uma pedra. Eu não sou insensível a isso, mas não interfere no meu trabalho criativo de forma alguma porque não me acrescenta nada.
Na década de 70 você teve muitos problemas com a censura; qual foi a repercussão disso na sua produção?
Chico - A censura interferiu não só diretamente, interferiu também indiretamente na medida em que já se estava condicionado a certas palavras que não se podia dizer porque já se sabia que era gastar tinta à toa. Então se exercia auto-censura, isso eu nunca neguei porque se não era dar murro em ponta de faca, ou então sair de vítima: "Olha aí, mais uma música censurada." O que não era bem o tipo de trabalho que eu estava querendo fazer. Eu queria ter minhas músicas aprovadas e, evidentemente, às vezes tinha vontade de dizer algumas coisas, então eu dizia por vias oblíquas. Isso interferiu na minha criação sim, interferiram às vezes também os cortes que eles faziam. Quando eles eram muito benevolentes, eles sugeriam cortes em algumas letras, então eu refazia alguns versos; às vezes eles não cortavam a música inteira, ou cortavam mas subordinando a uma nova apreciação, a alguns cortes que eles apontavam. Às vezes não, era sumário, cortavam a música inteira e pronto.
Uma dessas canções sumariamente censuradas parece ter sido "Tanto mar". Qual e a história dessa música?
Chico - Há músicas que não pretendem ser eternas, são crônicas de um determinado momento. Eu não acho que toda minha produção musical seja assim, mas realmente há canções que eu fiz para um determinado momento. É evidente que "Tanto mar" foi feita logo após a Revolução dos Cravos, naquele entusiasmo do 25 de abril de 74. Eu, aliás, passei por lá, por acaso, dias depois, me contagiei e fiz a música. Quando fui gravar aqui no Brasil, ela foi vetada integralmente. A música saiu sem letra, eu tocava no Canecão e tinha uma flauta que fazia o solo. Mas sobre essa base eu gravei essa letra que foi lançada no disco em Portugal, a versão cantada de "Tanto mar". Três ou quatro anos depois a letra foi liberada, mas eu já não estava mais tão entusiasmado com a Revolução dos Cravos. Então fiz uma releitura, reescrevi dizendo assim: "a semente está aí, aquela semente de 74 continua" "n'algum canto de jardim". Mas eu já não estava mais naquele clima todo de euforia que estava em cima do lance quando a música foi composta, como um repórter de um momento histórico.
Outra canção feita para um determinado momento foi "Angélica", que você dedicou a Zuzu Angel após sua morte em 76. Por que você fez essa música? Você a conheceu?
Chico - Eu conheci muito a Zuzu. Ela foi uma mulher que durante anos depois da morte do filho não fez outra coisa senão se dedicar a denunciar os assassinos do filho, a reivindicar o direito de saber aonde é que estava o corpo dele. Ela ia de porta em porta mesmo. E lá em casa ela ia com muita freqüência, como em outras casas também. Ela sabia, inclusive, das ameaças que pairavam sobre ela e dizia que tinha certeza que se alguma coisa acontecesse com ela a culpa seria dos mesmos assassinos do filho, que ela citava nominalmente. Na manhã do dia em que aconteceu o acidente com ela, ela tinha estado lá em casa e deixado as camisetas que ela fazia, gravadas com aqueles anjinhos que era a marca dela, para as minhas três filhas. Aquilo me chocou muito. Ela passava em casa quase semanalmente, mostrando os relatórios todos do trabalho que ela estava fazendo aqui e nos Estados Unidos - porque afinal, o pai do Stuart era americano - então ela tinha contato com senadores americanos, inclusive alguns dos quais me lembro até hoje, como o Frank Church, o Mondale, que era um dos senadores com quem ela contava - nunca contou com o Reagan, evidentemente... Ela tinha, inclusive, na lista dela, uma relação das posições políticas dos senadores e tinha até alguns "ultraconservatives" (ultra-conservadores) que por se tratar de um filho de cidadão americano, eram simpáticos ao clamor de mãe dessa mulher. Ela chegou a entregar a documentação ao Kissinger pessoalmente, se não me engano, no Hotel Sheraton, quando ele esteve aqui. Clandestinamente ela furou o bloqueio e, um pouco depois, lhe entregou uma pasta com os documentos todos que ela tinha e distribuía entre as pessoas em que confiava, gostava. Ela morreu um pouco depois disso.
Há alguns estudos sobre os diferentes momentos da sua produção artística. Como é que você definiria seu trabalho atual?
Chico - A definição do meu trabalho, a classificação em fases é mais fácil pra uma pessoa que está de fora fazer do que pra mim. Eu posso até concordar à distância, por exemplo, a fase do lirismo dos primeiros tempos, hoje eu tenho uma distância crítica - autocrítica - pra poder concordar. Eu não tenho muita idéia do que estou fazendo hoje não. Eu tenho uma idéia concreta do trabalho em si, mas não dentro de uma trajetória. Posso falar do que estou fazendo, mas quase à parte de todo o resto, porque pra mim é uma coisa à parte. Mais tarde, daqui a dez anos, talvez, olhando eu identifique isso melhor.... Eu agora, mais do que nunca, estou fazendo um trabalho musical. No caso do "Malandro", de aprimoramento musical mesmo. No caso do "Corsário "é diferente porque eu só fiz as letras. E nesses dois discos, não é novidade pra mim, mas eu mergulhei no trabalho feito sob pressão, sob encomenda pra determinadas situações: pra teatro e cinema. Foi um trabalho intenso porque eu de repente me vi às voltas com dois trabalhos e pouco tempo pra realizá-los, e eu não pude brincar em serviço. "O Malandro", como é uma adaptação da peça e a peça é minha, e a adaptação também é minha junto com o Ruy Guerra e o Orlando Senna, eu mesmo me encomendei esses trabalhos. "O Corsário" já é diferente porque o roteiro é do Boal e as músicas do Edu. No caso do "Malandro", acho que muita coisa vai ser entendida com o filme. Não é um disco de trilha porque eu acho que as canções funcionam independentemente do filme, que eu não conheço ainda - no momento que o Ruy estava rodando o filme eu estava no estúdio de gravação. Eu tenho muita esperança, tenho muita confiança nesse trabalho e acho que as músicas vão se completar com as imagens do filme.
O que você está achando da crítica que se tem feito aos seus dois últimos discos?
Chico - Os discos foram lançados agora e eu ainda não sei como é que eles vão repercutir. A gente está sempre enfrentando uma barreira difícil de execução, de divulgação, porque, de certa forma, são discos que vão um pouco contra a corrente atual. Eu já disse várias vezes que não tenho nada contra o rock, mas não faço ou quase não faço rock e acho que deveria existir alternativas pra uma batida e um som padronizado que a gente ouve no rádio. Eu tenho dificuldade até em colocar minhas músicas no rádio. Agora, a crítica de certa forma recebeu bem esses trabalhos, com a exceção de São Paulo, onde sofri um ataque violento, ou levei um susto, num órgão de imprensa paulista. Mas depois ficou explicado, porque apareceu uma carta apoiando essa crítica, dizendo que eu estava apoiando o PSDB - e o crítico tinha toda razão porque eu estava mesmo. Aliás a crítica não falava propriamente do disco, falava de mim pessoalmente como uma pessoa que já era. Eu já fora várias vezes, já nasci tendo sido. Aliás, um amigo meu, espírita, por coincidência disse que eu tenho a alma muito velha, mas disse que isso é bom, que já passou por muitas coisas e então não padece tanto, me protege um pouco. Agora essa explicação do leitor me ajudou a entender a crítica. Eu queria lembrar só uma coisa: entendo que exista essa confusão entre o artista e sua obra, eu não vou dizer que eu mesmo - mas eu não sou crítico - seja isento. Eu tendo a antipatizar um pouco com o Frank Sinatra, por exemplo, mas no fundo, se eu fosse crítico, eu teria que reconhecer que ele é ou foi um grande cantor. Isso aconteceu algum tempo atrás quando se começou aquela coisa da Abertura. Houve uma onda muito forte contra o grupo baiano, que estava um pouco reticente. O Caetano e o Gil, que não estavam apoiando explicitamente alguns movimentos. Na época, eu me lembro que meu nome foi muito usado pela imprensa em contraponto à posição dos baianos, como sendo, eu sim, um lutador. E eu tomei a iniciativa de desautorizar esse tipo de comparação, mesmo porque uma coisa não tem nada a ver com a outra: se o Caetano e o Gil não quiserem participar da abertura política, é um direito que lhes cabe, não se pode misturar isso com a crítica. E aconteceu isso, os shows de Caetano e o Gil eram esculhambados, e eu notava, o que é muito claro, que os dois artistas, pra citar os dois casos mais extremos, eram odiados pela crítica porque não estavam de acordo com a onda editorial do jornal. Os jornais estavam respirando aquela coisa do fim da censura que a eles, editores, interessava, evidentemente, e agora mudou o quadro. Eu só queria lembrar que se as pessoas não simpatizam, e eu acredito que muitas pessoas não simpatizem com minhas posições políticas por esse ou aquele motivo - com meu apoio a Fernando Henrique em São Paulo isso ficou muito agudo, muito mais do que aqui no Rio, do que em qualquer outro lugar - e eu preferiria que eles não misturassem as coisas, porque meus discos, nem o "Corsário" nem o "Malandro", eles não têm nada a ver com o PSDB nem com o Fernando Henrique, pelo amor de Deus. Eu entendo que isso aconteça, mas é mais uma falha da crítica de uma maneira geral e que é causada ou por incompetência, ou por desonestidade, ou por subserviência. Uma vez eu denunciei isso aqui no Rio num órgão de imprensa carioca. Eu disse: "Bom, eu não sou bobo nem idiota, eu imagino que tenha alguém lá em cima que não tenha muita simpatia por mim, porque eu vejo notas contra mim em toda parte, até na coluna de futebol...'' Não é brincadeira, na coluna de futebol aparecia: "Chico Buarque não foi à preliminar do Maracanã, e foi bom porque ele não passa a bola pra ninguém, ele é o dono da bola..." Numa época em que eu saía na crítica de culinária - eu não estou exagerando -, saía que eu tinha sido visto na fila de filme pornô, na coluna social, em toda parte. E eu dizia: "Ou a redação inteira está contra mim, o que eu não acredito, ou então jornalistas menos independentes estão querendo agradar alguém lá em cima." É o que está acontecendo com esse órgão de imprensa paulista, infelizmente. Porque, inclusive, eu fiz assinatura na época da votação das Diretas, porque foi o jornal que, por interesse ou não, tomou a frente das eleições diretas. Durante aquele tempo em que ele usava aquela tarja amarela eu tive a assinatura, quando ela terminou eu dei graças a Deus, por que já não era o jornal que eu tinha assinado. Em São Paulo o fato de eu ter apoiado o Fernando Henrique me causou prejuízos sérios, não só junto à Juventude janista, que é um perigo sempre, como frente a um segmento dos chamados petistas. E eu estranho muito porque tenho grandes amigos petistas, meu pai era petista, Antonio Candido é um grande amigo meu e é petista, Hélio Pellegrini... Eu estou falando dos dois porque nós viajamos agora pra Cuba e conversamos muito sobre isso. E eu volta e meia me queixo com meus amigos petistas - tenho muitos com quem jogo futebol -, e eles falam: "Ah, mas esses são os maus petistas." Mas tem muito mau petista por aí... Eu não sou petista porque não sou filiado a partido nenhum. Mas sempre simpatizei, desde o início, com a formação do PT, sempre tive ótimas relações com o Lula, mas os meus intelectuais não são esses que misturam as coisas, eles são outros, é outro tipo de PT. Além disso, eu também disse em entrevista - não sei se saiu - que, se fosse o caso, em São Paulo de apoiar, o Suplicy pra ganhar do Jânio, eu apoiaria, iria à praça pública - se ele tivesse chance de ganhar. Apoiei Fernando Henrique porque o considero mais preparado que Suplicy, mas fora isso ele era o candidato que tinha condições de bater o Jânio. Eu sustento e vou até o fim com isso. Se os petistas não gostarem, paciência. Eu sou muito transigente com as pessoas e com os partidos. Detesto intransigência. Minha única intransigência é com a intransigência. Eu entendo até que as pessoas se comportem assim e tudo bem, eles que continuem com o trabalho deles. Meu trabalho está aí e eu estou feliz com ele.
Desde "Com Açúcar, com Afeto", em 67, você vem fazendo muitas canções sobre a mulher. De onde vem essa preocupação?
Chico - "Com Açúcar, com Afeto" foi uma encomenda da Nara, ela me pediu. Na verdade tinha a ver com uma coisa que se fazia antigamente e que tinha sido abandonada, como "Camisa amarela'' do Ari Barroso. Talvez por falta de compositoras mulheres, porque a gente tem poucas. Temos muito mais compositores que compositoras. Eu acho que as mulheres têm que tomar consciência e assumir o papel delas. Eu quero é que surjam mais compositoras, se não eu vou ter que ficar me travestindo a vida inteira. "Com Açúcar, com Afeto" foi logo no início da carreira, depois o que veio não foi por outro motivo senão o fato de estar fazendo música para personagens, de estar ligado a cinema e a teatro, escrevendo para teatro e fazendo música para cinema. Tenho necessidade de me colocar na psicologia de personagens diferentes e, entre eles, mulheres. Não só mulheres, marginais, operários, etc. Eu tenho que tentar pensar como essas pessoas. Assim como eu escrevo o diálogo do filme, como em 0 Malandro, e como escrevi o diálogo de outras peças, por exemplo, a mulher fala e eu tenho que dizer: "muito obrigada, tenho que tentar raciocinar como essa mulher. Não acho que seja nada muito complexo. É um motivo prosaico, de necessidade profissional. Agora, a gente vai aprendendo, se especializando, e hoje eu gosto mais dos personagens femininos das minhas peças. Talvez eu os trabalhe melhor do que os masculinos.
Você sempre trabalhou com teatro e cinema. De onde vem a sua ligação com essas outras artes?
Chico - O movimento de música se apresentava muito em São Paulo, onde havia, talvez, um público maior do que o do Rio e onde fervia o teatro. A gente se reunia ali no Bar Redondo, em frente ao Teatro de Arena, onde a gente se topava o tempo todo: os atores de teatro, o pessoal de cinema e o de música. É dessa época, por exemplo, o "Deus e o diabo na terra do Sol", em que a participação do Sérgio Ricardo no filme do Glauber foi importantíssima; o "Arena conta Zumbi - o Edu com o Guarnieri e o Boal, etc. Havia uma interligação entre as artes muito maior do que hoje. O meu primeiro trabalho, ainda como estudante, foi pra teatro: fiz a música pra "Morte e Vida Severina", poema do João Cabral; trabalhei junto com os atores, viajei com eles pra Nancy. Tenho ligação com teatro e cinema tão forte quanto com a música; mais com teatro, talvez, do que com cinema. Este veio mais tarde e agora, talvez, eu comece a tomar mais gosto. Essa experiência com o Ruy pode vir a ser uma grande experiência. Eu já participei de outros musicais brasileiros, mas, por um ou outro motivo, não foram experiências inteiramente bem sucedidas. Eu participei como ator de "Garota de Ipanema", filme do Leon Hirzman; de "Quando o Carnaval Chegar"; participei como roteirista do "Para Viver um Grande Amor"; e agora como argumentista, roteirista, dialoguista e músico de "Ópera do Malandro". Além disso fiz músicas para uma infinidade de filmes. Já nem lembro agora: vários filmes do Cacá, como "Bye Bye Brasil", "Joana Francesa"; de "República dos Assassinos" do Miguelzinho Faria; de "Dona Flor e seus Dois Maridos", do Bruno Barreto... Minha ligação com cinema e teatro é muito forte, e acho que vai continuar. Tenho vontade de escrever uma peça de teatro, coisa que eu não faço há muito tempo. Nem sei se é exatamente um musical, acho que a música vai acabar aparecendo, como apareceu em "Gota d'água", que ficou com a cara mas não era um musical; tinha algumas músicas, mas era um texto mesmo. Estou sentindo falta de parar um pouquinho e escrever um texto novo.
Quais foram os motivos que o levaram a escrever, junto com Paulo Pontes, a peça "Gota d'água"?
Chico - Na época em que o Paulo Pontes me chamou pra escrever a "Gota d'água" com ele, a palavra no teatro estava relegada a um ultíssimo plano, por mil motivos óbvios - a situação que se vivia e tal. O que se fazia mais era expressão corporal, e o texto nacional não era quase encenado no Brasil. E o Paulo Pontes teve a intenção de, com a peça, ressuscitar o teatro nacional como texto, e me chamou pra essa parceria exatamente por isso. Ele queria que eu desse um polimento poético ao texto que ele ia escrever. Na verdade a idéia original era do Vianinha, que já tinha feito uma readaptação da "Medéia" de Eurípedes pra televisão, um Caso Especial e pretendia fazer o mesmo para teatro. Depois da morte do Vianinha o Paulo Pontes me procurou com essa idéia da retomada do texto no panorama do teatro, que tinha ficado parada no meio do caminho.
De onde surgiu seu interesse por obras infantis?!
Chico - Isso foi por causa das minhas filhas; é evidente que eu não tinha nenhuma preocupação pedagógica anterior, nem mesmo uma ligação maior com crianças. Só fui ter mesmo quando minhas filhas começaram - não a nascer, porque eu não me dou bem com bebê, não -, mas a se manifestar, quando surgiu a necessidade de conversar com as crianças em casa. "Chapeuzinho Amarelo" foi bem isso. É uma estorinha que eu contava pra minha filha dormir. Depois eu dei uma forma mais literária pra publicar o livro. São estórias que eu conto até hoje pra essa filha que tem dez anos, a última que ainda ouve minhas estórias, e que de vez em quando me chama pra botar pra dormir e contar estórias; aí eu invento estórias que me vêm a cabeça. "Saltimbancos" era isso também. Na verdade foi só uma versão que eu fiz, uma adaptação do texto e de um disco italiano, numa época em que não havia uma produção específica para crianças aqui no Brasil. Engraçado porque hoje em dia existe uma produção voltada pro mercado infantil muito grande e na época era um descrédito total. Eu só consegui lançar esse disco porque esse meu amigo e parceiro, Sergio Bardotti, me cedeu um fonograma com a base toda, a orquestração, tudo de graça. E eu trouxe o pacote aqui pra Polygram, da qual eu era contratado, e disse: "Olha e só chamar quatro cantores que a gente produz esse disco." E eles: "Ah! Tudo bem." Pra fazer uma gracinha pra mim, pra não contrariar o artista, pro artista não ficar zangado, deixaram que eu gravasse esse disco e no fim foi gravado com Miúcha, Nara, o Magro e o Rui, quatro cantores e o coro; a produção mais barata do mundo e a venda até que foi surpreendente pra época. Acho que vendeu cem mil discos. Porque havia somente aqueles discos com as versões do João de Barro, o Braguinha, aquelas velhas versões do Chapeuzinho Vermelho de músicas americanas, naqueles disquinhos coloridos.
Chico vai passando para o clima da Nova República
Sinal dos tempos, ele aderiu ao vídeoclip. Sinal dos tempos, ele não briga (tanto) contra a censura, mas contra o desemprego dos músicos. Atento, ouve o som dos novos tempos e acha que o rock ainda encontra um caminho mais brasileiro, "a partir de uma revalorização do Brasil como projeto".
Já vão longe os tempos de medo da platéia e avisa, para quem tem esperança, que seu show vai passar. Já vão longe os tempos em que "artista que ia a Cuba voltava prestando depoimento". Ele tem esperança de que Tancredo reate relações com aquele país.
Neste novos tempos, Nova República, ele, mineiramente, mede as palavras ao falar do futuro presidente.
No mais, um encontro memorável com seu ídolo de infância, Pagão.
Com Licença Chico Buarque de Hollanda vai passar.
O Globo - Chico, por que você aderiu ao videoclip?
Chico - Hoje você depende da veiculação de clip a nível nacional. Só uma vez você faz gravação, externas, o que para mim é cômodo. Não preciso gravar para TV sempre. Outro aspecto é o lado criativo. A partir desta experiência, já posso, quando estiver gravando um disco, fazer música pensando no clip. Ele passa a ser um terceiro elemento, o diretor é o terceiro parceiro. Como tenho uma forte ligação com o cinema e o teatro, para mim é estimulante. O Walter Lima disse até que minhas letras já são verdadeiros roteiros de clip, com história, seqüência. Mas não é fazer uma redundante. Tem que se levar em conta a imagem como elemento estimulante. Não é que eu vá fazer clip, mas já pinta a idéia.
O Globo - Em clip, você gravou "Brejo da Cruz" e "Vai Passar". Existe uma sequência de intenção em "A Banda", "Apesar de Você" e "Vai Passar"?
Chico - Talvez seja uma forma de localizar nesta trilogia, como poderia ser em "Pedro Pedreiro", "Construção". Vendo o clip de "Vai Passar", realmente parece a banda passando. Tem um parentesco. Algo a ver com este sentimento de esperança.
O Globo - Pela primeira vez, você acompanhou o disco em todo o seu processo de execução. Por quê?
Chico - Foi uma novidade. Antes costumava delegar poderes. Gravava preguiçosamente. Compunha, ia ao estúdio, gravava, depois a gravadora trazia o arranjador. Recebia tudo de bandeja, pronto. Nesse caso, não. Comecei a discutir com o Homero (produtor), com o Chico Batera (coprodutor) e o disco começou a surgir do nada. Comecei a me estimular com os papos intermináveis sobre o espírito da coisa e só fiquei sozinho quando compus.
O Globo - Você compõe sozinho, mas ainda precisa mandar suas letras para a "parceira" censura. Como é que está, para você, a questão da censura?
Chico - Ainda vai se discutir muito. Houve um grande salto de 76 pra cá, mas antes de 68 não havia censura prévia, e trabalhei assim. Só fui conhecer este mecanismo quando voltei da Itália, e era um terror. Hoje existe a possibilidade de se recorrer. Há diversas categorias e o disco pode sair. É um mal, mas não é fatal. Como nunca são tocadas todas as músicas de um disco nas rádios, não te colocam mais diante da encruzilhada, como antes. Não tem mais aquela que sai ou que não sai, aquela carga de trabalho (de cada quatro músicas, só uma era liberada) e aquela tensão horrorosa. Discutir a censura é necessário, na sua dimensão. Nós, enquanto classe, vamos fazer um encontro em Minas onde serão colocados todos os nossos problemas, e a censura estará em pauta. Hoje, não é o único, nem é o problema mais grave.
O Globo - Qual é o mais grave?
Chico - O desemprego. Conseqüência desta política no mínimo nociva aos músicos e a música popular brasileira, que favorece grandemente a importação e execução de músicas de fora. A censura hoje não tem perigo de recrudescer. A sobrevivência do músico é que vem recrudescendo. Temos leis de reserva de mercado que são respeitadas entre aspas, pois as rádios compensam em horários de baixa audiência. Temos que atacar a questão na raiz. Para uma gravadora, hoje, custa muito pouco importar um disco. A despesa com uma produção nacional é muito maior. A cada dia eles economizam no pagamento aos músicos, reduzem o cast. Existem músicos que gravaram há cinco anos e hoje não conseguem espaço. Há dificuldades também para os grupos mais novos. E há um outro tipo de censura: as gravadoras constragem o orçamento, obrigando o músico brasileiro fazer um disco pobre. O resultado é que o produto final tem qualidade inferior ao produto importado. Parece que elas nos fazem um favor. Um disco gravado aqui custa 45% do preço da capa. Já um importado custa apenas 18%. Não quero fechar. Sem xenofobia, mas o que vem de quantidade, não vem em qualidade. Nestes pacotes, principalmente norte-americanos, em cada 20 trabalhos um é bom. Mas eles vem com tudo, massacrando com clips, e vendem.
O Globo - Em 1976 você dizia que essa intensidade de divulgação de música estrangeira iria provocar um fenômeno que agora está ocorrendo: os jovens só compões rock. Está confirmada a tese?
Chico - Estes jovens tiveram uma formação cultural. Não fosse a bossa nova, eu também faria rock. Eu dançava rock, cantava The Plater's ("only youuuu", imita). Na minha época houve um momento de participação histórico e cultural. Era a arquitetura, com Brasília, o Cinema Novo, o teatro. Havia uma euforia que, acredito, possa se repetir noutro nível. Hoje há muito interesse econômico em jogo. Em 1960 não havia.
Chico - Eu escuto o rock que os garotos fazem. Mesmo porque toca no rádio o tempo todo. Acho que tem de haver uma mudança radical de geração para geração. Existe uma distância muito grande entre as raízes deles e nossas.
O Globo - Há alguma forma de modificar este quadro?
Chico - Acredito que sim. Se hoje eles fazem rock, devem continuar fazendo rock. A partir de uma revalorização do Brasil como projeto, eles mesmos vão poder encontrar um rock mais brasileiro e caminhos novos até a nível internacional. O rock brasileiro é diferente, mas as referências mais fortes, hoje, ainda são dos grupos lá de fora. Há um desequilíbrio que deve ser corrigido.
Há um manancial de ritmos e expressões populares que podem ser resgatados pelo pessoal de guitarras e do rock. A minha geração bebeu muito da música americana. Nas minhas músicas há coisas do blue, do jazz. Mas tem a mistura feita aqui, genuína e moderna. Não proponho uma volta às raízes ao folclore.
O Globo - De que forma estas questões interferem no seu trabalho?
Chico - Não vou tocar guitarra. Mal toco meu violão. Mas meu ouvido me obriga a incorporar a eletrônica, tudo isso que está no ar. Acho que isto está dosado no meu disco. Tem o lado acústico, as cordas, e tem os botõezinhos também. Agora eu comprei uma pianola eletrônica precária, e estou mexendo com ela.
O Globo - Continua a sua velha briga com o seu violão?
Chico - Como toco, o violão é tecnicamente mau executado, o que não impede que familiarizado com ele, tire acordes novos. A criação não tem nada com minha inabilidade manual, que me atrapalha até quando vou abrir uma lata de sardinha. Compenso isso com os pés (ri). O piano tem mais recursos, mas o problema são minhas mãos. No disco, toquei as bases e no estúdio eles "limaram" tirando os ruídos, mas o sentido a intenção está lá. Agora, sem acordes pegando nos trastes.
O Globo - Algumas pessoas se supreenderam com o seu samba-enredo. Ele veio fácil?
Chico - O samba está na minha memória, na minha formação. Escutei a vida inteira. É a batida natural do meu violão. Não pretendo fazer samba de morro. O meu é uma exaltação estilizada. O "Pelas Tabelas" é todo quebrado. Eu brinco um pouco com esta informação musical.
O Globo - "Vai Passar" foi transformado quase em hino deste momento pelo qual estamos passando. Ela foi feita recentemente?
Chico - Está pronta praticamente há um ano. A idéia não tem nada a ver com este momento. Fala de um tempo novo, da esperança de que esta página infeliz da nossa história fosse virada. A idéia foi germinando e brotou no momento exato. Se tivesse gravado um disco no ano passado, ela talvez estivesse naquele disco. É evidente que os acontecimentos externos influenciam demais a criação, mas "Vai Passar" não é reflexo de uma imagem, somente.
O Globo - Em meio a este clima de esperança, existe também a de vê-lo novamente num show, depois de nove anos. Ele vem?
Chico - Ainda não sei a data, mas estou com vontade. Agora tenho que terminar sete músicas para o filme que estou fazendo com o Ruy Guerra, baseado na "Ópera do Malandro", que começa a ser filmado em maio. Depois, tenho que engatilhar meu papo com o Boal e o Edu Lobo sobre a peça que estamos fazendo, "O corsário do rei", baseado na invasão francesa. O Boal está pesquisando e agora, no carnaval, vamos conversar. É difícil desligar uma coisa e ligar outra, mas se não der neste ano, no ano que vem sai.
O Globo - E o seu velho medo da platéia?
Chico - Agora, neste show na Argentina, quebrei este tabu na minha cabeça. Foram três noites e não foi doloroso. O nervosismo faz parte. Se não ficar nervoso, não tem graça (ri). Não errei as letras e foi sem traumas. Estou mais tranqüilo. Tenho que pensar inclusive onde fazer o show. Estou realmente distanciado do público e o esquema criado funciona. Dei grandes shows em São Paulo, Minas e Rio. Hoje não sei mais. Vai ver que são os universitários daquela época.
O Globo - Cuba, durante muito tempo, foi uma pedra no sapato de muita gente, e você foi incomadado por isso. Quais são suas esperanças, agora?
Chico - Fiquei marcado por esta questão com Cuba. Quando voltei de lá pela primeira vez e fui detido submetido a interrogatórios, era, por coincidência, uma época em que vinha lutando contra a censura, a liberdade de informação. Não entendi o porquê daquele escândalo pela volta de um cidadão. Mais tarde, compreendi que a intenção era chamar a atenção para um fato dito contraditório. Diziam: "É um comunista, pois foi a Cuba". Durante anos carreguei este peso, porque quis. E por isso mesmo mantive esse contato, ajudei na organização de festivais, em contatos com intelectuais, e o resultado é que hoje a coisa é mais aliviada. Não sou mais o único. Artista ir a Cuba virou fato corriqueiro. Quero mais é que todo mundo vá, que se quebre o gelo, que se resolvam os desentendimentos, que este novo governo reate relações com Cuba. E quando eu for novamente, vou direto sem as escalas trabalhosas no Panamá, Jamaica ou Lima. Quero mais é um vôo da Varig Rio-Havana, direto, em seis horas (ri).
O Globo - E a África?
Chico - Fui só uma vez, mas tenho convites para ir a Moçambique. Eles cobram minha ida e tenho interesse. Mas sou mais ligado a Cuba que aos irmãos de Angola. Cuba teve aquela pecha toda, e como vi que estava incomando resolvi não me render. E Angola tem representação diplomática. Não precisa de algum voluntário para transar informações.
O Globo - Você já foi tratado como "unanimidade nacional". Hoje, há outra pessoas a quem dão este título: o Presidente eleito Tancredo Neves. O que você acha disso?
Chico - Como dizia Nelson Rodrigues, "toda a unanimidade é burra". Eu suspeito muito da unanimidade, pois ela só serve para as pessoas jogarem pedra. Principalmente que está em evidência, sempre convidado a dar declarações sobre tudo, polêmicas, que nem sempre agradam. Tancredo não vai agradar a todos. Assume com uma popularidade assustadora. Mas isso é uma faca de dois gumes. Por um lado ele, está partindo com um crédito de confiança muito generoso. Por outro lado, e por isso mesmo, ele está preso, comprometido com interesses os mais heterogêneos. Minha esperança é de que ele tem condições e autonomia moral, apesar das composições, para levar adiante um Governo popular.
Em seu discurso de posse, Tancredo disse que seria o último presidente eleito indiretamente. A eleição do próximo diretamente, será um outro capítulo, uma outra campanha. Antes disso, a Constituinte é fundamental. É mais importante que tudo. O próximo presidente eleito já governará precedido ou acompanhado de uma Constituinte que atenda as necessidades da população.
O Globo - Você participa da associação de moradores do seu bairro?
Chico - Nunca fui a reuniões . Moro na Gávea, mas, por outro lado, participo de manisfestações em bairros mais humildes, como Pendotiba, onde fizemos um show. Circulo muito por toda parte e concordo que a Gávea tem problemas, mas não são mais candentes. De repente, valeria mais eu participar da associação de moradores do Terreirão, perto do campo de futebol. Outro dia eles vieram com um abaixo-assinado contra a construção de um espigão. Evidentemente, este é um problema que aflige aos moradores, mas já havia tantas assinaturas de peso que...
O Globo - Como é que está seu contrato com a Barclay/ Ariola? Ainda existe o plano de criar sua própria gravadora?
Chico - Terminei meu contrato com a Ariola/Barclay/Polygram (que confusão) com este disco. Ainda estou vinculado a eles por força do disco, que está na praça. Não estou discutindo renovação nem com esta nem com qualquer outra. Passado este período de trabalho no filme e na peça, vou pensar nisso. Há várias coisas a serem consideradas. Mesmo um selo novo. É um projeto interessante e complicado. Tenho medo de me transformar numa firma de mim mesmo. Há que se encontrar uma forma que equilibre os interesses, não tão convencional quanto esta obrigação de se gravar um disco por ano. Não quero é virar dono de um selo e me ocupar com tudo. Enfim, não quero ser empregado, nem patrão.
O Globo - Sua músicas onde aparece a voz feminina são consideradas perfeitas pelas mulheres. Antes elas estavam na sua janela. Hoje nas ruas. A mulher de suas músicas também mudou?
Chico - Minha música reflete isso. A mulher saiu da janela, e eu acompanho isso. Há 20 anos me assustaria ouvir falar em movimentos de libertação. Mas em minha primeira música feminista eu já propus isso. Chamava-se "Ela e sua janela". Agora, temos que arcar com as consequências.
No campo, o encontro com Pagão, o ídolo
Quinta-feira dia 24, Chico recebeu os discos de ouro e platina, pela vendagem de 250 mil cópias de seu último disco. Para comemorar, um churrasco e um jogo de futebol em seu campo, no Terreirão. Debaixo de chuva, mas sem perder a animação, ele jogou ao lado de músicos, técnicos e diretores de sua gravadora. Malandro, usou chuteiras de trava alta, pois sabia que um batalhão de fotógrafos o aguardava, com certa ansiedade, um tombo que acabou não acontecendo.
Sua única reclamação foi quanto à camiseta utilizada: "Ela foi cruel, deixou todo mundo com barriga". No entanto, a grande alegria ainda estava por vir. Pagão, antigo jogador dos Santos e ídolo de Chico, seria o grande homenageado do dia. Estava combinado que ele jogaria também, mas a chuva atrasou seu vôo de São Paulo pra cá.
Este é o Pagão, o verdadeiro? - perguntou João Nogueira, ao ser apresentado ao craque que tinha o apelido de "canela de vidro".
Chico, satisfeito, se vangloriava da vitória de seu time por 9 x 2, enquanto formava uma enorme roda ao redor dos dois.
Mais tarde, Chico contou:
Eu morava em São Paulo. Tive meus ídolos do Fluminense desde 1949 e adorava o Castilho. No princípio queria ser goleiro. Aos 12 anos, já moleque peladeiro, mudei de ídolo, e queria ser Pagão. Todo jogo ia vê-lo. Quando voltava para casa, tentava imitar aquele seu drible de calcanhar. Passou o tempo e ficou o apelido de Pagão no futebol, assinava a súmula como Pagão, até que, em dezembro, quando gravei um especial para TV, finalmente o conheci. Ele me deu uma camiseta autografada e eu lhe prometi que ainda lhe convidaria para dois dias aqui no Rio comigo.
Depois, conta Chico, vieram outros dois ídolos, como Marlon Brando ou João Gilberto, mas ele, peladeiro, manteve Pagão no pedestal. E no encontro, ficou como uma criança: emocionado, sorridente realizado.
À noite, em casa, os dois conversaram quando alguém chamou Pagão ao telefone. Chico não teve dúvidas. Levantou-se, caminhou-se e só no meio do caminho lembrou-se que, naquele dia, ali estava Pagão, o verdadeiro.
O gênio nasce
Chico foi diretor musical e autor das músicas da peça (Morte e vida severina). Conta os temores de que ainda não sabia se iria viver de música, além de seu interesse pelo teatro.
O que "Morte e Vida" representou para sua carreira?
Chico Buarque - Na época do início do Tuca eu já conhecia o Roberto Freire, porque ele era amigo da Miúcha, minha irmã. Ele me convidou para musicar Morte e vida severina a partir de um festival da Excelcior, onde eu era compositor e ele foi jurado. Fui classificado com "Sonho de um carnaval", cantada pelo Vandré, mas não venci o Festival. Eu estava no comecinho da minha carreira, que nem pretendia ser carreira naquele momento. Eu tinha gravado um disquinho com Pedro Pedreiro e o Sonho de um carnaval. Então o Roberto me convidou para um trabalho em equipe e eu fui com um pouco de medo. Aliás, nunca musiquei um poema: acho que foi uma experiência única, principalmente porque foi a primeira encomenda como compositor. Era uma coisa séria, enquanto que o resto ainda era brincadeira de estudante. Eu ainda estava na FAU e essa coisa de fazer música era um apêndice da minha vida de estudante. Se bem que o apêndice era maior que o resto... Além disso, eu não estava muito entrosado na Faculdade, na arquitetura. Enquanto havia colegas que já trabalhavam em escritórios, eu não me sentia com vontade nenhuma nem de trabalhar nem de estudar arquitetura. Por outro lado, a música também não era uma perspectiva profissional. Quando Roberto me chamou, o texto já estava escolhido, acho. Pelo menos não participei de nenhuma discussão sobre texto. Eu tinha a sensação de ser o caçula daquele pessoal, sentia uma incapacidade, achando que não ia conseguir musicar o poema. Em todo caso, discutia tudo, falava de tudo, e eu não entendia nada, nem de teatro. Foi com receio e aos poucos que eu fui aceitando participar e me acostumando com a idéia de fazer as músicas. E fazia as músicas e as mostrava meio com vergonha. E eu não me lembro direito dessa história de botar minhas irmãs para cantar a 2 vozes, mas isso acontecia por insegurança, que desapareceu aos poucos. À medida que o espetáculo nascia e a música funcionava dentro dele é que eu reconheci que o trabalho estava saindo direito. No começo eu não tinha certeza se estava certo, se era isso que eles queriam. Então eu mandava a fita gravada e ficava em casa escondido. Esse negócio de contraponto era necessário, porque muitas músicas precisavam de mais vozes e eu não podia mostrar sozinho esta parte da harmonia. Sobretudo, acho que foi uma temeridade do Roberto Freire me chamar para esse trabalho: na verdade, hoje meu trabalho seria diferente, porque naquele tempo eu não tinha domínio técnico da organização musical e peguei um trabalho um pouco maior do que eu podia. Eu não estava enganado quando me sentia inseguro: não era uma insegurança gratuita. João Cabral não me apavorava apenas porque ele estava longe, na Europa. Não sei, mas o Roberto falou que o João Cabral não tinha autorizado a peça, mas ela foi feita no peito. Depois, na Europa, comenta-se que o João teria dito que ele não conseguia ler os versos sem ouvir a música. Acho que isso foi gentileza dele porque ele falou que música e barulho é a mesma coisa, porque ele confessa que não tem ouvido, não tem sensibilidade musical. Não tenho certeza se já conhecia a obra de João Cabral, mas lembro que, a partir dali, eu li quase tudo o que ele escreveu. Claro, eu sabia que era João Cabral. O que sei é que foi muito difícil musicar Morte e vida severina. Tinha horas que eu via que era impossível colocar música naqueles versos e não consegui mesmo musicar algumas partes. Teve até uma cena que eu cortei alguns versos, e depois o João Cabral me cobrou aquilo, perguntando se seria devido a outros problemas. Ah! Agora lembro que foi naquela hora em que ele falava dos sociólogos do lugar e João Cabral perguntou se eu queria poupar Gilberto Freire. Acontece que sociólogos do lugar é um verso imusicável e tive que cortá-lo. Agora, você pode ver, um Manuel Bandeira é muito musical, mais que Drumond, o qual, comparado com João Cabral, é Beethoven. O processo de criação das músicas acho que não seguiu uma ordem prévia, mas muitas idéias nasciam do grupo, à medida que o espetáculo ia saindo. Sem o espetáculo, eu jamais musicaria João Cabral, nunca faria aquelas músicas, porque seria coisa seca demais. Só foi possível fazê-las a partir da visualização do espetáculo. Às vezes eu optava por falas do coro, diante da dificuldade de musicar os versos. É possível que as partes a serem musicadas tenham nascido de um consenso da equipe. Afinal a peça não era uma opereta em que todas as partes seriam cantadas. Eu também fiz as músicas de O&A mas não estava tão ligado ao trabalho, já morava no Rio e não tinha tanto tempo disponível. Eu já não tinha mais tempo integral como na época de Morte e vida que também foi muito marcada pelo trabalho de equipe do que O&A. Meu interesse pelo teatro nasceu antes de Morte e vida. O Roberto não me convidou para aquele trabalho só devido à música do festival; ele sabia que eu gostava de teatro. Depois dessa fase toda eu fiz um trabalho com o Boal e nunca mais me separei do teatro. Não é que eu esteja me desviando para o teatro: desde o meu começo eu estava muito próximo dele. Eu também trabalho com o texto: às vezes eu quero dizer uma coisa que não cabe numa canção. Assim, era normal que eu partisse para o texto de teatro. Bom, quando vi Morte e vida de pé, me deu medo. Até sonho eu tive, terrível, com o pessoal jogando tomate. Isso foi na véspera da estréia. Na estréia eu assisti a peça lá do fundo, perto da porta de saída, de emergência. A reação do público para comigo foi desnorteante, porque eu não imaginava que seria tão bem aceito. Mas a sensação mais forte foi em Nancy, porque aí eu estava no palco, tocando violão e baqueei mesmo, isso até eu lembro. Quando apareceu essa brecha de viajar para a Europa, eu achei ótimo. Eu tinha acabado de comprar um fusquinha de 2ª mão; eu tinha contrato com a Record e ganhava Cr$ 500,00 para cantar só o Pedro Pedreiro. Vendi o carro e fui com a turma. Comigo também tocava o Maranhão e um outro que eu não lembro o nome e que não viajou. Na Europa eu não fui propriamente ator. A marcação eu estava careca de saber, e a música também não teve problema. Durante o espetáculo eu não me sentia responsável por nada, era só acertar a harmonia do violão e andar direitinho pelas marcas de giz que estavam no chão. Agora, a ovação do público em Nancy eu tenho até gravada em disco, no final da peça, com a gente desafinando pra burro e cantando depressa. O atabaque tocava uma marcha-rancho e terminou em frevo, o tom era dó e foi para lá. A emoção da gente foi subindo e o aplauso cadenciado não parava. Depois ainda fomos a Paris, no teatro Odeon, onde aliás eu estive ano passado e vi uma galeria com as fotos das peças que foram apresentadas lá, inclusive Morte e vida. Fiquei chateado porque não apareço na foto... O João Cabral excursionou com a gente em Portugal. Eu estava encabulado, mas ele estava muito emocionado, porque a peça foi um grande sucesso também em Portugal. Ele deve ter ficado preocupado ao ver aquele grupo de desconhecidos. Quando fomos apresentados, percebi que ele estava realmente emocionado e isso amenizou meu temor por ele. Lembro que ele disse que gostava da música mais chata da peça, que era o Funeral do Lavrador, mas para quem não gosta de música, essa deve ser a melhor. Essa música foi gravada pela Odete Lara, pela Nara e por mim. No espetáculo ela funcionava muito bem, embora eu ache que não é bem uma música, mas um poema cantado. Relutei muito em gravá-la. O Mercado está aqui me lembrando que havia um professor muito conservador que sustentava estar escondida nesta música uma conscientização subliminar quando o coro repetia "é a parte que te cabe neste latifúndio". O fato é que esta música marcou muito. O João Cabral deve ter achado chocante a idéia de musicar o seu poema, que é muito seco, e o espetáculo adocicava um pouco, aparava as arestas: creio que ele deve ter rejeitado a peça no início também por causa disso. Para elaborar a música eu lembro que ia na casa de um pesquisador e ouvia muita coisa que não conhecia. Foi a primeira pesquisa musical que fiz, sobre músicas do Nordeste. A escolha de violão como instrumento de acompanhamento, eu não lembro direito. Era preciso que fossem instrumentos portáteis, não se iria colocar um contrabaixo por exemplo, não se usava instrumento elétrico. Creio que também se escolheram os instrumentos em função do pessoal que tocava: a gente não iria contratar um flautista profissional, por exemplo. Depois de 15 anos eu não saberia comentar as músicas que fiz para a peça porque eu não paro para ouvir minhas músicas. Lembro bem apenas do Funeral do Lavrador. Isso não é uma rejeição do que produzi, é que não costumo parar para ouvir mesmo outras músicas minhas. "Morte e vida" foi para mim um grande impulso profissional. Mais que isso, o trabalho com o Tuca foi importantíssimo a nível pessoal, no sentido que foi a primeira vez que eu tomei consciência da importância do trabalho coletivo. Isso me marcou até hoje, porque fazer música é muitas vezes um ofício que sem querer te conduz a um individualismo, por ser um trabalho solitário, e pode te distorcer como ser humano. Em termos de trabalho universitário, o Tuca, quando surgiu, era a única perspectiva de trabalho integrado dentro da Universidade. O grupo foi muito importante, porque, até 1968, quando estacou tudo de novo, surgiram novos grupos, a partir do Tuca. Eu peguei a Universidade antes do Golpe de 64 e nesse tempo havia exposições, grêmio, discussão política. Depois de 64 a Universidade caiu num marasmo durante um ano e pouco, sendo que o Tuca foi o primeiro sinal de vida cultural universitária.
O meu interesse - e também o meu desinteresse - político vem do tempo da Universidade. Ou melhor, um pouco antes, já no vestibular. Mas aí veio 1964, e eu me desencantei: como sentindo assim uma mudança violenta no sistema mesmo. E dentro da faculadade a coisa se sentia muito forte em 64, tanto que de certa forma eu larguei os estudos. O desinteresse pela política e pela arquitetura vem daí, a Faculdade ficou uma chatice. Evidentemente eu não era nenhum aluno destacado, mas me interessava pela vida universitária: e isso incluía a música e a política dentro da Universidade. A partir de 1º de abril, isso tudo mudou. E foi tanto o desinteresse, depois, que até mesmo os movimentos de 68 me viram um pouco à margem. Naquela época, por exemplo, só fui à passeata dos Cem Mil porque realmente não ir seria forte demais. Seria quase um posicionamento a favor.
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Antes mesmo da Faculdade, fui uma pessoa preocupada com os problemas sociais - um pouco por formação familiar, um pouco até por experiências através de movimentos de um grupo de assistência social, ou através do colégio de padres etc. e tal. Coisa como levar cobertor, levar não sei o que para quem está ali na Estação da Luz, visitar presídios e coisas assim. E isso está refletido na minha música daquela época; tenha certeza que sim. Então o que veio depois, essa desilusão, esse ceticismo e até um certo cinismo em relação a esses movimentos, às pessoas que eu conheci no movimento estudantil depois de 64, pessoas que eu conheci e que realmente não inspiravam confiança, que eu já conhecia de outros carnavais...
"Atrás desse eu não vou" é um tipo de reação um pouco primária, enfim... Aconteceu. E eu entrei um pouco na chamada roda-viva do show, viajava muito, me desliguei disso. Meu interesse de atuar, de certa forma, atuar politicamente e efetivamente, esse interesse ficou de lado. Mas em fins de 68 eu fui chamado à realidade. Realmente, aí, pisaram nos meus calos, mas acho precipitado, dizer que só me interessei por causa disso. Não, não é verdade. O que é verdade, isso sim, é o ter sido obrigado a viver fora do país: é ter sido obrigado a cortar uma seqüência profissional...
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Fiquei meio perdido...
Eu vim realmente começar a entender o que estava acontecendo quando cheguei de volta, em 1970. Era uma barra muito pesada, vésperas de copa do mundo. Foi um susto chegar aqui e encontrar uma realidade que eu não imaginava. Em um ano e meio de distância dava pra notar. Aqueles carros entulhados com os "Brasil, ame-o ou deixe-o", ou ainda o "Ame-o ou morra" nos vidros de trás. Mas não tinha outra. Eu sabia que era o novo quadro, independentemente de choques ou não. "Muito bem, é aqui que eu vou viver." Que realmente eu já estava aqui de volta. Então fiz o Apesar de você.
Resistir é preciso!
Formado nos colégios de elite e informado nos botequins das esquinas, virou símbolo do não-conformismo competente.
Tudo começou com "Chega de Saudade". João Gilberto, o violão, aquela flauta, tão pequenininha, mexendo com sua cabeça.
Não é verdade que Chico seja a única unanimidade deste país. Muito pelo contrário, a doce figura de Chico é a coerência de seu pensamento e de suas atitudes, o bom caráter (numa área onde o caráter costuma ser apêndice), uma certa intransigência ética além da timidez psicológica, fizeram de Chico um personagem incômodo. Na medida mesmo que ele é o exemplo, ele acaba sendo o contraste. É verdade que todo mundo gostaria de ter um filho como o Chico, mas quando o filho da gente e nós mesmos somos um fato consumado, o espelho às vezes queima, fustiga.
"Você não gosta de mim, mas sua filha gosta!" resume o estado de espírito existente em torno desse artista que, nutrido em família da melhor qualidade intelectual, formado em colégios de elite e felizmente informado em botequins de exigências mais populares, se transformou num símbolo de não-conformismo competente.
Chico tem dinheiro mas não é ideologicamente um burguês, sua posição social não elide sua consciência social.
JCL - Você pertence a uma família tradicional, uma família de intelectuais. O que você diria que acendeu em você a chama do não-conformismo?
Chico - Nessa coisa de família aí, a minha, já de cara, não tem nada de conformista, exatamente por ser uma família de intelectuais. O meu pai nunca foi conformista, muito pelo contrário, teve inclusive uma certa participação política na época do Estado Novo, embora ele seja um cara, assim, mais do mundo dos livros. Agora, pra começo de conversa, eu diria que sou um inconformista também por causa dessa origem.
JCL - Alguns setores da burguesia sempre estiveram presentes na história da humanidade, nos seus momentos de transformação. Qual é o papel que você atribui a essa classe na evolução do processo brasileiro?
Chico - Aí você coloca a coisa em termos mais gerais. Vamos por partes. Eu acredito no ser humano antes de qualquer origem de classe. Então, eu acho lógico que dentro da burguesia haja sempre seres que não se omitem, embora a sedução seja forte. Mas, por outro lado, são nesses setores da burguesia que se tem mais acesso à informação, o que leva as pessoas a perceberem que usufruem, muitas vezes, de privilégios absurdos. A sociedade capitalista está engrenada no sentido de fazer com que essas pessoas percam a noção do absurdo que é abusar desses privilégios todos e vai dando a elas uma sensação de conforto nesse usufruto. Então, a tendência natural é que o antigo estudante revoltado vá procurar um emprego, vá cedendo a toda essa tentação do consumo, que realmente é quase que irresistível, porque o capitalismo é uma coisa bonita, uma coisa muito atraente e não adianta encarar o capitalismo como coisa monstruosa. Se ele o é por um lado, por outro ele é muito sedutor, e assim é que a gente vem sobrevivendo esse tempo todo. Agora há elementos dentro dessa burguesia, e eu me incluo entre eles, que por um ou outro motivo, que variam muito, resistem um pouquinho a essa sedução. Às vezes por fastio, por tédio. Então, eu não acho negativo que um garoto que tem tudo, Mercedes, piscina, mordomo vá e vote num candidato declaradamente de esquerda. Eu acho isso positivo, porque também essa beleza toda cansa.
JCL - De 64 para cá os artistas cantavam nos auditórios, para si próprios: a burguesia falando para a burguesia. Como vocês, músicos, furaram esse bloqueio?
Chico - Principalmente porque a música é realmente popular. O teatro e o cinema nunca chegaram a ser populares. A música conseguia chegar à massa através da televisão, enquanto os outros meios ficaram bloqueados pela censura.
JCL - Depois de 45 eu considero você e Caetano os dois melhores poetas surgidos no Brasil. Sem a música, essa poesia para você teria sentido, ou uma coisa é indispensavelmente ligada à outra?
Chico - Eu não concordo com essa colocação, pelo fato mesmo que o meu ofício é outro, é o do artista que faz música e letra, coisas muito ligadas uma à outra. Eu discordo dessa coisa dos caras às vezes quererem elogiar dizendo: "Para mim você não é um compositor, é um poeta", como se isso fosse um status muito maior. Fazer letra e música é uma arte como outra qualquer, e eu desafio os poetas maiores a fazerem letra de música, porque é uma parada diferente. Não escrevo poesia, não gosto de ler as minhas letras publicadas em forma de poesia. É outra coisa para mim, como também não gosto das músicas sem as letras. São feitas juntas, nasceram juntas, têm que caminhar juntas.
JCL - Como você trabalha?
Chico - Só sei trabalhar com máquina de escrever. Às vezes anoto uma idéia, mas para trazê-la para a máquina. A máquina dá o efeito visual. Eu não sei ler na minha letra manuscrita e julgar um troço; às vezes copio na máquina para ler direito. Não consigo me desligar da máquina.
JCL - O teatro e a literatura quando surgiram na sua vida?
Chico - A literatura, para mim, existe há mais tempo do que a música. Na minha formação eu sempre gostei de músicas mas nunca imaginei que seria um compositor. Quando eu era garoto queria ser cantor, mas cantor de rádio, que é diferente. Do lado literário, em todas escolas que passei, trabalhei nos jornaizinhos, escrevia crônicas. Queria ser cantor aos 5 anos de idade; na minha adolescência queria ser Rubem Braga.
JCL - Eu me lembro de Miúcha. Ela tinha fixação no "Fotografei você na minha Rolleiflex"... E João era um personagem distante dela. Ela tinha por ele veneração, assim como se tem por um mito. Foi gozado encontrá-la bem mais tarde casada com ele em Nova York.
Chico - Mas se você acha que ela tinha veneração, eu tinha muito mais. Quando saiu o terceiro disco dele, eu pedi dinheiro emprestado para a Miúcha para comprar o long-play, pois ela era a única dos filhos que trabalhava e ganhava dinheiro. Eu gostava de João muito mais do que ela. Comecei a aprender violão porque era aquele negócio: a Miúcha tocava bossa-velha e cantava, mais foi a bossa-nova que mexeu com a minha cabeça.
JCL - Então seu pique original foi a bossa-nova, a primeira tentação?
Chico - Foi exatamente o disco Chega de Saudade. Até lembro que foi o primeiro disco de 45 rotações que a Odeon lançou, no Brasil. Eu me lembro que tinha um negócio na nossa vitrola que não dava para tocar o compacto. E esse papai deu dinheiro para comprar, porque era música de Vinícius, que era amigo dele, mas que não era um compositor conhecido. De repente era a bossa-nova.
JCL - Eu me lembro da Elizabeth cantando no João Sebastião Bar. Era já uma coisa diferente de tudo anterior.
Chico - Já era diferente como armação, como letra... mas depois o João, cantando só com violão, e aquela flauta, aquela coisa pequenininha, ali, realmente foi o que me arrepiou. Fiquei tardes inteiras ouvindo o disco. Eu e um amigo meu pegávamos o violão e tentávamos imitar. Tentávamos fazer a batida da bossa-nova. Aí eu "peguei" e nas festinhas eu era o que sabia tocar bossa-nova.
JCL - Você chegou a tocar no João Sebastião Bar?
Chico - Cheguei a tocar mas foi o Taiguara que conseguiu um contrato. Ele ganhava 5 cruzeiros por noite. Eu achava fascinante alguém ganhando para tocar.
JCL - Se João Gilberto o "implodiu" enquanto violão, dá para dizer que você virou um grande cantor depois daquele show com o Caetano, na Bahia?
Chico - O Show de Caetano pra mim foi muito importante, principalmente como cantor, porque me forçou assim a soltar a voz. Tinha uma música que eu cantava com ele num tom altíssimo. E também porque naquela altura eu tive que enfrentar uma platéia, que, pela metade, era assim hostil, entende? Eu não sou cara de grandes extroversões diante do público. Então no show com Caetano eu tive de me jogar para fora um pouco, para quebrar aquela coisa de garotinho grande. Era demais o contraste.
JCL - Isso foi consciente?
Chico - Não. Fui levado. Esse show foi montado de repente por um amigo baiano, em dois dias. Nem dava para pensar.
JCL - Eu não vi o show, mas quando ouvi o disco, percebi o grande cantor que você era, transpareceu até um certo erotismo na sua música, violento, que não dava para perceber antes porque você era um cantor muito casto. Por isso eu pergunto se a importância disso para você foi a mesma de João Gilberto?
Chico - Só que eu não coloco no mesmo nível de importância, não. Pra mim, João Gilberto despertou todo num negócio do qual eu vivo até hoje. E o lado do cantor de palco, eu tendo um pouquinho a escamotear.
JCL - O João é magia ou é gênio mesmo, para tocar a gente tão profundamente?
Chico - É engraçado o João. Ou você gosta muito ou, eu sinto, que há pessoas que não entendem. Mesmo um Carlinhos de Oliveira que escreveu num artigo: O rei está nu. É que o Carlinhos, um grande amigo, que eu gosto muito, é inteiramente surdo, ele não gosta de música, ele não entende, e quando a gente fala de João para ele, pensa que o estamos enganando. Eu não entendo de artes plásticas, mas quando vejo um Picasso eu dou um crédito de confiança. Então tá legal, o Picasso é um gênio. Agora, pra mim, ele não me convence, entende (rindo)? Agora não vou ter nunca coragem de dizer que ele é uma b..... E eu vejo isso em relação ao João. Ele é um gênio, mas não adianta a gente tentar explicar muito isso. O Caetano disse uma coisa muito bonita num show dele a respeito da afirmação de um crítico que dizia que a bossa-nova nasceu nos apartamentos da Zona Sul. Ele disse: "Não. A bossa-nova nasceu nas barrancas do Rio São Francisco!" Muita gente não entendeu a bossa-nova, aquela coisa de João que é tão brasileira. Muita gente não entendeu como Caetano entendeu e como eu entendi. E isso você vai colher em qualquer músico da minha geração, e não é combinação não, nesses compositores e nesses músicos que estão por aí, até mesmo em cantores, como Roberto Carlos, que não têm nada a ver mas têm João Gilberto na origem.
JCL - O Roberto Carlos sacou tudo sem intelectualizar...
Chico - Não há necessidade de grande apoio intelectual para captar isso. Basta sensibilidade. O Carlinhos de Oliveira não tem essa sensibilidade e acha que todo mundo estava enganando ele. Ele está errado porque o rei está vestido.
JCL - Você andou muito pela Europa. Qual é a influência dela na sua vida?
Chico - Há muito tempo que eu não tenho nenhum contato profundo com a Europa. Quando eu era garoto eu aprendi a ler e conversar em francês. Li até o Guerra e Paz em francês. Era tão comprido que acabei aprendendo. Mas eu não sei onde foi parar essa cultura toda que eu andei armazenando às pressas entre meus 15 e 20 anos. Pois outro dia fui a um restaurante e tinha um negócio que eu não sabia o que era. "Meu Deus como é que eu esqueci que é um coquille?"
JCL - Qual é a sua informação hoje?
Chico - Pouquíssima ficção. Conversa de botequim, que é um pouco de ficção. Jornais, revistas, eu leio todos. Tenho fixação por jornais de rádio. Principalmente o do meio-dia e meia quando acabo de acordar e tomar banho. Talvez pela ansiedade de receber uma notícia nova, alguma coisa que mexa com o país. Mas isso, na realidade, porque tem um outro lado da fantasia que eu acho que já é suficiente até demais, funcionando aqui dentro, no meu mundo particular.
JCL - O ser político está pegando muito mais do que o ser artista. Você é um ser muito político, hoje?
Chico - Isso é mais de fora para dentro, entende? Quer dizer, eu me alimento dessas coisas, estou sabendo tudo, o nome dos deputados, dos senadores. Não é que eu me faça mais inteligente com uma conversa política... numa dessas eu vou ouvir muito mais do que eu vou falar. E acho normal que isso acabe perspirando na minha música. Não estou com vontade de escrever, de ser comentarista político, nem de emitir opiniões teóricas. Mas me alimento com isso tudo.
JCL - E o fenômeno político tem influenciado sua música?
Chico - Bom, acho que é possível. Eu não acho que faça uma música diretamente por política. Eu tive uma participação política em 64, depois não tive mais. Quer dizer, quando veio 64 eu me senti logrado. Porque logo depois de 64 eu era o cara que estava juntando garrafas de cerveja para fazer coquetel Molotov, porque afinal nós éramos defensores de legalidade. E, de repente, a desativação do que seria a resistência me deixou muito frustrado e até amargo em relação a uma série de pessoas e de grupos de esquerda mesmo. Portanto, 68 me passou super despercebido, porque eu não estava muito acreditando naquelas coisas não. Aí foi até um caso de ressentimento pessoal. Vendo os líderes que eu conhecia, eu me dizia: "Esse cara não vai ser meu líder não!" Ao contrário de muita gente da minha geração eu me envolvi muito mais em 63 do que em 68.
JCL - Você sente que o sucesso hoje lhe dá uma certa imunidade?
Chico - Ah! Sempre deu. Hoje é diferente. A paranóia não é tão violenta. Mas naquele tempo eu sentia uma perseguição que de fato existia. Mas que ao mesmo tempo me puxava para uma certa obrigação de atuar mais, justamente por me sentir mais protegido por essa popularidade. Eu pensava: "Eu posso falar mais do que o meu público porque ele me protege." Coisa que felizmente foi se quebrando a partir da liberação da imprensa e quando as coisas começaram a assumir pesos mais justos.
JCL - Um menino que estivesse hoje tocando violão no Santa Cruz ou em qualquer lugar, tem aí um João Gilberto a inspirá-lo?
Chico - Não. Não tem.
JCL - Qual é o pique que poderia iluminar uma geração nova? Tem alguma coisa análoga a João Gilberto?
Chico - Não tem, porque além do pique num processo assim, em qualquer campo da arte há de haver continuidade. Você vê, depois do João veio uma segunda geração de bossa-nova, veio uma terceira na época do Edu Lobo e tal e veio a quarta que é a minha. Depois veio o tropicalismo, sem contar outras ramificações como até Roberto Carlos, Jorge Ben. Isso tudo veio a partir da bossa-nova e houve uma solução de continuidade. De dez anos para cá deixou de haver renovação. Há gente aparecendo, um aqui, outro acolá, mas não como continuidade.
JCL - O Milton seria o último elo?
Chico - O Milton... é difícil a gente dizer o último elo. Eu não quero colocar a coisa assim, que por um lado é muito trágico e por outro parece que eu estou querendo preservar a minha geração, entende? Tipo: "Nós somos os últimos." E de qualquer forma as coisas foram acontecendo, da noite para o dia surgia o Mautner e os compositores novos se sucederam até 67, 68. Aí a paulada foi dada para doer e doeu. E hoje um garoto do Santa Cruz não vai pegar o violão para tocar, mesmo porque por mais que a minha música, a do Caetano ou a do Gil desperte uma certa admiração nas pessoas, é difícil que ela desperte uma explosão de entusiasmo como quem vê pela primeira vez um disco-voador, como foi o caso de João Gilberto. Nós ainda podemos fazer melhor, mas não somos uma aparição e não vamos ser nunca.
JCL - Será que esse processo do surgimento do gênio artístico está ligado ao processo da libertação humana e política?
Chico - Eu tenho certeza que sim e não consigo distinguir uma coisa da outra. Nesses países, como Portugal, não apareceu um gênio nos últimos 50 anos. Não adianta botar a culpa no português porque onde bate essa burrice é a burrice que se institucionaliza.
JCL - Nos Estados Unidos a explosão musical sempre acompanhou a luta pela liberdade. Bob Dilan seria um filho musical do Vietnã...
Chico - Olha, o que poderia me alimentar, além das pessoas que eu conheço, é o fato de que a apatia já não é a mesma que existia 5 anos atrás. Quem vai mexer com isso não sou eu nem Caetano, mas vai ser gente que a gente nem conhece, mas que vai aparecer, que deve existir por aí. Mas dificilmente aparece individualmente, mas como expoente de um entusiasmo coletivo. Está na hora de acontecer isso. E isso vai se refletir em todos os campos. Aí há de aparecer a arte correspondente que satisfaça. E essa arte vai ser nova, e o grande compositor dessa arte não vou ser eu, infelizmente.
Uma conversa franca sobre o valor da liberdade, da verdade, do dinheiro, do sucesso e da vida, com o mais lúcido e admirado dos nossos compositores.
Faz bem uns doze anos, quando o Brasil inteiro ouvia e assobiava A banda, o humorista Millôr Fernandes afirmou que Chico Buarque era "a única unanimidade nacional". Muita música rolou desde então, mas, há poucos meses, quando mais de 15 mil leitores votaram para eleger os melhores da Música Popular Brasileira de 1977, na enquete do Prêmio Playboy, sessenta por cento dos votos para melhor compositor foram dados a Chico Buarque. O veredicto da Comissão Julgadora do concurso também foi esse. Como se vê, o tempo passou, o "garoto de olhos verdes" amadureceu e se transformou num jovem senhor pai de três filhas, sua arte também ficou mais adulta e agressiva. Mas a unanimidade continua a mesma.
O mais notável é que Chico nunca se empenhou em cortejar a popularidade. Nos últimos anos ele só concordou em aparecer na televisão três vezes (as três em "especiais" da TV Bandeirantes) e suas aparições em shows vão se tornando cada vez mais raras. Não é responsável pela aura romântica que, nos primeiros anos de sua carreira, uma facção menos atenta de seus admiradores procurou lhe impingir e que, de vez em quando, é citada para comparar "o Chico de hoje': realista, engajado e até cínico em alguns de seus versos, com aquele "doce Chico dos bons tempos.: A verdade, no entanto, é que, já em sua primeira canção de sucesso, Pedro pedreiro (que ele compôs aos 18 anos), Chico mostrava as mesmas preocupações sociais e existenciais que marcam a fase mais recente de sua obra.
Essa integridade e essa coerência, como artista e como pessoa, não o livraram de mal-entendidos ainda mais incômodos do que os dos cultores da sua suposta "fase romântica". Pelo contrário, uma constante até monótona em sua vida tem sido a luta para não se deixar usar - posição que ele já firmava há mais de dez anos, com a peça Roda viva.
Como se já não lhe bastasse a insaciável tesoura da censura, ele se viu, exatamente em conseqüência disso, erigido em estátua e bandeira: o herói,` a vítima da repressão cultural, o-que-está-tendo-o-peito-de-enfrentar-a-barra. Enfim, um uniforme que Chico jamais aceitou vestir, nem mesmo quando a tal "barra " pesou mais dura e concretamente, como, por exemplo, quando teve de pagar os enormes prejuízos causados pela proibição de sua peça Calabar, que estava montada e não estreou. Hoje, o observador imparcial que der uma vista de olhos no panorama da carreira do compositor e cantor Chico Buarque de Hollanda verá, nitidamente, a imagem de um artista que atravessou um dos períodos mais turbulentos da música popular brasileira sem ceder ao fascínio das revoluções aparentes e dos auditórios que fabricavam ídolos descartáveis. Indiferente ao tilintar da caixa registradora do mundo do show - no seu caso, uma caixa milionária -, Chico preferiu dedicar mais de um ano a escrever a peça Ópera do malandro. E talvez não renove seu contrato com a gravadora, para não ser obrigado a fazer um disco por ano. Afinal, identificado pelo público com as melhores esperanças de liberdade, nada mais justo que ele queira ampliar a sua.
Deixemos, porém, que o próprio Chico se explique, atitude que, nesta entrevista para PLAYBOY ele faz com aguda sinceridade e ferina pontaria. O entrevistador é Humberto Werneck, editor-assistente de "Artes e Espetáculos" da revista Veja.
Playboy - Você está na crista da onda há mais de dez anos e não ficou milionário. Como foi esse milagre?
Chico - Eu não sou nada organizado nessa questão de dinheiro. Não tenho muita noção disso e já levei canos monumentais. Deve ser um pouco conseqüência da minha formação católica: se eu fosse protestante [ri], acho que transaria melhor com dinheiro. Porque dinheiro, para a gente, é um pouco pecado.
Playboy - Você se preocupa com as finanças?
Chico - Não. O dinheiro vai pro banco e eu vou gastando. E está dando. De uns dois anos para cá, com a reformulação do direito autoral e com as peças de teatro, eu estou podendo viver folgadamente. Só não sei aplicar, fazer investimentos. Eu fui muito beneficiado pela mudança que houve no direito autoral*. (Até o início de 1977, a arrecadação de direitos autorais era feita por sociedades particulares. Mas a partir de então ficou a cargo do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, subordinado ao Conselho Nacional de Direito Autoral. A cobrança e o pagamento aos autores passaram a ser feitos com maior rigor e, em certos casos, os rendimentos dos compositores foram aumentados em até 30%, já no primeiro trimestre de atuação do ECAD.) E isso me deixa com problemas, porque eu sei que essa distribuição não é justa - é bom constar aqui. Outro dia, por exemplo, eu pego um táxi, o chofer me reconhece e diz que somos colegas. Ele é parceiro do João do Valle em Carcará, tem uma série de músicas aí - mas músicas sertanejas, que nunca tocam nas rádios em São Paulo e no Rio e nos grandes centros, que é onde fazem a computação desses direitos. Então esse sujeito foi incrivelmente prejudicado pela nova distribuição de direitos autorais, enquanto eu saí lucrando. O que dá um certo sentimento de culpa.
Playboy - Em suma: se você ganhasse menos, ele receberia mais?
Chico - Não, se a coisa fosse justa eu inclusive receberia mais. Porque o grande problema do direito autoral não está na distribuição, está na arrecadação. Se fosse justo, a Globo ia pagar cem ou mil vezes mais do que está pagando, porque o grande direito autoral tinha de ser arrecadado nas televisões, nas rádios, etc. Aqui no Brasil é o contrário: arrecadam nos clubes. Nas rádios também, mas numa relação absolutamente injusta: afinal, quem fatura mesmo em cima de música são as emissoras de rádio e televisão, que veiculam e não pagam proporcionalmente nada.
Playboy - Você se lembra do primeiro dinheiro que ganhou com música?
Chico - Foram 50 contos, num show em Campinas. Seriam hoje uns 5 mil cruzeiros, sei lá. Cantei Pedro pedreiro.
Playboy - E o que você fez com essa fortuna?
Chico - Saí, fui gastando, gastando. Fomos até Itápolis (SP), eu e um amigo meu. Eu tinha uma namorada lá. Ficamos hospedados no melhor hotel da cidade, que era uma pensão. Fiquei circulando pelo interior de São Paulo. Depois ganhei mais para fazer a música de Morte e Vida Severina. Em seguida consegui um contrato com a TV Reeord. Foi quando comprei meu primeiro carro, um fusquinha usado: pagava exatamente 500 contos por mês, que era o meu salário. Cantava Pedro Pedreiro em tudo quanto é programa: Astros não sei o quê, O Fino da Bossa...
Playboy - E ficou deslumbrado com a glória?
Chico - Não, não era glória nenhuma.
Playboy - Mas para quem nunca tinha tido tanta notoriedade...
Chico - Não. O que aquilo representava era realmente o dinheiro, que eu não tinha dinheiro pra ter um carro e poder farrear. Antes da Banda quase não tinha notoriedade: era conhecido, mas no meio de estudantes, só. E onde já era conhecido fiquei com um pouquinho mais de charme... Então namorei mais meninas do que namorava antes. Mas não passava disso.
Playboy - Mas mudou a sua vida.
Chico - Não mudou muito não. Em vez de pegar o carro de meu pai, eu pegava o meu. Mas o resto era aquilo mesmo - tomar cachaça e tal. E era tudo misturado: a vida de estudante e esse princípio profissional, era mais ou menos a mesma coisa. Depois de uma farra na faculdade, de ficar bebendo a tarde inteira, às 6 horas pegava o smocking pra fazer um programa na TV Record. Era a continuação da farra: ia de carro com os amigos, entravam todos juntos. Não tinha isso de glória, não.
Playboy - Em que momento baixou a consciência profissional?
Chico - Bom, - aí veio o festival da Banda. E de repente o que eu estava fazendo de farra ficou sério. Apareceu empresário, começaram a pintar viagens, shows em toda parte. E comecei a viver em função disso. Era jogado de baixo pra cima, ia parar em Pelotas, depois em Teresina, sozinho com o violão. Já era um pouquinho a fase da roda-viva, de fazer sem a menor consciência do que estava fazendo. Aí, realmente, comecei a ganhar dinheiro. Mas é onde está a diferença: não era um dinheiro que podia gastar indo pra Itápolis, entende? Já era o dinheiro que eu podia pensar em dar de entrada num apartamento. Começou a mudar um pouco o esquema da minha vida.
Playboy - Quando foi que começou a escrever?
Chico - Muito antes de fazer música. Assim tipo jornalzinho de colégio. Gostava da idéia de ser escritor. Eu tinha impressão de que ia ser uma coisa tipo jornalista ou, sei lá, uma espécie de cronista, um Rubem Braga...
Playboy - Isso em que altura da sua vida?
Chico - Até o tempo em que eu estudava arquitetura. Nunca estive realmente convicto de que ia ser arquiteto. Entrei para a Faculdade de Arquitetura porque não tinha naquela época nenhuma outra opção - não ia estudar Letras, não é? Até a hora em que comecei a fazer música profissionalmente. Comecei a viver de música um pouco sem perceber. Aí abandonei a idéia de ser escritor. E parei de escrever mesmo - eu fazia uns contos, e parei.
Playboy - Publicou um conto só, não é? Ulysses, parece.
Chico - Publiquei esse conto aí por 64, 65, no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Mas também não gosto dele. Em todo caso, é bom a gente começar, publicar as coisas e gravar os discos. Ficar esperando amadurecer para se expor, acho uma atitude meio medrosa. E aliás ninguém faz isso. Porque depois de fazer a gente realmente acha que está bom. Quanta gente me manda fitas para ouvir, eu ouço. E 100% - não vou dizer 99%, não - são coisas ruins. É de gente que tem geralmente 18, 19 anos, e as músicas que eu fazia nessa idade eram muito ruins mesmo. Então, quando tenho de dar uma resposta, eu digo "continua, que você chega lá". Também não posso dizer que é bom.
Playboy - Isso não tem um pouco de pessedismo? Você acha mesmo que - esse pessoal vai chegar lá?
Chico - Eu não tenho direito de dizer a eles que não continuem tentando. Se 1% deles vier a fazer uma coisa boa, eu não digo que terei ajudado, mas pelo menos não terei impedido isso. Eu sei que seria uma porrada forte que ninguém tem o direito de dar. Quando eu escrevia minhas primeiras coisas, mostrava pro meu pai. Sabia que eram umas porcarias, mas se ele dissesse isso, me mandasse estudar matemática, eu talvez tivesse deixado de escrever. Meu pai dizia: "vai ler mais, continue escrevendo". Sem nada de pessedismo, e me valeu a pena: eu podia ter simplesmente desistido.
Playboy - Alguns elogios seus, por escrito, não são convincentes...
Chico - Bom, mas aí é outra coisa: eu descobri que não consigo escrever coisa que não seja ficcão. Volta e meia me pedem prefácio pra isso, pra aquilo, ou uma contracapa, e eu tenho uma dificuldade incrível, fico um tempão na máquina para desovar uma orelha de livro. Agora já estou conseguindo rejeitar esses pedidos, explico que não sei escrever. Foi que nem isso de apoiar candidatos, nas eleições: eu pedia às pessoas que escrevessem pra mim, "você escreve que eu assino embaixo". Até que descobri que podia fazer jingles - isso pelo menos é uma coisa lúdica divertida. E foi o que fiz*. (Chico fez jingles para o candidato ao Senado Fernando Henrique Cardoso (São Paulo) e para os candidatos à Camara Federa! Audálio Dantas (eleito por São Paulo) e Modesto Silveira (pelo Rio).
Playboy - Você já disse que compõe músicas "por enxurradas". Já aconteceu, entre essas "enxurradas", um intervalo longo a ponto de deixar você inquieto?
Chico - Sempre é um período meio angustiante. Quando estava escrevendo Fazenda Modelo, passei nove meses sem compor. Mas aí não fiquei inquieto, porque a mim não interessava simplesmente estar fazendo música: se estiver fazendo outra coisa, me dou por satisfeito, me sinto vivo. Escrevendo, fazendo teatro. Agora, nesses períodos de seca é que o negócio é bravo. Sempre fico achando que acabou, que secou mesmo. Fico tentando fazer, vou pro violão, pego e não acontece nada, não sai nada de novo. Pinta mesmo essa dúvida essa incerteza, essa insegurança muito grande. Para mim, tenho certeza de que não vou fazer nada de bom tão cedo, ou nunca mais. Mas aí fico lembrando: já aconteceu antes, e eu fiz. E me consolo com isso.
Playboy - Dê um exemplo de uma fase de seca brava.
Chico - O período mais longo foi quando estive na Itália, 1969, 70. Acho que aí realmente houve um corte. Depois de um ano sem fazer nada, gravei um disco - um disco que reflete muito bem isso: meio perdido, meio desligado do que era antes, mas ainda sem estar ligado a uma nova fase. Gravei quase por obrigação: tenho que fazer um disco agora, porque não é possível não fazer música. Fiz. Mas metade das músicas desse disco eu considero meio soltas dentro do meu trabalho todo, não querem dizer nada.
Playboy - Nos períodos de criação, você trabalha com disciplina?
Chico - Música, não. Mas literatura, sim. Porque música é uma coisa muito pequena, não é? Você termina e fica burilando. Quando estou nessas fases de trabalhar muito, acordo e vou direto pro estúdio, fico lá o dia inteiro, só saio para almoçar. Mas a música se esgota, depois de dois dias não há mais o que fazer. Enquanto que quando você está escrevendo um negócio de mais fôlego, uma novela, uma peça de teatro, você vai dormir com aquilo, no dia seguinte retoma, é um processo contínuo. Música é absolutamente descontínuo: você curte aquilo intensamente durante um, dois, três dias, no máximo. Depois, quando parte para a gravação, já é outra coisa, não tem nada a ver.
Playboy - Acontece muito você ter que gravar um disco e não ter músicas em número suficiente?
Chico - Quando eu comecei a gravar, tinha uma bagagem muito grande. Fiz o primeiro LP e podia ter feito o segundo dois meses depois. Mas daí para a frente, não. É que eu não componho tanto assim - ser for olhar, tenho uma média de dez músicas por ano. Quando fui gravar Meus Caros Amigos, em 76, entrei no estúdio com quatro ou cinco músicas, sem ter idéia do que ia ser o conjunto. A mesma coisa agora no final de 78: na hora de fazer o LP, botei três músicas antigas - Cálice, Tanto Mar e Apesar de você -, que tinham ficado proibidas por muito tempo; botei também - um artifício que eu não queria usar - três músicas da Ópera do Malandro: Homenagem ao Malandro, Pedaço de Mim e O Meu Amor. Queria guardar estas três para o LP da Ópera. E compus uma música em cima da bucha, no estúdio, na última semana: eu tinha uma vaga idéia dela, mas não sabia nem o ritmo, nem tinha a letra, e isso tudo foi aparecendo no estúdio, a música praticamente foi composta lá na Phonogram.
Playboy - Não chega a ser uma violência, isso de compor no estúdio, sob a pressão do relógio?
Chico - Não. O fato mesmo de entrar no estúdio vai te estimulando, vai te puxando.
Playboy - Mas essa música feita, digamos, para completar um disco, dá a você o mesmo prazer que as outras, criadas espontaneamente?
Chico - Eu só faço música com prazer. Entrar no estúdio é um estímulo até certo ponto artificial, externo. Há uma série de estímulos externos - o clima de gravação, a necessidade de fazer música nova, ou compor para cinema, teatro. Mas o momento da criação, para mim, é sempre um momento de tesão. Não importa se o estímulo vem de fora.
Playboy - É verdade que você experimentou o "estágio Alfa", esse estímulo complicadíssimo*? (O "estágio Alfa" seria o momento em que o cérebro atinge a sua amplitude criativa, provocado por um tipo de treinamento mental feito com a ajuda de estímulos elétricos, que está muito em voga nos Estados Unidos.)
Chico - [ri] Fiz duas experiências com isso, mas acho uma bobagem. Entrei nessa por brincadeira, curiosidade pura. Eu estava em Nova York por uns quinze dias, e como o João Gilberto estava fazendo esse negócio, fui lá de farra. Não consegui atingir o estágio Alfa, achei engraçado e parei aí.
Playboy - Você costuma ouvir seus discos em casa?
Chico - Não, de jeito nenhum. Só a fita, assim mesmo quando está quentinha. Gravei ontem, hoje a primeira coisa que eu faria seria ouvir a fita. Mas, quando o disco está saindo, já não estou ouvindo mais.
Playboy - Que tipo de música você gosta de ouvir, então?
Chico - Na minha casa você raramente vai ouvir música. O que toca mais são os discos das crianças. Quando estou ouvindo, é geralmente uma novidade, um disco novo do Milton, do João Gilberto, do Caetano. As vezes cismo e boto uma música cinco, seis vezes seguidas. Tem um gênero que não ouço mais, música erudita: não tenho mais saco, nem curiosidade. Jazz, muito pouco.
Playboy - E seus livros, você relê de vez em quando?
Chico - Não. Quando estava saindo Calabar, eu ainda lambia a cria: era o primeiro livro. Então fiquei lá vendo aquilo impresso, corrigindo os errinhos para a segunda edição. Depois acaba o interesse, como no caso da música. Me dá uma impressão meio desagradável ficar remexendo nessas coisas que já foram feitas.
Playboy - Você acha que as pessoas, de forma geral, o respeitam como escritor?
Chico - O sujeito, quando quer se referir, por exemplo, à Ópera do Malandro - uma peça que me custou um ano de trabalho - , diz assim: "A peça do compositor Chico Buarque de Hollanda..." Sinto aí uma certa agressão, uma vontade de diminuir. Quando eles querem diminuir mais ainda [ri], dizem "... a peça do cantor Chico Buarque de Hollanda". Porque na cabeça das pessoas ser escritor, ou dramaturgo é uma coisa de mais status. Mas eu não tenho essa preocupação: compor é igualmente um prazer, só que mais breve.
Playboy - De qualquer modo, a impressão que se tem é de que você se aplica à literatura com intensidade maior que à música.
Chico - Verdade. Mas isso porque escrever toma mais tempo que compor. Agora, tenho medo de que a ocupação de compositor se esgote. Eu vejo isso muito aí fora: aos poucos o compositor vai diminuindo o ritmo, é quase uma regra geral. E eu tenho medo disso.
Playboy - Seu ritmo vem caindo?
Chico - Sim. Mas, também, quando comecei vivia com o violão na mão, fazendo música, boa ou ruim, não interessa, estava o tempo todo fazendo. Agora, parece que eu já sei tudo. É o medo da repetição: a minha mão, sem querer, já vai de acorde para acorde segundo um desenho que já existiu antes. No teatro ou na literatura a gente não vê essa tendência a uma diminuição de ritmo entre artistas novos. Quantos escritores não apareceram com 40 anos? E é difícil aparecer um compositor com essa idade. Tenho muito medo de deixar de criar, de fazer alguma coisa. E me parece que o lado da música popular é mais frágil, pode ser mais efêmero, esgotar-se mais cedo.
Playboy - Você poderia estar caminhando para uma troca de meio de expressão?
Chico - Por enquanto, a literatura que tenho feito é quase sempre teatro musical - Fazenda Modelo é um caso à parte. E o compositor continua acompanhando esse trabalho. Agora, é possível que deixe de acompanhar um dia, não é? Inclusive porque fazendo teatro eu estou aprendendo muito, a cada peça uma coisa nova. Então, num dado momento pode ser que o escritor de teatro dispense o compositor. Ou que o compositor não consiga acompanhar o escritor.
Playboy - Você foi criado num ambiente intelectualizado. Em que medida, exatamente, isso influiu na sua formação?
Chico - Influiu muito, porque eu vivia cercado de livros, fascinado por eles. Comecei a ler muito, mesmo porque os livros estavam lá. E a ler coisas que eu não tinha capacidade de entender. Não sei se aproveitei, não me lembro de nada que li. Os franceses todos, os russos. Queria aprender a falar francês, e aprendi lendo aqueles livros. Depois esqueci tudo, quando aprendi italiano. Mais que o proveito que eu possa ter tirado da leitura, ficou o fascínio pelos livros. Aqui em casa tenho umas estantes cheias. Não é que eu compre livros a metro: são coisas que vou ler um dia.
Playboy - Que tipo de coisa você gosta de ler?
Chico - Hoje em dia quase não leio. Muito jornal e revista, mas quase nada de ficção. E quando pego é quase sempre literatura brasileira. Maíra, do Darcy Ribeiro, Galvez, Imperador do Acre, do Márcio Souza, estão separados, esse tipo de coisa me interessa. Resumindo: não tenho a menor vontade de reler Guerra e Paz.
Playboy - Você parece ter uma diferença com os críticos em geral - de música, de teatro e de literatura. Nenhum deles já lhe disse alguma coisa importante, que ajudasse a iluminar seu trabalho para você mesmo?
Chico - Umas poucas vezes, sim. E, engraçado: pelo menos no meu caso, a crítica de música tem sido a mais rica, a mais séria, quando aparentemente se poderia esperar o contrário. Sobre teatro, vejo barbaridades em termos de leviandade e preguiça. Literatura também: descaso, falta de atenção. Música, bem menos - tenho lido coisas que me serviram. O Tárik de Souza, por exemplo, já escreveu artigos que me valeram como toque.
Playboy - Você costuma guardar recortes de críticas, entrevistas?
Chico - Eu quase não leio minhas entrevistas. Não guardo nada, só umas poucas coisas, ligadas, por exemplo, a um determinado trabalho que acaba de sair. Aí nem sou eu, geralmente é a minha mulher. Já tive uma chateação com isso, quando voltei da Itália e li um monte de recortes baixando o pau em mim. Joguei fora o que tinha, não quero saber mais.
Playboy - Ao contrário de tantos artistas brasileiros, você não parece preocupado com a vanguarda. Como se situa, exatamente?
Chico - Não sou um compositor de vanguarda. Não estou em linha nenhuma, porque o meu trabalho é bastante isolado do resto. Não pertenço a grupo nenhum, nunca pertenci, e tenho a impressão de ser um cara que não está criando escola.
Playboy - Na época do tropicalismo, quando havia uma obsessão de vanguarda, pesquisa, etc., você, que não estava nessa jogada, chegou a ser apontado como um artista ultrapassado. Isso o incomodou muito?
Chico - Nessa época aconteceu uma coisa engraçada. Havia um movimento de vanguarda, o tropicalismo, e eu simplesmente estava procurando outra coisa: estava querendo aprender música. Foi quando comecei a elaborar meu trabalho, melódica e harmonicamente. Pode ser uma coisa acadêmica, mas que me ajudou muito. Não era uma posição tradicionalista, e frutificou mais tarde. Mas naquele momento o resultado desse esforço foi contraposto ao tropicalismo. Eu fui usado, mas não estava ligado a um grupo antitropicalista. E por estar muito ligado à música, nesse tempo - 1968, não me embalei no movimento estudantil. Depois da desilusão muito forte que foi 1964, 68 me pegou meio descrente. O movimento de música estava muito ligado ao movimento estudantil, mas eu, na verdade, só fui participar de uma passeata, a dos 100 000, porque a pressão era demais: eu me arriscava a ser confundido com um reacionário se não fosse a essa passeata.
Playboy - Você tinha a sensação de estar isolado nisso tudo?
Chico - O Ziraldo diz de brincadeira que eu sou Fluminense porque todo mundo é Flamengo. Mas na verdade eu tenho uma certa aversão à moda e aos modismos em geral. Sou visceralmente contra. É justamente isso que me preocupa hoje: de repente, todo mundo é de oposição. Eu também sou, mas tenho que encontrar uma forma diferente de me situar. Porque já vi isso acontecer tantas vezes, entende? Em tão pouco tempo, pessoas que eram declaradamente de direita passarem a fazer músicas anunciando "o dia que vai chegar", e serem aplaudidas de pé. Isso, para mim, tem efeito magnético contrário, me afasta. Me lembro da famosa passeata contra a guitarra, que fizeram em São Paulo. Fiz questão de não participar, porque achava uma besteira aquele negócio de fazer passeata contra guitarra. Pois um ano depois, em 68, eu estava na posição de quem tinha participado dela. Por quê? Porque as pessoas mudaram, viraram inteiramente. Tem sempre essas tentativas de envolvimento.
Playboy - Você poderia citar mais alguma?
Chico - Há algum tempo, um sujeito me incluiu, à minha revelia, num negócio chamado Malditos Escritores, porque a moda é ser maldito. E puseram o quê? Esse conto Ulysses, uma porcaria que escrevi em 64. E por que "escritor maldito"? Eu nunca disse que era escritor, nem maldito! Fazem essas coisas, e aí eu tenho que reagir. Ao mesmo tempo, não dá para ir até o fundo: não vou assumir a posição de censor, tentar tirar essa revista de circulação. De repente, é todo mundo contra Caetano e Gil, como alguns anos antes era todo mundo a favor deles e eu era o outro lado da gangorra, não é? De repente vira tudo, aí se diz que eles são dois alienados, que eu é que sou o quente. E eu tenho que reagir, dizer "pera ai, não é isso não". Eu detesto ser usado. A autonomia é muito importante para mim. As pessoas me usam de uma maneira sem-vergonha, o tempo todo, e têm usado há muito tempo.
Playboy - Aliás, você está permanentemente obrigado a definir suas posições.
Chico - Pelo menos a desdefinir as coisas que são definidas pelos outros.
Playboy - Acredita que um dia não será mais preciso ficar se explicando?
Chico - Acho que não. Enquanto eu estiver produzindo, vai sempre aparecer esse tipo de coisa, e vou estar sempre tendo esse tipo de aporrinhação. Mas é melhor do que não estar produzindo mais nada e estar com a imagem cristalizada.
Playboy - Você parece ter tanto trabalho com seus adversários quanto com os que dizem estar com você.
Chico - Pessoas que não me conhecem ficam dizendo coisas inteiramente fora de propósito, a favor ou contra. Ou é gratuito ou é de má fé. Os a favor são muito pesados quando sinto que tem uma coisa por trás. Porque aí estou sendo um inocente útil, para usar o termo, de coisas que assumo muito claramente. Eu assumo minhas idéias muito claramente, até o limite da censura mesmo. E no entanto fazem confusão, me usam, no plano estético e no plano político.
Playboy - Você tem feito declarações sobre a inutilidade de fazer shows, que para a platéia têm um efeito catártico. O pessoal vai lá, te aplaude freneticamente, sai em paz com suas consciências.
Chico - Isso aconteceu nos últimos shows que fiz, em 1975, no Canecão. Aí fiquei dois anos fazendo shows beneficentes, por causas ótimas, ou por envolvimento pessoal. O último foi para a chapa de oposição do Sindicato dos Médicos do Rio. Depois dele, choveram cartas - o Jornal do Brasil publicava duas, três por dia, acho que com certo prazer. Cartas me derrubando, dizendo que eu estava de má vontade. Que eu errei a letra das músicas - o que é verdade. Má vontade, não: pouco à vontade. Afinal, eu não estava me dedicando a shows, não tinha músicos ensaiados, não tinha a letra de cor. Estava fazendo show para uma coisa em que acredito. Mas é o tal negócio: o público pagou ingresso e queria realmente um espetáculo de artista. Quando eu entrei, ficou todo mundo de pé, mas saí do palco como uma coisa frustrante. Porque o pessoal, parece, estava querendo um espetáculo grotesco mesmo, em nível de desabafo. Coisa que eu já fiz quando era necessário para mim. Mas não estou aí para ser um profissional do protesto. Renego também essa imagem de líder, nunca me propus a ser isto.
Playboy - A platéia nunca lhe deu um troco positivo? Ou é apenas algo a enfrentar, simples obrigação profissional?
Chico - Justamente por isso é que é penoso. Não é uma coisa simplesmente profissional. Se eu pudesse fazer isso profissionalmente e ser um artista e me transfigurar, tudo bem. Mas não, eu me sinto muito exposto como ser humano. Segundo ponto: sou incapaz de subir no palco sem estar, não digo bêbado, porque aí erro tudo, mas sem estar 30% movido a álcool.[ri] E isso me parece uma coisa antinatural. Eu, se acordasse e tivesse que fazer um show, seria uma lástima Tem uma série de condicionantes externos que me permitem às vezes chegar lá e fazer um show que sai. Um jornalista de São Paulo, conhecido pela sua mordacidade, até inventou uma história [ri]: alguém teria perguntado se eu comemorava depois do show - e eu: não, já entro comemorado...
Playboy - Você se considera um profissional?
Chico - Nesse sentido de artista do palco, nunca fui.
Playboy - E em outros sentidos?
Chico - Eu sou muito responsável. Quando assumo certos compromissos, procuro cumprir. Agora, muitas vezes esses compromissos profissionais são um desafio à minha capacidade criadora. Então já aconteceu de eu largar coisas pelo meio. Mas na grande maioria das vezes eu, quase violentado pela necessidade de cumprir uma obrigação profissional, acabei criando - e aí, volto a dizer, criando com prazer. Freqüentemente sob pressão muito forte.
Playboy - Que tipo de pressão?
Chico - Para gravar o meu último disco, por exemplo. Eu sei que sou um artista que tem uma posição muito boa lá na Phonogram, sou um dos que vende mais disco, então sou tratado com delicadeza. Mas eu sei também que por trás existe uma pressão fortíssima para que um disco seja gravado. O vendedor de discos na Bahia depende da saída do meu disco para comprar seu carro novo, e isso me é dito indiretamente. Essa pressão, de qualquer maneira, me provoca, me obriga a fazer, a criar. Já houve casos de músicas para um filme, ou para uma peça que estava para estrear, que eu tinha de fazer de qualquer maneira - e fazia. Com prazer - maior ou menor, é claro. Faço uma distinção: tem coisas que faço e assumo inteiramente, acho uma beleza, e outras que não chegam a tanto mas também não me envergonham.
Playboy - Você acha que está caminhando para ser dono de seu tempo?
Chico - Eu só estou caminhando para isso. Inclusive posso não fazer televisão, porque não gosto. E não é qualquer um que pode assumir isso, financeiramente. Tenho uma certa tranqüilidade para não precisar fazer as coisas de que não gosto. Acho muito importante o prazer, sabe? Fazer uma peça de teatro, gastar um ano nisso, não faz sentido nenhum na lógica empresarial do meu trabalho: claro que no fim dá direitos autorais, mas não se compara ao que eu ganharia fazendo shows por aí. Só tem sentido, portanto, na medida em que me dá um prazer muito grande. Estou realmente querendo ganhar o meu tempo, ser dono dele. E aos poucos estou conseguindo. Até mesmo em termos de gravadora: a minha idéia é não renovar o contrato com a Phonogram, que vence daqui a dois anos, por causa dessa obrigação de gravar um disco por ano.
Playboy - Mas você não grava um disco por ano. Pelo menos não gravou em 1977.
Chico - Não gravei, porque tenho uma situação privilegiada na gravadora. Eles não vão me obrigar, "faz se não te processamos, te damos um tiro na cara". Agora, se eu não renovar o contrato, não vou me sentir pressionado pelo vendedor de discos da Bahia.
Playboy - A Rede Globo anda usando suas músicas nas novelas. É uma manobra de sedução?
Chico - Eu tenho repetido que não estou a fim de fazer nada lá. Isso depois de ter sido proibido na Globo. Proibido mais de uma vez, e na mais grave com outras pessoas: foi todo um grupo de compositores que se recusou a participar do penúltimo Festival Internacional da Canção. Não era nada contra a Globo, era um protesto contra a censura - foi naquele ano mais bravo da censura, acho que 1972. A gente escreveu uma carta protestando e retirando as músicas. A Globo, que tinha muito interesse em jogo, quis forçar a gente a participar. E isso chamando todo mundo no DOPS. O Secretário da Segurança, general França, os compositores todos lá de pé e um diretor da Globo - um cara chamado Paulo César Ferreira - aos berros, chamando todo mundo de comunista. Apoplético, queria enquadrar todos na Lei de Segurança Nacional, queria deixar a gente preso lá. E, como não conseguiu, vingou-se proibindo a execução de músicas nossas na Globo durante um bom tempo. Houve vários incidentes assim com a Globo. Eu simplesmente não tenho interesse nenhum em participar de seus programas.
Playboy - E da parte deles?
Chico - Eles estão usando músicas minhas aí em novelas. É uma coisa que podem fazer independentemente de mim, através da editora.
Playboy - Há um ano, exatamente você esteve em Cuba, e ainda hoje este é um tema de que fala com interesse. O que o impressionou mais por lá?
Chico - Quando a gente está falando de Cuba, está falando do Brasil, sistematicamente. Porque é muito parecido, demais - tudo: a paisagem, a cara das pessoas, os hábitos. Vi um país pobre, parece assim o Nordeste, e as pessoas parecidas com nordestinos, mas todo mundo vivendo com a maior dignidade. E orgulhosos da experiência deles. Para mim, foi muito marcante, embora insuficiente: fiquei lá vinte dias, trabalhando muito, dormindo pouquíssimo, acordava e já tinha mil coisas para fazer. Acabei não vendo coisas que tinha vontade de ver, como Santiago de Cuba, que todo mundo diz que é igual à Bahia, aquelas ladeiras, etc. Quero voltar a Cuba.
Playboy - Um artista independente como você se daria bem por lá?
Chico - Acho que só seria estimulante. Até perguntei a um colega meu, Silvio Rodríguez, um dos grandes compositores cubanos: o que acontece se eu vier morar aqui? Ele disse: olha, você vai ter algumas dificuldades, vai se chatear, porque de repente não vai conseguir um gravador, ou fartura de cordas para o violão. Mas por outro lado, ele disse, você vai sentir tanto estímulo em tudo que te cerca que o saldo vai ser positivo. E Silvio Rodríguez é um artista muito independente, não senti nele nenhuma repressão. Além do trabalho com música, há um trabalho em que está envolvida toda a população cubana, uma coisa grandiosa, voltada pra fora, voltada pros outros. Uma coisa que não existe no Brasil. Aqui, você quer ser um bom profissional e pronto. O fato de eu ser um artista de oposição não quer dizer que eu seja do contra - eu sou a favor de muitas coisas... Quanto aos artistas cubanos, pelo que pude sentir, são independentes. Simplesmente estão voluntariamente engajados dentro de um processo.
Playboy - Não existe por lá, então, o lamentável "realismo socialista"?
Chico - Em Cuba, não. Pelo menos na música e no teatro não há. Você vê uma série de canções compostas para determinados fins ligados à problemática deles - a construção de escolas, por exemplo - , ao lado de canções simplesmente de amor. E com aquela musicalidade deles, que aqui na América Latina só tem páreo no Brasil, na minha opinião. Aliás, me disseram em Cuba, não sei se é verdade, que os escravos que foram para lá, para New Orleans e vieram para a Bahia eram de uma mesma região africana. Só pode dar samba....
Playboy - Deu para você ter uma idéia de como são as relações entre Estado e Igreja, em Cuba?
Chico - Convivem bem. Uma das reuniões do congresso de escritores, no ano passado, foi interrompida pelo coordenador para saudar a entrada na sala de um bispo católico, que entrou inesperadamente. Fiquei impressionado: a sala inteira - todos marxistas - se levantou, aplaudindo o bispo, que por sua vez estava lá prestigiando um acontecimento oficial.
Playboy - Você teve formação católica. Gostaria que falasse um pouco dessa experiência.
Chico - Minha mãe é muito católica, fez questão de criar os filhos com todos os requisitos: Primeira Comunhão, crisma, colégio de padre. Então a minha formação é toda católica apostólica romana. Rigorosa mesmo.
Playboy - E verdade que numa certa altura você participou de um grupo que viria a ser o embrião da TFP?
Chico - Foi no Colégio Santa Cruz, em São Paulo. Mas devo esclarecer que era um movimento à margem da orientação do colégio, à revelia da direção. Eu tinha uns 14 anos. De repente um grupo de garotos começou a comungar todo dia, a achar que vinha aí o fim do mundo e que só se salvariam uns predestinados - nós, os "ultramontanos". Mas isso durou pouco tempo, porque meus pais, meio alarmados, me mandaram interno para Cataguases, em Minas. E é preciso fazer uma distinção: a atuação da famigerada TFP é uma coisa, aquilo lá era bem diferente: era o que eles chamavam de "apostolado" em cima dos garotos, em termos religiosos exclusivamente. Claro, envolvendo castidade, preservação dos valores tradicionais da Igreja Católica, uma coisa meio medieval, mas não tinha nada de político e ideológico.
Playboy - Depois disso você deixou a religião?
Chico - Não, porque eu voltei para a mesma escola, e tive lá outras experiências, até positivas, dentro dessa linha cristã. Participei de uma coisa chamada Organização de Auxílio Fraterno. Há algum tempo contei isso numa entrevista, e recebi uma carta dizendo que a organização ainda existe e que eu não devia ter falado nela, porque é secreta... Bom, fui umas quatro ou cinco vezes levar cobertor para os mendigos na Estação da Luz, visitava presídios, etc. Quem orientava era um padre do Colégio Santa Cruz. A experiência somou muito na minha vida.
Playboy - Como, exatamente?
Chico - Tomei contato com esse submundo de São Paulo, com a miséria mesmo. Você pode ver em filme, ler a respeito, mas você presenciar é outra coisa. Uma das coisas que mais me impressionaram é que a gente chegava com os cobertores para distribuir e as pessoas fugiam com medo. A gente então deixava como quem deixa um pratinho de carne para o gato, sabendo que depois ele vem buscar. É muito importante um cara de 16 anos, de uma escola de elite, tomar contato com isso. Não é no Nordeste, não, é ali dentro de São Paulo mesmo. Encontrar mulheres grávidas e crianças deitadas no chão de cimento da Estação. Segundo, ver que essas pessoas encaram um cobertor como uma ameaça - estão mais advertidas para receber a visita da polícia, ir em cana. Então têm medo da caridade. Evidentemente que hoje eu não encaro mais a caridade como sendo um remédio para nada disso. Mas valeu como experiência o contato com essa gente. Tudo parece meio banal falado assim, mas, dentro da vivência limitada de quem pertence a uma certa classe, é importante. As minhas filhas, morando aqui na Zona Sul do Rio, freqüentando colégio de gente rica, eu quero que elas mais cedo ou mais tarde tenham uma experiência parecida com a que tive. Porque são coisas que não adianta a gente transmitir: já foi criada uma barreira entre esses dois mundos. Acho que se eu não tivesse tido esse contato com a miséria eu seria um alienado, tudo me empurrava pra isso. Nunca fui um garoto rico, mas as minhas relações eram dentro desse ambiente. Em minha casa nunca houve nenhum tipo de fausto ou de abundância - havia sempre um fascínio pelo lado intelectual. Mas, fora disso, todas as minhas relações de adolescente eram com uma garotada cujo futuro era correr ou pra ganhar dinheiro de qualquer maneira, ou pra gastar dinheiro, comprar carros...
Playboy - Como foi a sua evolução religiosa a partir dai?
Chico - Essa história dos cobertores foi realmente um parêntese, porque todo o resto era muito ligado à molecagem, a coisas de rua, a experiências outras, inclusive prisão.
Playboy - Prisão?
Chico - É, contato com prisão, apanhar da polícia. Eu tinha 17 anos. Estava no meio termo entre o boa-vida e o marginal absoluto. A brincadeira era roubar carro para circular pela cidade, e uma vez a polícia nos pegou, eu e um colega meu, numa ladeira do Pacaembu. Aliás, foi a primeira vez que eu saí no jornal, acho que no Diário de São Paulo: "O pivete F.B.H.", e a foto com aquela tarja preta nos olhos Foi uma loucura, queriam que a gente confessasse vários roubos, queriam ter achado uma quadrilha de puxadores de carros Então era porrada, muita porrada. Nos passaram para o camburão. Quando um batia - eram quatro - , os outros todos também batiam, para não se sentirem diminuídos. Até o cara que estava dirigindo o camburão: mesmo de costas, ele pááá! Fomos para o Departamento de Investigações, na rua Brigadeiro Tobias. Não tínhamos documentos, claro. Ameaça de pau-de-arara, e tal. No fim se convenceram de que a gente era menor de idade e passamos a noite numa cela do Juizado de Menores. Me lembro que havia com a gente um garoto que tinha roubado um cavalo. Lembro também do cheiro desse lugar, que era uma coisa abominável. No dia seguinte a minha irmã Miúcha - meus pais estavam viajando - , que era maior de idade, foi me tirar de lá. Isso foi aos 17 anos, e até fazer 18 fiquei na chamada liberdade condicional: não podia sair de casa depois de 8 ou 9 da noite. Me lembro de ter passado o Carnaval de 62 dentro de casa, puto da vida. Uns seis meses sem poder sair de noite.
Playboy - Esse seu passado de semi-marginal não combina muito com a imagem pública do sujeito tímido...
Chico - Mas eu não sou tímido. Não gosto de fazer show, mas isso é outra coisa. No convívio com as pessoas que conheço, não sou tímido, sou até sociável. Dentro de um certo limite, naturalmente: também não sou festeiro.
Playboy - Voltemos à vida religiosa de Chico Buarque.
Chico - Bom, saí da escola, fui para a faculdade. Não digo a curto prazo, mas a médio prazo esse contato com o catolicismo exacerbado, ultraconservador, me deu um certo asco. Acabou resultando até num anticlericalismo violento, juvenil, por volta dos 17 anos, quando eu estava largando a escola de padres, aí já querendo mandar tudo que é padre para aquele lugar.
Playboy - Hoje, a questão religiosa te diz alguma coisa?
Chico - Não, em termos de fé não diz mais nada. Não tenho mesmo nenhum resquício de crença mística, ou de fé, ou de coisa que o valha. Mas eu tenho suficiente tranqüilidade para julgar positiva, em muitos pontos, a minha formação cristã. No frigir dos ovos, não tenho queixas de nada disso. Tenho até uma admiração muito grande pela posição da Igreja Católica - um dom Hélder, um dom Paulo Evaristo. Tenho amigos católicos. Quando estou em Cuba e vejo um colega meu de júri do Prêmio Casa de las Américas, o poeta nicaragüense Ernesto Cardenal, que é padre até hoje, e é sandinista... Eu não entendo muito, no fundo não entendo como é que ele consegue conciliar a fé cristã e suas posições políticas. Fico meio dividido.
Playboy - Você diria, então, que para você o problema religioso ainda não está resolvido?
Chico - Não, me parece resolvido, dentro de mim. Agora eu vejo do lado de fora: é como você ter um amigo em quem confia, em quem por todos os motivos acredita, que parece pensar como você - e que no entanto tem um lado absurdo. Acredita numa coisa na qual você não pode acreditar. Então você fica dividido, sem entender esse amigo, embora entenda a si próprio.
Playboy - Será que o seu lado místico morreu mesmo?
Chico - Eu sou materialista.
Playboy - Mas a gente sabe que a liquidação racional da religião não elimina necessariamente alguns mecanismos religiosos profundos - a noção de pecado, o sentimento de culpa, por exemplo. Você não se pilha, às vezes, numa autopunição?
Chico [ri] - Minha mulher acha que sim, que o tempo todo. [Pausa] Olha, uma entrevista desse tipo fica um pouco delicada para mim, porque eu me recuso a fazer análise, e está parecendo uma espécie de análise. [Pausa] Agora, segundo quem conhece mais o negócio, eu tenho uma compulsão assim autopunitiva. Pode ser verdade. Eu não quero entrar muito a fundo nisso, não quero pensar nisso. [Pausa] Fatos concretos: o disco Meus Caros Amigos de repente vendeu 500 mil. Cria um problema sério dentro de mim, me faz ficar um pouco agressivo, entende? Me transtorna um pouco no sentido mesmo de autoflagelação, de negação.
Playboy - Pode explicar melhor?
Chico - Ficar brigando contra o sucesso mesmo, entende? E sentir uma certa culpa da coisa bem-sucedida. Uma vontade secreta de querer destruir isso, de querer minar. Isso é uma opinião que não é minha, porque eu não tenho condições, não quero, não penso muito nisso. Acho que talvez tenha alguma coisa a ver. Quer dizer, depois desse disco não quis gravar outro no ano seguinte, e ano passado gravei com uma certa dificuldade. Aconteceu antes com Construção, que fez um sucesso muito grande para a época: eu passei anos sem conseguir gravar um disco meu; fiquei fazendo disco de show, disco de filme, disco com outros compositores. Isso é conversa que estou retransmitindo, de gente analisada e gente que pensa em termos analíticos.
Playboy - Você nunca fez análise?
Chico - Eu não faço, não fiz, não quero fazer e fujo um pouco disso.
Playboy - Por quê?
Chico - Geralmente quando a gente entra muito nesse negócio, fica com receio de desvendar os mistérios.
Playboy - De sua criação?
Chico - Exatamente. Precisamente disso. Eu não sei por que faço música. É terrível quando pinta uma fase de angústia, as fases em que acho que sequei. Aí realmente dá vontade de dar o braço a torcer e tratar da cabeça pra ficar legal, pra viver legal. Mas para mim parece que viver legal se opõe a criar. Então, é uma opção. Não digo que seja definitiva - pode ser que encha o saco e eu diga: olha, eu quero que se dane, não quero faz mais nada, se for para não fazer mais nada eu pelo menos quero ficar tranqüilo, quero viver tranqüilo.
Playboy - A criação é, portanto, um processo que você não domina?
Chico - Não domino, e tenho medo: se eu dominar, acaba. Parece que é isso. [Pausa]. Olha, isso que eu vou dizer é uma colocação para uso, talvez, [ri] de algum psicanalista: eu não lembro de ter tido uma fase tão tranqüila em minha vida profissional como quando morei na Itália. Foi quando despintou o sucesso, lá na Itália eu não era ninguém, evidentemente. Cheguei lá e depois de dois meses eu era nada. Aqui no Brasil, eu era considerado nada, cocô. Eu me chateava com isso, claro. Lia entrevistas em que se davam notas a cantores e cantoras. Chico Buarque: zero. Isso me chateava, mas no fundo eu estava tranqüilo: ah, bom, então é assim? Então não ter obrigação de ter nota dez, já estou com a nota zero... Tudo o que fizer é lucro, não tenho nada a perder. Enquanto que nesse negócio de "tudo bem", "maravilha", o peso é muito maior.
Playboy - Uma situação absurda: você continua criando, mas de repente não faz sucesso nenhum.
Chico - No fundo, no fundo, se eu tivesse certeza de estar fazendo uma coisa muito boa, o fato de não fazer sucesso não me incomodaria. O que acontece é que, dentro desse trabalho que eu estou desenvolvendo, a falta de resposta do público é sintomática. Eu estou fazendo música popular, ou teatro que se pretende popular, não estou fazendo nada desligado disso. Nesse sentido não sou Hermeto Paschoal, não estou fazendo uma experiência de vanguarda dentro da música, nem dentro do teatro. Então, se eu não tiver uma resposta satisfatória do público ouvinte, do leitor, do espectador eu vou ficar desconfiado de que está errado.
Playboy - Que tipo de resposta do público é importante para você?
Chico - Os parâmetros que a gente tem são muito vagos. Geralmente é Ibope mesmo, a vendagem dos discos e dos livros, a execução no rádio, etc. Com exceção de uma peça de teatro: então fico lá atrás, testando, vendo reação do público. Isso acontece. Às vezes, quando eu estava meio down, eu ia ver a Ópera do Malandro, e ria quando o público ria, me dava um prazer muito grande. Quando o público se emociona, me dá um prazer grande também. Agora, isso eu só sinto estando lá atrás. Se eu estivesse no palco, não sentiria. Sei de gente que trabalha e canta no palco, e que de lá identifica pessoas. Para mim, a platéia é como uma massa negra na frente - não posso ver a cara da pessoa, que vai me perturbar. Então, é sempre um adversário, sempre foi. Um adversário que eu tenho que domar, que vencer. Pelo meu trabalho, não pela minha pessoa, ou por aquilo que eu declarei no jornal. Na hora em que estou ali no palco, o que tem de valer é o meu trabalho. Tenho vaidade por ele, não por minha pessoa. Estou pouco ligando. Gosto de separar as duas coisas Quando elas começam, aí eu reajo.
Playboy - Você acha que fez progressos no trato com a platéia, desde que subiu ao palco pela primeira vez?
Chico - Ah, sim, melhorei bastante. [Ri] Estava quase aprendendo quando parei... Algumas coisas eu já estava conseguindo fazer direito. No começo, eu era o garoto que subia no palco com o violão e cujo trabalho, bem ou mal, no fim era aceito. Mas não era ninguém, era um cara que ficava escondido atrás do violão. Mais adiante, já conseguia às vezes em algumas músicas, fazer um trabalho de intérprete.
Playboy - Quando Com Açúcar Com Afeto foi gravada, quem cantava era uma mulher. Por que naquela época você não cantava no feminino?
Chico - Não sei. Realmente foi uma bobagem colocar uma mulher para cantar essa música. Mais tarde, em algumas músicas mais teatrais, eu consegui fazer personagem. Cantar no feminino, interpretar uma mulher cantando, como em Ana de Amsterdam. Sem nada de feminino - como se fosse um ator.
Playboy - Suas músicas no feminino, desde Com Açúcar, Com Afeto, mostraram uma compreensão muito profunda da condição feminina. Já se disse até que neste país ninguém entende mais de mulher que você. Agora, isso se remete na sua vida pessoal? Ou você é mais um machista?
Chico - Eu fui evoluindo. Quando precisei explicar na capa de um LP por que não cantava Com Açúcar, Com Afeto, eu era um sujeito machista, no sentido de não assumir, de ter medo de ser chamado de bicha. Hoje não tenho mais esse medo, se me chamarem de bicha não tem a menor importância. A minha insegurança daquele tempo foi sendo aos poucos superada. Eu não sou um cara machista, acho que não sou. Isso você tem que perguntar para a minha mulher... Não vou dizer que tenha perdido todos os sintomas dessa doença, não seria verdade. Posso até agir mel nesse terreno, mas tenho consciência de estar agindo errado.
Playboy - Você já teve alguém que orientasse a sua carreira, um empresário que dissesse vista isso, faça aquilo?
Chico - Nunca. Quando tinha empresário, era só para marcar show, avião, hotel. Nunca interferiu na minha maneira de me conduzir, inclusive porque eu era convidado, visto e ouvido pelas pessoas justamente como um cara que não se fantasia. Não vai nisso nenhuma crítica a quem se fantasia; pelo contrário, eu acho muito válido que o artista, por ser artista, se fantasie. Aliás, é um costume que sempre existiu. Mas eu sou descendente da bossa nova: aquela coisa do banquinho e do violão. Vestindo roupa convencional - um sujeito igual a qualquer outro da platéia, que sobe ali e canta sem vibratos. E nunca passei disso, como cantor de público nunca consegui superar essa postura.
Playboy - Mas você tentou?
Chico - Eu até passei um pouquinho disso. Como postura não, mas como colocação de voz. Isso a partir do show que fiz com Caetano na Bahia. Soltar mais a voz, ser menos tímido.
Playboy - Por que você mudou de estilo naquele momento?
Chico - Ali foi muito por causa do Caetano: acompanhar o pique dele, acompanhar até o tom dele, que é muito mais agudo que o meu. Como disse, sou um descendente da bossa nova. E tentei romper com isso. De certa forma, rompi, mas só na maneira de cantar: também não seria capaz de dançar, de sapatear e rebolar no palco. Nunca tentei, aliás. Não tenho cintura para isso.
Playboy - Você já teve algum comportamento realmente ousado perante o público?
Chico - Bom, eu já mijei no palco [Ri]... Mas isso são uns excessos assim fora de qualquer contexto.
Playboy - Como é que foi isso?
Chico - Foi num show com a Leila Diniz. Terminei mijando...
Playboy - O show do Caetano pode ser considerado um marco na sua carreira, de cantor pelo menos. Agora, na sua vida pessoal, poderia citar momentos de guinada radical?
Chico - Dezembro de 68 foi um marco, não é? Um marco muito claro para mim, porque eu estava posto em sossego e um dia me tiraram da cama para ir ao Exército. Não estava envolvido em nada, estava um pouco descrente daquela coisa pré-Ato 5, e naquela jogada pente fino me pegaram. Me pegaram e me marcaram muito. Viajei, fui embora para a Itália, tive minha primeira filha - isso muda muita coisa, entende? Quer dizer: de repente eu já não era mais um moleque. Depois voltei para o Brasil. E como fui um dos primeiros a voltar, me senti um pouquinho acusado justamente de estar voltando. Ao mesmo tempo retomei contato com o país - foi uma mudança brusca, um ano e meio fora. Encontrei o Brasil da Copa do Mundo, aquela coisa toda de 1970 e fiz Apesar de Você, uma música que não tem valor muito grande em si mesma, mas que para mim tem, porque foi justamente a minha resposta a tudo isso que vi. Aí começou a rotina da perseguição e do contato policial. Fiz Construção, que para mim é um disco esteticamente muito importante, e antes mesmo do show com Caetano eu fiz um filme com Cacá Diegues (Quando o Carnaval Chegar), que era assim um pouco a maneira de marcar o lado lúdico da Construção. E também para não ficar enquadrado como "cantor de protesto" - um termo que aqui no Brasil só quem usa são os reacionários, são as direitas. "Canção de protesto" tem um tom pejorativo aqui, uma conotação esquisita. Aí fora, não. Em Portugal, eles dizem "canção de intervenção" [Ri] Mas eu não estou intervindo em nada...
Playboy - Virando um pouco a conversa: na vida das pessoas, o casamento costuma coincidir, ou determinar uma parada, uma gordura existencial. Nesse sentido, o que significa para você estar casado e ter filhos?
Chico - Ser casado, eu não sei. O fato de ter filhos é muito importante pra mim. Porque depois disso, evidentemente, as coisas ganham mais conseqüência. Coisas que eu fazia antigamente e que hoje seria incapaz de fazer, em grande parte porque tenho filhas. Do contrário eu faria, não teria pudor, entende, de fazer outra vez a propaganda do Mug que dá sorte. Porque pra mim esta era uma sacanagem como qualquer outra, igual a mijar no palco depois de uma bebedeira. Podia até acontecer de novo a mijada no palco, seria até certo ponto uma atitude lúdica, você pode brincar em cima disso. Mas com determinadas coisas eu já não brinco. Enfim, eu tenho uma responsabilidade, me sinto direta e indiretamente responsável em relação a minhas filhas. Por isso é que diante de muita coisa eu penso: se eu fizesse isso, realmente seria muito engraçado, mas... Eu fico olhando esses anos todos que passaram e em que tudo empurrava a gente para o deboche, pura e simplesmente, para a falta de dignidade mesmo. E de repente você se orgulha de ter aqueles filhos e quer justificar isso também, quer agir com coerência em relação a eles.
Playboy - Você faz parte da última geração que fez política antes da vigência do AI-5. Como você vê a que veio em seguida, a chamada "geração do desbunde"?
Chico - Vamos pegar o quadro em que eu me mexo mais - a música, o teatro. Fala-se muito de que não surgem novos valores. Mas o que essa geração que veio depois da minha encontrou de dificuldades, em todos os sentidos, não foi brincadeira. Se eu tivesse seis anos menos, e fosse começar hoje, teria uma luta muito grande, seria quase impossível. Os novos artistas são realmente vítimas desse fechamento todo. Até 1964 eu participava mesmo de toda discussão, política ou cultural, abertamente. Me sentia participante e preparado para ser um cidadão deste país. Mas o garoto com cinco ou seis anos menos do que eu se sente simplesmente marginalizado, e provavelmente vai ser um mau profissional, vai ser difícil ele vencer nisso ou naquilo, porque não lhe deram outra saída a não ser a da evasão. E ainda há quem diga que a censura é uma desculpa, que as gavetas em Portugal estavam vazias no 25 de abril. Isso é de um cinismo absurdo.
Playboy - Explique.
Chico - Você escreve duas peças, proíbem. A terceira você vai fazer com dificuldade, a quarta mais ainda, e a quinta você simplesmente não escreve. O contato com o público era essencial para você escrever a segunda, e a segunda essencial para a terceira. O autor vai sendo prejudicado, muito menos pelas peças que ficaram presas que pela continuidade do seu trabalho. E o autor novo, que não viu nem a primeira, nem a segunda e nem a terceira? Ele deixou de crescer, de avançar. O cara que vai criar sem ter essas referências já começa jogando pelada. Porque esse contato, esse confronto, essa competição mesmo, tem que existir, você tem que fazer uma coisa a mais do que o outro fez. E até pouquíssimo tempo atrás você tinha que fazer a partir do nada. Escrever a peça depois do quê? Depois do Tenessee Williams... Eu não faria nada se, em primeiro lugar, não conhecesse João Gilberto, a bossa nova; se não fosse a primeira peça que vi, A Revolução na América do Sul, do Augusto Boal; se não existisse o Teatro de Arena, o Teatro Oficina. Eu ainda peguei isso. Mas o cara que veio depois de mim já pega meio mutilado o que veio antes, não tem motor de arranque. E a geração seguinte, então.. Vai diminuindo, acabando.
Playboy - É o processo inverso do que deveria ser.
Chico - Exato. Eu imagino o que seria a cultura hoje no país, se não tivesse havido as freadas bruscas de 64 e principalmente de 68. Em 64 eles bloquearam também as artes, na medida em que bloquearam o contato do artista com o povo. Então começou a existir esse negócio da coisa fechada, do Teatro Opinião, que era uma beleza mas que se esvaziou porque ficava confinado à Zona Sul do Rio de Janeiro. E em 68 foi porrada em cima dos artistas, diretamente. O que a gente vê hoje são os mesmos caras, os mesmos caras que faziam antes, e que já estão meio cansados. Porque depois de um certo tempo você precisa do cara que vem atrás dizendo coisas novas. Eu me enriqueço com um disco novo. Quando veio o tropicalismo por exemplo, eu já existia, e aquilo mexeu comigo, foi bom pra mim, mesmo que tenha sido meio uma porrada. Isso tinha que estar acontecendo o tempo todo, e não acontece. Quando a tendência tinha que ser multiplicadora, o que vemos é o contrário: está se afunilando, afunilando.
Playboy - Você não acha que está surgindo uma nova geração mais ativa, mais motivada?
Chico - Está, mas assim mesmo ficou um hiato, um buraco. Você vê uma porrada de grupos novos de teatro, e esses jornaizinhos pequenos todos - mas tudo meio perdido, meio ideologicamente sem referências. O que eu tenho visto de grupos de teatro novos com um talento muito forte mas me dando a impressão de estarem jogados fora, por falta de uma base,, de uma diretriz.
Playboy - A sua geração, portanto, sofreria de uma orfandade ao contrário a falta de alguém empurrando atrás.
Chico - Claro. É provável que essa nova geração, quando surgir finalmente, me conteste, diga que eu sou velho. Isso vai me provocar, vai me rejuvenescer. Ou não, e aí eu vou ficar ferido, magoado, vou reagir contra e vou ficar velho mesmo [ri], rabugento, e dizer que os novos são umas merdas... Mas não interessa: tem é que mexer. E isso não está acontecendo - na música, no teatro, em setor nenhum.
Playboy - Para encerrar: o Brasil mal vai saindo de um regime repressivo e começam a surgir "patrulhas ideológicas" do outro lado, pressionando para que todo e qualquer tipo de trabalho tenha uma nítida e expressa conotação política. Você acredita que um dia o artista brasileiro poderá trabalhar sem esses tipos de pressões?
Chico - Acho que a médio prazo as coisas vão assentar. O surgimento dessas patrulhas é inevitável, em Portugal aconteceu coisa parecida: essa gente afoita demais ouve o galo cantar e não sabe onde. Prefiro acreditar que não seja má fé, que seja apenas um lapso na inteligência e na sensibilidade dessas pessoas. Isso vira moda. Mas moda passa, não pode durar mais de um ano.
Texto de Renato Sérgio
Chico Buarque está aí, outra vez, para os Caros Amigos, preparando uma comédia musical (O dia em que Frank Sinatra veio ao Brasil) e um filme baseado em sua peça Gota d'Água.
Parece mentira, mas já tem gente jurando que o homem secou. E argumentando: como é que pode, alguém tão fértil (três filhas e tantas músicas, teatro, disco, livro, televisão, cinema, show, tudo) não ter lançado uma grande novidade durante o ano inteiro? Pois, modestamente, qualquer um pode contra-argumentar que ele anda meio estéril apenas porque está usando toda a sua fertilidade na feitura de uma comédia musical chamada "O Dia em que Frank Sinatra Veio ao Brasil". E também — bomba, bomba! — nos primeiros rabiscos do roteiro de um filme baseado na sua peça "Gota d'Água". Portanto, o homem não secou coisa nenhuma. É intriga da oposição. Aliás, muito pelo contrário, continua mandando bala por aí. Exemplo? Está gravando um disco para crianças.
Me alimentaram / Me acariciaram / Me aliciaram / Me acostumaram / O meu mundo era o apartamento / Detefon, almofada e trato / Todo dia filé-mignon / Ou mesmo um bom filé de gato / Me diziam todo momento / Fique em casa e não tome vento...
A música chama-se História de uma Gata. Adaptação de uma melodia do italiano Sérgio Bardotti para uma peça infantil baseada num conto dos Irmãos Grimm. Sílvia e Helena — as mais velhas de suas três filhas — fazem parte do coro, ao lado das vozes de Miúcha — irmã de Chico —, Rui e Magro, do MPB4...
mas é duro ficar na sua / quando à luz da Lua / Tantos gatos pela rua / Toda a noite vão cantando assim / Nós gatos já nascemos pobres / Porém já nascemos livres / Senhor, senhora, senhorio / Felino não reconhecerás.
Chico vem acompanhando atentamente as gravações. Há pouco mais de um mês ele esteve naquele mesmo estúdio, para os últimos retoques no seu mais recente disco, "Caros Amigos", já um tremendo sucesso de vendagem, apesar de não ter nenhuma música inédita.
Chico Buarque de Hollanda. Aos 32 anos de vida, 10 de carreira, não tem quase nada a ver com o mocinho meigo que fez a Banda passar. A começar pela aparência física. E pelo violão, antigamente sempre presente, que agora dá lugar aos livros e aos muitos papéis rabiscados. Em comum, nos dois Chicos, apenas a timidez. E a eterna graça carregada de crítica.
De manhã eu voltei pra casa / Fui barrada na portaria / Sem filé e sem almofada / Por causa da cantoria / Mas agora meu dia-a-dia / É no meio da gataria / Pela rua virando lata / Eu sou mais eu / Mais gata / Numa louca serenata / Que de noite sai cantando assim / Nós gatos já nascemos pobres / Porém já nascemos livres / Senhor, senhora, senhorio / Felino não reconhecerás.
"Se a gente comparar minhas atividades atuais com as de 10 anos atrás, vamos encontrar muitas diferenças. Antes eu viajava pelo Brasil inteiro, apresentando shows em todos os cantos. Hoje meu ritmo de vida é diferente, mesmo porque não agüentaria o ritmo antigo. Então eu admito uma tendência em me concentrar mais no ato de criação, ou seja, o astro estaria desaparecendo para dar lugar apenas ao criador. Realmente, não pretendo me apresentar em público tão cedo. Mas isso pode ser também um estado cíclico, não posso garantir que seja definitivo. De qualquer forma, mais do que nunca estou concentrado no processo criativo. Um pouco porque estou cansado de shows, um pouco porque estou me sentindo predisposto a esse tipo de trabalho. E um pouco por causa do meu próprio temperamento: fico sempre numa posição nada confortável em relação ao público e acabo me desgastando, sofrendo. E, além do mais, tenho mais prazer, ultimamente, com um trabalho criador. Como aconteceu, por exemplo, com o livro Fazenda Modelo. Às vezes trabalhava até 12 horas por dia e com um enorme prazer. Só não escrevo outro livro agora porque não tenho uma boa idéia. Se tivesse, largaria tudo para me dedicar apenas a ele. Posso até garantir que compor uma música me dá um prazer que não dura tanto quanto escrever um livro ou uma peça de teatro."
— No momento você está escrevendo uma comédia, quase teatro de revista, como você mesmo diz. Não é esquisito que isso aconteça depois de uma peça altamente politizada, polêmica, como "Gota d'Água"?
— "É justamente por ter vindo de uma tragédia que quis dar uma refrescada. Só que a comédia que está sendo escrita agora não chega a ser inconseqüente. E uma sátira social, cheia de ironias. Não há o simples propósito de fazer rir. E tem mais uma coisa: quem observar bem "Gota d'Água" vai ver que há uma grande parte de comédia nela. E foi justamente — isso é engraçado — a parte mais atingida pela censura. Agora, o importante é que eu não sou escravo de imagem nenhuma. Não carrego nenhuma bandeira e não sou herói. E faço questão de desmistificar isso. Meu único compromisso é com a cultura brasileira."
— Já que não é uma comediazinha, você não tem medo que a peça seja proibida?
"Quando estou trabalhando nunca penso na presença da censura. Faço o que acho certo, eles que cortem depois, se discordarem. Além do mais, de nada adiantaria eu me vigiar, porque ninguém pode adivinhar os critérios de julgamento dos outros. Quero é terminar a peça para entregá-la, logo ao Paulo Pontes. Com "Gota d'Água" foi o contrário: o Paulinho escreveu primeiro e eu fiz, depois, as alterações que achava convenientes. No caso de "Frank Sinatra", nós resolvemos mudar. Como eu estou mais ligado à música e a peça será musical, eu escrevo tudo primeiro. Depois ele vai mexer no que achar necessário."
— Novos planos de trabalho da dupla para mais tarde?
— "O Paulinho é um cara cheio de projetos. Então, é muito entusiasmante trabalhar com ele. E já há uma idéia concreta de se filmar "Gota d'Água", coisa que eu revelo só agora porque só agora é um projeto materializado. Só está faltando encontrar a produção. Ao contrário da peça, o filme será totalmente musical. Inclusive estou disposto a escrever novas músicas o sobre o tema, para usar no filme. O roteiro será meu e do Paulo, também. Não pretendemos entrar na produção, primeiro porque um filme como a gente imagina vai custar um dinheiro que nós não temos, segundo porque encerrei minhas atividades de produtor depois que investi em "Calabar" e a peça acabou sendo proibida. Quem vai escolher os atores é o diretor, Leon Hirschman, mas posso adiantar que pelo menos Bibi Ferreira estará no elenco."
— E que tal a sensação de lançar um disco como "Caros Amigos" e antes mesmo dele chegar ao público já ter vendido 100 mil cópias?
"Soube que ele está vendendo muito, mas apenas por informação de bastidor. Do vizinho que disse, do amigo que ouviu falar. Eu mesmo, quando fui comprar o disco pra mim, ouvi do vendedor: "Olha, está vendendo horrores!". Fico contente porque foi um trabalho do qual gostei. E espero, aliás, que ele continue vendendo. Na verdade, nesses 10 anos de carreira, me acostumei a tudo. Tive altos e baixos. Hoje estou com uma peça em cartaz fazendo sucesso, estou escrevendo outra, e meu disco está saindo.
Mas já passei por outras situações bem menos agradáveis. Teve, por exemplo, um tempo em que fui morar na Itália e senti vontade de largar tudo. Aí entrei para balanço. E vi que se minhas músicas incomodavam é porque elas tinham alguma coisa para dizer. Quando voltei, estava mais forte."
— As notícias que chegaram aqui é que desta outra vez que você esteve na Itália, o sucesso, foi enorme.
"Foi. Sem exagero nenhum. Mas o sucesso não foi só meu, foi da música brasileira. Do Jorge Ben, do Gil, da Betânia. De todos os brasileiros que se apresentaram no Teatro Sistina de Roma. E as críticas foram espetaculares. Lembro-me de que, quando morava na Itália, apenas uma pequena elite é que curtia a nossa música. Hoje é um público bem mais diversificado. Dessa vez havia uma média diária de 1.400 pessoas. Eu levei um susto. E é preciso salientar que as músicas eram cantadas em português, no original. E quando eu morei lá, tinha de traduzir tudo para o italiano. Isso quer dizer que há alguma coisa no ar, que os empresários brasileiros deveriam aproveitar. Pra dar uma idéia do interesse que há pela música brasileira por si, basta dizer que entre o dia de minha apresentação e a do Gil, havia um intervalo. Então, os organizadores apresentaram um conjunto espanhol ou francês, não me lembro direito. E disseram que era música brasileira. O teatro lotou também. Eu devo voltar para lá, em março ou abril, para gravar um disco de músicas minhas com a Ornella Vanoni. Como ela fez com as músicas do Vinícius. Aliás, acho que o Vinícius e o Toquinho é que foram os responsáveis por essa euforia italiana com relação à música brasileira."
— E porque você se limitou à Itália?
"Quando terminaram as apresentações em Roma recebi convites para me apresentar em Paris. Mas recusei. Estava muito cansado. Afinal, uma das razões da minha ida era descansar. Tirar umas feriazinhas. E foi o que fiz. Aluguei um carro e andei por tudo quanto é lado, com a Marieta, minha mulher. Conheci Amsterdã e vi filmes que não vão passar aqui. Foi ótimo. Voltei tranqüilo. Pronto para enfrentar o trabalho. E ver meu Fluminense brilhar".
Como falar ao povo?
Sem ilusões de mobilizar grandes platéias, ele faz o que pode
Às vésperas da estréia de "Ópera do Malandro", Chico Buarque de Hollanda falou a VEJA sobre seu teatro, sua visão do mundo e suas aventuras. Abaixo, os trechos principais dessa conversa:
Veja - De onde vem esse seu fascínio pelo teatro?
Chico Buarque - Basicamente, escrever para teatro é uma alternativa para mim, como compositor. Porque ficar fazendo música, simplesmente, é um ofício meio abstrato. É para dar emprego a um compositor. Comecei fazendo música para alguma coisa - para teatro, para cinema - , porque sempre é uma motivação. E, depois, como já trabalho de certa forma com literatura - faço música e letra também - comecei a sentir, não a necessidade em princípio, mas a possibilidade de estender a parte literária de minha criação. Existem algumas coisas que quero dizer e que não cabem na música ou que não podem ser ditas dentro dos compassos de uma canção. "Roda-viva" é quase isso, os textos eram ligações entre músicas, eram conseqüências das músicas.
Veja - "Roda-Viva" acabou se transformando num marco importante para a ligação do teatro brasileiro com o gestual e até para ajudar a matar a palavra. "Gota d'água", muitos anos depois, foi uma tentativa de repor e valorizar a palavra. Como você sente essas duas experiências contraditórias?
Chico Buarque - "Gota d'água", evidentemente, foi uma reação ao gestual. Mas isso não quer dizer que Paulinho Pontes e eu éramos contra a utilização do corpo ou novas formas experimentais de teatro que foram usadasemm "Roda-viva". Mas éramos contra a exacerbação desse processo. "Gota d'água "foi, até de certa forma, uma volta radical ao teatro que valorizasse a palavra e acabou por isso mesmo sendo muito criticada. Muitos a consideraram uma peça quadrada. Nossa proposta, à qual o Gianni Ratto aderiu, até com certa humildade, era a de sacrificar um pouco essas conquistas, que foram sendo feitas e que depois ficaram girando em torno delas próprias, e dar um destaque ao texto. Não há contradição aí. De repente, achamos que estava demais a ausência da palavra dentro do teatro.
Veja - Então, em "Gota d'água" você tinha consciência da reação. E em "Roda-Viva", havia consciência de que vocês estavam instaurando uma experiência nova?
Chico Buarque - Tenho que confessar que aí não. "Roda-Viva" foi um espetáculo montado em cima de um pequeno texto que eu tinha feito e em cima do qual Zé Celso trabalhou. Agora, eu acompanhei esse processo todo. Fui testemunha e até cúmplice. Não me arrependendo disso, mas eu não tinha, na época, a mesma consciência que tive ao escrever "Gota d'água". Não estou aqui para me penitenciar de "Roda-viva", mas acho que é um espetáculo datado. Não tenho a menor intenção de vê-lo remontado.
Veja - "Roda-Viva" - como "Rei da Vela" - também serviu de ponto de partida para a explosão do Tropicalismo. E você acabou sendo rejeitado pelo Tropicalismo. Como você vê- isso?
Chico Buarque - O que aconteceu naquela época foi uma série de atritos e desencontros pessoais que prevaleceram sobre todo o resto. Porque, de repente, eu me senti atingido, reagi e a coisa foi virando uma bola de neve. Porque, afinal de contas, "Roda-Viva" fazia parte de meu trabalho como compositor. Já os outros músicos que participaram do Tropicalismo levaram muito mais adiante a proposta deles, inclusive assumindo uma postura de palco e eu, sinceramente, não tinha condições de assumir. Não gosto de shows, não gosto nem de me apresentar com minhas roupas normais, muito menos com tamancos dourados.
Veja - A "Ópera do malandro" não seria uma tentativa de se criar uma nova estética para o musical brasileiro?
Chico Buarque - Acho que isso a gente está procurando. Posso dizer que a "Ópera" tem uma nova linguagem mas não há aqui nenhuma pretensão de se fazer uma sub-Broadway. Por outro lado, é duvidoso esperar que a peça proponha novas fórmulas por que ela gira em torno do americanismo e se utiliza, propositalmente , de fórmulas americanas de teatro. Usamos todos os elementos despudoramente, usamos os clichês todos. É como se estivéssemos num musical da Metro. A orientação dos atores é se entregar aos papéis, àquela mentira, acreditando. Enfim, assumidos o fato, somos colonizados e aí vem uma autocrítica.
Veja - Como surgiu essa aproximação entre o John Gay ( "Ópera do Mendigo") e Brecht ( "Ópera dos Três Vinténs")?
Chico Buarque - Eu não conhecia a peça do John Gay, na verdade nem sabia de sua existência. Foi o Luís Antônio (Martinez Corrêa) que me apresentou. O que existia, em princípio, era a idéia de fazer uma versão da "Ópera dos Três Vinténs". Mas, quando chegou às nossas mãos a peça onde o Brecht se inspirou, resolvemos fazer um estudo das duas. Mas houve várias outras coisas que foram me levando a escolher esses textos. O próprio Brecht era acusado constantemente de ser plagiador, mas ele não se importava, ia em frente. Então, já que o Brecht fazia isso com os outros, por que não pegar uma idéia do Brecht e transportá-la para o Brasil? E até mesmo por motivosmais prosaicos, para você montar a "Ópera dos Três Vintéis" no Brasil vai encontrar dificuldades terríveis. Já montar essa "Ópera do Malandro" foi quase impossível.
Veja - Impossível em que sentido?
Chico Buarque - Porque é uma barra montar uma peça de teatro hoje no Brasil. E digo isso porque, desta vez, estou muito familiarizado com os problemas de produção. Estranhamente, não contamos com nenhum auxílio, patrocínio ou subvenção. O Grupo dos 4, que produz este espetáculo, por exemplo, montou uma peça de Górki e conseguiu financiamento do Banco do Brasil. Eu não digo que esteja muito chateado com isso. Se o Banco do Brasil financiasse, eu ia até ficar um pouco desconfiado, mas, de qualquer maneira, se ele financia Górki, ele poderia ter financiado também a "Ópera", e não financiou. E não foi por falta de tentativa. Assim, o investimento não pode vir do público que está pagando o ingresso, pois ele é caro e, além disso, ninguém gosta de ir ao teatro no Brasil. E, por outro lado, não se pode vender o ingresso mais barato porque, além do ingresso, nós não temos outra saída. A não ser que contássemos com a simpatia do governo - o que a gente já não conta de cara - ou de empresas, que também não contamos.
Veja - Por que você localizou a "Ópera do Malandro" durante o Estado Novo?
Chico Buarque - Até o Brecht tomou suas cautelas e localizou sua ópera no início do século. O John Gay ainda colocou no palco o ministro da Justiça de sua época, 1728. Mas hoje isso não é possível. Fatalmente seriam identificados os policiais corruptos com os que todos conhecem. Os problemas que surgiriam não deixaram a peça ser encenada. Com a localização na Lapa, no Rio, a peça ganhou muito. Em compensação, conseguidos fazer uma passagem no tempo que compara acontecimentos do Estado Novo. A peça fala do Estado Novo começando a facilitar. Os pontos de contato entre as duas épocas são a crise do autoritarismo. A gente vê de repente não só operários mas também médicos em greve e os empresários pedindo abertura, dentro dessa unâmine insatisfação com o regime.
Veja - Quem é o malandro, afinal?
Chico Buarque - O malandro, na verdade, é o autor da peça, como é o mendigo na peça do Gay. É uma peça sobre o dinheiro, portanto uma peça sobre a malandragem. Mas é o malandro pra valer, aquele que trabalha, mora lá longe, sacode no trem da Central. Esse malandro, em torno do qual existe toda uma mitologia, aquela coisa carioca, não existe mais. O que existe é essa malandragem transportada para um nível mais alto. A malandragem hoje está nas mãos do Sérgio Dourado, por exemplo, que joga o monopólio pra valer.
Veja - O primeiro texto da "Ópera" foi vetado pela Censura?
Chico Buarque - A peça foi toda vetada aqui no Rio, mas um pouco por circunstância, porque assumiu um censor novo. Na verdade, ele lavou as mãos. Em Brasília o texto foi bastante mutilado. Aí nós recorremos e houve uma série de negociações. O que eu faço, normalmente, é entregar o caso aos advogados da gravadora Phonogram. Desta vez aconteceu algo inesperado. Através de amigos comuns, o Humberto Barreto disse que estava interessado no texto e eu entreguei o texto a ele. E, no fim, a peça foi liberada com pouco cortes . Agora, até onde funcionou a influência, o pistolão, ou o advogado que estava lá, eu não sei nem quero saber.
Veja - Na época de "Gota d'água" houve muita discussão sobre teatro popular. Muitos te criticaram, qualificando a obra, inclusive, de populista.
De que maneira desta vez você está preocupado com isso?
Chico Buarque - "Gota d'água" foi a primeira peça, em muito tempo, que colocou o problema do populismo dentro do teatro. Populismo, para mim, era uma personagem chamada Creonte, um sujeito que manipula as massas, dá campos de futebol e coisas do gênero. Agora, literariamente, pode-se chamar de populista aquele intelectual que procurar colocar e retratar a linguagem do povo. São duas coisas totalmente diferentes. Então, através de sofismas, começaram a chamar "Gota d'água" de populista, uma peça onde existe gente do povo falando a língua do povo. E agora, na "Ópera", isso existe também. Nada me impede de procurar escrever da maneira como fala o fulano no botequim. Nenhum tipo de censura vai me impedir isso.
Veja - De que maneira a "Ópera do Malandro" pretende ser um teatro popular?
Chico Buarque - Eu já perdi a ilusão de levar o teatro ao povo. Teatro popular no Brasil é novela. Porque não dá certo. Popular no Brasil é novela. Porque não há teatro popular que resista a um sistema adverso, econômico e politicamente. Eu vi teatro popular em Cuba. É financiado pelo governo e é popular mesmo pelo seguinte: conheci um grupo que trabalha com os camponeses - o pessoal vai para lá e fica seis meses preparando a peça, colhendo material e, quando está pronto, apresenta em campo aberto, para o povo. E era bonito porque não era um teatro excessivamente didático, era esteticamente irrepreensível. Evidentemente, não encenam peças contra o Fidel Castro, mas lá dentro eles não têm a lamentar nenhuma perda intelectual por causa disso e não há notícias de artistas que tenham saído de lá por isso.. Sei que "Gota D' Água" não era um teatro para o povo, mas era pelo povo, tenho certeza disso. Como fazer um teatro para o povo se existem todos os obstáculos?
Então, se a gente vive abaixo desse negócio, vamos trabalhar dentro das condições existentes. Isso não nos impede de denunciar. E vamos denunciar para a classe média mesmo, que pode pagar o preço do ingresso. Porque não é natural tentaremos levar essa peça para os operários. É forçado, dentro do sistema em que vivemos.
Veja - Seu teatro não corre, por isso mesmo, o risco de ser tachado de conformista?
Chico Buarque - Desde a primeira música que gravei - "Pedro Pedreiro" - venho sendo atacado nesse sentido. "Pedro Pedreiro" retrata nesse sentido. "Pedro Pedreiro" retrata a situação do pedreiro que está esperando o trem, que enfim já vem e o trem chega e não muda nada. Realmente, eu não proponho mudanças. A idéia é justamente essa: constatar uma situação, colocar uma situação, confiando no critério das pessoas que vão ouvir minha música ou assistir à peça. E que elas tirem daí alguma conclusão. Eu tenho até uma certa antipatia pelo trabalho que ao mesmo tempo representa uma situação e se propõe e jogar uma solução. Me parece óbvio. É uma questão de gosto pessoal mesmo. Eu prefiro a visão mais jornalística: taí, a situação é essa, vocês tirem a conclusão que quiserem.
Veja - Na "Ópera", o grand finale é quebrado pela volta de João Alegre, autor da peça. Isso é proposital?
Chico Buarque - Isso é um pouquinho até de colher de chá para esse tipo de crítica de conformismo. Quando tudo está colocado em seu lugar, o status quo estabelecido, volta o malandro estropiado e dá o seu recado: apesar de tudo, estamos aí. Que, apesar de todas as aparências, do laudo cadavérico, ele ainda se move. É apenas uma piscadela de esperança, não é uma solução.
Chico Buarque e sua ópera que revive a Lapa dos anos 40
Cronologicamente o Estado Novo começa em 10 de novembro de 1937 e termina com a queda da ditadura, em 29 de outubro de 1945. Mas foram quinze anos, considerando-se que Vargas chegou ao poder em 1930. As características contraditórias desse período, que conjugou aspectos progressistas e conservadores e se utilizou da técnica de propaganda, da coerção, da tortura, da censura, do populismo, foi o período recortado da História por Chico Buarque de Hollanda para situar a peça A Ópera do Malandro, que estreou dia 26, no Teatro Ginástico, do Rio.
Partindo do texto de John Gay. A ópera do mendigo, escrita em 1728, e aproveitando citações da peça de Brecht, A ópera dos três vinténs, de 1928, o grupo Básico de Criação, formado pelo próprio Chico, por Luiz Antônio Martinez Correa, diretor, Marieta Severo, atriz, Maurício Sette, cenógrafo, e Rita Murtinho, figurinista, se entregou à tarefa de recolher material, vasculhar arquivos, dissecar cenas e personagens, realizar seminários e estudar nossa história durante um ano. Depois, foram quatro meses de ensaios todas as noites. A produção é do Teatro dos 4 e envolve 50 pessoas trabalhando diretamente no espetáculo. São 22 atores, num ritmo de 12 horas diárias de ensaios e discussões. Os gastos ultrapassam 1,5 milhão de cruzeiros.
Segundo o diretor, Luiz Antônio Martinez Correa, 28 anos, o idéia da ópera surgiu ao ler a notícia da morte de Meneghetti, um veteraníssimo marginal. Não era mais preciso recorrer aos personagens londrinos, eles estavam aqui, nas ruas.
"Há muito tempo eu pensava em montar a Ópera dos Três Vinténs; resolvi traduzir a Ópera do Mendigo e passei este projeto para o Chico", diz Martinez. "A direção do espetáculo foi nascendo à medida que nascia o texto. O trabalho de equipe foi muito importante, Minhas experiências anteriores foram em esquemas não-empresariais. Já dirigi quatro peças, sempre num sistema cooperativo, sem contratos ou maiores aparatos financeiros. Em termos de texto, nos baseamos mais no de John Gay. Já na hora, da construção das cenas, seguimos Brecht mais de perto, separamos a ação dramática da ação musical, mas a força do espetáculo está mesmo no texto. Aproveitamos os clichês da década de 40, assimilamos o que há de mais consumido, mais kitsch. A crise a falência, a decadência estão presentes. É uma caricatura, um retrato da burguesia brasileira. Utilizamos a lente de aumento, um exagero, uma ampliação para se ver melhor, encontrar outros detalhes da foto. A palavra de ordem que dei aos atores não é representar, é demonstrar, colocar bem claro essas regras falidas, o jogo do capitalismo, a corrupção e a ganância pelo dinheiro".
Chico mergulhou no texto e na composição das músicas (quinze inéditas, com exeção de Terezinha, que Bethânia gravou), e a peça foi ficando coisa sua a cada dia que passava. E, apesar de baseado num texto europeu, o resultado é um produto genuinamente brasileiro, conforme explica o próprio Chico nesta entrevista:
Isto é - Como nasceu a idéia da Ópera do malandro?
Chico - A idéia de se pegar a Ópera do mendigo, de John Gay, nasceu com Luiz Antônio, mas já havia um projeto antigo e abandonado, meu e do Ruy Guerra, de fazer uma adaptação da Ópera dos três vinténs, de Brecht. Eu já estava familiarizado com este texto quando o Luiz me passou a peça de Gay. Na realidade não fizemos uma adaptação. É um texto novo em cima da Ópera do mendigo, com algumas citações de Brecht. O nosso trabalho tem a estrutura da peça de Gay, o enfoque crítico de Brecht, mas é essencialmente brasileiro. Podemos dizer que John Gay está para a Ópera do malandro como a Medéia, de Eurípedes, está para a Gota d'água. O que nos chamou a atenção para a Ópera do mendigo, escrita em 1728, foi a leitura que Brecht fez da peça em 1928.
Isto é - A linguagem da Ópera do malandro teria uma aproximação com a da Gota d'água?
Chico - Sim, na medida em que os personagens são gente do povo. Até os poderosos desta peça são gente da Lapa. Eles são cariocas, o clima é o submundo dos anos 40, a linguagem é popular. Em Gota d'água o texto foi todo feito em versos, o que não acontece na Ópera. Fomos ao original que inspirou Brecht, a Ópera do mendigo, e nas duas peças a temática do marginal, da corrupção é muito bem explorada. Gay escreveu sobre A Boca do Lixo de Londres, retrato fiel da sociedade de 1728. Nós pegamos a Lapa, os bordéis, os agiotas, os contrabandistas, os policiais corruptos, os empresários inescrupulosos. Partimos de uma linguagem urbana, corriqueira e vulgar. E nem podia ser diferente. Não sentimos necessidade de utilizar a rima como um recurso, e a fala obedece a uma cadência natural.
Isto é - Por que os anos 40?
Chico - Tivemos uma série de motivos para situar o texto em 40. Achamos que há uma coincidência entre o momento em que a gente está vivendo e aquela época. Entre 43, quando se vislumbrava o fim do Estado Novo, e 78 há muitas semelhanças. Um outro motivo foram os problemas que gente ia ter de enfrentar com a censura se nos fixássemos nos dias de hoje. Ao colocarmos um chefe de polícia ou policiais em cena, em plena década de 70, alguém poderia se sentir caricaturado ou ofendido. Por exemplo, um dos principais personagens de John Gay era uma caricatura do ministro da Justiça da época. Isso podia ser feito na Inglaterra de 1728. Aqui, em 1978, já não pode. Essa "concessão" que estamos fazendo, na verdade, em não situar o texto hoje, não representa uma frustração. Colocamos tudo direitinho, como a gente realmente quer fazer. Os anos 40, a decadência da Lapa, da malandragem, da "época de ouro do samba", a invasão do capital estrangeiro. E a cada dia sentimos mais esta aproximação entre o fim do Estado Novo e a crise que atravessamos.
Isto é - Qual a temática da peça?
Chico - Gira em torno do dinheiro. O telão, ao fundo, é sempre uma nota, que começa com cruzeiro e acaba com dólar. A peça enfoca o fim do capitalismo autoritário e a entrada no país do capital estrangeiro. Elas têm dois níveis. Um, ao nível dos poderosos, onde a disputa é para acumular capital. O outro, o nível de baixo, é a luta pelos trocados, pela subsistência. É a partir dessa época que o malandro mais reles desaparece. A barra agora é outra, a chamada barra pesada. É assalto para valer, como um Lúcio Flávio. Não há mais lugar para as pequenas falcatruas, as mais "inocentes". Você tem que pensar alto quando vai cometer uma malandragem. O clima envolve opressores e oprimidos, a decadência de uma época. A Lapa simboliza este país, evidentemente que em termos alegóricos. A Lapa não é colocada como um local romântico, mas como uma comunidade em extinção. Os personagens da ópera estão em extinção, assim como o capitalismo artesanal também passou.
Isto é - Houve uma preocupação histórica ou factual na elaboração do texto?
Chico - Não tivemos uma preocupação rigorosa com dados históricos ou mesmo em situações menores. Com a linguagem, é claro que tomamos um certo cuidado e não saímos falando "é isso aí", bicho. Mas não nos preocupamos com este tipo de pesquisa. As referências históricas estão corretas. Em 1943 é que a guerra vira e se define a favor dos aliados. Isto é colocado na peça, a tensão da guerra, o blackout, o racionamento.
Isto é - Ao colocar o Departamento de Imprensa e Propaganda - o DIP - , haveria uma alegoria a nossos dias?
Chico - O espectador chegará às suas próprias conclusões. Há uma série de ligações com o Estado Novo, principalmente o seu declínio. O furo da censura, que se daria pouco depois, está acontecendo agora também. É toda essa decadência que começa a vir à tona.
Isto é - A censura chegou a prejudicar o texto?
Chico - Os cortes da censura não foram tantos assim. Os nossos foram maiores ainda porque o espetáculo estava muito longo. O texto foi censurado aqui no Rio e liberado em Brasília. Os censores locais são mais realistas que o rei, mais temerosos e não têm visão política mais ampla, como ocorre na capital, por exemplo. De todos os tipos de arte, acho que o teatro tem sofrido bastante com estas arbitrariedades. A censura no palco já está soando caduca. Quando os censores vieram assistir à peça, eles mesmo sentiram que já não tinham mais prepotência com que se apresentavam há um ou dois anos atrás. Agora eles sabem que cumprem um papel anacrônico. E isto a gente vê na fisionomia deles. Em outras épocas, chegavam dispostos a cortar tudo. Agora já se sentem como em fins de mandato. Quando proibiram Calabar no teatro, proibiram a imprensa de falar no assunto. Hoje a imprensa está mais "livre", e proibir este espetáculo torna-se perigoso e vai de encontro à tal abertura que eles fazem questão de mostrar e tirar partido até. A censura que ainda existe no teatro é absurda. Cortaram uns palavrões que passariam em outros textos mais ligeiros. A temática, o peso do espetáculo, o meu nome, tudo isso contribuiu. Mas a impressão que a censura dá hoje é essa: muita gente empregada, é um cabide que tem aí, e eles continuam exercendo o cargo sem convicção.
Isto é - Como você vê sua experiência em Roda-viva, 10 anos depois?
Chico - Eu sempre estive ligado ao teatro. Meu primeiro trabalho profissional foi montado com o Tuca, Morte e vida severina, de João Cabral. Em Roda-viva, minha estréia como dramaturgo, vejo, a nível de texto, uma experiência simples, simplória. Não tenho nenhum orgulho especial em relação ao texto, mas tenho a consciência de que é um marco no teatro brasileiro. Foi um trabalho do Zé Celso, mas eu estava lá, acompanhando e aprendendo muito. Se não tivesse escrito Gota d'água, com Paulo Pontes, não teria escrito esta Ópera. É sempre um aprendizado. Devo muito ao Paulo e, por isso, dediquei este espetáculo a ele.
Isto é - Você já está somando os prêmios que vai ganhar com A ópera do malandro?
Chico - Sou um pouquinho avesso a esse negócio de prêmio. É uma questão de coerência de quem é contra a censura. Por exemplo: você recebe prêmio como melhor autor de uma peça como Gota d'água, no mesmo ano em que outras centenas ou dezenas de peças foram proibidas. Você vai receber o prêmio com uma cara-de-pau, porque você está admitindo que sua peça é a melhor, quando uma série de peças não tenha concorrido com a sua. É uma posição assumida, porque eu faço questão de defender uma idéia, eu sou contra a censura. Não sou contra a censura das minhas peças só, não. No mesmo ano que queriam premiar Gota d'água, proibiram Rasga coração, de Vianinha, Abajur lilás, de Plínio Marcos, e várias outras. Então, eu não acho que tenho direito de ir lá e receber, pois eu estaria endossando um prêmio que é relativo.
Arte popular só com o povo no poder
Quem trouxe o Chico para este jornal foi um amigo. Amigo dele, principalmente, meu e de vocês, certamente: um patife chamado Tarso de Castro. Não sei se vocês lembram, mas o primeiro Folhetim já tinha uma história com o Chico. Era uma partida de futebol de salão: o Chico na defesa, porque ele não joga no ataque. Quer dizer, jogar ele joga, mas prefere a defesa. O que não o impede, jogando, de ser ataque. Coisas do Chico. Depois, o mesmo Tarso perpetrou um Chico Cio da terra. Isso mais adiante, tendo ocorrido aí nesse meio tempo um Folhetim 8 com Chico Olhos nos olhos, e que não teve nada a ver com Tarso. Agora que passamos, sem o Tarso, do número 100 (ele nunca gostou de números redondos, até gostaria mas isso é outra história), o Chico está de volta botando água no feijão. Pra coisa ficar completa duma vez. Vamos dizer que essa coisa é a questão democrática, para ficar claro. Vocês aí engrossem o caldo como se deve quando se recebem amigos.
O Chico falou, no começo, numa sala da gravadora.
E continuou na sala da casa dele, no alto da Gávea. Aproveitem, que não é sempre que se tem uma feijoada completa.
Folhetim - A gente podia começar falando do que está acontecendo, quer dizer, fora todos os feriados... das pessoas falando de partidos, procurando espaços políticos. O Chico Buarque falando como criador, não apenas como cidadão.
CHICO - Tem horas que essas duas coisas se misturam. Acho que esse não é o momento para se misturar as duas coisas, inclusive de ficar cobrando do artista uma postura como cidadão, porque esse momento é adiantado ou atrasado. Aconteceu muito, de 68 a 74 principalmente. Havia um vazio político profundo no país inteiro. As opções que se apresentavam eram muito pobres para interessar o jovem, as pessoas que gostariam de estar participando de alguma forma da sociedade. Então, é evidente que nesse período qualquer palco virava uma tribuna, mesmo não querendo o sujeito estava lá assumindo uma posição.
O tempo todo, a cada momento, a cada canção e a cada entrevista. Agora, acho que chegou um pouco a hora do artista. Estou falando do meu ponto de vista pessoal, passar um pouquinho dessa função, porque na realidade esse artista não está preparado para responder com muita nitidez a uma questão mais profunda. Num momento em que eu transfiro em termos de popularidade meu prestígio pessoal para um candidato a senador, a deputado, essa é a posição política mais clara que eu posso assumir. Apoiei fulano, então ele vai falar por mim. A posição de fulano é a que eu apoio. Em 72, por exemplo, não existia isso, as pessoas votavam nulo, não tinham por que falar se preocupando com discussão política. Eu andava pelo interior fazendo show com estudantes e mesmo a grande maioria deles, a discussão mais profunda que travavam era se a maconha do Ceará era melhor que a do Maranhão. Não ia muito além disso. Eu, lá, cantava Construção, Deus lhe pague e aquilo tinha uma função política efetiva, tenho consciência que tinha. Depois de um certo tempo, aí já não me satisfazia mais esse papel, porque parecia que eu estava jogando com um baralho falso, estava continuando a transformar um palco numa tribuna quando na verdade os problemas nacionais pra valer já podem ser discutidos, principalmente a partir do momento em que a imprensa começou a ser menos censurada. A grande mudança foi essa. Eu sou uma pessoa de oposição, não tenho simpatia nenhuma pelo governo... mas esse governo abriu a imprensa, e não abriu porque é bonzinho, foi forçado a abrir, mudou tudo no País.
Folhetim - Um dos jeitos mais fáceis de chamar a atenção das pessoas para o Fernando Henrique Cardoso era dizendo que você o apoiava para o Senado...
CHICO - É, isso ainda é o resto dessa deficiência que está aí. Se existisse liberdade para valer não precisava realmente usar o nome dos artistas para promover fulano. As pessoas saberiam que... sei de casos de pessoas que na boca da urna votaram no candidato de Chico Buarque, da Regina Duarte, existe isso. O ideal seria que elas soubessem por que fulano é candidato de fulano. Não simplesmente uma credibilidade que você tenha. Sem lei Falcão, sem cacete a quatro o povo realmente estaria votando nesses candidatos e saberia por quê.
Folhetim - Falando na censura, você acha que acabou a marcação? Quer dizer, censuraram a música que você fez para as Frenéticas, ao mesmo tempo em que liberaram outras, antigas.
CHICO - É, Mambordel. É claro que a libertação dessas três que estão no último disco foi uma coisa muito pensada. Foi uma jogada, e muito bem bolada porque eu não podia reclamar, porque liberaram as músicas. O máximo que eu podia fazer era não gravar em sinal de protesto. Eu soube da libertação pelo jornal. Isso é muito maior que o rancor de um ou outro censor. Isso existiu em tempos, não só com relação a mim mas a outros compositores e gente de teatro, Plínio Marcos, por exemplo.
Folhetim - Com ele continua.
CHICO - Continua, em teatro ainda há centenas de peças proibidas. É claro que a liberação de uma peça de teatro tem menos repercussão que a liberação de uma música de um compositor popular.
Folhetim - Você sabe por quê censuraram essa música para as Frenéticas?
CHICO - Digo sinceramente, nunca tive muita idéia porque estavam censurando. Às vezes liberam música que a gente pensa que vai ser proibida. O Mambordel deve ser atentatório à moral e aos bons costumes. Essa música foi feita para um filme que afinal não se fez, mas fiz para uma situação do filme em que as prostitutas conseguiam enxotar o dono do bordel - é uma fábula - o grande gigolô delas, e diziam: "Foi proclamada a república nesse bordel." E termina assim: Ao povo nossas carícias, ao povo "nossas carências, as nossas delícias e as nossas doenças."
Folhetim - Faça um balanço dessa sua luta com a censura.
CHICO - Não foi uma luta pessoal, mas em alguns momentos ela assumiu aspectos pessoais. Eu era pessoalmente incomodado, quase semanalmente. Em cada lugar que eu ia, era obrigado a comparecer ao Deops. Isso quando estava fazendo show, aqui no Rio eu era chamado regularmente ao Deops. É claro que isso foi me afetando pessoalmente e eu reagia às vezes até de uma maneira menos racional. No aspecto geral essa picuinha não pesa nada. Aí a discussão é outra: é a gente fazer um balanço do prejuízo que a censura representou para nossa cultura esse tempo todo.
Folhetim - Isso mesmo. O que fizeram deste País?
CHICO - Liberarem essas músicas (do disco) não significa absolutamente nada. O prejuízo não foi maior pra mim nem pra ninguém, foi para a arte nesse País mesmo. Eu acredito que o público que assiste a uma peça de teatro que tenha alguma ousadia, alguma contribuição, saia desse mesmo espetáculo enriquecido, é um dado a mais para a cabeça desse público. Isso significa que no mês seguinte, quando voltar ao teatro, ele vai querer uma acréscimo a essa sua informação ou emoção. Então o autor é obrigado e desafiado a estar sempre criando mais e melhor. Isso durante um ano representa já um salto cultural de todo o País, durante dez anos é realmente o que se chama desenvolvimento cultural de um país. O contrário é emburrecimento. O público que deixa de assistir as peças, não viu Rasga coração, do Vianinha, por exemplo, perdeu com isso. Os autores dramaturgos também perderam, porque não são obrigados a fazer uma coisa melhor que aquilo, e vão ficando parados no mesmo lugar, emburrecendo com as moscas em volta. Aí chega um cara qualquer e diz assim: em Portugal, depois de 50 anos, abriram as gavetas e não tinha nada... É, evidente, depois de um certo tempo ninguém fica escrevendo coisas maravilhosas pra botar na gaveta. Ele tem necessidade de exibir seu trabalho, de ter o reconhecimento ou o repúdio do público, ele precisa desse diálogo e o público também. Se não houver esse diálogo morre. Isso vale para teatro, para cinema, para música, para todas as áreas. Tenho certeza que se não tivesse havido essa censura toda, a música brasileira estaria muito melhor, eu estaria um compositor melhor do que sou, haveria muita gente nova, muito mais do que há hoje.
Folhetim - Muita coisa mudou no Brasil na relação do jovem com o poder.
CHICO - A gente, pelo menos, tinha a ilusão ou a certeza de estar de certa forma participando da Nação. E o jovem participava: através de sua atividade estudantil ou de outra, ele tinha consciência de que estava participando. Hoje, o máximo que ele pode almejar é um bom emprego quando sair da faculdade. A coisa foi colocada toda em termos de competição e nada mais. Estou falando de classe média , da minha classe, porque se você for olhar em volta as opções são trágicas. E ninguém garante nada, essa pequena abertura que houve pode ser retirada amanhã de manhã. A única vantagem que tem é eu estar falando essas coisas e saber que elas vão ser publicadas no jornal. Aí há um salto, se você comparar isso com 73, quando proibiram Calabar e proibiram a imprensa de falar no assunto, aí realmente era o buraco, aí não tem saída. Pelo menos a gente já está podendo falar dessas coisas, já é um progresso. Esses anos todos da ditadura do Médici é que foram uma das coisas mais pobres.
Folhetim - Não pode ter sido pura falta de talento você, por exemplo, não ter continuadores.
CHICO - Evidente que não, não acho que faço parte de uma geração privilegiada pela natureza, pelos astros... Outro dia apareceu um americano aí querendo fazer uma reportagem sobre os jovens arquitetos brasileiros. Eu falei com um arquiteto dos seus 37, 38 anos que disse que acabou entrando ele na reportagem, ele e os colegas. São os garotos prodígio de 15 anos atrás. A pergunta que vocês me fazem é bem essa mesmo: fizeram deste País... Durante esses anos o jovem foi uma pessoa conduzida por todos os meios de comunicação e por todo o sistema que esta aí a ser uma pessoa desprovida de ideal, de criatividade. Quero deixar muito claro que se não tem aparecido muita gente depois da minha geração é simplesmente porque as dificuldades são muito maiores do que eram antes. São dificuldades que inibem qualquer talento. Tenho a certeza de que se fosse dez anos mais moço, não seria um compositor, ou seria medíocre, frustrado ou desconhecido.
Folhetim - Nesse teu último disco tem muita música cubana. Resultado da viagem que você fez no começo do ano?
CHICO - É, e também tem muita música que canto com Milton no disco dele. Na verdade, enquanto estive lá trabalhei tanto, fiz tanta coisa em tão pouco tempo, que só fiquei com uma vontade danada de voltar e realmente vou voltar. Naqueles vinte dias fiz um show de música brasileira e música cubana, isso envolveu ensaios e o diabo. Fizeram um documentário comigo que, aliás, esta sendo exibido lá agora, outro dia recebi uma crítica. O que mais tocava a gente era a semelhança que existe entre os povos em todos os aspectos dos seus costumes e a paisagem também, que é o Nordeste brasileiro igualzinho. Lá, cada vez que me perguntavam sobre Cuba eu estava sempre falando do Brasil, tava ficando até chato: me perguntam sobre Cuba eu respondo sobre o Brasil. A gente tinha até uma brincadeira, todo cubano que aparecia tinha um igual no Brasil: olha fulano! Tem coisa demais: no humor, na música, no ritmo, no calor - e de repente tudo é diferente. Chocante não existir consumo, consumismo, não existir propaganda de produtos. Minha mulher foi comprar um creme hidratante e deram um potinho com um negócio marrom dentro. Ela acostumada com Ponds, Helena Rubinstein, olhou aquilo sem rótulo, sem nada, com um aspecto meio feio e perguntou: não tem outro? (risos). A senhora não quer creme hidratante? É isso. Depois usou, deu ótimo resultado, mas você está viciado por aquele apelo... Se eu for falar de Cuba não paro mais. Até quando cheguei lá e dei uma entrevista, saiu uma frase assim: "Aqui em Cuba vejo o Brasil que nós sonhamos..." Depois soube que essa mesma frase foi dita por um famoso político brasileiro que está aí, aliás na Arena...
Folhetim - Mas e a presença soviética, incomoda?
CHICO - É claro que lá você vê muito russo, búlgaro, romeno. Você cruza com aqueles russos, uma coisa que não têm nada a ver com a paisagem, fica assim meio exótico. Aqueles caras de gravata e tal, você entra no hotel e vê os caras, mas vai aqui no Sheraton e vê: você vai encontrar uma quantidade de americanos muito maior.
Folhetim - Durante a campanha eleitoral você apoiou alguns candidatos e tal, mas você fez muito mais do que isso. Você ressuscitou a paródia, naqueles jingles para o Fernando Henrique, o Audálio Dantas, etc... A paródia, que é uma coisa que se fazia antigamente...
CHICO - Você falou nisso e lembrei, nesse tempo também se usava muito músicas de carnaval: Lata d'água na cabeça. Chora doutor e por aí. Essas músicas são da minha infância, dos anos 50, lembro que cantava esse tipo de música que desapareceu. A música de protesto brasileira é uma música alegre, ao contrário do que se ouve por aí afora. Tanto que talvez uma das minhas únicas músicas que pode ser chamada de protesto, o que no Brasil é um palavrão, compositor de protesto é um insulto incrível é Apesar de você, que é alegre, um pouco com a idéia dessas músicas antigas de carnaval. Foi engraçado que no caso do Modesto da Silveira, candidato aqui Rio, mas ia fazer até uma gravaçãozinha para tocar nesses altos-falantes e eu falei: aí precisa ver essa coisa de direito autoral. "A música é a melodia do Sacarolha do Zé da Zilda e da Zilda do Zé. O Zé da Zilda já morreu, aí foram procurar a Zilda, que mora longe. Foram pedir licença e dar um dinheirinho. Foi bom porque ela não tá bem de vida. Ficou contentíssima e disse que ia votar para esse candidato. Esse negócio de direito autoral é bom falar também: hoje, comparando com três anos atrás, o sistema tá moralizado na medida em que o compositor recebe pela música que efetivamente toca nas rádios e nos lugares públicos, enquanto que antigamente prevalecia o critério misterioso. Mas em contrapartida, o sujeito que fez sucesso no passado hoje não vê um tostão e o autor de música sertaneja também não. Porque a arrecadação é feita com base em algumas emissoras do Rio, São Paulo e algumas capitais. Então eu, por exemplo, que sou beneficiado com isso, recebo muito mais do que recebia antes. Mas outro dia peguei um táxi e o motorista disse: sou seu colega. Disse o nome dele, eu não tava localizando, mas era parceiro do João do Vale em Carcará! Essa foi uma das poucas músicas dele que fizeram sucesso em São Paulo, Rio, mas ele tem uma porção de músicas sertanejas, especialidade dele, que tocam no interior. Perguntei, então como é que ficou agora? Ficou muito pior... Motorista de táxi, né? E autor de Carcará. As coisas no Brasil são assim: ou oito ou oitenta.
Folhetim - E o que vocês podem fazer para corrigir isso?
CHICO - Eu não faço parte, só digo que a Sombrás teve uma participação ativa na mudança, que em princípio foi pra melhor, mas ao mesmo tempo estou falando isso aqui porque não tenho onde falar. A Sombrás pegou fogo, quem faz parte do conselho de direitos autorais é o Roberto Carlos e o Fernando Lobo, das pessoas que conheço eles é que têm que levar adiante. Então precisa ficar falando nos jornais. E preciso levar em conta esse aspecto, principalmente de gente que foi roubada durante todo esse tempo, até quando mudou o sistema, e agora pelo menos deveria ser indenizada pelo que aconteceu até então.
Folhetim - Quando você diz que é um artista classe média, você está se colocando a dúvida de como chegar ao povo? Queríamos saber se é isso, ou se você pensa em outra coisa.
CHICO - O que quero dizer é o seguinte: há cada vez mais um abismo entre a produção intelectual e o grande povo. Quando chega o general Geisel e prova com números que aumentou o consumo de eletrodomésticos etc. e tal, me parece uma coisa inteiramente furada. Porque eu, uma pessoa beneficiada pela má distribuição de renda, aqui em casa tenho quatro aparelhos de televisão. Dois não funcionam, mas tenho, dá pra consertar amanhã..... Então, hoje não é difícil uma pessoa ter dois, três carros. O consumo está cada vez mais concentrado. No mercado da música, a mesma coisa: meus discos hoje vendem muito mais que antes. Para os produtos mais sofisticados, realmente existe um mercado cada vez maior, isso é verdade. Basta ver os cigarros que são lançados todos os dias com filtro de ouro, filtro platinado, para essa mesma parcela da população.
Folhetim - Mas num momento em que começam a acontecer algumas coisas a nível político, mesmo que poucas, o que pode mudar nessa relação povo - classe média?
CHICO - É evidente que a gente luta por uma abertura democrática. É o que a gente quer para essa pequena parcela pequena do público que atingimos, para que pelo menos essa parcela receba o trabalho da gente integralmente e que essa liberação permita maiores ousadias e uma criação mais forte. Mas acredito que dentro do sistema capitalista essa questão da arte popular está comprometida. Eu aqui tenho uma ressalva porque acho que no momento o que há de mais importante mesmo para colocar é a questão democrática. À parte disso eu tenho outras convicções que quero ter a liberdade de colocar a cada entrevista ou a cada canção ou a cada peça de teatro, para ser ouvida, para ser julgada... Não estou querendo dizer que sou o dono da verdade, pelo contrário, estou sempre dizendo que não sou. Agora, quero ter a liberdade de manifestar minha opinião pessoal e, como já disse nesta entrevista, hoje existe a vantagem de poder dizer alguma coisa na imprensa. Na verdade, a arte só é popular na medida em que ela tende a estar aliada ao governo, e o governo seja popular na medida em que esteja ligado ao povo. Eu só acredito em arte popular num país em que o povo esteja no governo.
Folhetim - Você acredita no Estado?
CHICO - Eu defendo o povo no poder... o Estado enquanto povo no poder. Aí a arte é popular, senão será sempre uma arte de elite, sempre foi. E claro que é muito mais importante dar pão para o povo, mas de repente você pode através da arte comunicar a esse povo a importância que ele tem para poder reivindicar o básico. Isso aconteceu em Cuba. Tá acontecendo em Moçambique, mas é inteiramente diferente do que está acontecendo aqui. O sistema que existe aí procura desviar a arte a seu gosto, contra os interesses populares.
Folhetim - Você é um sujeito meio inatacável, até parece uma exceção. Você se sente assim?
CHICO - Não, isso não é verdade. Sempre que eu leio uma coisa assim é um pretexto para dar uma paulada e o cara ainda sair com fama de corajoso.
Folhetim - Mas, quem fala mal de você?
CHICO - Volta e meia falam. Realmente não falam muito porque, na verdade, a única resposta que a gente pode dar a essa marcação é o trabalho mesmo. Não adianta eu ficar aqui me queixando, a gente tem que responder com trabalho. Quando saí do Brasil e fiquei um ano e meio fora, o que li na imprensa, me mandavam aqueles recortes, era assim: de cocô para baixo, e eu não podia responder porque não adianta responder. Eu não fico mandando cartas a jornais, porque também teria ocupado meu tempo todo com isso. Eu pessoalmente não tenho nenhuma admiração pessoal por mim, mas pelo meu trabalho eu tenho... porque quando nada, nada, eu vivo pra isso. Então as pessoas usam um pouco isso, de chamar o Midas, como se fosse uma coisa meio mágica ou uma coisa intocável. Não é, isso é resultado de trabalho, eu estou produzindo constantemente, mas se eu produzir uma coisa muito ruim, podem falar mal, é uma porcaria e vão falar mal. Porque é isso que a gente vê, esse País tá virando um poço de ressentimento. A gente vê de repente Milton Nascimento, era considerado inatacável, era considerado um mito, tinha até trocadilho... E tem oitenta por cento das pessoas que acham Milton maravilhoso e vinte que não acham, mas que não têm coragem de dizer porque vai pegar mal e tal. Aí um dia, numa apresentação no festival de jazz, não sei o que, essas pessoas que estavam com esse ressentimento guardado há muito tempo botam para fora esse negócio de uma maneira selvagem. Isso já aconteceu comigo, com os baianos todos, com o Milton. Tem críticos que não conheço, não vejo, mas que possivelmente estão com as pedras na mão prontos para atirar. A crítica aqui no Brasil é uma coisa muito provinciana, funciona muito a ligação pessoal. A gente conhece os críticos, eles conhecem as armas e quando se dão bem , se falam, almoçam juntos. Quando não se dão, já se sabe que vai ter um pau no dia seguinte. Eu até procuro evitar um pouco esse contato porque até fica parecendo que a gente tá querendo angariar votos...
Folhetim - O artista, em todo caso, é sempre uma coisa maior. Porque o crítico está sempre na periferia, em volta do artista, do trabalho do artista. É como um sujeito que está fora tentando entrar.
CHICO - Esse negócio todo tem a ver com o fato da imprensa exagerar o papel do artista. Eu tenho a tendência de ficar diminuindo, de repente fico achando que essa música toda, esse trabalho que está sendo feito, na verdade, diante do que há de importante a se fazer por aí, é uma porcaria, uma titica, principalmente quando há essa coisa de ficar dando entrevista, de ficar falando de mim. Parece que vou não me convencendo, e achando que tudo é uma grande bobagem.
Folhetim - Como você se vê hoje? Você acabou virando uma das figuras mais importantes da cultura brasileira.
CHICO - Não sei não, não me vejo como figura, imagem, essa coisa toda. Acordo bem comigo quando estou criando, quando estou trabalhando. Se na véspera fiz uma linda música eu acordo cheio, orgulhoso, contente, me achando muito bom. Mas isso passa com o tempo. Agora, por exemplo, já estou meio desligado do meu disco. Logo depois da gravação eu ouvia muito e ficava contente. Minha peça de teatro passei um mês indo lá diariamente... já não vou há quase dois meses. É uma coisa muito volúvel. De repente estou indo toda a noite e depois me recuso a ir. Não quero ficar comendo aquela coisa requentada, me satisfazendo com um negócio que já fiz, que já não interessa mais para mim. Já fico querendo fazer uma coisa nova e aí me sinto um pouco angustiado e impotente.
Folhetim - Como você compõe? Tem uma história de que você compõe na cama...
CHICO - Eu só componho com violão e só componho sozinho. Aliás, a maioria das minhas músicas faço sozinho. Parceria é outra coisa. Agora, a idéia de uma canção pode acontecer a qualquer momento em qualquer lugar, tomando banho já tive várias idéias. Aí você se enxuga depressa, põe o calção, corre, pega o violão pra ver se continua a idéia com a música. Eu não escrevo uma letra, até mesmo uma música pode pintar debaixo d'água, uma idéia qualquer, uma transação que depois de pegar o instrumento vai mudar, vai ser inteiramente alterada. No fim o que deu início a tudo vai sumir, muitas vezes some.
Folhetim - A bebida tem alguma coisa a ver com essas idéias?
CHICO - Uisquinho, essas coisas assim são um pouco vagabundagem... Se eu estiver um pouco alto não faço nada bem. Ligo álcool, sim, à apresentações em público, aí é indispensável, mas não tem nada a ver com a criação. Inclusive, às vezes a gente tem idéias assim que acha que são brilhantes e no dia seguinte acorda e vê que não presta pra nada. Já aconteceu de idéias aparecerem em sonhos, idéias que pareceram alucinação e no fim são boas. Mas em geral trabalho sóbrio, sério, disciplinado.
Folhetim - Tem alguma coisa em você ligada à tristeza. Seu último disco tem músicas alegres, mas tem um fio meio triste.
CHICO - Você acha? Com aquela cara e tudo, rindo na capa?
Folhetim - E talvez seja o mais alegre dos discos que você fez até hoje.
CHICO - As coisas também andaram muito amarguradas durante muito tempo. Um disco como Construção, como Calabar, Chico Canta - são discos muito pesados, amargurados... Agora tá na hora de descontar um pouquinho isso. Acho importante estar alegre, otimista.
Folhetim - Você está?
CHICO - Procuro estar, né? Procuro mas talvez seja pra compensar. Pelo menos hoje a gente já tem a perspectiva do otimismo. Otimismo indireto, por tabela.
Folhetim - Mas quando você começou com Olê olá, Pedro pedreiro, não tinha esse peso no País e são todas músicas tristíssimas.
CHICO - Não, não concordo... você está querendo saber se eu sou uma pessoa triste?
Folhetim - Não, você é bem-humorado até.
CHICO - É, acho que sou... até nos momentos mais graves não perdi o bom humor. Perdi a esportiva uma vez ou outra, mas o bom humor de vez em quando, aí em dose cavalar. O humor acho importante segurar... enquanto existir humor.
Folhetim - E as mulheres nas tuas músicas?
CHICO - O que que tem?
Folhetim - Fala delas...
CHICO - Eu fico muito orgulhoso porque muitas vezes as mulheres, me dizem que eu interpretei o pensamento delas, o sentimento delas, o sentimento principalmente. Eu fico muito contente, e é uma coisa parente do dia em que me chamaram no Sindicato da Construção Civil de Minas Gerais, em Belo Horizonte, e me deram um prêmio, essa pá que está ali, por causa de Construção. A gente fica satisfeito... é claro que existe uma coisa que comove a gente o tempo todo. A crítica mais reacionária diz assim: esse sujeito é um burguês, não tem o direito de falar em nome do povo, falar do operário. E uma crítica desagradável, só que parte da burguesia. Os críticos são burgueses tanto quanto eu. No dia em que uma pessoa do povo me desautorizar de falar em nome dela, de falar dos problemas do povo, aí vou realmente me sentir frustrado, vou ser obrigado a dar a mão à palmatória. Então, enquanto as mulheres, eu estava fazendo um paralelo, disserem que interpreto bem com o sentimento delas, inclusive cantando no feminino, compondo no feminino, vou me sentir nesse direito.
Folhetim - Nenhuma feminista te chamou de machão?
CHICO - Isso eu acho uma bobagem. Tenho uma amiga feminista, a Rose Marie Muraro, que acha que estou de acordo com as teses do movimento feminista. Não sou contra o feminismo, mas acho que de vez em quando elas falam um montão de bobagens.
Folhetim - Tipo o que, por exemplo.
CHICO - Há muito tempo, quando não existia o movimento feminista, talvez seja uma das coisas comigo que me lembro mais em São Paulo, houve quem fez pregações nos bares da moda contra Com açúcar, com afeto, dizendo que eu colocava a mulher como sendo uma submissa. Eu respondo: realmente a mulher é submissa, é isso tudo, o machismo existe e se eu disser que não existe estou sendo machista, porque estou querendo escamotear uma realidade. Eu estou colocando uma situação, não estou de acordo com ela, a mesma situação estou colocando pelo canto de Pedro pedreiro... O homem é pobre, se eu disser que ele é rico aí vou estar sendo fascista. Isso aconteceu quando fiz aquela música Partido alto, que dizia "Deus me fez um cara pobre, desdentado e feio pele e osso simplesmente, quase sem recheio...." Me disseram na censura que essa música era uma ofensa ao povo brasileiro. Eu não acho que ela deve ser isso não. Se disser que o pobre é bonito e rico um coitadinho, é a mesma coisa que dizer que a mulher é forte e o homem um pobre coitado. Ah, outra coisa que andaram falando também é por causa de Mulheres de Atenas... Aí eu fico preocupado com a capacidade crítica das pessoas. Aliás, é uma música feita para uma peça, tem aquela coisa, mas achei que era bastante claro que estava dizendo uma coisa com um refrão que era contradito o tempo todo pela letra da música, tipo outra música que está proibida e que fiz pro Calabar, "vence na vida quem diz sim", e o tempo todo repete o refrão. Mas se forem me chamar de positivista por causa disso, aí é absurdo. Pô, a música toda diz "não mirem-se nas mulheres"... agora pra ter graça tem que botar " mirem-se no exemplo", pra vocês verem o que vai acontecer...
Folhetim - Continuando mulheres, tem aquela história de que mulher que não gosta do Chico e não tem vontade de ter filhos tem alguma coisa anormal...
CHICO - Não acho que tenha essa imagem não. Não sou símbolo sexual, digo sinceramente. Se eu fosse, tava contente.... Sou até uma pessoa desajeitada, um pouco inábil com as mãos, que funcionam de um jeito esquisito. Não estou, também querendo fazer contrapropaganda das minhas qualidades... mas não acredito que seja não. Me acho é engraçado por causa dessas mãos que o Toquinho diz que não têm nada a ver com o resto do corpo. Parecem de outra pessoa. Toquinho goza muito, aliás mostra fotografias e diz: a mão tá sempre numa posição absurda. E eu, quando me vejo num filme andando, acho uma coisa meio desengonçada.
Folhetim - Mas aí você está embromando...
CHICO - Não... eu diria. Aí, é claro, entra outra coisa: eu fico me protegendo, me resguardando um pouco. Não das mulheres, mas de um modo geral das pessoas. Tinha um tempo de televisão, TV Record e tal, que eu tinha fobia de público, de muita gente. Agora estou mais tranqüilo, mas tenho dificuldade de transar com uma pessoa que não conheça. Eu tenho aqueles amigos, uma coisa assim meio fechada, e fora isso sempre me parece uma invasão, aí nisso é claro que dança homem, mulher, tudo é a mesma coisa... Eu fico com medo de ouvir uma coisa desagradável. Eu sou uma pessoa muito exposta e sou muito sensível a críticas pessoais. Lembro de quando escrevi Fazenda modelo, um livro de que gostava muito. As pessoas chegavam, diziam "li seu livro" e eu pedia: pára aí, não fala nada. "Não, mas gos..."eu pedia por favor para não dizer nada. Eu estava muito tenso em relação àquele trabalho.
Folhetim - Mas você até que anda mais relax.
CHICO - Já estou muito melhor nesse sentido. Mas eu fico com medo de estar carregando... no fim, quando eu for ler esta entrevista vou falar assim: ih, que exagero. Então meu estado de espírito é um hoje, amanhã a entrevista seria inteiramente diferente. O que estou mostrando, de qualquer maneira, é um lado meu... e não é mentiroso.
Folhetim - Você se preocupa muito com sua imagem?
CHICO - Com a minha imagem, de jeito nenhum... parecia que eu tava dizendo isso?
Folhetim - Não, é outra coisa. É que um sujeito na condição em que você está tem a vida muito devassada, as pessoas querem saber coisas e tem toda uma vida sua que não é a que as pessoas conhecem.
CHICO - É, só tem uma vida... A conversa que sai nos jornais, de um modo geral aí já é uma imagem que existe, que eu não criei. De alguma forma contribuí para criar, mas não foi no sentido proposital. Eu também não fiquei desmentindo as coisas. Então às vezes pintam coisas incríveis.
Folhetim - Por exemplo.
CHICO - Um dia uma moça do jornal "O Dia" veio me entrevistar e ela estava um pouco acanhada. É um jornal muito popular no Rio, mas nunca tinha me entrevistado. Ela achava que eu não tava me sentindo bem. Ela disse que soube que eu era muito agressivo e que uma vez bati numa repórter. Então isso é uma coisa que tá ocorrendo na redação desse jornal, onde provavelmente ninguém me conhece: que eu seja agressivo, o que não sou, e que eu tenha batido numa mulher, o que também é um pouco demais. As coisas aí também vão correndo, correndo e ficam cristalizadas. Aí me preocupa. Sou uma pessoa com uma série de defeitos e vulnerabilidades, mas mentira me irrita muito.
Folhetim - Você não é de briga...
CHICO - Não, sou de paz. Talvez por ser uma pessoa muito calma, sou até considerado por alguns amigos como excessivamente indulgente, de fechar os olhos para as sacanagens. Tem horas que vem a explosão, mas sempre na defesa.
Folhetim - Você não joga no ataque?
CHICO - No ataque só no futebol, no resto tô aqui na defesa. Por isso tudo tô falando: uma pessoa muito exposta, com uma posição bastante clara diante de tudo, eu sou odiado por muita gente... e tem uma hora em que as pessoas também não conseguem conter esse ódio e vêm pra cima. Se vêm com mentira e se encontra na rua, aí tem briga. Mas não sou briguento, sou paciente. Por exemplo, eu odeio os fascistas, odeio de uma maneira abstrata. Concretamente, se vir um fascista na minha frente, não vou falar com ele, vou virar a cara. Se ele falar comigo delicadamente, alguma coisa vou responder. Se você for brigar com todo fascista que tem por aqui, vai ficar louco...
Folhetim - Você cantou Cálice antes da liberação?
CHICO - Em alguns casos, circuitos universitários, Nordeste, Rio, São Paulo. A gente tinha que mandar o título das músicas pra censura antes de um show. Então, Cálice a gente mandava com o nome de Pai. Pai é aprovado e aí eu ia: "Pai afasta de mim este cálice". Isso não acontecia no Rio ou em São Paulo. Acontecia em Piracicaba... Em alguns lugares diziam: Pai! Essa música não está aprovada pela censura... Outros aprovavam.
Folhetim - Que outras coisas você fazia para driblar a censura?
CHICO - Teve uma época que minha criatividade estava mais voltada pra isso do que propriamente para a música. Mas tenho medo de ficar contando essas coisas porque amanhã a censura volta mais brava ainda. Em todo caso, a gente tem que inventar outros recursos mesmo... Um deles era... não, esse não vou contar não, esse vale ainda, posso usar outras vezes. Um que não dá mais é pseudônimo. Depois da história do Julinho da Adelaide começaram a exigir junto com o nome do autor o CPF, a carteira de identidade etc. Nesse tempo o camarim estava infestado de policiais, então o pseudônimo de músicas só dava pra usar com as músicas desconhecidas, caso contrário você saía do palco direto pro camburão.
Folhetim - Nos momentos mais difíceis, de repressão mais violenta, você quando era preso tinha certeza de...
CHICO - Ah, isso nunca tirei da cabeça, o fato de que a minha popularidade era meu guarda-costas. Eu sabia que nunca seria um Vlado. Tinha certeza de que gozava de uma certa cobertura e até brinquei com isso naquela música do Julinho de Adelaide: "Você mãe gosta de mim mas sua filha gosta..." Aconteceu de eu ser detido por agentes da segurança e no elevador o cara pedir um autógrafo pra filha dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo da delegacia... Enfrentei grosseria, mas sempre tive a garantia que não iam me tocar. Normalmente ia com essa certeza e com uma obrigação: já que tenho essa cobertura, posso ir mais longe que outras pessoas, se não for.... ah sim, estou sendo fraco, covarde, canalha. Tentava descobrir a medida: posso ir até aqui e mais também é bobagem. Não havia nenhum sentimento heróico nisso e isso até uma ofensa diante de tanta gente que apanhou tanto, que morreu, que até hoje está sofrendo por causa de uma luta mais conseqüente e mais concreta e mais séria.
Folhetim - Mais séria por quê?
CHICO - Aí entra um pouco aquele negócio de achar que ficar fazendo música não é suficientemente sério. Eu tenho um pouco essa tendência, o que me consola é que eu tenho consciência da importância da música e da cultura de uma maneira geral. Mas quando começam a colocar isso num nível exacerbado eu tenho que reagir. Lendo entrevistas que o Oscar Niemeyer dá eu me identifico muito, ele diz a mesma coisa da arquitetura dele e eu não sou nada perto de Oscar Niemeyer, que eu conheço e perto dele me sinto inibidíssimo e me sinto pequeno. Ele acha que a arquitetura não vale nada diante da imensidão dos problemas deste País. Então, o que vou achar da minha música? Esse é um lado. Por outro, de repente, estou falando a mesma coisa que fala quem acha que cultura é frescura ou caso de polícia...
Folhetim - Ou então na posição dos que acham que só vale aquela política militante.
CHICO - Evidentemente. Dentro de um certo tipo de cabeça aí, que se pensa de esquerda, cinema é frescura. Mas a gente vê aí grande parte da população desse mundo inteiro que não tem sequer noção do que seja a dignidade humana e do que seja a possibilidade de satisfazer suas necessidades básicas, e então a arte pode ser um veículo. Posso falar de Cuba: lá eu vi o povo participando, se sentir participando. Isso vi com "estes olhos que a terra um dia há de comer".
Folhetim - Você também não é tão atacado porque é de uma família, digamos, de linhagem, enquanto Caetano e Gil são dois sujeitos do interior da Bahia.
CHICO - Isso é inseparável. No caso do Gil, então, existe um componente racial muito forte... aquele mulato que chama de mulato pernóstico, com aquela ousadia do Gil, já falei pra ele, ele tem aquelas narinas que são agressivas e tal, que pesa muito. Esse pessoal que fica pichando os baianos o tempo todo e se esquece muito disso. Eu, quando fui detido em 68, depois do AI-5, me perguntaram o que eu estava fazendo na passeata dos cem mil ao lado daquele crioulo sujo chamado Gilberto Gil. Então, sei que se houver outro 68 (toc, toc, toc) a gente bate na madeira e não acredito que haja, nessa hora eu vou estar talvez mais protegido do que Gilberto Gil, que é chamado de alienado por aí. Vou ser mais protegido do que Caetano Veloso, porque os trejeitos dele agridem um certo tipo de cabeça. Mais protegido que Nei Matogrosso. Não estou muito no fim da lista não, eles se incomodam comigo. Mas com um certo respeito e onde pinta o ódio e mais um ressentimento paternalista, como quem tá falando com uma pessoa que traiu a sua classe. Eles não entendem realmente como você, fulano de tal, como nome, sobrenome, de olhos verdes e que torce pro Fluminense, como é que está do outro lado. Eles compreendem que um crioulo, que uma bicha esteja do outro lado, e não admitem muito que eu esteja.
A ópera do Chico
"Lançamos um espetáculo musical contrariando todas as receitas empresariais"
Chico Buarque e Celso não conversam há mais de seis anos: trocaram o primeiro abraço na estréia da Ópera do malandro, dez anos depois de Roda-viva. Desta vez a peça de Chico é dirigida por Luiz Antonio Martinez Correa e tem Marieta Severo num dos papéis principais. Ela além de atriz de Roda-viva, já havia trabalhado com Luiz do Casamento do pequeno burguês, de Bertolt Brecht, e em Tito Andronius, de Shakespeare. E, daria até ópera de família. Seria simples juntar os quatro para um papo. Sim, se não fossem os primeiros dias de peça que mal entrou em cartaz, no Rio: o cansaço de Chico, de Luiz, de Marieta. Então, depois de dois espetáculos seguidos só sobrava a madrugada com muito sono e café. Talvez por isso foi difícil as palavras fluírem, deixar andar. Havia uma certa tensão contendo o diálogo e a afetividade, como se alguma coisa a mais pudesse ser dada e acabou ficando retida. No começo eles contaram episódios de Roda-viva, Chico e Zé riram, lembrando a agitação daquela época com tudo acontecendo simultaneamente e eles tentando acompanhar no teatro o ritmo da rua. Depois Zé deu a sua impressão sobre a Ópera do malandro. Disse que estava acabando de chegar, ao Brasil (fim do mês de junho), era a primeira vez que ia ao teatro, mas sentia o trabalho todo ainda muito dominado pela produção, que parecia ter faltado tempo para aquele material explosivo acontecer mais. Isso mesmo, Zé Celso falou que faltava malandragem nesse jogo, que era importante eles tomarem o espetáculo nas mãos, liberarem aquela energia. Quando liguei o gravador, Marieta estava respondendo a essa observação.
Marieta - A gente também acaba ficando num certo pânico com esse peso de todos os milhões que devem voltar para a produção. Isso cria um respeito e ficamos com a consciência de que o público está condicionado a consumir o espetáculo apenas durante um determinado tempo e depois quer sair para jantar. Então, isso provoca até uma atitude de uma certa submissão: por causa da produção, dos milhões.
Chico - Não vejo como isso é possível, a longo prazo, a gente se libertar inteiramente desse compromisso assumido com os produtores e que envolve uma contradição. Temos que saber o horário de jantar das pessoas, o tempo que elas querem ficar com a bunda na cadeira. Mais que isso: o peso desse público representado em cima pela produção. Precisaríamos de mais dez dias para estrear a peça. A estréia foi adiada duas vezes e não poderíamos esperar mais porque estamos em contato com essa realidade empresarial exposta todos os dias diante de nós e números e cálculos. Agora para chegar numa outra coisa, deveríamos ter partido de outro ponto desde o início. Mas entramos nessa, decidimos fazer esse teatro dentro de uma produção convencional. Acho que não é o caso de se arrepender disso não. Há mil pontos irrecuperáveis, mas outros estão a nosso favor, não sou tão pessimista.
Zé Celso - Chico, eu também acho que é o que é. Já que se assumiu isso tá legal, mas falo daqui para frente, a partir do que existe.
Chico - Sei, mas no meio da conversa comecei a pensar por que a gente entrou nessa e agora está se queixando. Há mil motivos para se queixar, mas temos que andar da melhor maneira possível. Estou de acordo com o Zé, acho que podemos nos libertar disso até um certo ponto: é possível superar várias coisas. Na verdade o que aconteceu foi o seguinte: o público entrou de repente e surpreendeu uma peça que não estava pronta. Ele surpreendeu a peça, os atores, ficamos desatinados.
Marieta - E nós culpadíssimos porque já estávamos com quinze dias de atraso. Nós nem procurávamos um grande empresário, fomos no meio termo. Queríamos tudo: a grande produção e ao mesmo tempo alguém que compreendesse o ritmo da criatividade. E no meio termo, não tivemos nem uma coisa nem outra, nem o dinheiro solto nem o tempo da criação.
Zé Celso - Tudo isso tá ok, mas estou dizendo o seguinte: agora que acabou essa história de preparar, estrear, começar uma nova peça. Geralmente é ao contrário: chegou aí, abaixa a cabeça e reza até morrer. No caso de vocês é diferente, há toda uma possibilidade de jogo, de malandragem com a produção que pode permitir uma outra abertura. Porque é incrível a peça amarrada na produção, mas com gente muito viva, com aquela energia que vem de vocês, de todos os atores.
Chico - É interessante comparar essa produção que já nos assusta com os espetáculos americanos. Por exemplo, li outro dia a história de Evita, também um musical: lançaram o disco e quando virou sucesso resolveram montar a peça. O disco foi o bastão do ensaio, as músicas pegaram, tocaram no rádio. Conosco, por uma decisão nossa, aconteceu o contrário. Evitamos de lançar o disco antes para as músicas não ficarem banalizadas, e lançamos um espetáculo musical contrariando todas as receitas empresariais, com 90 por cento de novidade em termos de música. Há apenas uma canção conhecida: Terezinha. Acho que não existe ainda por parte da produção brasileira uma capacidade de previsão. Já fiz espetáculos em casa do tipo Canecão onde tem uma linha de produção rigorosa e eles sabem: mais de 20 por cento de músicas novas é fracasso. No caso dos americanos, isso está escrito em livros: uma peça teatral não estréia com menos de 80 por cento de músicas conhecidas. Por isso nossa produção não é tão organizada assim e podemos tirar proveito de vários níveis. Citei a música apenas como exemplo.
Zé Celso - E quem vai gravar o disco?
Chico - Ainda não sei, estou com vontade de usar algumas pessoas do elenco. Mas isso é outro campo, entra na área das gravadoras. Dentro de um esquema comercial o disco deveria, no mínimo ser lançado junto com a peça.
Folhetim - Mudando um pouco: como vocês entendem essa ligação entre a peça ser sobre a classe média e para a classe média?
Zé Celso - Acho que não é para a classe média, principalmente se for reforçada a linha de malandragem.
Zé Celso - Aí sim.
Luiz - Tá custando 120 e 150, vai passar para 180, talvez chegue a 200 cruzeiros.
Marieta - Imagina, é para a alta classe média.
Folhetim - Então como vocês sentiram esse retrato acontecer no espetáculo?
Chico - Olha, eu faço música para a classe média. Não acredito que um LP que eu faça seja comprado pelo povão.
Folhetim - Ele escuta no rádio.
Chico - E mesmo as rádios, se tomarmos o Brasil como ele é, e não Ipanema ou rua Augusta, você vai ver que na verdade eu não existo, não tenho impressão de existir... agora também há uma barreira intransponível aí. Quando fiz "Meus Caros Amigos", há dois anos, atingi uma vendagem como nunca havia acontecido com um disco meu - mais de 500 mil. Então é o público classe média que hoje consome. Quando eu era garoto eu podia comprar um disco por mês e se hoje eu fosse garoto poderia comprar vinte, meu pai em vez de um carro teria dois e fumaria o cigarro fino que o satisfaz... Para esse público aumentou a margem de consumo: vai mais ao teatro, compra mais LPs. Agora eu vou dizer: resolvi fazer um disco mais barato, um compacto simples com Milton Nascimento. Sabe o que acontece? Uma grande parte das lojas não vende compacto simples, não se interessa. Está tudo dirigido para a classe média e como o teatro pode fugir a isso? Não pode. Sei lá, há um milhão de pessoas no Brasil que podem comprar vinte discos, jogar cigarro fora, bater com o carro.
Folhetim - Quando falei disso queria discutir como a classe média sente o espetáculo.
Chico - A gente chega lá, queria levantar como chega ao povo, é muito importante colocar isso.
Folhetim - É, mas eu estava a fim de falar na relação da classe média com o espetáculo. Por exemplo o humor sexual da peça é meio machista, faz parte da moral instituída. Então o que isso provoca no espectador? Ele leva uma porradinha ou sai reafirmando seu sonho de ascensão que a própria peça ridiculariza?
Chico - É que se houver um distanciamento total da classe a que a peça se propõe ser vista não vai acontecer nada, nem o choque com outras coisas que estão na peça.
Zé Celso - No caso, é um espelho...
Chico - Dentro do que você está perguntando dá pra dizer o seguinte: a cena da Geni, o homossexual da peça, deixa as pessoas irritadas, elas reagem, acham longa. O homossexual leva o chefe de polícia ao desespero à custa de repetição, de chantagem. Essa relação é muito importante: na medida em que o público fica impaciente, ele se identifica com o sistema, com o chefe de polícia. Já me sugeriram cortar essa cena, acho que não. Porque aí o sujeito se identifica com o policial, mesmo que até então o considere um filho da mãe, um assassino. Nessa cena vira tudo, o espectador toma outra posição: é isso mesmo, tem mais é que bater nesse viado!
Zé Celso - O público também faz o espetáculo e isso depende dos atores, do conjunto. Ele vai, concede, brinca, deixa o público não se envolver, se divertir, consumir. Brinca com aquilo e dá outras coisas. Agora acho que está faltando esse outro lado: a coisa que vem do lado do ator, a malandragem. Uma luta com malandragem, elegante, e que não seja uma submissão a esse desejo do público, a esse consumo que ele quer fazer, que tanto vai agradar os produtores. Que vai dar dinheiro e status à peça que tanta gente vai ver e que na realidade vai dar dinheiro a todo mundo, mas que alguma coisa que poderia ter acontecido não aconteceu. Que vai e pode acontecer. Porque ao mesmo tempo esse trabalho interessa a um público que não vai pagar 120 cruzeiros. E é preciso arranjar um jeito dela andar, não é uma peça de gueto.
Marieta - Nesse esquema é difícil.
Luiz - Praticamente impossível.
Zé Celso - E se vocês quiserem fazer uma versão fixa da peça e sair com outra viajando?
Chico - Podemos estudar outras alternativas, isso não tinha me passado pela cabeça.
Marieta - Depende do que acontecer em termos de público, temos um contrato de três anos.
Folhetim - Ela está se preparando para ser um grande sucesso.
Chico - A peça só foi montada porque tem possibilidades de vir a ser um grande sucesso. Como sucesso médio não se mantém.
Luiz - Agora estou terminando de acertar o espetáculo - luz, som, melhorar certas cenas. Outro dia estava pensando quanta coisa mudou desde o começo, o elenco que propusemos e não conseguimos, a vontade de ir para o teatro Carlos Gomes, que também não deu. Somando tudo acabamos fazendo outra coisa.
Marieta - Precisamos ver como levar essa proposta mais explosiva adiante.
Zé Celso - Se começarem a acontecer coisas na área do teatro é possível. Esse espetáculo até pode dar a medida de como tudo funciona na grande produção, do que dá para fazer. É preciso descobrir uma forma qualquer para a integração de quem trabalha. Na Globo é domínio total, massacre individual do corpo do ator. E muitos atores de talento trocaram isso em nome de serem conhecidos e terem grana.
Folhetim - Qual o principal problema que vocês enfrentaram com a produção?
Luiz - Sentimos mais uma ausência de um diálogo nosso com toda essa relação burocrática.
Chico - Relação patronal. Patronal mesmo...
Zé Celso - Por exemplo, na Roda-viva o Chico era produtor e havia uma equipe encarregada que seguia exatamente o que queríamos. Estava ao nosso serviço.
Luiz - Quando pintou a idéia da peça nunca conversamos com os produtores sobre o caráter ideológico dela. Eles ficaram o tempo todo desligados do espetáculo, faziam a administração de uma suposição. Nós estávamos trabalhando só com elenco e foi um barato, um paraíso. Na hora que eles entraram para fazer a produção executiva das novas idéias foi um desencontro total, uma loucura. Não sabiam nada do que estávamos fazendo.
Folhetim - Chico, como você acompanhou o espetáculo?
Chico - Fui adaptando. O texto estava praticamente pronto e fui sentindo necessidade de adaptação em função de mil coisas - tempo principalmente. Cortei muito e alguns trechos ficaram até melhores, tanto que acabei mudando no texto do livro. Não para ficar igual ao teatro, há muita coisa no texto que não existe na peça.
Folhetim - Houve algum problema de censura com o espetáculo?
Chico - Não, no começo censuraram a peça toda aqui no Rio, mas depois em Brasília liberaram com cortes. Os cortes foram discutidos, alguns permaneceram, nada grave.
Zé Celso - Você acha que houve alguma mudança na censura?
Chico - A censura de Brasília e do Rio são diferentes. Aqui não aconteceu nada. E eles continuam na mesma, embora estejam mais submissos a Brasília. Lá já existe outra orientação, eles sabem que proibir esta peça não seria um bom negócio. No rio não sabem disso. Oficialmente não há abertura nenhuma para o teatro, quero deixar isso bem claro: tudo está sujeito a cortes, uma peça pode ser retirada de cartaz de um momento para outro sem qualquer explicação. Isso é evidente, uma mudança na atitude do censor diante da gente. Eles ainda têm autoridade nas mãos, mas percebem que essa autoridade já é frágil. Há dois anos a coisa era truculenta, hoje é quase temerosa.
Zé Celso - Hoje Calabar passaria?
Chico - Pelo menos não aconteceria o que aconteceu naquela época. Para fazer o que fizeram foi proibido divulgar o nome Calabar na imprensa, a capa do disco foi censurada. Hoje seria improvável.
Zé Celso - Chico, como você está em relação ao teatro, a música?
Chico - De um ano para cá toda a minha música está voltada para o teatro. O que não quer dizer que eu esteja largando a música, é uma saída para mim como compositor. Porque eu, até como contratado da Phonogran, deveria estar gravando um LP por ano. Como não me satisfaz, tenho que buscar outra coisa para pelo menos conciliar. É claro que o LP da peça não é o mais desejável pela gravadora, mas é uma opção, não posso só ficar fazendo música. É um trabalho solitário, abstrato.
Zé Celso - Como você compõe?
Chico - Neste momento só, eu não tenho disciplina, trabalho em equipe, tenho que mostrar serviço. Depois de uma semana o pessoal chega e cobra: como está aí, a cena tal como que ficou? Disco para mim não é problema, o principal é o desgaste no contato com o público, tudo o que precede uma apresentação. É importante saber lidar com o público, às vezes ele confunde, acha que você está falando para valer. No tempo mais preto que a gente viveu, na época do Médici, você cantava e ficava com aquela imagem de quem tem coragem de dizer. Não era nada disso, eu apenas consegui falar o negócio e estava dizendo aquilo até com uma certa distância. Também me envolvia algumas vezes. Então, podendo fazer tudo em casa, pensando, escrever e botar aquilo para os atores dizerem, é muito melhor. Acho que é melhor para mim e para minha relação com o público.
Folhetim - Como vocês estão sentindo o clima da platéia?
Marieta - Acho que a peça tem tido uma receptividade incrível, está pintando uma cumplicidade com nossa proposta, mesmo que ela não esteja completa, que ainda não aconteça de forma integral. Hoje senti isso mais nítido, de repente percebí a ligação: as pessoas estavam curtindo.
Folhetim - E a crítica?
Zé Celso - Todo o trabalho bom que vier agora vai ter críticas fortes, será massacrado. Acho importantíssimo uma briga ideológica com a crítica, a resposta.
Chico - Acho que a Ópera do malandro traz um negócio novo: ela está unindo forças aparentemente heterogêneas e sob a égide de uma produção tradicional. É um espetáculo que desperta automaticamente uma antipatia muito grande da crítica porque ela fica confusa. Nosso trabalho é mais ou menos uma ponte entre os grupos experimentais e esse teatro convencional. O Luiz, por exemplo é considerado um diretor maldito. Eu, como autor, vim de Gota d'água, que foi consagrada pela crítica tradicional contra a minha vontade e até contra a do Paulo Pontes. Ficou uma coisa meio tachada, que não tem nada a ver com essa marca do Luiz. De repente juntamos essas duas coisas com muita gente jovem no elenco, pessoas saindo de teatro infantil que estão praticamente estreando, misturadas com gente de televisão. Isso num teatro grande, com 700 lugares. A crítica fica confusa e fica contra por um ou outro motivo. A tendência que noto nas primeiras críticas é a tentativa de distinção entre o texto e o espetáculo, querem separar uma coisa que está ligada desde o início. Absurdo, fizemos tudo em conjunto.
Marieta - Em Roda-viva existiu a mesma reação.
Chico - Exato, lá era a imagem do garoto de olhos verdes, aquela coisa que existia e não é mais, junto com Zé Celso, um diretor também maldito. Isso, numa peça criada junto. É quase o caso de um casamento espúrio, condenado, que as pessoas não querem aceitar. Então, a crítica é preconcebida, faz uma publicidade ruim. O público não tem nada com isso, no máximo tem uma imagem minha, não vai ao teatro com idéias preconcebidas. Pode gostar ou não, por um motivo ou outro. Por isso é até da maior importância que seja uma produção profissional, com todos os defeitos, mas que assumo e não me arrependo. Se não fosse assim, não sei se haveria outra forma de montagem.
Zé Celso - Vocês, que estão mais dentro do teatro, acham que neste momento há condições para mudar, para unir mais as pessoas numa transa coletiva, de classe, de solidariedade?
Marieta - Tenho medo que seja difícil conseguir isso. As pessoas estão muito envolvidas em seus compromissos, na Globo, gravando suas novelas. Chegam no teatro estouradas, gravaram das sete da manhã às nove da noite.
Luiz - Hoje o ator brasileiro dança na televisão, dança em tudo, por uma falta de consenso. Não discute o esquema em que está fazendo teatro, porque está representando.
Marieta - Para vocês terem uma idéia, a produção acha que perdemos um mês nisso: conversando com discussões teóricas.
Zé Celso - Mas por enquanto a classe teatral não está refletindo o que acontece nas outras profissões?
Luiz - Além dos espetáculos, só se discute essa história da regulamentação da profissão do ator.
Chico - Escuta, toda essa história de televisão mudou muito o clima, a Rede Globo é o maior acontecimento teatral dos últimos anos. Se eles pudessem acabar com o teatro acabavam amanhã, ou fazendo um tipo de teatro que acham mais conveniente, ou não deixando os outros fazerem. Não é nenhuma picuinha, nem nada... Imagina como esse esquema de TV atrapalha a atividade do ator de teatro, desde o cara que fica exausto pelas gravações, até o outro com uma cabeça funcionando no esquema da televisão, que não faz novela, mas gostaria de fazer até para acabar com a insegurança e pagar o apartamento. Até no estilo de representar existe a escola da Globo. O tipo de reivindicação também é um no teatro e outro na TV. Normalmente, quem vai fazer uma peça escolhe se quer com atores da Globo ou não. Mas fazer com um elenco que não trabalhe em TV é impossível, pouquíssima gente faz.
Marieta - Mas é impraticável o ator sobreviver de teatro.
Chico - Claro, ninguém está colocando a culpa no ator. Quem faz teatro hoje é louco. O Ari Fontoura, por exemplo, que trabalha conosco, está na televisão. Ele começa a gravar às sete no fim do mundo, termina às cinco, vai correndo para o teatro para sair às duas da manhã e estar no dia seguinte às sete no fim do mundo outra vez. Ator também janta... Então, se insiste é porque gosta mesmo, é louco... E o ensaio? São 14 horas de trabalho ganhando a metade do salário!
Folhetim - Quanto ganha, em média, um ator da Ópera?
Luiz - Na filosofia do produtor, o pagamento é pelo tamanho dos papéis.
Chico - Se é em defesa dele posso dizer que há quem pague muito menos. Salários de fome mesmo, pior que de médico residente...
Folhetim - Qual é a proporção de pessoas da Globo na peça?
Luiz - Um terço.
Zé Celso - Mas acho legal essa mistura, mas dentro da realidade. No trabalho de vocês entra uma força, o público não vai lá para ver este ou aquele ator da Globo. Há inclusive uma força perante a produção, o sistema. A vibração é incrível. Tenho a impressão que alguma mudança pode também acontecer no teatro, como está havendo na sociedade toda.
Marieta - Os grupos experimentais são reflexo dessa transa, parece que há uns 300 só na Guanabara.
Zé Celso - É, eu saí daqui mal, agora estou forte. Não é minha pessoa que está forte, é o que eu represento e significo. Então, há uma conjuntura para avançar. E qualquer virada no teatro toca na Globo. Chegando nela chega tudo. Atualmente o teatro é até uma área mais privilegiada, no sentido que se tornou dominada pelo colonialismo e como ficou sufocada pela Globo, se tornou uma área política. Hoje em dia, o Brasil tem um enorme teatro político que é a Globo: todos os atores são utilizados como mascates. No caso de vocês, levantei no início que havia uma certa dominação na criação, uma escravidão imposta pelos produtores. Tentamos discutir por que isso acontece e dá para ter uma esperança, esse trabalho de vocês pode ser uma experiência maravilhosa.
Nunca vi o Chico tão falante. Nem li uma entrevista sua onde ele estivesse tão aberto. Quem já o entrevistou sabe disso, a gente faz uma pergunta e pensa que o Chico vai deslanchar na resposta. Mas de repente ele pára no meio e é preciso ficar puxando o assunto para conseguir uma lauda de texto no jornal. Quando faz letra de música, vai longe. Mas pra falar, não é fácil.
Nesta entrevista a Tarso de Castro ele foi, para dizer o mínimo, diferente. Vocês vão ver por quê. Chico vai contar, por exemplo, que quando era pequeno comungava todos os dias e, mais tarde, chegou a pertencer a um grupo chamado "ultra montanos", ligado à igreja conservadora.
Sua carolice era tanta que o próprio Sérgio Buarque de Hollanda, pai, mandou-o de castigo para um colégio interno em Minas. Não vou desmerecer os outros entrevistadores de Chico, mas o Tarso e ele só não são parceiros em sambas porque - acredito - o amigo felizmente não entende dessas coisas.
Aqui, encontramos um Chico à vontade. Contando que, quando era rapazinho, sonhava ser cantor de rádio e imitava a voz de João Gilberto: só que a voz, pasmem, saía como a de Juca Chaves.
Mais adiante, muito sério, ele fala de seus problemas com a Censura, dos direitos autorais que não recebeu e de política. Inclusive dos candidatos do MDB que apoiou. Enfim, a entrevista está aí.
Dirceu Soares
Tarso - Eu conheço demais você, então é uma loucura te entrevistar. Mas, vamos começar por besteira mesmo. Por exemplo, essa sua timidez. Ontem a gente estava no "Antonio´s", e quando você saiu de lá todo o mundo dizia assim: "Eu sempre soube que o Chico era muito tímido, e, ele ficou de porre cantando coisa aí".
Chico - De porre cantando o quê?
Tarso - (Cantando) - "O prédio tem tédio, não sei mais o quê? Então é o seguinte: eu queria saber de onde é que surgiu essa história de timidez ou foi você mesmo quem criou um pouco dessa história de timidez?
Chico - Não, não criei nada de timidez, eu sou realmente um pouco tímido.
Tarso - Isso é mentira. (risos)
Chico - É verdade (risos). Não no primeiro contato com gente que eu não conheço e tal eu não fico muito à vontade. Isso é verdade. Mas o negócio de timidez que apareceu era um negócio de palco mesmo, porque aí existe, né? E também não é timidez, é falta de graça mesmo, de estar lá no palco, entende? É claro que um pouco por causa da Bossa Nova, negócio de banquinho e violão, João Gilberto e tal, que esse negócio passou até a ser aceito. O sujeito não era obrigado a dançar, usar roupas extravagantes, a se exibir.
Tarso - Mas você atualmente está dançando...
Chico - Eu? (risos). Mas eu danço muito mal. Não sou dançarino, não tenho muita cintura pra esse negócio. Agora, isso se cristalizou um pouco, numa determinada faixa de músicos. Houve uma época em que as pessoas encaravam com estranheza gente assim com os baianos, né? Como o Caetano e Gil que, de repente, começaram a usar fantasias, a cantar e rebolar coisa que sempre fez parte da tradição de auditório, brasileiro na antiga Rádio Nacional, Blecaute, Marlene, Cauby Peixoto e tudo o mais. Já com a Bossa, parece que ficou de bom tom o sujeito ser tímido e simplesmente pegar o seu violão e cantar, em geral num tom intimista e tal. Eu entrei um pouquinho nesse barco. Pra mim era muito favorável, porque até hoje se quisesse dançar eu não saberia. Também não saberia botar uma roupa daquelas. As roupas que eu ponho são as roupas que eu uso normalmente. Tanto que quando encontro o Tom eu canto: "Meu consolo é você" porque ele usa bermuda com sandália e meia... Eu realmente sou um pouco displicente com esse negócio e tal e não saberia dançar bem. Assim, eu aproveitei, sem querer, um pouquinho, essa porta ai do modelo do sujeito tímido, que chega com seu violão, canta e pronto. Agora, é claro que eu não inventei isso. Isso foi o modelo que se adequava a meu temperamento. Não pense que eu gostaria muito de estar dançando, vestindo roupas coloridas e, na hora eu estivesse travestido de homem tímido, vestido normalmente e tal. Isso não é verdade.
Tarso - Mas, vem cá, você gostaria um pouco de dançar como Fred Astaire, né?
Chico - Bom, eu tentei... (risos). Quando fiz o filme eu pensei que fosse receber alguma indicação pro Oscar ou coisa parecida, como bailarino, mas surpreendentemente isso não aconteceu (risos).
Tarso - O que é que você achou de você como autor em "Quando o Carnaval Chegar"?
Chico - Péssimo. É sou péssimo ator, também.
Tarso - Aquela voltinha que você dá no Hotel, já lá em Petrópolis aquela voltinha foi triste (risos).
Chico - Tem uma cena ali que eu gosto, realmente, e nela parece que eu sou um bom ator. Quando eu vi fiquei surpreso. É uma cena que eu acho que o Cacá pegou do lixo. Eu acho que nessa cena eu estava distraído pensando outra coisa. Parece que eu estou triste, assim, olhando pro infinito, na praia uma cena lá no fim, que realmente estava bacana. Só que minha intenção não era essa, não fiz a cena com a idéia de estar olhando pro infinito não. Eu estava olhando pro céu e pensando que estava na hora de ir embora. Fiquei com a cara natural. É a única cena que eu acho que está natural dentro do filme inteiro.
Tarso - Mas me diga uma coisa, sem sacanagem agora. Acho que isso acontece com todo mundo: eu por exemplo, quando estou sozinho, começo a cantar pra mim e me acho com uma voz perfeita (risos) me acho um grande cantor. Agora, quem sabe você não se acha um grande ator, mal aproveitado?
Chico - Sim. Isso acontece. Inclusive, quando eu estava filmando , cheguei a ter essa ilusão. Agora, quando está cantando e acha que está cantando bem, você devia usar o gravador. No dia seguinte, sóbrio, você ouve. Foi isso o que aconteceu com o filme. Um mês depois eu fui ver a realidade.
Tarso - Você no começo de sua carreira imitou um pouco o João Gilberto. Quer dizer, imitou não, você teve uma influência muito forte do João Gilberto, não foi?
Chico - Não, eu imitei mesmo. Só imitava. Só fazia músicas, querendo imitar João Gilberto. E mal. Eu queria era fazer Bossa Nova. Eu me lembro que numa das primeiras vezes que eu fui cantar em público, eu fui parar num auditório da Rádio América, que ficava ali, onde é hoje o Conjunto Zarvos, eu acho que era por ali, num programa, que era programa de rádio ao vivo. Aí eu cheguei, entrei e os primeiros acordes que eu dei, a primeira vez que eu emiti a voz assim em público, um gaiato lá do fundo da platéia gritou: "Juca Chaves". Eu fiquei aborrecido porque eu queria imitar o João Gilberto e não o Juca Chaves. Eu não imitava direito. Quando eu comecei a pegar violão, tentar tocar violão, eu e um amigo meu a gente aprendeu de ouvido mesmo, de disco. Não foi nem de olho, era tentando imitar João Gilberto, imitar as letras de Vinícius.
Tarso - Você não estudou música em criança, estudou?
Chico - Não
Tarso - Você esteve na Faculdade de Arquitetura, onde você não conseguia fazer uma reta, segundo o teu pai mesmo disse. Mas como é que surgiu o negócio da música? Hoje, você lê música, por exemplo?
Chico - Não. Eu aprendi um pouquinho de música e leio muito mal. E lá por volta de 1967/68 foi uma época que eu me interessei muito por música. Aprendi alguma coisa. Agora, leitura, confesso que leio mal, não é o essencial pra mim. O mais importante é conhecer o meu instrumento, não é? Assim, o violão que eu tocava... até 67/68, isto é, bem no começo mesmo no tempo de "Pedro Pedreiro", "A Banda", e tal era bem pior.
Tarso - Qual foi mesmo a tua primeira música, a primeira mesmo?
Chico - Eram essas músicas que eu te falei, Tarso, que nem lembro mais. Felizmente. Essas músicas eu fazia tentando imitar a Bossa Nova. Mas eu, desde garoto, mesmo sem violão, aquela coisa, fazia paródia de música de Carnaval, aquelas coisas e tal. Eu sempre fui muito ligado à música. Eu gostava e tinha idéia de ser cantor de rádio, cantava atrás da porta. Não a música "Atrás da Porta", eu ficava atrás da porta e, não por timidez, mas pra parecer rádio, né, porque não tinha televisão. Parecia que estava saindo a voz do rádio do outro lado.
Tarso - Mas você já cantava música sua?
Chico - Eu inventava música, assim como escrevia, fazia versinho, jornal de colégio, e tal, fazia umas coisas assim. Mas, pra valer mesmo, achando que estava fazendo, só aconteceu quando peguei o violão. É muito difícil ser compositor na caixinha de fósforo, porque sempre é uma coisa que limita e limita bastante. Eu comecei a pegar o violão, foi com o negócio de Bossa Nova e aí eu fiz as primeiras músicas. Muito por incapacidade, também de não saber fazer e querer fazer. Queria fazer igual à "Insensatez" (risos). Um troço insensato à beça. Eram músicas que apareciam, assim. Eu já esqueci e tal. Aí, quando falam, a primeira música, mesmo pra valer e que foi gravada, foi o "Sonho de Carnaval". Passou pelo Festival, o Vandré cantou. "Sonho de um Carnaval" e "Pedro Pedreiro".
Tarso - Vocês se reuniam num bar perto da Faculdade, não é? Era o Toquinho, você, qual o primeiro grupo de músicos que estava com vocês?
Chico - O bar, pra falar a verdade, era dentro da Faculdade. Era no porão, onde era o grêmio. A gente levava garrafa de cachaça. Depois se estendeu lá pra Quitanda. A Quitanda era uma Quitanda que fazia batidinha de frutas e depois virou um bar. E o grupo lá na Faculdade não era assim de músicos, não. Era pessoal que se reunia pra beber mesmo e cantas músicas que todo o mundo cantasse juntos. Eram músicas de carnaval, ou aquelas músicas, como os primeiros sambas de Baden e Vinícius. Mais que Bossa. Já tinha passado um pouquinho o meu embalo pessoal pela Bossa Nova, entendeu? Era um negócio de todo o mundo cantar e tal, todo mundo tinha que cantar, coisa pra fora, não podia ser um negócio naquela base assim muito intimista.
Tarso - O João Gilberto já era teu cunhado?
Chico - Não
Tarso - O Vinícius freqüentava a tua casa?
Chico - Bom, o Vinícius eu já conhecia de muito tempo. O Vinícius é de 52, 53. Eu era garoto, 8 anos, quando o Vinícius já parecia de noite em casa. Me mandavam prapra cama e tal, eu ficava escondido na escada ouvindo. Eu tinha fascinação pelo Vinícius, aquelas músicas, as primeiras músicas do Vinícius. Isso é muito anterior. Anterior à Bossa Nova, inclusive.
Tarso - Nessa época você estava em dúvida se seria craque de futebol ou músico, não é? Porque você tem mania, joga mal pra burro e acha que é craque de futebol (risos).
Chico - Não, eu não acho que seja craque de futebol. Já fui um futuro craque de futebol, mas fui desviado da carreira.
Tarso - Vamos voltar para aquele barzinho. Quem é que aparecia quem é que sobrou daquele bar?
Chico - Não, o bar era um negócio de pessoal da Faculdade mesmo não era um negócio profissional, como falam.
Tarso - Mas quem foi o primeiro a trabalhar com você, foi o Toquinho mesmo.
Chico - Não. Ele veio depois. Quando começou o negócio de fazer música e tal, apareceu a possibilidade de fazer a primeira parte de um show Bossa Nova, que havia na Faculdade. Aí era Toquinho, era Taiguara, era a Ivete, era uma moça chamada Maria Lúcia, pessoal assim. Mas isso não tem nada a ver muito com a faculdade não.
Tarso - Ah, por falar em faculdade tem uma lenda aí, que eu sei que é mentira mas em todo o caso é bom falar e sei que você até se irrita: aquele negócio assim: "velho companheiro de Mackenzie"? De onde é que surgiu isso de que você era um homem do Mackenzie?
Chico - Não, eu nuca estudei lá. A única coisa que eu fazia no Mackenzie é que era caminho da Quitanda.
Tarso - Você não foi do Mackenzie?
Chico - Não, eu era da FAU. Eu tenho, aliás, o orgulho de ter sido o único sujeito na minha turma que foi aprovado na FAU e reprovado no Mackenzie. Na época, a gente fazia o vestibular nas duas Faculdades, mas, é claro, querendo passar na FAU porque além de ser considerada a melhor, era gratuita. Mesmo assim, o sujeito fazia o Mackenzie por via das dúvidas. Pelo Mackenzie eu só passava no caminho da Quitanda, justamente, porque tinha no banheiro, um jogo de crepe. Jogava-se muito crepe - seven eleven, não é? - então o Mackenzie era isso. E o Mackenzie ficou sendo depois um lugar onde havia shows de Bossa Nova e onde eu cantei algumas vezes na primeira parte. Mas não tem nada a ver com estudo. É dado e samba.
Tarso - Agora tem outra coisa que é bom esclarecer. Tem ainda muita gente que pensa um negócio, que eu também sei que não é verdade. Dizem "O Chico foi ligado - como é que chama essa organização de direita aí? - a TFP. Ou então "o Chico, quando era jovem era TFP". Eu sei que foi um professor de vocês, mas é bom esclarecer essas coisas.
Chico - Eu já esclareci isso em entrevistas e tal. Eu era muito católico. Tenho formação católica e, inclusive confesso que devo muito a um certo tipo de formação cristã progressista que marcou um pouco minha juventude. Agora, isso não tem nada a ver com cristão progressista. Isso, foi um episódio, quando eu tinha meus 14 ou 15 anos. Havia um grupo chamado "ultra montanos" de igreja conservadora mesmo. Ele podia se identificar hoje com esse bispo Lefevre e tal. E havia um professor que, junto com alguns alunos, fazia esse movimento. Inclusive esse professor saiu desse negócio.
Tarso - Como ele se chama?
Chico - Não, não vou dar o nome dele. Ele não tem nada mais a ver com isso. Esses leigos católicos, ultracatólicos, ultramontanos, mais tarde fundaram esse negócio de TFP. Agora tenho que te dizer o seguinte: na época não havia nem política nisso. Menor de 14 anos, nem está ligado nisso, né? O negócio era religioso. Então a gente, o que é que fazia? Comungava todos os dias. Então, os pais começaram a estranhar...
Tarso - Você comungava todos os dias?
Chico - Comungava todos os dias. Parei de jogar futebol, foi aí que trunquei a minha carreira de futebolista. Com 14 anos o sujeito estaria se encaminhando pra ser juvenil do Fluminense. Na época, eu morava em São Paulo, seria juvenil do São Paulo, quem sabe, ou uma coisa assim. Aí o garoto pára de jogar futebol, começa a ficar lendo uma porção de coisa e comungando todos os dias e tal. Isso aconteceu até que os pais foram achando estranho, porque gostam que o filho seja bom aluno, seja comportado, mas não tanto, não é? Aí desconfiam e tal. Isso durou alguns meses, até fui mandado pra Cataguases, em Minas, de castigo.
Tarso - É, porque o Sérgio parece que mandava todo o mundo pra Europa, não é? (risos), quando se irritava.
Chico - Aí, foi isso. Fui pro colégio interno e tal e passou. Agora, isso de dizer que foi TFP é um pouquinho puxado. E se tivesse sido, também, não teria preocupado de negar, entende? Agora, voltando ao negócio, estudei em escola de padre e tudo. Também não tenho vergonha de dizer isso, porque, inclusive, encontrei lá nessa escola um padre que me marcou muito em termos de conhecer miséria mesmo, entende? Era um negócio que hoje a gente olha de outro ponto-de-vista e tal e até acha muito ingênuo. Mas pra formação de um cara, assim, de um garoto, achei até que foi um negócio muito importante. Então, tinha um negócio chamado OAF - não sei se existe ainda - Organização de Auxílio Fraterno. A gente ia de noite, assim um grupo pequeno, com umas Kombis, à Estação da Luz, levar cobertor. A gente olha hoje, e pode achar até uma bobagem. Mas pra um cara como eu que morava ali no que seria Zona Sul de São Paulo, aliás, por coincidência também zona sul, e que estudou em colégio de menino rico, de repente ter essa missão, duas vezes por semana, era muito importante. Então a gente ia, chegava com aqueles cobertores e o pessoal, os mendigos, fugiam apavorados.
Tarso - Como é que é? Fugiam apavorados?
Chico - É claro. Você chegava com cobertor, eles desconfiavam. Tem um ditado que diz: "Esmola" - não sei como é, tem um negócio assim que não lembro, mas realmente fugiam mesmo. A gente, então, tinha que ir lá convencer e tal. Hoje não sou mais nada: não sou católico, não sou cristão, nem nada. Mas acho que devo um bocado a essa experiência, entende? Ela, pelo menos, me abriu os olhos para esse negócio, porque, normalmente, eu não estaria vendo nada disso. A gente está protegido, não é? Aqui, no Rio ou em São Paulo, o sujeito mora no bairro tal ou estuda no colégio tal. Seus amigos são filhos de família e a tendência é ir pra escola, pra faculdade, se formar e tal e não ter esse contato direto. E esse contato direto que eu tive naquela época, eu procuro ter sempre. Inclusive, eu comecei a gostar de mantê-los, entende? De conhecer, de ver essa gente, de conversar. Quando eles não fogem. Em geral eles fogem.
Tarso - A minha posição sempre foi um pouco anti-católica, embora eu seja de família católica, porque no tempo de estudante a gente tinha posições claras, de exigir uma série de coisas, e no Rio Grande, que é onde se concentra o maior racionarismo à Igreja católica, eles eram inimigos nossos. Tanto que a gente se aliou com um grupo parecido com o do Mackenzie, que é a mesma cadeia, não é? O Mackenzie, IPA. IE, quer dizer, uma cadeia americana de colégios. Mas hoje eu tenho uma visão boa da Igreja Católica, principalmente com Dom Paulo, em São Paulo. Qual é a sua visão da Igreja Católica hoje, mesmo estando desligado religiosamente.
Chico - Não, eu não sou mais ligado. Eu passei até por uma fase de anti-clericalismo brutal porque, quando saí daquele e fui pra Faculdade, parei de ver padre na minha frente e comecei a ter algumas outras experiências. Depois, com o tempo, a gente vai fazendo a média. Por exemplo se eu tivesse estudado num colégio de padres samaritanos...:
Tarso - Maristas.
Chico - Não, não eram. Os jesuítas eram do Colégio São Luís e tal. Era inclusive muito ligado a esse pessoal que eu te falei agora, os "ultramontanos". Eu devo dizer também que esse caso que aconteceu nessa escola, quando eles souberam do que se tratava, eles frearam na hora, inclusive houve demissões e tal, quer dizer, padres progressistas, entende?, que a gente pode identificar hoje com a linha do pensamento progressista como de Dom Paulo, Dom Helder. E padres por quem eu tenho a maior admiração. Ou leigos mesmos, como Alceu Amoroso Lima.
Tarso - Voltando a falar de música, tem muito jovem que é promessa há 10 anos, essas coisas, sem conseguir um caminho pra trabalhar, não é? Como é que você conseguiu começar a gravar começar a trabalhar?
Chico - Bom, demorou menos de 10 anos, mas também não foi assim da noite pro dia não. Agora, vou te dizer, se tivesse gravado antes teria gravado muita coisa ruim. No começo apareceram promessas frustadas de gravações. Havia um disco que a gente ia gravar na "Elenco", do Aluísio que era o máximo na época, era justamente o Toquinho...
Tarso - Capa branca.
Chico - É, o Capa Branca. Coisa assim que furava na última hora. Outro disco com o Scatena, que na época em São Paulo tinha negócio de disco e tal, também furou. Bom, aí o primeiro disco surgiu por causa da televisão. Na época, a TV Record, lá em São Paulo.
Tarso - Foi a partir do Festival?
Chico - Não, antes mesmo do festival. Programas, tipo Fino da Bossa e antes, um programa que eu não lembro, acho que chamava Primeira Audição. Tinha um pessoal lá que fazia isso: João Leão, Horácio Berlinck e tal, que era uma espécie de vestibular pra o Fino da Bossa, que a gente podia aparecer. Havia uma efervescência muito grande nesse meio, entende? Meio universitário, em todos os campos, não só na música. E a televisão, na época a TV Record, teve a sensibilidade de pegar esse pessoal, aproveitar e botar no programa. Não havia, claro, a máquina que existe hoje na televisão, que tem um centro de irradiação, que manda o que quer pelo Brasil inteiro.
Tarso - Você está falando da Globo?
Chico - Estou falando da Globo, é claro. Naquela época, o que estava acontecendo em São Paulo podia estar acontecendo diretamente em Curitiba, na Bahia, em Fortaleza, vamos dizer, e as televisões locais tinham um pouco mais de autonomia pra pegar e botar no ar o que estava acontecendo em termos de movimento cultural. Então, no caso da música, eles faziam os programas com a gente. Acho que hoje seria impossível, entendeu? Pode, neste momento, estar aparecendo lá em Fortaleza, por exemplo, um grupo novo, como era o nosso naquela época. Só que a televisão local, no lugar deles vai botar Kojak, entende? Não vai dar chance desse pessoal aparecer. O que vai acontecer? Esses caras, depois de 1 ou 2 anos, vão desistir. É evidente, como eu desistiria, por exemplo. Os que não desistem, vão tocar em boates, vão levar a vida de músico, uma vida muito amarga, E não vão se afirmar, vai ser muito difícil. Ou então vão levar 10 anos para aparecer como revelação. Como o que esta acontecendo agora. Volta e meia aparece. O Belchior, o sucesso de Belchior! Só que ele está há 10 anos batendo nesse negócio, não é, um garoto que apareceu agora. Ele podia ter aparecido há mais tempo. Então, a televisão tinha esse espaço. Tinha essa janela, para pôr o negócio que estava acontecendo na época. E estava acontecendo muita coisa. Borbulhava, o negócio dentro do ambiente universitário, então isso é evidente, não é? Na música, no teatro, no cinema. E havia oportunidade desse pessoal aparecer, então a gente começou a aparecer aí, quer dizer então, depois que eu comecei a cantar nesses shows e fazer alguns bicos já no Fino da Bossa, graças ao Manoel Carlos, e tal é que uma gravadora de São Paulo, a RGE, se interessou em gravar o meu disco. Ao mesmo tempo, apareceu o festival da TV Excelsior, que eu coloquei essa música "Sonho de um Carnaval" que o Vandré cantou e tal, ela se classificou.
Tarso - O Vandré cantou, é?
Chico - O Geraldo Vandré cantou.
Tarso - Mas você, nessa época, não se achava cantor?
Chico - Não. Nuca me achei cantor, nem estava pensando nisso, sabe? Outro dia eu estava lembrando com a Nara, como foi quando eu mostrei pra ela as minhas músicas. Eu estava muito contente que a Nara ia gravar três músicas no LP dela. Ao mesmo tempo, apareceu essa oportunidade de gravar esse compacto na RGE, fui lá e gravei, claro.
Tarso - Aliás, a Elis numa entrevista disse que você, um dia, foi a casa dela e mostrou-lhe todas as músicas. Ela não entendeu e daí a Nara aproveitou e pegou.
Chico - Não. Eu não me lembro de ter mostrado para Elis. Mas mostrei pra muita gente, é capaz de ter mostrado sim. Eu lembro uma vez de ter mostrado na casa do Pedrinho Mattar. Eu ia lá, é claro que eu não ia sozinho, porque como você sabe eu sou um tímido (risos).
Tarso - É mentira. Registre-se (risos)
Chico - Eu ia com o meu pessoal, o pessoal da FAU e tal. A gente ia, saia da Quitanda já meio menos tímido e ia pra casa de alguém, como a do Pedrino Mattar que eu estava cantando mostrar as músicas . Acontecia. Pode ser até que eu tenha mostrado para Elis.
Tarso - Você morava em São Paulo nessa época?
Chico - Morava.
Tarso - Vem cá, eu sei que não tem muita resposta pra isso, mas é um negócio curioso: o que tanta gente de música vê na Arquitetura? Qual é o negócio que existe numa Faculdade de Arquitetura que conduz à música? Há um grupo de músicos que saiu da Arquitetura. Você, por exemplo. Qual foi o processo?
Chico - É, não sei também. Já indaguei, já falei com o Tom sobre isso. Somos um grupo, não? As pessoas isoladas, de outras Faculdades, de outras épocas, que saíram da Arquitetura pra música. Tom Jobim, Carlinhos Lyra, Billy Blanco, uma porção de gente mesmo. O Maurício Tapajós, eu não sei não. Não sei fazer a ligação. Depois, eu nunca me senti um arquiteto, mesmo estudando arquitetura. E eu nunca fui, nunca seria um arquiteto.
Tarso - Aliás, você parece que é mesmo um fracasso na Arquitetura?
Chico - Eu era um fracasso, mas podia me formar direitinho. Passei o primeiro ano inteirinho, o segundo eu passei com umas dependências, no terceiro é que eu chutei pro alto.
Tarso - Você tinha um ponto de reunião. Todo mundo tinha ponto de reunião, quando o diretório era livre mesmo. Então você não acha que, a partir disso, havia uma formação política, uma formação cultural e musical para todo mundo?
Chico - É evidente. É uma coisa que não pode ser desligada da outra. Quer dizer, você está se formando lá, você é um sujeito de 20 anos, que está se formando para - bem ou mal - enfrentar essa barra aí e nisso, a formação a discussão política, tem um papel importantíssimo, não pode mesmo excluir, entende?
T- Pra você, qual foi a influência direta do diretório, tanto musical quanto politicamente, no seu caso pessoal?
Chico - As duas coisas eram muito ligadas. A importância que teve pra mim foi a discussão política mesmo. Havia diversas tendências lá e a gente se preocupava com isso. Eu nunca fui um sujeito ligado demais em política e tal, mas também não era desligado. Eu era ligado, mas não era uma coisa tão importante, pra mim. Mas, acho que é importante que haja essa discussão política enquanto a gente é moço, sabe? Porque se não depois não vai pegar mesmo. E você excluir isso da cabeça do sujeito é a mesma coisa que proibir a música, proibir o teatro, proibir a leitura, proibir o futebol, entende? Então, eu acho que corre perigo de estar aí se formando umas gerações com um pedaço a menos da cabeça. . Era isso. Assim, eu discutia, não pertencia a nenhum grupo específico. Aliás, eu conversava com gente das tendências mais diversas. Era um pouquinho gozador também. Mas de qualquer maneira, aquilo fazia parte da minha vida. E 64 foi um baque mesmo, não é? Realmente aí deu uma certa descrença nisso tudo, por algum tempo, por alguns anos, principalmente a decepção que a gente sentiu quando percebeu que não houve reação nenhuma. Então, a gente percebeu que estava sendo iludido o tempo todo e não estava sentindo.
Tarso - Logo depois, disso você se desligou da Faculdade ou levou algum tempo?
Chico - É, porque com 1964, além de tudo, a faculdade, que pra mim já não era muito atraente como perspectiva de profissão, começou a ficar uma chatice. Aí mudou tudo, não é? Fecharam o grêmio e começou a haver uma série de restrições dentro da faculdade também. Claro. Começou a haver uma série de restrições no país inteiro. E, isso, dentro da faculdade, ficou chato. Aí é que eu comecei a sair.
Tarso - Mas mesmo no grupo musical houve assim, como é que se deu, corte de gente? Nesse grupo ao qual você pertencia nessa ocasião? Por que muita gente se afastou nesta época da faculdade, reprimido, preso não sei o quê? No seu grupo mesmo aconteceu isso?
Chico - Não porque nessa época esse grupo que você fala não existia, pelo menos não existia profissionalmente.
Tarso - Não, eu não digo esse grupo que funcionava como música, pra se reunir e coisa?
Chico - Bom, eu fui me afastando um pouquinho desse grupo e, quer dizer, da faculdade, não é? Fui me desinteressando. É o que estou falando. Porque no fim, o que me prendia lá, não era o estudo da Arquitetura, mas esse lado, esse outro lado de que eu falei...
Tarso - Era a reunião mesmo ...
Chico - A reunião da brincadeira, de cachaça e da música e, daí, a discussão mesmo e o contato com as pessoas...
Tarso - Existia a liberdade...
Chico - E então o pessoal era essa e daquela tendência.. você discutia com este, com aquele e tal e havia... Isso é um troço vibrante, não é? De repente parou de haver. Então, pra mim, pessoalmente, perdeu todo o interesse. A não ser se eu estivesse dedicado a estudar Arquitetura mesmo eu continuasse lá e me formasse. Mas, esse outro lado todo, que é complemento da formação que em qualquer faculdade deve ter, acabou. Eu desisti. Aí virou aquele negócio, estudante estuda, não é? Eu já não estudava (risos), então ficou ruço por meu lado.
Tarso - Mas, passado esses anos em que a gente esteve percorrendo o país, juntos e tinha um negócio meio chato de estudante exigindo coisas, quer dizer, definições que não tinham nada a ver com nada, hoje, no seu contato com estudantes, qual é a sua impressão? Quando você vai ao interior sua impressão é a de que o estudante brasileiro está mais consciente?
Chico - Bom, eu não estou mais indo. Não tenho mais feito shows.
Tarso - Mas você é muito procurado por estudantes?
Chico - Sim, mas não pra fazer show.
Tarso - Pra conversar mesmo...
Chico - Eu estou achando que já, agora, nestes dois últimos anos, está aparecendo gente, não é? Estudantes muito mais conscientes, muito mais maduros do que há cinco anos atrás, quando era uma inércia, entende? Só se reuniam ou pra fazer shows, ou pra campeonato de futebol. Agora eles estão mais preocupados e estou sentindo também que, pelo menos, uma boa parte deles está mais amadurecida. Quer dizer: a experiência de 68 não foi a toa...
Tarso - Mas, vem cá, mudando totalmente o assunto, como é que você conseguiu entrar em sociedade arrecadadora? Naquela época estava mais fácil? Porque esse negócio de direito autoral, me parece, continua na mesma porcaria?
Chico - A gente quando está começando não sabe de nada, eu não sabia nem da existência da sociedade arrecadadora. Eu só fui entrar para sociedade, fui colocado na sociedade em 67, depois que a "Banda" tocou bastante no carnaval. Aquele negócio de direito do carnaval. Então, os direitos da própria "Banda", "Pedro Pedreiro", etc., eu nunca vi esse dinheiro. Aí é que eu fui conhecer o negócio. Eu vi outras pessoas que queriam entrar e que não entravam, entende? Não deixavam, porque era um negócio fechado essa sociedade. Tem uma fatia do bolo todo de direito autoral, das músicas que são executadas. Quer dizer, não interessa se, por exemplo, na época, a UBC tivesse todo compositor de sucesso dentro dela. Ela ia receber a mesma coisa como se não tivesse nenhum compositor de sucesso: o dinheiro é o mesmo pra se dividir, entende? Então, se você mete um sujeito lá, um sujeito com algum sucesso, é mais um pra dividir o bolo. Tinha compositores que queriam entrar e não podiam entrar e a música deles era executada. Era feita a arrecadação e distribuída por quem fazia parte das sociedades. Isso, pelo menos, mudou agora porque você não é mais obrigado a pertencer a nenhuma sociedade pra receber seu direito autoral.
Tarso - Mas, me parece que eles pegaram muita gente das velhas sociedades para trabalhar lá, não é?
Chico - Pegaram.
Tarso - Por exemplo, você sabe que o pessoal de escolas de samba em São Paulo, não recebe, não tem mais direito autoral?
Chico - É, isso é incrível. Eu estou sabendo aí que, em primeiro lugar, 80% do que se distribui é ainda segundo o critério antigo, que é o que estava viciado. De fato, eu acredito que seja muito difícil você mudar tudo da noite pro dia. Os outros 20%, que são pelo critério novo, são arrecadados conforme uma pesquisa realizada em algumas rádios só do Rio e de São Paulo. Eu, inclusive, sou beneficiado por isso. Mas, por exemplo, o compositor de música sertaneja, esse não vai receber um tostão disso porque não toca nessas rádios. Em geral são rádios chamadas classe. "A", classe "B" e tal, do Rio e de São Paulo, que não tocam música caipira. Não tocam mesmo. Esse pessoal não vai ver a cor do dinheiro.
Tarso - Você entrou, então em 67, nesse negócio e em 68 houve aquele movimento novo de repressão, aí você foi pra Itália. O que é que determinou realmente, a sua ida pra Itália?
Chico - O que determinou a minha ida à Itália foi o festival que havia lá. O problema não é a minha ida à Itália, o problema foi a minha não volta ao Brasil?
Tarso - Eu me lembro que havia realmente uma ameaça pairando sobre você. Mesmo que você negue, eu me lembro que havia uma ameaça de boca a boca que se falava muito.
Chico - Não, o que havia, que era bastante desagradável também, era o negócio de eu não poder sair sem avisar. Eu estava na mesma como se fosse uma prisão domiciliar, entende? Quer dizer, eu podia sair pra algum lugar, mas teria que pedir permissão antes, a cada coisa que eu fosse fazer. E prisão domiciliar não é prisão, como é que pode dizer? Dentro da cidade. Não pode sair, não podia ir a Petrópolis. Tinha que telefonar antes e tal. Então, o clima já não estava bom, aí...
Tarso - Mas isso foi gerado por quê?
Chico - Até agora eu não sei direito. Eles falavam mais era na peça "Roda Viva", na minha participação numa passeata. Era um clima de horror mesmo. E, depois, começou a aparecer uma série de ameaças, entende? E conselho pra eu não voltar.
Tarso - Houve conselhos pra não voltar?
Chico - Ah! Uma série de conselhos o tempo todo. Não houve, assim, nenhuma proibição oficial, houve conselhos que vinham de alguns lugares, que dava pra gente ficar preocupado, não é? Então eu não voltei, enquanto não tivesse uma certa garantia.
Tarso - Na Itália, como é que você conseguiu viver?
Chico - Bom, aí foi uma parada, não é? Eu vivia fazendo aqueles shows, o que não era nada cômodo, porque, quando eu cheguei tudo bem, fizeram uma festinha lá, não é? Saiu no jornal e tal. Compositor da "Banda" e tal. Mas, na medida em que eu fui ficando, eu deixava de ser o artista estrangeiro, que estava fazendo uma "tournée" ou coisa e tal. Era residente lá. E aí começava a ficar uma figura fácil, começam a desaparecer os convites. E, na época, realmente, não havia mercado pra minha música, quer dizer, pra música brasileira em geral. E aí eu fiquei lá nessa base: o que aparecia pra fazer eu tinha que fazer, Show onde quer que fosse. Em geral, fazia assim a primeira parte de show, como uma "tournée" pra defender, e junto com Toquinho. Era um troço terrível, porque ninguém sabia quem era aquele cara que estava tocando aquela música lá. Eles não entendiam nada, um cara cantando a "Rita", cantando "Pedro Pedreiro". Os caras ficavam olhando assim, parados, não sabiam que bicho era aquilo. Não estou falando de Roma, de Nápoles. A gente ia pra cidadezinhas mesmo, bem precárias. Um teatro que lotava quando ia Josephine Baker, com aquela população da cidade toda indo por teatro e a gente ficava lá enchendo lingüiça, tapando buraco.
Tarso - Você ganhava quanto por show?
Chico - Ah! não lembro. Eu fiquei 45 dias nessa "tournée" e era o justo viver. Eu estava com mulher e uma filha pequena em Roma. No fim da semana, eu corria com o dinheiro, botava no correio pra Roma. Era um negócio muito importante esse dinheiro. Uma vez, terminou a semana justamente em San remo. Havia o pagamento e tem cassino em San Remo, e se existe uma coisa que me deixa louco é a roleta, sabe? Mas, eu como já tinha jogado, eu me conheço e tal, eu sabia como é que a gente deve agir nessa situação. O que a gente faz é o seguinte: vai ao hotel, põe uma parte no cofre lá, e leva o dinheiro pra perder. Não tem perigo de perder mais do que pode. Mas, esse dia não dava tempo de ir antes pro hotel, porque o cassino fecha às duas horas da manhã, a gente recebia o dinheiro à meia-noite. Então, em vez de botar no cofre do hotel, botei o dinheiro, o leite das crianças, no bolso esquerdo e o que ficou no bolso direito eu podia perder todo...
Tarso - Ah, isso funciona muito (risos)
Chico - Aí eu estava vendo, desesperado, que eu ia perder a féria da semana inteira, não ia nem poder voltar no dia seguinte pra Roma. Porque aí vou jogando naquele negócio de dobrando, dobrando, dobrando...
Tarso - Um grande jogador é confiante pra ganhar, não é?
Chico - É. Sendo que no fim, o último dinheiro que eu tinha, que não deu pra dobrar, eu joguei, cerquei o 33, lembro até hoje, e deu. E daí eu recuperei pelo menos o que eu tinha jogado. Fiquei desesperado, porque, se não me mandasse acho que ia ter um problema lá em casa muito sério.
Tarso - E daí parou o jogo?
Chico - Parei de jogar às duas horas - ah, parei. Esse realmente foi um susto feio.
Tarso - Nessa mesma fase na Itália, tem um negócio que me irrita até hoje. Você tem a capacidade de esquecer um pouco mais do que eu tenho, mas certa parte da crítica que hoje te endeusa aí, (inclusive eu escrevi isso no Folhetim) te endeusa assim "Chico acabado e coisa", como é que você recebia essas notícias lá?
Chico - Recebia. Mas, é a mesma coisa que está se repetindo agora, só que está ao contrário, porque na época, vamos dizer, o Caetano e o Gil sofreram muito mais do que eu .Eles ficaram presos, uns dois meses presos, e foi uma loucura. Então, há sempre essa preocupação maniqueísta de colocar uns contra os outros. Eu lembro que tinha um negócio: artista preferido é Caetano /Gil, como se Gil fosse sobrenome de Caetano . E pior artista, nota zero, era pra mim, sempre, batata.
Tarso - Você lembra alguma nota zero?
Chico - Eu ficava chateado porque achava que podia até o sujeito gostar da música do Caetano e não gostar do Gil. Ou gostar da minha e gostar da do Gil e não gostar do Caetano, mas era uma coisa sempre assim colocada...
Tarso - Você lembra de um cara que deu nota zero? Você já me falou isso quem era? Você lembra, ou não?
Chico - Não.
Tarso - Um cara que te deu nota zero mesmo, foi do Pasquim até.
Chico - Não. Ganhei muita nota zero.
Tarso - Zero?
Chico - Zero, Zero mesmo (risos) redondinho. Então, havia isso, entendeu? Hoje, eu entendo, até fico vendo esse negócio que está havendo com Caetano e Gil. Continua sendo um sobrenome do outro, quando eles fazem coisas às vezes muito diferentes. São duas pessoas muito diferentes. E agora tudo é pau em cima deles. E quando me usam pra isso, eu acho meio desagradável. Inclusive, tive uma longa conversa com Caetano. Uma pessoa fantástica, eu gosto muito dele. Gosto do Gil também.
Tarso - Bom, teve a peça "Roda Viva" e teve coisa assim de pessoas dizerem que não era você mesmo que tinha feito e não sei o quê. Mas, tirando a peça, a música "Roda Viva" você não sentiu um negócio estranho na época? No festival não se entendeu "Roda Viva". Você lembra que teve uns negócios de "Roda Viva" ficar patinando, inclusive houve reação de um grupo contra "Roda Viva".
Chico - É aqui existia sempre, existia o ...
Tarso - Será que não havia um despreparo político para entender o que era o negócio de "Roda Viva" naquela época? Coisa que eu acho foi despertada depois, apesar de você, "Roda Viva" não cumpriu esse papel e hoje "Roda Viva" é um negócio entendido.
Chico - Mas eu acho que quando você está enquadrado dentro de um negócio desse, você não tem saída não. Eu lembro de uma música que eu fiz naquela época, que as pessoas vieram me pichar, pichar essa música, não sei o quê, achando que ela era, talvez até que fosse uma música reacionária, quando eu nunca fui um cara reacionário e que diz exatamente uma coisa do "O Que Será". A música chama-se "Bom Tempo". Ela diz a mesma coisa do "O Que Será", noutra linguagem e as pessoas vieram pichar porque era uma música otimista, uma coisa assim e tal. Realmente, porque você está enquadrado dentro de um negócio, eu era considerado conservador, reacionário não, conservador. Fatalista conservador, como diziam. E, de repente, agora, voltando ao negócio sério, o Caetano faz uma música como "Gente", que é uma música com conteúdo social muito evidente e tal e ninguém nota isso. Ninguém fala disso. "Gente não é pra morrer de fome, gente é pra luzir". Bonita à beça, não é? E de conteúdo social. E político.
Tarso - A mudança da crítica com você de ontem para hoje é um negócio incrível. Você mesmo já tinha dito isso. Não te dá um certo cansaço esse tipo de mudança das pessoas, assim tão fácil? Em minha opinião, muitos críticos usam você, um cara que escreve assim: "Caetano é um m..., mas o Chico é maravilhoso", etc. Você não sente um certo uso do seu nome pro cara explicar, o cara não em defesa, ele mesmo? O crítico, eu estou falando.
Chico - Sim. Tudo isso eu já falei. Já falei sobre isso. Esse negócio de crítica eu fiquei muito chateado naquela época e não me comove. Mesmo que seja a favor, entende? Porque quando a porrada vem ela vem brava, não é? Eu te contei aquele negócio do Lux Jornal?
Tarso - Eu ia falar nisso mesmo.
Chico - Pois é.
Tarso - Eu mesmo sempre pegava o Lux Jornal uma época e queria responder de madrugada, tudo, não é?
Chico - Não, isso aconteceu. Assim que eu cheguei, tinha uma pessoa que fazia isso pra mim. Eu nunca guardo nada, eu não tenho. Ele fazia porque, inclusive, ele precisava, você conheceu...
Tarso - Orestes Bastos?
Chico - Pois é, trabalhava com o Sérgio Porto. É um cara muito e tal, e ele fazia esse negócio pras pessoas e eu, tá bom, faz pra mim também tudo legal. E eu fui fazer a besteira de ler, quando cheguei ao Brasil, aquelas pilhas de recortes. E aí não dormi aquela noite. Fiquei lendo e queria responder pra todos os jornais ao mesmo tempo. Em vez disso eu pedi desculpas ao Orestes e dispensei o serviços dele. E não dá pro cara responder. Não dá, mesmo. Especialmente porque era a nível pessoal, entende? A nível pessoal.
Tarso - Mas, me diga uma coisa, eu lembro quando você chegou ao Rio, você foi morar lá na Prado Júnior, que era um local finíssimo, não é? Foi sua avó que escolheu, uma coisa assim, aliás, sua mãe, não é?
Chico - Foi a minha mãe, é.
Tarso - Copacabana, perto da praia, aí você...
Chico - Minha mãe chamava a rua Prado Júnior de rua Goulart, ainda, porque era do tempo, ela morou lá, inclusive, eram casas e tal, em 1910, mais ou menos; então ela: ah! Aluguei um apartamento ótimo na rua Goulart. Rua Goulart era a Prado Júnior, "Beco da Fome" (risos).
Tarso - Beco da Fome?
Chico - Beco da Fome.
Tarso - Estou me lembrando de umas histórias, agora. Por exemplo, você ia à Gôndola, porque a Gôndola estava na moda. E quem eram seus conselheiros musicais nessa época?
Chico - Espera aí, a Gôndola? Eu ia muito ao Cervantes.
Tarso - É, ou ao Cervantes, eu não me lembro. Mas me lembro o seguinte as pessoas que você achava importante do Rio, quais eram?
Chico - Não, eu estava muito deslocado aqui no Rio, então...
Tarso - Por exemplo, Sérgio Bittencourt, um dia, te aconselhou não vá?
Chico - Mas eles eram amigos do Franco Paulino. Franco Paulino era meu amigo de São Paulo. Franco Paulino e Luís Vergueiro, mais ou menos se mudaram para o Rio por essa época também. Quando eu cheguei, eu tinha que me situar, tinha que me localizar e aí, ou através dos diretores do show, que eram o Carvana e o Fontoura...
Tarso - Isso pode acontecer a qual quer um...
Chico - Pois é, ou então através das amizades desse pessoal lá de São Paulo. Eu não conhecia mesmo o ambiente aqui. O sujeito chega e fica completamente perdido. Mas aí...
Tarso - Daí, então, você olhava o Sérgio Bittencourt e outros como ídolos...
Chico - Não. Não exagera também.
Tarso - Bom, olha aqui e quando é que começou uma efetiva ação da censura com você. Foi com a peça "Roda Viva" mesmo?
Chico - Antes já houve o caso do Tamandaré, que o pessoal da Marinha não gostou. Depois foi a peça "Roda Viva".
Tarso - Como é que era exatamente Tamandaré?
Chico - "Tamandaré" era uma música brincadeira com a nota de um cruzeiro. A nota de um cruzeiro, na época, era Tamandaré, lembra? Então era uma brincadeira sobre a desvalorização da moeda, falando de Tamandaré, quer dizer, a desvalorização do próprio Marquês de Tamandaré. Depois foi "Roda Viva". Não havia censura prévia nessa época. Tanto que "Roda Viva" foi levada e tal. Houve um caso de pancadaria em São Paulo, houve caso de seqüestro lá no Rio Grande do Sul e depois ela foi proibida. Essa nossa censura prévia só na volta da Itália é que eu fui encontrar.
Tarso - A primeira censura acho que foi com o " Samba de Orly" não foi?
Chico - Não, essa foi bem depois. Essa eu já estava aqui. Na Itália eu...
Tarso - Não, eu digo, das músicas que você mandava pra cá?
Chico - Não, que eu mandei pra cá não houve censura, não. A censura braba começou depois de "Apesar de Você".
Tarso - Que foi uma música dedicada a uma moça, não é?
Chico - Claro.
Tarso - Uma namorada que você teve em São Paulo, não foi?
Chico - É, que era muito, muito mandona.
Tarso - Você não acha que depois se desenvolveu também um folclore em torno de você? Quer dizer, à medida, que um país um mal informado entende? É um negócio assim, que o Fernando Henrique Cardoso, inclusive, coloca como um negócio de - como é que chama? - "coisa de caipira mesmo". Então, você não acha que um pouco pelo próprio fato de uma alienação de grande parte da população, realmente em decorrência da desinformação imposta pelo Governo, você não acha que essas pessoas começaram a usar você como um folclore? Quer dizer: Chico é censurado de tudo, de repente ficar solidário com você é uma técnica para não ter quer fazer nada?
Chico - É, esse perigo existe, não é?
Tarso - Não é como você especialmente, com diversas pessoas, quer dizer, com Niemeyer, com Glauber, sei lá, como diversas pessoas.
Chico - Claro. Esse perigo existe é um pouquinho como aquele negócio de estudantes também, não é? De repente, o cara está servindo, está dando show pra estudantes e tal e aquele negócio que o fim serve pra satisfazer a consciência dessas pessoas e pra não fazer nada, também, né? Então isso é muito perigoso. E é perigoso pra quem, principalmente pra quem se entrega a isso, porque pode criar até uma autocomiseração, entende? Auto-complacência, que tem que ser evitada de qualquer maneira, entende? Eu, quando me queixo (sempre me queixei, eu acho que é obrigação a gente estar se queixando quando acontece caso de censura), não é pra chamar a atenção sobre mim, entende? É pra chamar a atenção sobre a censura. Isso é o que às pessoas as vezes confundem, achando que, não, você esta falando muito de censura e tal, está querendo se promover com a censura. Não, isso é uma besteira, quer dizer, isso pode ser até uma projeção que ele esteja fazendo, achando que o sujeito se promove com isso. A gente tem que denunciar a censura, porque tem que dificultar o trabalho dela. E, cada vez que se denunciar a censura, a gente está criando dificuldade, entende? Porque o sujeito não pode virar uma vítima. O sujeito não pode virar uma vítima da censura porque a opinião não vai aceitar, entende? Então, por exemplo, eu tenho a certeza que algumas músicas minhas, ou mesmo peças de teatros foram liberadas porque outras haviam sido proibidas e porque chiei e porque uma parte da imprensa me deu uma cobertura boa. Nesse sentido eu acho útil não um folclore em torno da censura, não, mas a denúncia do negócio, a comunicação disso, porque a coisa mais brutal que aconteceu nesse tempo todo de censura e a mais eficiente foi o caso da peça "Calabar", que eles proibiram e proibiram a divulgação da proibição, entende? Mas assim é fácil, é psicologia de canhão. Agora, quando pode ser denunciada, eu acho que tem que ser denunciada. Eu falo isso tudo também porque agora está um pouquinho melhor, a gente deve reconhecer, entende? Mas, nada garante a gente. A gente não tem nenhuma segurança de que amanhã não vá ficar igual a ontem ou pior.
Tarso - Olha, Alguma vez você conseguiu entender a censura? Um critério de censura?
Chico - Não, critério de censura não dá para entender. Não sei qual é. Não existe.
Tarso - Você toma muito cafezinho lá. Vai lá, eles te tratam bem e coisa?
Chico - Não, agora, não, mais recentemente eu não tenho sido chamado, não.
Tarso - Eu acho até que dá, só dá pontos a favor ser proibido pela censura. Mas, as músicas foram praticamente perdidas, não é? Com o tempo.
Chico - Muitas sim, Porque a música tem esse negócio imediato. Tem até um lado circunstancial, às vezes. É o caso da música que eu fiz pra Portugal que, se agora for liberada, não interessa mais. Não estou interessado em mandar o abraço. Porque eu fiz em determinado momento histórico. Agora, já não é a mesma coisa, entende? Isso acontece. Ou mesmo músicas que a gente não se interessa mais, porque você está trabalhando, está se renovando, até musicalmente. Às vezes não é nem questão da letra, não. Agora se eles liberarem "Tamandaré", que eu compus em 1965, por exemplo, aí está um caso, eu não vou gravar, porque não interessa, eu já não faço aquele tipo de música. A gente tem isso também. É um processo. Um disco vem depois do outro e não é coisa apanhada, assim. Você recria. O que interessa é fazer música nova e gravar música nova pra dar certo.
Tarso - Se houvesse a chance de liberação, qual é a música que você gravaria hoje no meio das proibidas? A que te interessa mais?
Chico - Olha, eu não tenho, não tenho essa perspectiva.
Tarso - "Cálice", por exemplo?
Chico - É, "Cálice" eu gravaria. Mas também não é tão importante pra mim isso agora. Porque eu já não estou mais preocupado com "Cálice". Se fosse tão importante, o que eu ia fazer era ir pra Portugal, por exemplo, e gravava lá e tinha essa música gravada, como eu fiz com "Tanto Mar", essa música que eu falei. Aliás, ela saiu, cumpriu o papel dela, só que no Brasil ninguém conhece. E saiu lá com letra e tudo.
Tarso - Agora, você acha que é possível uma etapa entre censura melhorada ou que a única luta que interessa é a anulação da censura? Você não acha que essa é a única posição correta que pode haver num país pra ser livre?
Chico - Claro. E quando eu digo que a censura está melhor agora do que estava antes, não estou agradecendo, nem nada, porque é uma conquista parcial nossa e não tem que estar satisfeito com isso. Por enquanto é uma conquista parcial e eu acho que liberdade não tem esse negócio de parcial, de ser pela metade, nem pode ser relativa.
Tarso - E o negócio de teatro? Há épocas em que você tem um negócio compulsivo. Você fica louco de repente. Eu lembro quando você começou a escrever "Fazenda Modelo", por exemplo. Foi a solução na hora que você estava danado da vida com todo o negócio de música, não foi? Você se dedica como solução e depois vira uma quase obsessão.
Chico - Não. O que aconteceu foi que eu, naquela época, fiquei realmente sem alternativa, sabe?
Tarso - Inclusive você tinha feito um conto, até que a gente discutiu o conto que você tinha feito.
Chico - É, inclusive desenvolvi alguma coisa que tinha escrito antes e tal. E não havia outra alternativa, porque eu tinha tido a peça "Calabar" proibida e logo em seguida o disco de um show que eu fiz ao vivo também proibido. E realmente, eu não estava em condições de gravar nada, nem de compor, entende? Eu estava vendo que qualquer coisa que eu fizesse, ia ser mais um desgaste, mais um trabalho à toa. Então eu parti pro livro. E aí parti mesmo, inteiro. Tempo integral e não fiz outra coisa o tempo todo. No fim do ano, a Phillips queria lançar um disco e aí é que houve aquela idéia daquele disco "Sinal Fechado", só com músicas de outros autores. Mas, inclusive, eu ia pro estúdio gravar com a cabeça no livro que estava em casa. Voltava pra Fazenda Modelo.
Tarso - Quem te apoiou muito nessa época foi o Julinho Adelaide, não é?
Chico - O Julinho Adelaide fez uma música aqui e ali.
Tarso - "Chama Ladrão"?
Chico - Fez "Chama Ladrão", fez.
Tarso - Devia ser pai dele, não é? O marido da Adelaide...
Chico - Fez "Você não gosta de mim" e não sei o que, não é? Heim?
Tarso - Devia ser o marido da Adelaide, não é?
Chico - Quem?
Tarso - O ladrão.
Chico - O ladrão, marido da Adelaide? (risos)
Tarso - Você não é freqüentador de teatro, você não gosta muito de teatro e escreve pro teatro, não é? Agora, suas peças você vai ver diversas vezes, não vai?
Chico - Não, não vou ver muito, não. Só vejo em tempo de ensaio, depois, não vejo mais. Mas eu também não gosto de música e faço (risos).
Tarso - Você escuta música quantas vezes por ano? Na sua casa, você sentar, pegar a vitrola, ligar e escutar.
Chico - Eu não escuto mesmo. É muito difícil eu fazer isso. Escuto assim quando sai um disco novo e tal.
Tarso - Seu?
Chico - Não, meu não. Meu só escuto a fatia na época de gravação mesmo de estúdio, naquela empolgação. Quando sai o disco, já com a capa e tudo, eu já não estou mais ligado nele. Agora, um disco assim do João Gilberto, com esse que saiu agora, disco do Tom Jobim, de Caetano, de Gil, de Milton, esses eu ouço. Mas não fico ouvindo o tempo todo. Eu não fico também fazendo música o tempo todo, como muita gente faz. Os compositores que eu considero mais compositores do que eu, são mais músicos do que eu, fazem, entende? Chegam na casa da pessoa estão sempre lá tirando o som e coisa e tal. Então eu tenho um outro lado que compensa um pouquinho, que é o lado mais ligado à letra, às palavras mesmo, né? que pode ser fazer letra de música, ou poder ser escrever um negócio, ou escrever para teatro. Até mesmo teatro o que me interessa mesmo é a parte literária dele.
Tarso - Prefere ler a ir ao teatro?
Chico - Eu prefiro ler. Eu entendo mais se eu ler do que seu for lá assistir. E eu tenho um negócio que renega mais uma vez a minha tentativa de fazer Arquitetura: uma falha na minha sensibilidade, eu não entendo nada do que é visual. Não sei se a peça está bem, se o cenário está bonito se não está, entende? essa coisa assim, se a montagem está assim ou assada, foge à minha capacidade de percepção.
Tarso - Cinema, por exemplo.
Chico - Ah! A luz não estava boa, não percebi. Ah! tinha luz? A gente vai assistir a um show que nem agora "Saltimbancos" e tal. No som eu percebi todas as falhas, luz eu nem sei onde é que estava. Cinema também não me atrai muito sabe.
Tarso - Qual é então, o passatempo seu?
Chico - Eu não tenho passatempo. Eu gosto de trabalhar mesmo. Ou jogar futebol, porque eu jogo muito bem, aliás, eu volto a afirmar.
Tarso - Há divergências (risos).
Chico - Ou um bate-papo, isso também é legal.
Tarso - Mas você tem um tipo de disciplina básico, que eu não consigo ter. Você consegue se fechar e trabalhar horas. E é engraçado, porque você é um vagabundo, quer dizer, eu te vejo como vagabundo, bebe, diz besteira e coisa. Como é que surge esse processo de disciplina, que eu quero saber, aliás, pra minha informação? (risos).
Chico - Eu tenho muita tendência à dispersão, o dia que passo sem fazer nada, não acho legal, não me sinto bem, entende? Tenho uma certa ansiedade de fazer as coisas, estar fazendo sempre. Mas isso é uma coisa. Esse negócio de disciplina que você está falando, é um negócio que eu me imponho a duras penas. Também não é verdade que eu fique trabalhando o tempo todo. Mas eu fico trancado aqui em frente da máquina, às vezes, com um papel branco.
Tarso - Você, nesse show do Milton em Três Pontas, resolveu "vou". Você tem um tipo de autodisciplina, que eu sei lá, deve ser um negócio meio de formação, quase de escola, não parece isso?
Chico - Não, porque eu, não era assim. Eu levava a vida como ela vinha. Mas, você por exemplo, você trabalha no jornal, você tem uma pauta lá, você tem um negócio pra fazer, você faz. Ou não faz (risos). Mas eu não tenho essa pauta na minha frente. É um trabalho que se você não se perguntar, não se educar, não se disciplinar um pouco você não vai fazer.
Tarso - Eu tenho a impressão seguinte, pra mim você é o melhor brasileiro, boneco (risos).
Chico - Aí!
Tarso - Você não se transformou neste músico maravilhoso, com base no jogo de palavras? Me parece que você tem uma paixão longa, já amadurecida, com os jogos de palavras. Deve ser um negócio do ginásio, quase infância.
Chico - Em primeiro lugar eu não sou poeta; eu faço letra de música e não poema..
Tarso - Não, mas espera aí, poeta não é um negócio assim, poeta tal, música tal, você vê...
Chico - Não, porque estão fazendo uma certa confusão em torno disso, entende? E até os poetas, poetas mesmo, estão ficando chateados com esse negócio. Parece que eu, Caetano e outros estamos assumindo uma postura de poeta. Não é isso. Agora, mais uma coisa pra reforçar isso que eu estou dizendo: eu tenho paixão mesmo pela palavra. Eu transo a palavra, quando estou fazendo música e letra, eu transo a palavra junto com a música. É um trabalho, é uma coisa só...
Tarso - Mas, você joga muito com a sonoridade da palavra. O que me parece é que a partir do som de algumas palavras, você cria a música. A música entra como auxiliar das palavras.
Chico - Eu acho que acontece ao contrário.
Tarso - É mesmo?
Chico - Normalmente acontece o contrário. Eu, a partir da sonoridade de uma música, a partir do mesmo, eu vou descobrir a palavra correspondente. Tanto que as minhas parcerias são quase todas fazendo letra pra músicas que estão prontas. Eu vou tentando colocar ali as palavras que parecem corresponder aqueles sons que estão ali.
Tarso - Agora vem cá, passemos a outra coisa: numa entrevista do Florestan Fernandes, há o seguinte: que este papo de cientista não pode fazer política é uma besteira, porque a política é uma decorrência, entendeu? De você, de vez em quando, dizem assim: "Não, o Chico não é político, o Chico é um músico". Você não acha que todo ser obrigatoriamente político, que esse papo de que sujeito não se mete em política é uma besteira, você não é uma pessoa claramente situada politicamente?
Chico - Eu sou, mas, eu não coloco isso assim como uma ordem, não. Eu não acho que o artista tenha que ser político necessariamente.
Tarso - Não, ele será político mesmo pela ausência quer dizer, a omissão é uma posição política.
Chico - Então aí que está outra coisa. Por exemplo, João Gilberto. Se você perguntar a ele quem é o presidente da República, ele não sabe. Não sabe mesmo. Agora, a arte dele é revolucionária, entendeu? E acaba tendo um papel político, sem que ele queira. Sem que ele saiba.
Tarso - Sim, mas você não entendeu. A minha tese é a seguinte; é que é proibido a quem quer que seja proibir o cara de participar ativamente de política.
Chico - Ah? Isso é claro. É proibido proibir. É evidente. O sujeito eu acho que até pra exercer a profissão de médico é bom que tenha uma visão política. A não ser que seja um sujeito tipo artista, entende, um tipo João Gilberto.
Tarso - Escuta, a TV Globo entendeu que é o Ministério da Informação de tudo o que há de pior no país. Quer dizer, qualquer restrição, a Globo está apoiando, tanto que houve aquele episódio do Festival Internacional da Canção, em que eles quase levaram vários compositores à cadeia. Bom, atualmente, já se fica conversando que você voltaria pra Globo, aquele papo. Então, eu acho bom deixar claro o seguinte: qual a razão do seu afastamento da Globo, especificamente?
Chico - Tem várias razões pra eu não estar na Globo. O que há de novo agora, é uma insistência por parte da Globo em colocar a mim e outras pessoas lá dentro, entende? E isso é uma coisa evidente que eles estão querendo computar, né? Não interessa mais excluir. Não interessa mais censurar. No momento, não interessa mais omitir o nome, como faziam tranqüilamente. Interessa muito mais cooptar, quer dizer, enquadrar fulano, fulano, e fulano, que não estão. Por que não estão na TV Globo? É a pergunta né? Vamos botar.
Tarso - Mas, de repente, parece uma questão de honra pra eles levar vocês pra lá.
Chico - Eu não tenho muita questão de honra com a TV Globo. Acho que esse valor não existe muito lá. Mas eu acho que há interesse, não só da Globo, mas de tudo o que ela representa, em colocar todo mundo dentro daquele quadrado.
Tarso - Quer dizer, fazer o monopólio mesmo também na área artística e coisa.
Chico - Claro. E fazer, dar a impressão de que não existe oposição no país. Oposição de nenhum nível. Não estou falando de MDB, nem de nada.
Tarso - Mas, falando no MDB, na campanha de 1974, você deu um apoio a certas pessoas. Quer dizer, não só com você, como o meu querido Érico Veríssimo, como uma série de pessoas. Um desses, por exemplo, que é Oscar Freire, eu posso citar. Almocei com ele outro dia e ele me defendeu numa posição das mais baixas que eu já conheci.
Chico - Marcos Freire.
Tarso - Marcos Freire.
Chico - Oscar Freire é uma rua (risos)
Tarso - Que conste. Eu estava almoçando com o Marcos Freire e ele disse assim. "Eu acho que nós devemos lutar pela anistia parcial, hoje". Acho que a posição é inteiramente incorreta. Agora, suponhamos o seguinte, esse MDB que virou conglomerado de divisões, quer dizer, o MDB não virou um partido, é oportunista mesmo. Você não acha que em certos casos há muito risco em se dar uma mão para essa gente?
Chico - Olha, toda posição, toda expressão de posição política, implica num risco, implica sempre num desgaste muito grande. Realmente é muito mais fácil você não se manifestar, nem dar apoio a ninguém e não criticar ninguém. É muito mais fácil. Agora, eu não conheço essa posição que você está falando, do Marcos Freire, mas na época me pareceu que valia a pena apoiar e, inclusive, o negócio foi feito porque é um amigo comum, né? Um sujeito lá de Recife, que é um amigo meu, em que eu confio, me pediu esse apoio. Eu dei entende? Mais tarde, alguém ligado ao Brossard, pediu a mesma coisa. Eu dei. No caso do Brossard, inclusive, havia o apoio de Érico Veríssimo. Eu fiquei pensando, vem cá?... o Brossard não é um homem da Revolução, que eles chamam, né? Um homem do golpe de 64. Mas, não, há mil nuanças aí, que eu às vezes nem consigo perceber direito. Então, de certa forma, você está se desgastando, na mesma medida que um sujeito, quando topa fazer um anúncio publicitário na televisão, está se desgastando, só que está recebendo dinheiro para isso. Nesse caso não está se recebendo e eu acho que a gente tem que evitar e brigar um pouco contra essa imagem puritana do artista, colocado lá no alto.
Tarso - Mas, olha aqui, te conheço há 150 anos...você não é e nunca foi ingênuo. Você sabe o que faz, quer dizer, você sabe a importância que você tem hoje dentro do país, né?
Chico - Bom, até certo ponto, Tarso, mas eu não tenho acesso a todas as informações que eu deveria ter. Agora, nesses casos, e às vezes eu posso até fazer besteira, mas eu atendo a pedidos de amigos meus, em que eu confio nesse sujeito, é um amigo meu. Está bem, porque se não é impraticável. Eu teria que estudar a vida desse cara, ver qual é a posição dele, conversar com ele. Depois, eu não acho que seja uma coisa tão importante assim, tão preciosa, para eu ficar valorizando assim, entende? Aí estou me tornando um garoto propaganda colocando o meu preço e... Agora, é claro que eu tenho uma série de restrições a todo esse negócio do MDB, a essa toda situação toda. Mas eu não posso nem ficar caindo no outro lado, que foi para onde eu caí também um pouquinho, logo depois de 64, que é a negação de tudo e a descrença em tudo. A gente procura dar um certo crédito e muitas vezes a gente sai decepcionado. Muitas vezes. Mas é uma atitude, pelo menos, generosa.
Tarso - Eu acho muito correta.
Chico - Com os riscos todos que ela inclui.
Tarso - Mas tem outro lado da coisa aí. Tem uns amigos seus que pedem pra você, pelo menos pediam, uma época, eu me lembro, amigos nossos, que pediam pra você: " toma mais cuidado, não se exponha tanto e coisa" não é verdade?
Chico - Existe isso?
Tarso - Mas melhorou esse negócio, né? Porque no início, há uns dois anos atrás, havia muito apelo. "Chico pára com isso, não provoque" e coisa. Hoje, parece que entenderam que você está na posição irreversível de ser uma pessoa correta, dizer as verdades que acha.
Chico - Não, e depois há outra coisa. Eu acho que uma posição um pouquinho mais violenta, que eu tinha há uns quatro anos atrás, aparentemente era fruto dum desespero, entende? Porque o sujeito desesperado, sem perspectiva nenhuma, não pode, nem parar pra pensar em agir prudentemente. Enquanto que agora a situação já é bastante diferente, acho que a gente está em condições de pensar um pouco nas coisas. Não vou dizer que estejamos com a faca e o queijo na mão, mas pelo menos a faca e o queijo não estão mais na mão de quem estava, entende? Não está tão claro assim o controle absoluto da situação pelas forças de repressão como estava há quatro anos atrás. Então, eu acho que é, inclusive, a hora de evitar brigas pessoais, entre quem mais ou menos se feche em torno de uma idéia democrática. É uma hora de ser menos intolerante e menos individualista.
Tarso - É mais você, agora por exemplo, neste momento, estão movendo campanhas contra Caetano, que você me falou e contra Glauber. A campanha contra Glauber é um negócio impressionante.
Chico - Incrível. Eu, inclusive, gostaria até de conversar com Glauber, porque eu acho que ele está equivocado. Acho mesmo, na posição dele. Mas, de qualquer maneira é um cara que não está acomodado, que está querendo entender o momento político brasileiro. O chato é que, atrás dele tem um cordão de gente menos preparada, que não parou pra pensar e sai dizendo besteira. Achando que está na mesma posição do Glauber.
Tarso - Não sei se você tem essa visão, mas há de um lado um grupo que é profissional do dedodurismo e que acusa outro grupo de ser entregue ao poder.
Chico - Mas não tem nada a ver.
Tarso - Quer dizer o processo que quase você sofreu quando você voltou entende? E teve sujeito que insinuou: "ah! então fez as pazes, né?
Chico - É, fui acusado disso mesmo.
Tarso - Então, de repente, é um crime você voltar pra sua pátria e abrir o debate. Quer dizer, hoje o Fernando Henrique diz assim: "Se me chamarem pra esse negócio de Escola Superior de Guerra, eu vou lá. Eu tenho muita coisa a dizer a eles, entendeu? Eu tenho muita coisa a dizer". Como o Florestan. Eu estou falando nesse grupo que é um grupo que me parece mais importante, mais lúcido deste país, que levanta e diz assim: "Não o problema não é discutir o problema eleitoral, é discutir os temas básicos de um país, né? E só são discutidos quando vem um "pacote de abril" essas coisas. Então, quer dizer, o Glauber bem ou mal abriu debate, entendeu? Que coincide, por acaso em alguns pontos com o Florestan. É claro que eu também discordo com alguma coisa do Glauber mas coincide naquele negócio: "militar e a burguesia não tem muita diferença, são formados tudo no mesmo esquema, nunca teve a audácia e a honradez de fazer uma revolução nacional mesmo, né? Então, essa acusação me parece, muito vaga, eu quero saber ponto-de-vista, esse negócio de acusação, se é possível esse negócio?
Chico - Essa é uma outra discussão muito longa. Mas eu acho que o Glauber se firmou numa posição que ele tinha quando a situação, quer dizer, quando os exemplos que ele tinha eram Alvarado, no Peru, e a jovem revolução portuguesa dos primeiros tempos. E agora já ele perdeu um pouquinho esse pé de apoio. Mas essa é uma longa discussão que é saudável existir, exatamente como eu estou dizendo.
Tarso - Com todo esse clima que se estabeleceu aqui, você não sente, de vez em quando, um profundo cansaço da mesquinharia que se estabeleceu? É um país que está debatendo coisas menores, você não sente isso no ar? De repente você olha a primeira página de um jornal e é uma besteira, é uma coisa assim, o que é que você lê, o que você consegue ler no jornal de hoje?
Chico - Essa impressão a gente tem muito quando chega de viagem. Depois a gente vai se acostumando, isso é que é mais triste. Você chega de uns 15 dias de um lugar onde haja assim uma abertura maior e você lê as coisas, então você volta pra cá, já vem naquele avião, tudo fechado, lê aquele jornal, a claustrofobia toma conta da gente.
Tarso - O que me impressiona muito é que se a gente comparar o que os membros do governo falavam há um ano atrás, às vezes nem um ano, às vezes há um mês atrás e o que fala hoje, mudou tudo, né? Então, por exemplo, o que seria o ministro da Cultura, eu digo o que seria, porque uma pessoa que admite a censura, etc. não me parece ministro da Cultura, o Sr. Ney Braga passou um tempo dizendo que queria aproximação com a classe artística e sei lá, entende? E, de repente, é o primeiro a sair na rua e dizer que não tem esse papo, que estudante precisa estudar, que artista é pra atuar e não sei o que. No caso dos músicos ele fez alguma tentativa de aproximação, de diálogo pra discutir coisas que favorecessem a classe?
Chico - Não, fez, inclusive, eu devo até dizer que nesse negócio todo a Som-Brás, que é uma organização de músicos e tal foi ouvida pelo Conselho de Direito Autoral, entende? Nós tivemos palavra lá dentro na mudança, por enquanto ainda precária, mas em todo caso uma mudança no sistema de arrecadação dos direitos autorais e tal. Outra coisa que ele não podia é resolver o problema da censura dos artistas, porque o problema da censura está sujeito a outro Ministério, entende? Aí ficou uma aproximação inútil, entende, pelo menos pros artistas. E acontece essas coisas, tipo da peça do Vianinha, né, "Rasga Coração", que é premiada pelo SNT, que é ligado ao MEC e proibida pela censura que é ligada ao Ministério da Justiça. E isso que está aí, entende? Isso é o retrato do que está acontecendo, inclusive, da inutilidade de sentar um diálogo com o Ministério da Educação e Cultura, no que se refere à censura.
Tarso - Então você discute com um ministério que pode até financiar um negócio, te ajudar e outro proíbe. Quer dizer o governo não tem a menor coerência nisso.
Chico - Não tem. De jeito nenhum.
Tarso - Um certo humorista "toc, toc, toc" uma vez diretamente na Veja, que um certo cantor usava a contestação pra se promover. Depois, na declaração no "Diário da Noite" e "Diário de São Paulo" citou você nominalmente. Então, isso me parece indignidade total. Insinuar isso, porque me parece que o disco censurado da prejuízo. Os seus discos mais visados, mais censurado, não deram prejuízos? No geral?
Chico - Ah! dá. Um disco como esse todo cortado, sem letra, não sei o que, ele não tem interesse. Isso eu já falei e há uma solidariedade das pessoas e tal, mas que pode até conferir um certo prestígio numa área bastante restrita ao artista, ao intelectual, entende? Como há a simpatia pelas pessoas que são condenadas, ou coisa. Isso existe mas é uma coisa muito pequena em relação à potencialidade de um disco que como esse último que eu lancei, que vendeu dez vezes mais do que aquele outro. Depois, o sujeito fica ligado, não ao trabalho que está fazendo, mas à censura, entende? Isso não é bom de jeito nenhum. Não dá camisa a ninguém, nem dá satisfação nenhuma, porque o sujeito é parado na rua; "hei, como é que vai a censura", em vez de perguntar pela sua música, entende? A gente quer é mostrar a música da gente.
Tarso - Como o jornal, a técnica que a censura usa e que em grande parte cola é a seguinte: levar o censor ao extremo de promover a auto-censura, quer dizer, criar um caso de auto-censura dentro dos jornais. No seu caso, você acha que eles conseguiram alguma coisa assim? Você quando está fazendo alguma música, sente um toque de auto-censura? Você tem um medo de não botar uma palavra? Você passa a se cuidar ao fazer uma música?
Chico - Não. Conscientemente, não. Não tenho consciência disso não. O que acontece também é que num país...
Tarso - Mas existe um clima de tensão, né? Você manda a música pra censura e fica com tensão, porque eu já vi você diversas vezes esperando resposta de Brasília, feito um louco. Com o advogado indo e vindo e não sei o que?
Chico - Claro, eu curto. Cada disco que você faz é a coisa mais importante. Tudo é a censura. Em seguida vem arranjo, estúdio, enfim, a coisa. A cabeça está pensando nisso. Você quer lançar o disco tal dia, não sei o que? Aí tem que gravar às vezes mais músicas, já pensando que pode ser censurado, entende? E tanto faz fazer o show quanto gravar um disco é um trabalho, hoje em dia, que desgasta muito o artista, porque tem essa ameaça constante da censura sem parar. Estou cansado de fazer show e quase não estou fazendo. Os poucos que eu vou fazer, na hora, tem problema de policia, de censura, do diabo.
Tarso - Agora, isso de você evitar show é um negócio mais pessoal do que da censura ou a censura tem uma influência grande nisso?
Chico - Não. Eu nunca vou dar esse gostinho à censura. Dizer que eu parei de fazer show por causa de problema de censura. Se bem que é, realmente, uma barra pesada. Sempre, em qualquer lugar que se vai, volta e meia, há intimação, gente no camarim, policial, aquela coisa, é um negócio muito chato. Mas não é por isso que eu dei essa parada, não.
Tarso - Eu já vi, várias vezes, dentro de um camarim seu a censura ir levar solidariedade. Quer dizer, ninguém tem culpa na censura, você não acha estranho isso?
Chico - É, eles estão sempre. Mas essa é a história do "você não gosta de mim e sua filha gosta". É claro que existe também, né? Eu já fui detido em casa, por um sujeito que no elevador pediu autógrafo pra filha. Isso acontece sem parar, né? Mas isso é inclusive a proteção que a gente tem.
Tarso - No seu último disco, "Meus Caros Amigos" que estourou mesmo foi o "O Que Será?", né? O pessoal do exterior o Paulo Francis mesmo falou que quando viu a música se debulhou em lágrimas e tudo. Imagine o Paulo Francis debulhando em lágrimas e tendo que tirar os óculos (risos). Como é a origem dessa parceria com o Milton? De repente deu certo o jogo de vozes de vocês, porque a Gal ia gravar essa música. Como é que começou mesmo essa história?
Chico - Isso começou muito por acaso. O problema é que a gravação era pro filme. E, na época, o diretor estava achando que não devia ser uma mulher a cantar. No fim, acabou sendo mulher. Na época, a idéia era para ser a Gal. Mas daí ele achou que talvez, problema de Gabriela e o problema de não parecer que era Dona Flor que estava cantando e queria, bom queria uma voz de homem.
Tarso - Estranho, é? A Sônia Braga não tem nada a ver com Gabriela.
Chico - Aí, o Milton apareceu no estúdio. Eu estava com o Francis, o Francis estava tocando piano e tal e aí ele se ligou na hora na música. O Milton, quando quer uma coisa, consegue. Haja visto esse show que ele levou em Três Pontas, cada um viajando 15 horas de carro, pra chegar lá e foi todo o mundo. Aí a gente se apaixonou pela idéia na hora, o Francis e eu. Nós estávamos fazendo o arranjo e ficou sendo o Milton. Aí houve outros problemas com relação ao filme. No fim a Simone gravou para o filme e a gente fez pro disco e o disco dele.
Tarso - Como é esse compacto que vocês vão lançar agora?
Chico - A gente resolveu fazer músicas junto. Ele tinha umas três músicas e eu pus letras em duas delas. Agora a gente vai gravar. Mas há um problema: ele é de uma gravadora e eu sou de outra. Assim, resolvemos produzir esse disco, pagar estúdio, pagar o que tiver que pagar e tal e depois ver como é que eles se entendem. A Oden e a Philips. Vão ter que se entender de alguma maneira e o disco vai sair.
Tarso - Como é o tratamento, as gravadoras exercem uma ditadura próxima do que os direitos autorais exerciam com os compositores?
Chico - O problema mais sério das gravadoras é com os cantores de vendagem média e pequena. É evidente que a gente que goza de situação privilegiada lá dentro tem uma série de regalias e não tem muito esse problema. Tanto que a gravação do "O Que Será" foi resolvida e essa vai ser resolvida também. Então, não é aí exatamente que você deve procurar o problema do relacionamento entre o artista e a gravadora.
Tarso - Mas, por exemplo, o que você gravou na RGE, não pode gravar noutra companhia nunca.
Chico - Isso é outra coisa. Eles praticamente, ficam donos da música, durante algum tempo, 10 ou 15 anos, uma coisa assim. Mas isso aí também é aquele negócio que eu estava falando também. Eu não tenho muito interesse pelo que já foi feito. Eu deveria estar preocupado aí porque é um negócio fora do natural, eu não ser dono das coisas que eu fiz, entende? Agora, eu também guardo, assim como não guardo revistas, recortes e tal, eu também não estou preocupado com as músicas que eu gravei há 10 anos atrás.
Versus - Que você me diz a seu respeito como compositor?
Chico - Eu a meu respeito? Sei não, esta e uma pergunta difícil de responder, pois isto implica em eu ter duas pessoas dentro de mim uma olhando para a outra achando bom ou achando ruim, e isto não vem a ser modéstia. Eu me interesso pelo trabalho que estou fazendo no momento e pelo menos por enquanto não tenho uma visão geral ou retrospectiva a meu respeito Surgiu uma proposta da Philips, há pouco sobre este assunto e eu quase caí na armadilha: seria fazer um disco traçando uma retrospectiva sobre o meu trabalho do tipo "Dez Anos Depois" que me pbrigaria a debruçar sobre a obra do compositor, teria que escolher, mexer, julgar. Eu achei um pouco com cara de museu ou de livro de memórias... Também é tentador porque existem músicas que eu fiz e quando ouço nem parecem minhas, gostaria de regravá-las ou seja, gravaria de novo melhor e com outras que não são muito conhecidas. Ao mesmo tempo considero perigoso cair de novo neste negócio.
Versus - Acredita que o processo criador esteja ligado a sensação de paz e contentamento ? Você trabalha melhor sob tensões emocionais ou a despeito delas ?
Chico - Eu não sou um estudioso do processo criador, posso falar da minha experiência pessoal que no caso é bastante distanciada desta idéia de "paz e contentamento". As minhas angústias propiciam mesmo uma predisposição para a criação. Cria-se um círculo vicioso; no momento que eu não estou criando fico angustiado. Eu já passei várias vezes por essa sensação, quer dizer, a fonte secou, daí o negócio brota, uma música pela outra.Todos os meus trabalhos são aparentados. eles têm sempre a ver um com o outro. nascem na mesma época.
E difícil eu fazer uma música agora e depois passar dois meses sem fazer Eu não tenho nenhuma sensação de paz se não estiver trabalhando se não estiver criando.
Versus - Seu processo de criação obedece a critérios, exige uma determinada técnica ?
Chico - Há um certo trabalho em que eu me disciplino um pouco, podendo até determinar um roteiro para executar. Por exemplo: uma peça de teatro em que eu esteja fazendo parceria ou uma peça que é uma adaptação de alguma coisa já existente ou mesmo uma música para uma peça ou filme; isto é um aspecto. O outro aspecto é a criação espontânea que é inerente ao meu trabalho como músico e não pode obedecer a roteiro nenhum, não pode obedecer aos planos da gravadora, que sempre procura lançar um disco por ano pois para ela é o ideal.
Existe o trabalho mais dirigido, mais disciplinado e no meu caso eu acho muito importante meu método ou a minha falta de método.
Se eu não tiver um trabalho tipo "encomenda", meu tempo fica mais pesado. É como se eu estivesse esperando cair do céu uma iluminação... É claro que isto vale para mim, para a minha falta de critério. Por exemplo eu vejo caras que passam o tempo todo com o violão criando, fazendo músicas. Não é o meu caso. Eu me enjôo depois de dez minutos com o violão; se não acontece nada, eu largo.
Versus - Seus escritos, suas composições têm alguma obrigação, comprometem-se com o público?
Chico - Posso me comprometer como não me comprometer, posso escrever uma peça que não tenha nada a ver com nada, posso escrever um vaudeville. Não existe esta obrigação. Se eu estiver preocupado em fazer um teatro que, como dizia o Paulo Pontes, reflita os problemas mais angustiantes das classes menos favorecidas. eu vou ter que estudar, vou ter que me dedicar muito mais do que se eu fosse fazer um samba sobre isto.
A obrigação, tenho que ter não para com o público mas para mim mesmo. Se eu quiser fazer um trabalho um pouquinho mais extenso mais profundo, no caso uma peça de teatro - que não acho que seja ,pior ou melhor do que um samba - eu vou ter que estudar tendo em vista um outro tipo de preocupação social.
Versus - Sobre o livro Fazenda Modelo, existem vantagens em escrever um. estória em forma de alegoria?
Chico - Em primeiro lugar não vejo vantagem nenhuma em escrever, a não ser quando existe uma necessidade. O livro que escrevi foi devido a uma necessidade de dizer muita coisa que não pode ser satisfeita com um LP. Aliás acredito que foi muito importante para o meu processo de criação, tanto que eu venho bebendo daquela fonte há muito tempo sem que ninguém se dê conta. Eu não vejo porque que você está falando deste livro como alegoria. O livro é uma fábula escrita com elementos muito reais até mesmo em nível de pecuária. Eu estudei aquilo tudo, nada é chutado. Não há nenhuma sutileza nissso. Existe um paralelo evidente entre um estábulo e - vamos dizer - um colégio.
Agora, te digo uma coisa: até recentemente escrever um livro era uma saída para muitos pois não havia - e não há - censura prévia, só agora que estão pegando a mania de apreender os livros mas isto posteriormente ao lançamento, e inclusive Calabar que é uma peça proibida, pôde ser lançado normalmente em forma de livro. Então a forma que eu escolhi não visava driblar ninguém, não havia a intenção de através de metáforas, driblar a censura.
Versus - Pode a palavra criar a desordem, ou seja, uma boa linguagem pode ser usada para fomentar um mau governo ou um mau governo é que distorce a linguagem?
Chico - Primeiro eu acho que devemos discutir o que é a desordem. Desordem é uma palavra que pode ser interpretada de várias maneiras. Desordem normalmente é indisciplina, é uma coisa perigosa dependendo a quem ou contra quem ela se destina e ao mesmo tempo a desordem é necessária, principalmente no campo das artes.
Eu não sei o que é ordem, a pergunta está levando a conversa para o problema da censura e eu sou contra a censura mesmo. Acho a censura inadmissível. A ordem é uma palavra que não rima com a arte, nem nunca vai rimar. Os artistas estão aí justamente para perturbar a ordem e nisso sempre estiveram - não adianta agora querer mudar a História. De alguma maneira, nós, os artistas, sempre vamos perturbar a ordem, e note que não estou falando nem da arte diretamente política, do tipo "canção de protesto".
João Gilberto cantando perturbou a ordem. Ele abalou as estruturas e nem sabe disto. Tanto é que bagunçando a ordem estabelecida ele gerou todo este pessoal que está fazendo música por aí, eu inclusive. O movimento tropicalista era um pouco isto, só que o movimento tropicalista era mais tipicitado. Tinha esta intenção. O João Gilberto nem tinha esta intenção. Inclusive o João já é quase um grande desconhecido do grande público aqui no Brasil. É uma pessoa que nunca teve simpatia da imprensa. Um incompreendido mesmo.
Eu coloquei este problema para não parecer um discurso estritamente político e anárquico. Não é nada disso.
Versus - As amputações que por vezes você se vê obrigado a fazer, não alteram a estrutura da composição, formalizando no compositor uma auto-censura?
Chico - Eu nunca faço isso. Quem faz são os censores, eu posso aceitar ou não. Exemplificando: na letra da música Partido Alto, fui obrigado a trocar a frase "eu nasci brasileiro" por "eu nasci batuqueiro". Eu achei que não alteraria a música e você só tem uma opção: ou acata e troca a palavra que o censor não gostou ou não sai nada da censura. Agora, quanto a gerar uma auto-censura pode ser; mas também o sujeito pode inclusive compor mais, já que tem a censura na boca. Existe também outro nível de auto-censura. Na medida em que o público se desacostuma a ouvir certas coisas ele não tem mais ouvido para certas palavras, certas colocações, o artista não coloca mais estas palavras, porque elas vão ser mal recebidas, mal digeridas, mal interpretadas. Não é por receio disto ou daquilo mas sim porque é preciso buscar outras palavras, outra linguagem.
Versus - E nesta procura de outra linguagem o artista não se violenta? Chico-Não, o que acontece é o surgimento de uma nação criada debaixo de censura, que fica inteiramente divorciada da realidade de outras nações. Você sai daqui - como ir para a Argentina até pouco tempo - vai para Portugal, por exemplo, e vê filmes que aqui são proibidos de ser vistos, aí você sente o absurdo que é esta multidão de pessoas estar sendo privadas de informações da maior importância.
Versus - A que você atribui este vazio que surgiu?
Chico - Para mim isto se deve a um período de perplexidade incrível de toda a intelectualidade brasileira que partiu Para o chamado "desbunde", que é um fenômeno natural facilmente explicável. Não há mistério nenhum nisto. Foi o resultado da porrada de 68. Um certo ceticismo que os levou a procurar outros valores até o misticismo, iluminações, vibrações.... Saídas individuais. Não há aqui nenhuma condenação, pois isto é a conseqüência natural de um estupor e é bem possível que aconteça de novo.
Versus - E a volta do interesse público à arte ligada à realidade nacional como pode ser explicada?
Chico - É uma arte que sempre existiu e que de repente se viu deslocada da realidade que cada um estava vivendo. Falar do povo? isto pegava mal, era de mau gosto porque lembrava fatos, e porque lembrava fracassos. Fracasso de todo um pensamento, de toda uma postura. Acontece que os pensamentos estão aí sempre, eles continuam existindo, nada disto é gratuito, não se está falando de povo à tôa, os problemas estão aí sempre. Não foram resolvidos. Passou um certo tempo em que falar destes problemas não estava pegando bem, não estava agradando. Os problemas continuaram existindo e foram retomados.
Temos que dizer que houve uma certa abertura por parte da censura em relação a 5 anos atrás, isto se nota na imprensa, teatro e música.
Versus - Qual o panorama da música popular brasileira atual: Teriam surgido novas formas de expressão?
Chico - Acho que os novos compositores têm uma dificuldade imensa, muito maior que a minha geração teve, é difícil ver aparecer gente nova, e quando aparece, se -você for verificar, já estava há 10 anos por aí e não pegou aquele trem. Perdeu o bonde, os festivais, etc.
Isto também é um reflexo de um fechamento. Eu estou falando de compositores que eu conheci. que eu vi nascer comigo, e que se formavam nas universidades porque havia toda uma discussão da realidade brasileira dentro das faculdades. e isto envolvia discussão política.
Versus - Quais eram e quais são atualmente seus autores preferidos?
Chico - Lia tudo que me caía nas mãos, mas principalmente os livros que meu pai tinha. Li muitos estrangeiros (europeus, etc.), depois parti para os brasileiros, e hoje não leio nada. Hoje leio jornal. Não leio com a intensidade de antes, e o que me interessa atualmente, mas quase como distração, são contistas como Sérgio Santana, Rubens Fonseca...
Dirigi minha literatura para o teatro, pois é por aí que continuarei meu trabalho. Pretendo fazer adaptação da ópera do."Mendigo", isto quer dizer: ler a ópera do Mendigo, ler a ópera Dos três vinténs de Brecht, onde a peça é baseada, ler tudo que se refere a época em que foi escrita a obra e finalmente ler tudo que se refere ao tempo em que estamos vivendo porque a intenção é refletir a época em que estamos vivendo.
Versus -Acredita que o teatro seja a melhor forma de expressão artística?
Chico - Não, não considero a melhor forma, pois toda a arte quando bem feita, quando pretende refletira realidade de seu tempo é importante e nenhuma arte pode se considerar superior a outra. Um faz jornal, outra faz música, outra faz teatro.
Eu tenho medo que a música me abandone já que estou me afastando dela; os compositores que eu conheço depois de certo tempo param de fazer suas músicas e vão pescar que nem Dorival Caymmi.
Às vezes eu me pergunto: porque os todos os compositores fazem suas músicas até seus trintas e tantos anos e depois começam a parar. Estou só exibindo a minha ignorância a respeito do assunto e a minha indagação. Enfim estou me voltando para o teatro por ser a forma que encontrei, pois se eu for só pescar eu fico aflito.
O teatro por não ser um trabalho solitário, por ser um trabalho de pessoas que buscam alguma coisa em comum, me atrai. Quando eu me meto em teatro, tenho em vista o teatro musical, ou seja, eu continuo transando música e o teatro é uma forma literária de transá-la. Eu acredito na importância da palavra em teatro, apesar de haver grupos que transmitam em forma de expressão corporal, a palavra ainda é mais importante ao teatro e ao cinema também.
Versus - Você viveu algum tempo no estrangeiro. Como foi o seu trabalho lá? Por que resolveu voltar?
Chico - Meu trabalho lá não foi grande coisa não, porque eu fui trabalhar em um país que não conhecia, cantar para um povo que eu não conhecia, cantar em linguagem que não conhecia. Depois de um ano fui perceber que não havia espaço para mim. Hoje em dia existe na Itália um interesse maior pela Música Popular Brasileira, mas naquele tempo não, era pura balela. Você chegava lá com um atabaque, um berimbau e isso era muito engraçado muito curioso mas tinha que ir embora depressa, não podia ficar morando lá com o atabaque, com o berimbau. Era um sentimento de exilado. Na realidade cada um está interessado em seu problema pessoal, querendo ganhar aquele dinheirinho para a sobrevivência. Em um país que não é o seu não dá vontade de fazer música, você está completamente fora, não está nem lá nem aqui. Bem que me tentei, cantei música italiana de maneira que dava para cantar. Cantei versões em italiano, mas não deu certo.
Na verdade eu estava lá como o autor da Banda, na verdade era isso. E o pessoal estava lá esperando que eu fizesse outras Bandas - coisa que não consegui fazer - nasceu um disco lá, mas que não deu certo. Fiz tudo que me mandaram fazer mas nada aconteceu. Tempo perdido
Pouquíssimo tempo depois eu já queria voltar, mas na época não era tão fácil não. Eu voltei só porque havia todo um esquema cercando esta volta. Eu tinha recomendação para não voltar. Surgiu um especial para televisão, contratos assinados. Com estas coisas eu me senti protegido.
Na Itália o pior era a sensação de provisório, eu estava morando em apartamento alugado por temporada. Nem a sensação de estar exilado, estas recomendações que eu tinha para não voltar nunca foram oficiais. Eu tinha porque voltar quando tudo recomendava o contrário, avisos, cartas....
Uma situação ingrata, porque até, talvez fosse mais agradável estar com uma proibição oficial do que algo velado. Se tivesse a certeza que não poderia voltar eu assinaria um contrato que me ocuparia por alguns anos, ou seja, no esquema europeu.
Agora, a falta de definição do exílio também era uma brincadeira, na verdade você está sabendo que está exilado para valer e não vai poder voltar tão cedo a teu país . Este é um sentimento dramático. A não ser com algumas exceções como Flávio Tavares que consegue ser correspondente do Estado e do Excelcior e que de repente está arriscado a ser seqüestrado. Não tem graça nenhuma ser exilado.
O exilado em país estanho é o cocô do cavalo do bandido.
Versus - Que influência teve a Europa em relação a criança?
Chico - Isso foi muito depois, eu traduzi Os Saltimbancos no ano passado.
Quanto à Europa, as influências, se é que tive alguma, foram quando muito mais moço. Não me interessa mais nada disto, a. não ser o que você traz por atavismo. A cultura clássica não me comove, não me interessa mais.
O meu interesse em relação à arte para as crianças surgiu a partir de minha experiência pessoal com os meus filhos. Notei que as crianças não têm o que ler, fora o que e lhes é empurrado pela televisão, não existe absolutamente nada. Inclusive há uma grande desconfiança por parte de todos os meios de produção em relação a coisas para criança. Resolvi então fazer este disco para criança, principalmente porque tinha toda uma base gravada. Duvido que se gastasse o que se gastou lá em pesquisa, em orquestra para criança.
Versus - Por que?
Chico - Quem vai se preocupar com isso? A televisão não, a televisão já tem tudo enlatado para criança. Faz uma coisa ou outra como O Sítio do pica-pau Amarelo, mas já tem toda uma massa de produtos infantis para importar
Eu não fui o primeiro a fazer isto, Vinícius fez um ou dois discos para crianças na Itália que não foram lançados no Brasil, este disco eu tinha aqui, e as crianças cantavam o disco do Vinícius em italiano. Aí apareceu o Bardotti com os Saltimbancos e eu me interessei em adaptar para o Brasil, inclusive como uma opção para elas não cantarem só músicas da novela, que não tem nada a ver com o mundo delas.
Versus - Este abandono a que está relegado a cultura da criança no Brasil não seria parte de algo maior, ou. seja, uma alienação da criança desde a infância?
Chico - Eu não sei bem, não pensei muito nisso. Estou vendo que as crianças começam desde cedo a assistir todas as novelas. Às 7 hs junta-se a família toda em torno da televisão, janta só diante da televisão, em suma, ingerem a televisão.
Versus -Porque o teatro infantil é relegado a segundo plano no Brasil, enquanto outras culturas sempre deram prioridade a este tipo de arte? Você leva os seus filhos ao teatro infantil?
Chico - Normalmente a peça infantil é a escória do teatro, utiliza-se de restos de cenário que estão nos bastidores, não podendo atrapalhar o cenário do teatro adulto.
Eu levo as minhas filhas ao teatro, e constato que são raras as peças boas, a ponto de minhas filhas me contarem coisas que é de se ficar revoltado, até elas ficaram revoltadas, chegando inclusive dizer que não queriam ir mais ao teatro. Por outro lado há peças boas, - um exemplo são as peças de Maria Clara Machado. Existe também o problema do preço, que no caso das crianças é mais grave que no caso dos adultos, pois a criança não vai sozinha ao teatro, vai a criança com a babá, ou seja, a alta classe média, mas aí você entra em uma discussão complicada sobre o teatro popular..
Na verdade o teatro popular hoje em dia no Brasil é a novela de televisão.
Um teatro lotado, não é necessariamente um teatro popular porque o negócio está tão saturado, as pessoas estão secas, estão querendo ver, querendo ouvir, querendo saber das coisas, querendo participar, porém isto não deve ser confundido como o teatro. Este teatro que está lotado é um teatro para a classe média.
Eu acho da maior importância que se leve esta arte para a classe média.
Acredito que não há condições de se fazer um teatro popular hoje no Brasil, então eu repito, o teatro popular hoje no Brasil é a TV, você pode me dizer que os teatros hoje estão mais cheios, e o que eu posso te responder é que a classe média está mais atenta a seus próprios problemas do que estava há cinco anos atrás.
O teatro popular no Brasil, como em qualuer país, corresponde aos interesses do poder; o teatro popular no Brasil é a TV Globo. Em 1964 a classe média toda fez aquelas célebres marchas, e hoje é diferente, bem diferente.
O fato dos teatros estarem lotados, o fato da peça Os Pequenos Burgueses, estar lotando sempre não é suficiente mas também não pode ser jogado fora.
Versus - A música O Cio Da Terra possui acordes muito similares às músicas latino americanas. Como surgiu esta composição conjunta de Chico e Milton?
Chico - Segundo o que eu sei, o Milton fez esta música pensando nos cantos de mulheres camponesas, que trabalham no Vale do Rio Doce. A música é muito complicada por possuir uma estrutura que a todo instante é quebrada, o ritmo é bastante solto. E isto. segundo o Milton, é pinto, perto do que ele ouviu por lá. São cantigas de trabalho, parece que eram mulheres que trabalhavam na colheita de algodão. A letra foi feita por mim pensando nisto. Cio Da Terra é uma canção de trabalho agrário.
Quanto a influência latino-americana, o Milton está transando muito com grupos chilenos. Eu tenho vontade de conhecer também esta música nova (para mim)
Versus - Você conhece as composições de Victor Jara?
Chico - Já ouvi alguma coisa, mas não conheço muito. Conheço a estória dele. Há pouco eu ouvi uma música muito bonita dele, com o grupo chileno Água. Esta música chama-se Te Recuerdo Amanda.
Versus - Existe um mito do Chico Buarque? Como você vê a reação durante um show teu?
Chico - O que é preciso entender é que quando o sujeito está no palco eles está mentindo. É um artista que está lá, e eu não quero emprestar o papel de mentiroso às coisas em que acredito. É meio paradoxal mas você, na hora em que está no palco, não está sentindo a emoção das coisas, dificilmente isto acontece. Se você for um bom ator dramático poderá sentir isto melhor Se Chico Buarque não fosse compositor, fosse um intérprete, talvez fosse mais fácil de enfrentar um palco. Quando começam a misturar a pessoa que está lá no palco com o virtual conteúdo das músicas, intenção das músicas, aí as coisas começam a ficar perigosas. Compromete até a criação pois de repente você está aceitando uma ligação que talvez não seja a sua, e se fôr, pior, pois você começa a aceitar a própria mistificação. Você de repente está assumindo uma posição política q e não vai poder assumir depois do show, ou vai, mais aí vai deixar de ser o compositor, o artista, para se tornar o cara que é sempre cobrado.
Versus - O que é ser cobrado?
Chico - Cobrado! eu digo, em todos os níveis. Agora mesmo está aí a campanha contra os "baianos". Uma campanha que eu acho totalmente injusta, que provoca as reações mais imprevistas. Se uma entrevista conduz muito para a cobrança política e ele está querendo se esquivar acaba fazendo declarações contrárias ao que pensa, ao que não pensa, nem se interessa. Resumindo, eu acho o trabalho deles de uma importância incrível, assim como o trabalho de Glauber Rocha em cinema.
O Glauber é um cara que se propõe a discutir política, eu acho pessoal mente que está equivocado - de qualquer maneira levanta uma poeira por aí, levanta discussão. Outros não querem se pronunciar sobre política e não se interessam, não lêem, mas não se pode negar o valor artístico por causa disto.
Versus - Acredito ser um direito de qualquer pessoa não se pronunciar sobre qualquer assunto. Agora é um direito a publicação das opiniões destas pessoas quando se pronunciam, seja contra ou a favor.
Chico - Você tem que perceber que isto já é uma resposta a um clima de provocação. Em 68 eu era considerado um alienado enquanto compositores declaradamente de direita apareceram como radicais de esquerda. Eu não sou jornalista, eu sou músico. Acho Gilberto Gil e Caetarto Veloso artistas da maior importância e acho uma pena que eles sejam queimados, sejam atacados do jeito que vem ocorrendo Você está defendendo o lado jornalístico e eu posso defender este lado. A radicalização é compreensível em momentos em que o sujeito não tem saída, não pode fazer nada. O momento não é este, o momento agora é outro. Quem está embananado são eles, não somos nós.
A hora da diplomacia chegou. Algumas cartas estão na mão, agora a divisão não pode ser nossa.
Mais um exemplo: aquele fato ocorrido no encerramento da SBPC, - eu não vi como foi na realidade mas vi no Jornal Nacional, que é o lugar ideal para saber o que é que o sistema quer que as pessoas vejam - eu vejo de repente falar de estudante - de estudante e SBPC, coisas que eram proibidíssimas, mostrando um cientista nervoso, uma platéia inquieta e sabotando o discurso. Isto é o prazer do sistema, é o orgasmo do sistema, mostrar uma cena destas.
Nao quero entrar no mérito porque porque foi, se foi no Tuquinha ou se foi no Tucão, o que importa é que foi mostrada uma divisão.Isto é péssimo.
Versus - Quanto a planos de trabalho. o que você pensa em fazer: principalmente em termos de teatro e música?
Chico - Um disco com o Milton Nascimento, por enquanto um compacto. Música para uma peça de Dias Gomes, chamada "O Rei de Ramos", música para uma peça do Antônio Callado chamada "Pedro Mico", adaptação de Armando Costa.
Tenho a idéia de um musical que estou desenvolvendo com o arquiteto chamado Roberto Cruz, adaptação para a "Ópera do Mendigo" - que é o que tenho de mais concreto agora. Preparação de um script para um show do MPB-4,junto com Armando Costa, e a música para o filme do Carvana "Se Segura Malandro" - eu acho que chega.
Chico
Há cinco anos ele não conseguia por na rua um disco inteiramente seu. E há quatro pelo menos não aparecia na tevê. Mas o público continua cada vez mais fiel a Chico. Seu especial feito pela TV Bandeirantes faz enorme sucesso e o disco Meus Caros Amigos já vendeu 300 mil cópias.
Coojornal - Você faz parte do grupo de músicos e compositores projetados no início da carreira pela TV, pelos festivais da Record de 65/66. Quase todos estão hoje afastados da televisão e você há quase três quatro anos não aparecia nos vídeos. Agora você voltou com programa especial feito pela Bandeirantes de São Paulo e que está passando em todo país com uma acolhida muito boa. Como foi sua volta?
Chico Buarque - Não foi assim uma volta programada. Eles me fizeram um convite que achei razoável. Eu já havia feito um programa em 73 com o Roberto de Oliveira, que dirigiu este agora. Foi tudo muito livre, muito à vontade. Gravaram 17 horas de bate-papo, de besteira para tirar uma hora e pouco de programa. Eu gostei muito, achei muito bom.
Coojornal - Significa que você fez as pazes com a TV?
Chico Buarque - Nunca estive brigado com a televisão, nunca disse que não transava TV. Não concordo com o monopólio, com o tipo de censura que a Globo andou fazendo, por exemplo. O que houve foi isso: estive cortado da televisão, em parte pela censura oficial em parte pela censura da Globo.
Coojornal - Mas agora, se a Globo convidar par um especial você topa?
Chico Buarque - Agora sou eu que não quero. Acho inadmissível uma censura, como a Globo andou exercendo por aí, principalmente numa época em que a censura oficial era braba.
Coojornal - Eles já lhe propuseram algo assim?
Chico Buarque - Sim, já propuseram, há mais de seis meses. Mas agora não me interessa, não estou a fim. Não acho que esteja perdendo alguma coisa com isso. Também não é nenhum ato heroíco não fazer TV Globo. Eu não gosto do que vejo lá. Não acredito que possa fazer um programa bom lá. Vejo gente boa lá, vejo e não gosto do resultado final.
Coojornal - Quem você viu lá que não foi bem?
Chico Buarque - Não vamos entrar nisso, não. Mas já vi coisas incríveis, apesar de bem intencionada às vezes.
Coojornal - A Globo é uma imensa máquina, você não teria o controle do programa como teve na Bandeirantes, é isso?
Chico Buarque - Não é controle, é confiança. É outra coisa. O Roberto Oliveira já tinha feito trabalho comigo, bem feito, honesto e eu me entreguei. Se ele quisesse fazer um programa muito ruim, me derrubando, ele podia fazer com o material que ele tinha lá, 17 horas de gravação. Era só escolher as mil coisas que não deram certo e pronto. Não estou dizendo que a Globo iria fazer uma coisa dessas comigo, isso é bobagem. Só que acho que eles não dariam o meu tempo. Eu vejo cantor na TV Globo assustado, não sei se é impressão minha, mas parece que o cara está assustado, se errar vai bater o gongo. Isso não é culpa de fulano ou de cicrano não. É um sistema que existe... doente.
Coojornal - E como escapar dele?
Chico Buarque - Acho que tem que haver concorrência. Tem coisas muitos ruins lá que todo mundo assiste porque não tem outra coisa. Isso tem que ser dito: com o que os outros estão fazendo aqui no Rio não dá para virar o botão, só para desligar.
Coojornal - Você acha que a concorrência aperfeiçoa...
Chico Buarque - Estou falando num país capitalista, nós estamos vivendo aqui. Acontece que de repente nós temos uma televisão com todos os defeitos da televisão estatal, aliados a todos os defeitos da televisão em livre iniciativa. Estamos com os defeitos e só os defeitos dos dois lados. Eu morei na Itália. Lá a televisão tem coisas chatas, por que é do Estado, não há concorrência. Mas quando você chega aqui e vê o volume de anúncios que nos jogam em cima, você leva um susto.
Coojornal - O que você acha desses caras, atores de novela, Chico Anísio e outros que estão gravando disco, faturando a força da Globo?
Chico Buarque - Acho que não é o caso de discutir os caras, o Chico Anísio ou outro porque gravou um disco. O caso é a Globo que está entrando na música como está entrando no teatro e no cinema e com um poder, uma máquina de promoção com a qual ninguém é capaz de competir. A dificuldade de se montar uma peça porque os atores estão todos vinculados à Globo e não podem trabalhar em determinados horários é uma coisa séria. E isso não é nada: a Globo começa entrar, indiretamente , em promoção de teatro e até em filme. Não é a Globo, é gente ligada a Globo. Então você vê lá num horário nobre, no Jornal Nacional a propaganda de uma peça. Jamais você vai conseguir fazer isso com Gota D'água, por exemplo, você não terá dinheiro para isso nunca. Quer dizer; o negócio é feito através de permuta, os artistas estão na produção, fazem um especial, não sei o quê acaba tendo o dedo da Globo nisso. Isso é muito grave por que no fim eles não tem o monopólio apenas da televisão. Estão entrando de sola na música. Você vai ver a lista do hit parade, é o tema da novela das 8, em primeiro lugar, segundo lugar é a faixa internacional da novela das 10...
Coojornal - Mas esse é o hit-parade da Globo...
Chico Buarque - Não, isso é verdade. Quem vende mais disco são eles mesmos, longe. São os discos de novela e nisso ai há mais sacanagem porque eles pegam uma coisa aqui outra ali, nas músicas internacionais então nem se fala. Essa novela do Mário Prata o Estúpido Cupido, não aparece Ray Connif, segundo o texto do Prata deveria ter a música do Ray Connif. Mas a Globo não chegou a um acordo com a gravadora dele, então não entrou Ray Connif. É assim. O que for mais barato eles pegam e vendem qualquer coisa. Põem discos com 29 faixas e você compra contente porque tem mais música. Mas as músicas vêm cortadas e estragam logo porque os sulcos são muito estreitos. É violentíssimo.
Coojornal - E como se combate isso?
Chico Buarque - Por enquanto o que se pode fazer é atacar no terreno de direito autoral. O grosso da arrecadação de direito autoral no Brasil é festinha no interior, a boate no Acre, a música que toca de fundo em restaurante, e a rádio e a televisão, que é o que tinha , que paga mesmo, é uma ninharia o que eles pagam. A TV Globo paga uma ninharia, enquanto nos Estados Unidos o que pagam o rádio e TV representa 85% do direito autoral arrecadado. Agora promete-se uma solução para este assunto, vamos ver.
Coojornal - Em que estágio está isso?
Chico Buarque - Bom, tem aí esse Conselho Nacional do Direito Autoral, cuja intenção é sanear esse negócio. Agora não é fácil. Aí também entra o poder das velhas sociedades arrecadadoras e não se pode subestimar o poder delas. Aí tem ligações que você não imagina.
Coojornal - E a Sombras? Como está a Sombras
Chico Buarque - A Sombra é um movimento de classe que por enquanto atua mais dentro do problema do direito autoral. Mas que pode vir a ser um órgão de classe atuante. Ainda não é porque é uma coisa muito difícil, com muita suspeita em cima, porque está mexendo numa caixa de marimbondo que são as velhas sociedades arrecadadoras de direito autoral. Então já vêm aquelas acusações todas de praxe, que é um bando de subversivos.
Coojornal - Quantos compositores já estão ligados à Sombra?
Chico Buarque - Não tenho os números. Ela tem um problema, por enquanto não pode atuar fora do Rio. Em São Paulo atua um pouquinho. Mas no Rio são pouquissímos os jovens compositores e músicos que não são ligados à Sombras. Ela ainda é precária, ainda não pode atender aos problemas de cada um. Mas só não está na Sombras quem está desinformado ou desiludido ou está ligado ao velho sistema de arrecadação de direito autoral.
Coojornal - O pessoal da Sombras teve algum problema, algum boicote nessa área do direito autoral?
Chico Buarque - Que eu saiba não. Mil ameacinhas. Tom Jobim mesmo recebeu telegrama; ele é da SBACEM, acho que ameaçando expulsão uma coisa assim. Eles têm uma porção de cláusulas dessas. Eu, por exemplo, já tinha recebido ameaça de expulsão dos quadros da UBC (União Brasileira de Compositores) há algum tempo, quando comecei a fazer música com o Tom Jobim mesmo e com outros compositores que não são da UBC. Hoje não existe mais esse problema. Mas existia isso. Você para fazer música com um parceiro tinha que pedir carteirinha para saber se ele era da mesma arrecadadora. Era um absurdo e caiu porque não convinha a eles mesmos e porque eu sou um cara com bastante nome, podia chiar e ia ficar mal. Quer dizer, neste nível se você me perguntar ou perguntar a outros compositores de mais nome se eles sofreram alguma pressão, não vai encontrar nada.
Coojornal - O problema são os menos conhecidos, os principiantes...
Chico Buarque - É. O problema não somos nós não. É aquele compositor que se passarem a mão, se mandarem embora, não vai acontecer nada. Não vai sair no Zózimo. E aí tem até crime.
Coojornal - Como crime?
Chico Buarque - Crime de morte. Teve um cara aí que levou bala porque falou mal da sociedade.
Coojornal - É uma caso com a Sica aqui no Rio, não? Como era o nome do cara?
Chico Buarque - Chamava-se Nelson, parece. É um compositor que a gente não conhece, evidentemente. Eles não vão dar um tiro no Tom Jobim.
Coojornal - Foi difícil a formação da Sombras?
Chico Buarque - Claro que foi. Eu me lembro: desde que me dou por compositor, de uns doze anos pra cá , há essa conversa de discutir direito autoral, de tentar reunir o pessoal e nunca deu certo. Isso por que a profissão condena a gente a um certo individualismo. É muito difícil juntar em torno de qualquer tema comum. A Sombras parecia ser mais uma tentativa destas e acabou dando certo, principalmente porque no momento dos escândalos, nas sociedades arrecadadoras estavam chegando a proporções policiais. Quando estava apenas se formando, era apenas discutida em bate-papos, começou a sofrer uma série de ataques das sociedades, alarmadas com a idéia, e isso acabou dando força à Sombras. Então, aquela idéia que era de uns 10 ou 12 caras acabou se ampliando. E hoje a Sombras tem voz, ela é ouvida em termos de direito autoral.
Coojornal - Seu último disco "Meus Caros Amigos" vendeu já 250 mil cópias. É uma coisa surpreendente. Como você explica: a música do Chico é que mudou ou aumentou a receptividade para o tipo de música que o Chico faz?
Chico Buarque - Primeiro: foi mais de 250 mil. É um pouco mais de 300 mil. E eu não sei explicar. Acho que conta o fato de que eu estava há muito tempo sem lançar um disco de coisas novas. Não entendo também nada disso: um disco de peça de teatro vende menos do que o disco que não é peça de teatro. Disco de filme não vende, é tabu.
Coojornal - Seus últimos discos que foram aquele da peça Calabar que acabou saindo como "Chico Canta" e o "Sinal Fechado" foram discos que representam uma descida na tua carreira justamente por causa do problema da censura. Este é o primeiro disco em que você conseguiu formar um repertório novo, não é?
Chico Buarque - É, outro dia nós tivemos uma coversa lá na companhia discutindo se vamos gravar ou não vamos gravar e vimos que menos do que todos esses discos aí, menos que "Sinal Fechado", que praticamente não tinha música minha, e o "Calabar", que saiu todo mutilado, foi o "Quando o Carnaval Chegar". E este é um disco de filme , mas é um disco de músicas quase todas minhas e ainda tinha Nara e Bethânia para reforçar. Vendeu 40 mil, que em comparação ao que eu vendo normalmente é muito pouco.
Coojornal - Desde quando não havia um disco inteiramente seu, assim como este "Meus Caros Amigos"?
Chico Buarque - É. Tinha esse disco do filme, com Nara e Bethânia, disco de show com o Caetano, o "Calabar", que saiu todo errado com a capa toda branca, o "Sinal Fechado", que era com músicas com músicas de outros compositores, o disco do show do Canecão com a Bethânia. Quer dizer, nada disso era um trabalho meu, normal. O último que foi assim um trabalho inteiramente meu, normal, foi "Construção" em 1971.
Coojornal - O momento atual , em que o país começa a redescobrir o exercício da crítica em todos os níveis, não seria propício para esse tipo de música sua. Isso não teria influído para chegar a esses 300 mil discos?
Chico Buarque - Eu já falei sobre isso. Mas se fosse pensar assim, um disco como "Calabar" teria tudo para ser um estrondo em vendagem. Acredito que haja 200 mil pessoas informadas neste país. Então, uma peça que foi proibida, foi proibida inclusive a divulgação da proibição dessa peça, e consegue sair um disco com uma músicas desta peça era uma coisa para, como as pessoas dizem, faturar em cima. Mas nada, foi um fracasso. Agora, reconheço que o momento atual talvez seja um pouco mais quente do que alguns anos, atrás, mais otimista no sentido de que as coisas podem melhorar. Está havendo uma mobilização muito maior, inclusive você vê isso em termos de espetáculos públicos. O Milton Nascimento lotando o Maracanãzinho, lotando três noites o Ibirapuera em São Paulo, em Porto Alegre também. E não é só isso: espetáculos com artistas menos conhecidos também estão levando muita gente. Acho que está havendo uma necessidade de reunião muito grande. Claro que o disco não tem muito a ver com isso que estou falando. Mas acho que é paralelo.
Coojornal - Que diferença você vê entre esse último disco e os outros discos seus?
Chico Buarque - Sem que eu tenha tramado nem nada, parece que ele está dentro de um espírito assim um pouco menos lamentoso do que "Calabar", por exemplo. È um negócio mais aberto, jogado para fora, mais otimista mesmo.
Coojornal - Você está mais otimista?
Chico Buarque - Não é otimista diante dos fatos, não. É que depois de cinco anos debaixo daquele peso todo da censura, quando abre qualquer portinha a gente extravasa, talvez até demais. Eu sou muito cauteloso. Mas acho que está havendo quase a necessidade de criar coisas mais vivas, mais brilhantes. Uma vontade mesmo de um desafogo. E de uma certa forma é preciso reconhecer que em termos de censura, principalmente a censura à imprensa, nós estamos melhor do que há três ou quatro anos atrás.
Coojornal - Teve uma época em que você mandava três músicas e duas eram cortadas. Como está a censura agora com você?
Chico Buarque - Bem, teve uma época em que havia, e isso foi declarado, havia um caso pessoal. E esse caso pessoal passou. Agora acho que estou igual aos outros, não há mais essa discriminação. Por que afinal, com isso eu estava sendo prejudicado mas, por outro lado, a gente tem que contar que as autoridades também se desgastam com essas coisas. A gente não pode subestimar a força delas, mas ao mesmo tempo tem que saber que elas se desgastam. Eu sentia isso pela manifestação das pessoas. Pessoas me perguntando, pessoas até com pena. Eu não ganhava nada com isso, mas eles perdem. Veja só: tenho certeza de que a peça Gota D'água foi muito difícil de liberar, mas eu tenho certeza que a proibição de Calabar contribuiu para liberar a Gota D'água. É um jogo que existe.
Coojornal - Você encara esse avanço como conquista ou concessão deles?
Chico Buarque - É uma conquista. De jeito nenhum acredito em concessão e não tenho nada a agradecer, muito pelo contrário...
Coojornal - Você falou uma coisa não muito sabida: Gota D'água teve problemas para liberar?
Chico Buarque - Ah, sim. Ela voltou com tantos cortes que não sobrava nada.
Coojornal - E aí, como você conseguiu liberar?
Chico Buarque - Foi o Paulo Pontes. Ele foi para Brasília, não sei os detalhes. Voltou ainda com vários cortes, mas que não afetaram o essencial da peça.
Coojornal - Paulo Pontes negociou com quem lá? Com parlamentares ou...
Chico Buarque - Não sei, não sei mesmo. Parlamentares eu acho que não, senão saberia. Essas coisas são muito discretas né.
Coojornal - Havia uma caso pessoal da censura contra você. Por que?
Chico Buarque - Não era só contra mim. Mas era principalmente porque eu chiava. Nunca perdi oportunidade de chiar.
Coojornal - Na posse do governo Geisel tocou música sua...
Chico Buarque - Como é isso...
Coojornal - Na festa da posse tocou uma fita com músicas suas.
Chico Buarque - Isso pode até ser distração. Mas eu acho que esta questão da censura não é somente isso porque hoje em dia ainda há censura. Só que da maneira que era ela não interessava mais ninguém. Só uma parcela mínima dentro da Arena aprova a censura do jeito que ela está sendo efetuada. Só a linha José Bonifácio, a linha Dinarte Mariz, porque um "liberal" da Arena já é contra. Não digo contra a censura como existe hoje, mas contra o que existia há quatro anos atrás, vamos dizer. Hoje se você perguntar para o Magalhães Pinto ele vai dizer que é contra um endurecimento da censura.
Coojornal - Mas não são os políticos nem a Arena que decidem sobre a censura...
Chico Buarque - É, mas não pode esquecer que eles estavam identificados e estão identificados com o que acontece aí. Não pode esquecer isso não.
Coojornal - Você foi censurado até nas entrelinhas, como foi o caso do "Apesar de Você".
Chico Buarque - Cada letra, cada música tem mil leituras, mesmo que eu não queira dar uma dupla interpretação ela tem uma interpretação múltipla. O público pode entender como quiser e eu acho até saudável que o público interprete uma música assim ou assado. Acontece que o censor não é público. E houve caso até de censura estética, do censor não liberar uma música por achar de mau gosto. No caso do "Apesar de Você" a censura do Rio liberou, depois levou um pau de Brasília. Houve censor ameaçado de perder o emprego. A música não tinha nada.
Coojornal - Como é essa história de censor perder o emprego?
Chico Buarque - Não, isso aconteceu. Tem até uma história que parece anedota mas é verídica. Um censor carioca disse para um amigo meu: "Pôxa, não dá. Se a gente libera uma música do Chico leva bronca de Brasília, se não libera leva bronca do Zózimo"(Nota da Redação: Zózimo Barroso, colunista social do jornal do Brasil, do Rio).
Coojornal - A existência da censura influía no teu ânimo? Ou melhor: como é que influía no teu trabalho essa perspectiva de ver esse trabalho, uma música, cortada pela censura?
Chico Buarque - Bem, influía mais em relação ao teatro do que à música. É chato você iniciar um trabalho achando que ia trabalhar meses em cima e a coisa não ia sair. Se bem que a própria repressão no caso era uma forma de atiçar.
Coojornal - E no caso da música?
Chico Buarque - Nunca me preocupei muito se ia ser proibida ou não. Sempre trabalhei normalmente.
Coojornal - Você tem muita coisa censurada e que não conseguiu liberar ainda? Seu "arquivo morto" é grande?
Chico Buarque - Tenho, mas não é questão de ficar guardando e pensando em amanhã ou depois liberar. Porque acho que a música tem o momento, a hora que foi feita, depois não me interessa mais. Não que ela tenha envelhecido, mas eu não vou ficar agora lamentando da música que foi feita há quatro anos atrás, que foi proibida e está na gaveta. Não estou nem preocupado em tentar liberar agora. Claro que se eu fizer uma música agora e ela for censurada talvez eu vá gravar em Portugal. Mas é no momento. A gente está animado, está fazendo ou acabou de fazer, e ela ser proibida é um baque, uma porrada. Mas a porrada que você levou quatro anos atrás já não dói tanto.
Coojornal - Daria um disco de censuradas? Quantas são?
Chico Buarque - Numericamente não são muitas, mas isso tem pouca importância . Porque também há mil formas de censura: há musica que não pode tocar no rádio, música que pode sair, depois não pode mais, a coisa é variada.
Coojornal - Aquele livro que você escreveu em 1974, "Fazenda Modelo", foi uma maneira de escapar ao bloqueio que você estava sofrendo na música?
Chico Buarque - Talvez tenha começado porque estava sem perspectiva de lançar um disco de músicas novas. Mas depois disso não. Durante o trabalho era aquilo que quis fazer mesmo, enquanto estive trabalhando não pensei mais nessas coisas. Aquilo era uma coisa que eu sempre pensei em fazer.
Coojornal - Mas foi uma coisa, digamos, inesperada porque você é um homem que lida mais com a música do que com a palavra, com teatro...
Chico Buarque - Não. Eu lido com a música e com a palavra e até lido mais com a palavra sem a música do que com a música sem a palavra. Mesmo antes de fazer música, nos tempos de colégio já escrevia. Sempre gostei muito. Então escrever para teatro era um fascínio para mim.
Coojornal - Então é correto quando dizem que você é mais letrista, trabalha melhor, se preocupa mais com a letra do que com a música?
Chico Buarque - Não, não acontece isso. Quando faço música e letra faço as duas coisas junto. Uma coisa leva vantagem sobre a outra não. Minha preocupação é de que fique uma coisa só e pra isso ás vezes tenho que cortar um pouco da música para encaixar com a letra, mas geralmente eu corto mais a letra do que a música. Talvez, é verdade porque eu tenho mais facilidade literária do que musical, tecnicamente falando. Para deixar bem claro não faço letra sem música e às vezes faço música sem letra. Excepcionalmente faço letra para a música e às vezes faço letra para a música de outra pessoa, como já fiz música para um poema de João Cabral. Mas não é o meu trabalho habitual esse.
Coojornal - No caso do livro, houve muitas restrições a ele do ponto de vista da crítica literária. O fato de você ser um compositor consagrado terá influido nisso? Quanto ao teatro há também essa reação?
Chico Buarque - Vai haver sempre uma restrição. Eu não sou considerado um dramaturgo e já escrevi três peças. Afinal, eu me firmei como compositor. E há outra coisa: há um certo tipo de crítica mais acadêmica, que gosta de ficar passando a mão na cabeça das pessoas. E é mais fácil passar a mão na cabeça do compositor do que do escritor. Aquela coisa, o compositor da Banda, tem mais é que ficar fazendo música. Mas é natural. Na época talvez tenha ficado mais magoado, mas depois passou.
Coojornal - As críticas desestimularam o Chico escritor?
Chico Buarque - Não. Eu vou escrever quando quiser. Quando escrevi aquele livro não queria saber de mais nada. Foi uma época maravilhosa, eu não queria saber de outra coisa. Daria tudo para entrar numa dessas outras vez, mas também não vou procurar como não procurei. Quando pintar pintou.
Coojornal - Você falou em conquista. Em que termos isso ocorreu?
Chico Buarque - Evidentemente, todo o trabalho da gente não teria qualquer ressonância maior se não fosse o preço do chuchu. Houve um tempo em que eles podiam ficar de picuinha com um compositor. Havia uma euforia por aí, classe média andava por aí com carros cheios de plásticos Meu Brasil Eu Te Amo e tudo mais. Então tinha um chato ou meia dúzia deles, que ficavam incomodando, era simples calar a boca deles. Agora os tempos são outros. Qualquer música minha não vale uma fila do feijão. Eu não sou a pessoa mais credenciada para analisar a situação toda, mas acho que a coisa está preta mesmo e do jeito que está não tem muita saída. Eu vejo na minha área o pessoal muito animado, com muita disposição para fazer coisas, acreditando que as coisas vão melhorar. Acontece que essa minha geração já viveu outra época de euforia muito grande também em 68 e vai sempre com o pé atrás.
Coojornal - Como você vê essas manifestações dos estudantes aí?
Chico Buarque - Pois é , a gente já enfrentou uma situação dessas, já viu não dar em nada, que há muitos riscos aí muito grandes. Mas ao mesmo tempo estou vendo que eles são muito menos porra louca do que em 68. A gente poderia imaginar que o garoto de hoje, que em 68 tinha 11 anos, não tivesse aprendido nada. Mas está se vendo que a experiência nunca é perdida.
Coojornal - Então não é correto dizer que o país formou uma geração de alienados?
Chico Buarque - É. Está vindo uma leva nova aí. Sem dor e também sem desbunde, já um pouquinho cansada da alienação. Outro dia fui ver uma peça, que não vou dizer qual é, mas senti um negócio que tinha antigamente que as pessoas falavam, um ranço de coisa política.Falavam nisso, não é? Em certos ambientes falar de reforma agrária era uma negócio de péssimo gosto. Como se o problema agrário do país tivesse sido resolvido, quando se parou da falar de reforma agrária. Então eu senti um ranço de desbunde, quer dizer, o desbunde está rançoso, o surfista, a gatinha. Os próprios caras da peça, que eu gostei afinal, se davam conta e procuravam dar a volta por cima. É a tal história do sonho que cansou e está havendo de novo uma ansiedade. Pelo menos está acabando a passividade, o "eu estou na minha" ou o "não quero nem saber".
Coojornal - Você não está mais fazendo shows ao vivo. Porque?
Chico Buarque - É. O último que fiz foi um show da Sombras, há um ano e meio mais ou menos. Eu nunca me senti bem em show assim. É uma coisa muito pessoal, eu entrava no palco já querendo chegar ao fim logo, me desgasta muito. É um esquema que não tenho vontade de encarar.
Coojornal - Alguns artistas usam esse contato direto com o público como um termômetro, uma maneira de ver como o público está reagindo ao seu trabalho. Você não sente falta disso?
Chico Buarque - Olha, na verdade esse entrosamento com o público não me acrescenta nada. Em primeiro lugar por aquilo que já falei, eu fazia o show querendo terminar. Depois porque não compensa, aquilo me consome muito, consome os nervos, consome a cabeça. É claro que tem momentos bons, que você fica contente, fica envaidecido e tal. Mas eu prefiro ir a São Paulo e ver a Gota D'água, ver o público julgando o meu trabalho sem precisar estar lá no palco. Há artistas que entram no palco e aquilo faz parte da vida deles e aquela transmissão, aquele entrosamento, faz com que eles cresçam, se transformem. É o caso da da Bethânia, do Milton Nascimento, não é o meu caso.
Coojornal - Quer dizer: o show foi um meio que usaste para chegar ao público numa época em que isso era impedido ou dificultado em outros meios.
Chico Buarque - É, foi o tempo dos circuitos, em que eu saí por aí pelo Brasil inteiro. Não tinha outra saída. E aí junta tudo, até o problema econômico. Você não toca no rádio, não aparece na TV, os discos também não estão vendendo, junta tudo e aí você não tem dinheiro pra viver. Tem então que sair para isso.
Coojornal - Então os shows foram também um meio de você fugir a pressão econômica?
Chico Buarque - Eu não sei até se a pressão econômica foi proposital. Mas é o resultado de tudo. Se você está fechado para rádio, televisão, e mesmo para jornal, como foi o caso de Calabar, que não foi censura... A censura veio depois. O que fizeram foi impor falência à Companhia e jornais não podiam dizer.
Coojornal - Havia então pressões extra-censura, digamos?
Chico Buarque - O que a gente sente é que na época mais negra, mais dura, não precisava de uma ordem expressa do governo para apertar o sujeito. Aquelas proibições de rádio, na TV Globo aqui no Rio e várias rádios não eram por ordens vindas de Brasília. São coisas mais realistas que o Rei, dos puxa-sacos, isso em todos os níveis. Me lembro por exemplo que ia pegar um negócio uma vez, um negócio que até não era uma coisa boa. Era um disquinho que uma companhia de aviação queria distribuir entre seus clientes. Não era um jingle. Eu ia fazer a tradução de uma músicas americanas, se não me engano. Ia fazer aquilo para ganhar uma graninha. Mas quando o presidente da tal companhia soube que era eu disse não, que de maneira nenhuma. Deu um pulo: "Isso pode criar problemas com a Aeronáutica".
Coojornal - Em compensação, aquela imobilária de São Paulo, a Clineu Rocha, usou com a maior cara de pau uma música tua como jingle...
Chico Buarque - Mas ela foi a falência como castigo (risos)
Coojornal - Como foi mesmo essa história da Clineu Rocha?
Chico Buarque - Não, foi um negócio de dez anos atrás. Eu fiz uma musiquinha, gravei com violão assim, que era para essa empresa distribuir aos sue clientes de brinde no Natal. Mas estava escrito, não era gravação comercial, não era para tocar na rádio nem nada. Agora há dois anos atrás usaram no Natal como jingle da firma. Aí fui lá e processei e eles me deram a grana porque era um abuso.
Coojornal - Aquela história com a Banda foi semelhante?
Chico Buarque - Ah, essa nota que saiu no jornal há pouco. Não era de agora, não era daquela época. Eu vi que a Banda estava tocando como fundo para uma convocação do Serviço Militar, estava há bastante tempo. Ai fui me irritando, me irritando e mandei a carta. Mandei dizer que estava muito surpreso, que nunca pensei que a Banda fosse uma banda para chamar para o Serviço Militar, nem era uma banda militar, era uma bandinha de interior.
Coojornal - Qual foi resposta?
Chico Buarque - Nenhuma. Eu li no jornal a explicação que davam de que aquilo não era com eles, era com a firma encarregada da propaganda, não era a Assessoria da Presidência da República. Mas tiraram a música. E deixei assim.
Coojornal - E os planos? Você tem coisas projetadas já?
Chico Buarque - Não faço planos a longo prazo, muito menos em questão de música. Eu tenho um projeto de fazer um trabalho com Milton Nascimento, é com ele e o Guarnieri. Está muito no ar ainda, está entre uma peça e... no começo era uma peça, depois a gente começou a pensar num espetáculo, algo com Milton cantando, com músicos e atores.
Coojornal - Você seria um dos atores?
Chico Buarque - Não, é uma experiência que já fiz e não quero repetir. Fiz o galã no filme "Quando o Carnaval Chegar", na época gostei, foi muito divertido, mas para um trabalho sério não dá. Não me considero um bom ator. Ao contrário, sou muito canastrão.
Coojornal - E além desse espetáculo, algo mais?
Chico Buarque - Tudo está um pouco vago. Hoje mesmo a gente estava conversando aí o negócio de uma viagem em agosto para a África (Angola, Moçambique e Guiné), eu, o Milton e o Rui Guerra, que está com a idéia de fazer um filme lá. A gente ia para conhecer o processo lá e talvez fazer alguns shows, mas isto é secundário.
(1) A Sombras ( Sociedade Musical Brasileira)é uma entidade civil criada há dois anos para defesa da música e dos direitos do compositor brasileiro. Seu presidente é Antonio Carlos Jobim, e tem como companheiro de direção Chico Buarque de Hollanda, Herminio Belo de Carvalho, Luiz Gonzaga Junior, Vitor Martins Aldir Blanc e outros. No ano passado, a Sombras mandou um extenso relatório ao Ministro da Educação, Ney Braga, sobre a situação de direito autora no Brasil. O ministro achou "calamitoso" o quadro descrito no relatório que acabou dando origem ao Conselho Nacional de Direito Autoral, órgão ligado ao Ministério da Educação.
Aos 32 anos, cheio de planos, sem tempo e vontade de fazer shows - pelo menos por enquanto -, Chico Buarque continua mostrando como é possível criar, apesar de todas as dificuidades, para que tal objetivo seja atingido.
No novo disco de Nara Leão, ele aparece como parceiro de Sivuca, na música "João e Maria" uma composição feita há 30 anos e que só agora recebeu letra. Os Saltimbancos, sua adaptação à realidade brasileira de "Os Músicos de Bremem", dos Irmãos Grimm, deve estrear, dentro de um mês, no Canecão, Rio, apresentada nas tardes de sábados e domingos. Com direção de Antônio Pedro, o elenco da primeira experiência de Chico Buarque para e com o público infantil será encabeçado por Grande Otelo e Marieta Severo.
Aqui ele fala do seu trabalho, dos seus projetos -"vastos e vagos"- e da música popular brasileira em geral.
Antes de fazer qualquer projeto, tenho de estar lendo a Coluna do Castelo, no Jornal do Brasil, para saber como está o momento político e para ver se vou fazer uma música infantil ou peça de teatro.
No começo de minha carreira, que coincide também com o início de Edu Lobo, outro compositor com um trabalho muito ligado ao teatro, havia uma união muito grande entre grupos de teatro e o pessoal de música, tanto no Rio como em São Paulo, "Teatro de Arena", "Oficina"... Havia muito esse contato, muito mais do que hoje. Então, teatro foi um trabalho que para mim sempre correu paralelo à música. Quando eu musiquei "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, ainda não pensava em fazer teatro. Eu estava começando a fazer música, música com letra, tinha feito poucas, tinha gravado apenas umas duas músicas, quando o Roberto Freire me chamou para trabalhar em "Morte e Vida Severina".
Naquela época, em todas as áreas - cinema, teatro, música - havia um contato maior entre todo mundo, mas muito maior mesmo do que hoje. Mas, principalmente de 68 pra cá, houve uma repressão muito grande, aqueles grupos todos já não existem mais. Então ficou todo mundo muito mais isolado. Isso eu acho muito negativo, procuro estar em contato com as pessoas, se bem que não é nunca um trabalho tão de grupo como era antes... Seminários, discutir tal peça, etc. Hoje a gente se junta assim, duas ou três pessoas. Não como era antes.
Agora, eu e o Milton Nascimento estamos começando a pensar em fazer uma peça de teatro. Conversamos com Guarnieri também. A trinca seria essa mas o trabalho em si ainda não está muito definido. A gente conversou, Guarnieri deu umas idéias, estou com músicas do Milton para botar letra, mas ainda não posso dizer muito o que é que vai ser porque o trabalho ainda não está muito definido.
O meu trabalho com Paulo Pontes começou quando ele produziu "O Homem de la Mancha" e chamou a mim e ao Ruy Guerra para fazermos as versões. A partir daí, comecei a ter mais contato com ele, até que um dia me procurou para fazermos "Gota d'água". E, até sua morte, tínhamos mil planos. A gente começou a pensar várias coisas diferentes, até que partimos para um projeto definido, uma comédia, "O Dia em que Frank Sinatra Veio ao Brasil". Ele chegou até a começar esse trabalho. Mas, com a morte de Paulo, esses projetos pararam. Se o "Frank Sinatra" estivesse um pouquinho mais adiantado, até talvez eu tivesse me animado a terminar a peça. Mas não, estava ainda no embrião, havia muita coisa que a gente não tinha resolvido. Cheguei até a conversar com ele, sobre isso, no hospital, já no fim. E ele estava tão entusiasmado, com tanta vontade de voltar a trabalhar, que a gente conversou sobre a possibilidade de encostar o "Frank Sinatra" e partir para uma outra coisa... Quer dizer - então, o "Frank Sinatra" foi pro cesto.
Eu acho que no momento, por parte do público, está havendo uma receptividade muito grande em relação à música popular brasileira, muito maior do que alguns anos atrás. Se compararmos com cinco anos atrás, a música popular brasileira não está em crise, não. Está muito viva, até. Agora, se a gente comparar com 10 anos atrás, aí já fica diferente porque, naquele tempo, havia uma renovação muito maior. Havia mais estímulo, e isso não acontecia apenas com a música. Havia um mercado de trabalho muito maior. Agora a gente vende muito mais discos do que vendia antes. Mas são poucos esses artistas que vendem discos. Há uma marginália enorme, gente que eu não conheço. Não aparece gente nova porque essas pessoas não têm oportunidade de aparecer, como há 10 anos atrás.
Os festivais não eram causa nenhuma disso, desse aparecimento de novos valores. Eram uma conseqüência do ambiente que existia. O que houve com os festivais foi que as pessoas tiveram a inteligência de pegar o que estava acontecendo nos bares, nos teatrinhos, coisas assim, e levar tudo isso para o grande público. E como tudo aquilo estava no ar, o público também se interessou por aquilo. As pessoas estavam sempre se encontrando, trocando idéias, e, naquela época, isso acontecia especialmente em São Paulo, em 66, 67. E a televisão então pegou, captou isso. Só. Tanto que depois ficou uma coisa artificial.
Eu acho o seguinte: se você pegar pessoas que estão aí e fizer uma competição pura e simples, é uma coisa. Se pegar pessoas que estão se encontrando, se transando, que estão discutindo, fazendo um trabalho, por mais diferente que seja o trabalho de fulano de X para Y, é um movimento em si. É um movimento sem nome. Foi assim que existiu um movimento naquela época. Acontece que agora não há esse movimento. O que se pode fazer agora é uma competição entre um baiano que fez uma música lá, um carioca, um paulista, um cearense. Mas acredito que não existe a vitalidade que havia naquela época. Era uma coisa polêmica em si, entende? Era uma coisa discutida.
Por exemplo, num festival, quando entravam as músicas, a gente já sabia, eu já sabia a música do outro, a gente transava isso antes, conversava, discutia. Isso é muito bom. Não quer dizer que isso fosse um clube. Mas era tudo curtido, tudo discutido. E isso tudo começava na universidade, universidade livre. Porque a gente ia lá, grêmio e tal, tinha eleição, tínhamos discussão sobre tudo, sobre cultura, sobre política. E isso a gente está sabendo que dentro das universidades quase que não se pratica mais. Não era que eu ficasse tocando violão o tempo todo, não. A gente participava de tudo. A gente discutia até politicamente as coisas. Era a cultura mesmo em seu sentido mais amplo, havia um ambiente cultural dentro das universidades, que não há mais. É claro que a coisa era competitiva, no caso dos festivais. Mas não era só competitivo. Se eu estava com uma música, um colega meu estava com outra, nós dois íamos participar do festival, mas já havíamos discutido o nosso trabalho, eu com ele, ele comigo. Então havia, inclusive, troca de informações. Não era uma competição pura e simples. Podia até participar de um festival, mas sabendo que a música do outro era melhor do que a minha. Eu cansei de dizer, nessa época mesmo, que a melhor música não era a minha, era a do outro. Eu acho "Domingo no Parque" melhor do que "Roda-Viva". Então, o que acontecia era uma coisa um pouquinho mais ampla do que uma competição pura e simples, do que um prêmio.
No momento, estou com vários projetos e o que está me atraindo mais é o com o Milton e o Guarnieri.
Eu sinto que está havendo por parte do público uma sede muito grande de informação, de comunicação, inclusive dentro da própria platéia. E isso eu digo porque fico impressionado de ver Milton Nascimento lotando o Maracanãzinho e o Ibirapuera durante três noites. Vejo também gente, que até há pouco tempo tinha pouco público - Joyce, por exemplo - lotando aqueles shows da Concha Verde, no Morro da Urca, aqui no Rio.
Acho que o público está sentindo necessidade de se juntar. Esse shows lotados refletem também a necessidade de as pessoas se encontrarem.
A cultura brasileira viveu uns cinco anos de inteira perplexidade. Isso se refletiu também nas peças de teatro e está ligado a um certo afastamento do público do próprio teatro. "Gota d"Água", "Último Carro", de João das Neves, por coincidência, essas peças apareceram na mesma época em teatro. Essas peças, eu acredito, não teriam público há quatro anos.
Porque, por um lado, havia a classe média com sensação..., com aquele ufanismo todo, colocando plásticos de Brasil grande e, por outro, uma garotada que, diante disso tudo, estava inteiramente perdida e bastante desiludida. Foi o baque de 68. Muito forte. Então, até 73, vivemos anos muito marcados. Agora, acredito que a própria classe média caiu em si. Então, quando se fala em teatro para o povo, teatro popular, e se cobra Cr$80 pelo ingresso, acho que não existe condição nenhuma. Acho que é função da gente também alertar a classe média sobre os problemas do povo, dos quais está completamente desligada. Houve esse fenômeno durante algum tempo. De repente, ficou de mau gosto falar em povo, falar em desastre da Central era de péssimo gosto, e falar de reforma agrária era uma gafe. Por causa de uma ressaca, de muito que se falou nisso e que não deu em nada.
O que eu acho é que as necessidades do nosso povo não foram resolvidas, continuam aí, continuam existindo. Então não se fala mais nisso - por quê? Vai ter que se falar sempre. Pode ser que haja uma nova Censura, um novo desinteresse, conseqüente mesmo do problema da Censura. Mas, depois, se volta a falar, até que os problemas sejam resolvidos. A classe média tem que estar participando disso, sem dúvida nenhuma.
Outro problema que existe, em maior ou menor grau, é a autocensura. É quase um desespero aquele negócio de "para que eu vou escrever"? Mas a gente tem de escrever de qualquer jeito, nem que seja apenas como um exercício. Porque depois, quando o cara quiser escrever, no caso o cara que ficou proibido de fazê-lo durante algum tempo, está desacostumado ou então já está com uma autocensura muito forte. Isso tem que ser evitado, mesmo porque existe uma certa tentação (acho que até muito lógica) das pessoas não fazerem nada, e, bom, botar a culpa na Censura e aí parar de criar e ter uma desculpa que é verdadeira, não é apenas um pretexto. Aliás, Graciliano Ramos já falava sobre isso no tempo "brabo" mesmo da Censura do DIP e ele dizia isso, que a Censura pode servir de desculpa para as pessoas não fazerem nada. E olha que ele produziu pra burro, naquela época. Então não se pode parar de escrever, de criar, porque são coisas que um dia serão publicadas, peças que um dia serão montadas, filmes que serão feitos, músicas que serão gravadas.
Por enquanto, não estou com vontade de fazer shows, mesmo porque eu não teria tempo, teria de renunciar a todos esses projetos que eu tenho e partir para fazer show, dormir em hotel, viajar. Cansei um pouco disso.
O problema do direito autoral está mobilizando a classe. É um problema difícil de ser resolvido, mas as pessoas estão se reunindo para discutir, o que não acontecia. Até há pouco tempo, era cada um por si. Eu ainda recebo pelo sistema antigo. Agora que mudou, só vou sentir o que aconteceu no mês que vem. Eu não sou um cara com grandes problemas de direito autoral. Mas, e o João do Valle? Aí é que está. Porque não interessa a ninguém estar passando para trás uma pessoa que esteja mais em evidência, como é o caso de alguns poucos compositores. E isso acontece porque eu tenho possibilidades de dizer que estão me roubando, chio. Então não interessa a ninguém me passar para trás.
Tenho também um projeto de fazer uma coisa mais para crianças. "Os Saltimbancos" foi uma adaptação que serviu como treino para mais tarde fazer uma outra coisa, em que eu faça também a música, escreva o texto. Simone gravou agora a primeira música do Milton com letra minha, "Primeiro de Maio". Estou com mais duas músicas dele para botar letra. Mas o nosso relacionamento está muito cerimonioso, ainda. Então, para fazer uma letra para uma música dele, é mais difícil que com Francis Hime, com quem tenho mais intimidade. Mas eu acho que vem muita coisa boa com o Milton. Então, meus projetos são vários e vagos. Tenho a idéia de fazer um filme com Ruy Guerra, meio documentário, que seria também junto com Milton - isso é para julho. Seria uma viagem nossa à África e documentar isso. Seria também um trabalho no sentido de ir lá ver o que está acontecendo. Aliás, tenho ouvido uns discos de músicas angolanas e moçambicanas. Levei até um susto porque pensei que fosse muito mais samba e são, na realidade muito mais caribe. O meu editor de São Paulo me convidou para fazer um trabalho sobre lendas brasileiras, uns discos com estorinhas uma série. Estou fazendo música para cinema, o filme de Hugo Carvana, que, por sinal, está atrasado. Tem também um musical que o MPB4 e o Quarteto em Cy estão querendo fazer juntos. Isso seria para o próximo ano, mas já estou pensando nesse trabalho. Acho que vai dar pé fazer um trabalho bonito com os oito num show. É isso, ainda tem a peça do Augusto Boal, "Mulheres de Atenas". Mas ainda está com alguns problemas de produção, ainda tenho de fazer três canções, mas Ruth Escobar, que é a produtora, está pensando em fazer um musical mesmo. Então, esse projeto ainda não está resolvido.
A verdade é que eu, antes de fazer qualquer projeto, tenho de estar lendo a Coluna do Castelo, no Jornal do Brasil, para saber como é que está o momento político. Para ver se vou fazer uma música infantil ou uma peça de teatro.
Agora que você é pai pela terceira vez, o que acha da música para crianças feita no Brasil?
O que mais se vê são as mesmas canções infantis com as mesmas personagens da minha infância, e lá se vão anos. Principalmente aquelas figuras do Walt Disney, cantadas numas versões aliás muito boas do Braguinha, o João de Barro. Mas é uma pena, porque são coisas que não têm nada a ver com a criança brasileira. Ao mesmo tempo, vão-se perdendo as cantigas de roda, as cantigas de ninar, as canções juninas, todo esse repertório muito bonito que eu ainda peguei, que era transmitido pela tradição oral e que os disquinhos hoje em dia quase não registram.
E pensa compor para as crianças?
Eu acho que a gente precisa trabalhar nesse campo aí. O Vinícius é que tem umas canções sensacionais, mas elas são mais conhecidas na Itália do que aqui. Também tenho tentado alguma coisa no gênero, mas ainda não consegui arrebatar minha platéia, minhas três filhas.
Oual o seu disco que mais vendeu? Foi "A Banda"?
Não foi "A Banda", não, foi "Construção". Aliás, disco compacto que mais vendeu foi o "Apesar de Você" apesar de tudo. Mas disco grande foi "Construção", mesmo com letra comprida e aquela trapalhada toda. Além disso, "Construção" me valeu este troféu (uma pá de pedreiro incrustada num tijolo) que me foi oferecido pelos Trabalhadores de Construção Civil de Belo Horizonte.
Chico, as suas composições são feitas com intenção de denúncia ou protesto?
Não, minhas músicas não são feitas com nenhuma intenção. São feitas mais com intuição, com emoção, com estalos assim, e o que elas têm de elaborado é só a parte formal. Mesmo quando elas abordam temas sociais. Acho que canção de protesto, canção definida e dirigida politicamente, ou ideologicamente, acho que não há condições pra se fazer uma canção assim, no Brasil, no momento. Não passa. Quer dizer, nem passa pela cabeça de ninguém. Então, eu não sou um cantor de protesto. Pode dizer que eu sou um cantor do cotidiano. Um cantor de resmungo. E uma pessoa de protesto, Pode dizer isso.
Você então é apenas um rebelde emocional, sem consistência...
Bem, só se você julgar que emoção é um troço inconsistente. Você acha?
Sou apenas o entrevistador...
Pois é, e eu sou um artista. Você deve saber disso quando vem me entrevistar. Então, o meu trabalho é só fantasia, é música, é teatro, é novela. Claro que eu, cidadão, que ando na rua e leio jornal, eu, pessoa física razoavelmente bem informada, claro que tenho uma posição mais ou menos racional diante das coisas. Mas essa pessoa só tem importância pública enquanto o seu trabalho for conhecido popularmente. Mas acho que não foi isso que você perguntou, foi? É, você perguntou sobre as intenções da minha música. O que eu quero dizer é que qualquer posição que eu tome hoje, se ela tiver alguma ressonância, é porque eu sou o autor de "A Banda".
Não estou entendendo. Se é para me contundir, eu mudo o tom da entrevista para temas mais amenos: qual o seu tipo de mulher, qual o nome do seu primeiro carro, por que você não continuou arquitetura, a que horas você dorme etc.
A revista é tua.. Ô Rui (Rui Guerra), dá mais um uísque a esse cara pra ver se ele fica menos chato.
Chico, é claro que não vim a sua casa para saber da sua vida particular mas para divulgar o que você sente e pensa. Você está disposto a um papo mais sério?
Eu topo esse papo. Não sei se vou dizer coisas novas ou muito importantes, mas topo. Mas vê lá se não inventa hein?
Pode ticar tranqüllo, voce vai ler tudo antes de ser publicado.
Então tá.
Que representa para você o sucesso, a popularidade?
Eu acho que o sucesso é perigoso na medida em que é aconchegante. Nos tempos da TV Record, fiquei muito popular por causa dum programa de adivinhação. Eu apertava um botão, cantava uma música e ganhava um carro, ganhei uns quatro Gordini e as pessoas me seguravam na rua. Depois tudo mudou. Só pra citar um exemplo, passei um ano sentado aí com esse galego (Rui) escrevendo uma peça de teatro que ninguêm viu (Calabar). Mas foi muito melhor pra mim do que ganhar 365 Gordinis. A prova é que estou acabando de escrever outra peça. Dá um tremendo trabalho, é uma inquietação, uma angústia todo dia, mas quando a gente vê uma página acabada, uma coisa que a gente gosta, dá muito mais prazer que o reconhecimento público. Não que eu me lixe pra popularidade, mas te garanto que o prazer maior, a própria vaidade, está no ato da criação. Talvez por um mecanismo de defesa, não sei. Já estou meio acostumado a escrever e cantar pra mim mesmo, minha mulher, minhas filhas.
Utiliza, ou utilizaria, a sua popularidade para ajudar concretamente o ser humano?
Claro, sempre que possível. Vou te dizer uma coisa. Popularidade para uso pessoal dá mais chateação que regalia. Podem te oferecer um jantar, mas vão passar a vida te cobrando. Agora, acho que não se deve ter o menor pudor em usar e abusar da popularidade, até mesmo desgastar essa popularidade em nome de qualquer causa que você acredite. Evidente que aí você vai sofrer uma porrada de acusações, vão dizer que estudante estuda, cantor canta, operário opera, aquelas coisas. Mas eu continuo achando que é melhor ser censurado do que omisso.
A propósito, até que ponto a censura limita sua criatividade?
Esse tema é chato. De cara sou rigorosamente contra a censura. Não por motivos pessoais, mas por princípio. Do ponto de vista pessoal, ela tem me incentivado na mesma medida em que me bloqueia. Vou dizer, no momento mesmo em que tenho um trabalho censurado, fico como que entorpecido, desnorteado. Aí eles conseguem o que querem, porque já estou convencido que a intenção dos censores é mais punir o autor do que interditar a sua obra. Então eu fico realmente vazio, fico achando tudo inútil, por alguns dias. Mas tem a volta. Daí a pouco a gente se mete noutro trabalho com mais garra ainda, sem se incomodar se vai ser censurado ou não, pelo prazer de trabalhar, ou para não enferrujar, ou só pra chatear. Agora, saindo do plano pessoal, acho que a censura à informação é um erro grave, porque, limitando a divulgação, impede o conhecimento amplo das verdades e cria uma falsa realidade que acaba contagiando os próprios responsáveis pela censura. Além de criar um clube fechado de impunidades. A censura à criação e manifestação artística limita e marginaliza o autor teatral, o músico, o cineasta, muitas vezes obrigando o cara a fazer malabarismo pra dizer alguma coisa. Alguma coisa que só passa para uma pequena elite que já sabe dessa coisa. A obra de arte nacional acaba se afastando do povo, acaba ficando chata. Como me disse um garotão chofer de táxi outro dia: "Essa música de vocês não tá com nada. Eu gosto de música americana que a gente não entende nada mas tem aquele ritmo." Enfim, a censura acaba dificultando o surgimento de gente nova em todas as áreas da criação. Acredito que isso atende a altos interesses que não são os da nossa cultura.
Com a evolução da sua música o seu público não ficou limitado?
O problema é que o maior veículo de comunicação, que é a televisão, não está interessado realmente em divulgar a música brasileira. E, quando o faz, geralmente compromete essa música. A televisão, hoje, é uma só e é praticamente um órgão paraestatal que, paradoxalmente, sofre restrições da censura federal, mas exerce outras censuras suplementares por conta própria. Mas é claro também que, uma vez bloqueado o contato mais assíduo do artista com seu público, a arte vai perdendo seu compromisso com o popular. O público que hoje se identifica mais com a minha música está na faixa universitária. Mas eu tenho tentado retomar contato com outras áreas e a peça que acabo de escrever com o Paulo Pontes é um exemplo dessa tentativa. Nossa intenção é estrear "Gota d'água" num subúrbio, que onde a peça se situa. Vamos testar, vamos ver se a gente ainda é capaz de falar a língua do povo, vamos ver se o povo se reconhece nas personagens. E difícil, porque já faz algum tempo que esconderam esse povo lá longe e a gente só sabe dele raramente, quando divulgam um quebra-quebra na Central.
Além dos estudantes, a alta burguesia é parte do seu público. Por quê?
Não sei muito bem. Ela aceita e aplaude até as músicas que de certa forma a agridem, porque não se sente ameaçada. Daí as minhas músicas serem mais ouvidas nas chamadas rádios classe A do que nas mais populares. Tem também o fato da gente não aparecer muito na televisão. Isso é ruim porque dá um caráter meio elitista à nossa música. Mas é conseqüência daquilo tudo que já falei.
Já Ihe passou pela cabeça dar de herói e tentar dar uma "virada" no mundo?
Você quer me gozar, não é? Aliás, não é o primeiro que me acha quixotesco. Mas o pouco que tenho feito e dito não passa de minha obrigação. Chiar contra isso ou aquilo, acho até que é salutar. Acho que o bom cabrito berra. Agora, falar esse negócio de herói é mitificação ou pura sacanagem. O Brecht dizia: feliz do povo que não tem heróis. Por aí você calcula o grau de felicidade dum povo que vai catar herói nos camarins de teatro.
No que você veste, no que você compra, sente-se influenciado pela sociedade de consumo?
Eu quase não faço compra nenhuma e ando meio mal vestido. Acho mesmo que reajo em sentido contrário às imposições da sociedade de consumo. Talvez por me sentir ameaçado, eu sou um cara fora de moda, tenho um certo fascínio pelas coisas fora de moda, não estou falando em nostalgia, é claro, que é moda. Não uso muito as gírias do momento, gosto de contrabaixo de pau, de piano de pau, toco violão de pau e sou um compositor de pau. Mas eu tenho consciência de como a tecnologia da sociedade de consumo domina o homem ou como os especialistas da comunicação — especialmente através da TV — conseguem manipular grande parte da população e lhe impingir todo tipo de produto e de informação. E mesmo atento a isso, não deixo de cair na armadilha de vez em quando. Só pra citar um exemplo, já me surpreendi falando do nosso futebol tricampeão do mundo, quando todo mundo sabe muito bem que o Brasil nunca foi tricampeão do mundo, isso é balela, isso é impostura, invenção ufanista. Para ser tricampeão, o Brasil teria que ganhar três campeonatos seguidos, o que não aconteceu.
Pra não fazer concessões você baixaria seu nível de vida?
Claro, se bem que pra mim é fácil dizer isso. Tenho um nível de vida acima do que preciso. Depois, sou bem remunerado no meu trabalho, sou pago para fazer o que gosto. A não ser os shows, que não gosto muito mas acho importante fazer. Bem, então não preciso fazer concessões, basta trabalhar e eu trabalho paca, podes crer. Mas isso não me dá o direito de julgar quem faz concessões, não para sustentar um alto padrão de vida, mas para sobreviver mesmo. Mas, espera ai, há concessões e concessões.
Você acredita que a fome seja um problema basicamente provocado pela superpopulação?
Eu não entendo nada disso. Mas olha, eu já andei muito por este Brasil e posso garantir que vi muito mais terra por cultivar do que cultivada. Mas muito mais. E dois terços da população brasileira estão concentrados nos centros urbanos, não é isso? O sujeito não tem condições de cultivar sua terra, que geralmente não é sua, e vem se amontoar nessas cabeças-de-porco dos subúrbios, em condições sub-humanas. Então eu acho que tem qualquer coisa errada. O grande fazendeiro que planta só café porque está rendendo no mercado, o governo que incentiva porque vai ganhar na exportação, daí plantou café demais, então queima o café pra não dar prejuízo, daí todo mundo planta soja, depois importa cebola da Espanha porque aqui ninguém plantou cebola, daí a pouco queima a soja e o país morre de fome. Eu não entendo isso. Depois os grandes fazendeiros, que não morrem de fome, vão se queixar do governo e vão fazer pressão por causa da baixa rentabilidade e essas coisas. Só há interesse imediato, é claro, o fazendeiro tem mesmo é que lucrar, não compete a ele zelar por mais ninguém. Se a terra pertencesse ao Estado, aí sim, acho que dava para planificar as coisas segundo o interesse do país e de seu povo, o que deveria ser a mesma coisa. Eu acho óbvio que a terra deveria ser propriedade do Estado. Assim como o subsolo e o mar de 200 milhas, por que não? E o ar também. Porque você sabe que, se amanhã desmatassem a Amazônia, ia faltar oxigênio em todo o planeta. Assim como a Amazônia, outros tantos pulmões em todo o Hemisfério Sul. Então veja, fica esse tremendo desequilíbrio entre os países industrializados do Hemisfério Norte e os subdesenvolvidos do Hemisfério Sul, que vai ficar sempre por baixo até no atlas. Então, se somos nós que produzimos o oxigênio, que é vital, que é muito mais importante do que o petróleo, vamos cobrar por isso. Você não precisa me levar a sério, mas vou propor que os países do terceiro mundo formem a OPEO, Organização dos Paises Exportadores de Oxigênio. Os países industrializados ficariam nos pagando uma espécie de taxa de subdesenvolvimento que equilibrasse o balanço internacional. E cá embaixo, o oxigênio seria administrado como um monopólio estatal. Senão ficava que nem as terras, uns poucos latifundiários do ar e um monte de povo no sufoco.
O artista, através de sua arte, poderia modificar o ser humano?
Eu acho que o homem vai ter que se modificar, pelo próprio instinto de sobrevivência. Não acredito que isso vá acontecer por influência de um indivíduo, muito menos por ordens superiores. A sociedade é que deve se aperfeiçoar por uma dinâmica própria, de baixo pra cima, com a participação da grande massa de indivíduos, certo? Quer dizer, o homem modificando a sociedade para a sociedade modificar o homem. Isso pode parecer utópico, mas, como eu já lhe disse, eu sou artista e não político; nem sociólogo. É nessa utopia que entra a contribuição da arte que não só testemunha o seu tempo, como tem licença poética pra imaginar tempos melhores.
Mas, que tipo de sociedade poderia aperfeiçoar o homem?
Não sei, é difícil dar uma resposta assim, que eu próprio considere definitiva. É mais fácil responder que tipo de sociedade não pode aperfeiçoar o homem, pior, só tende a avacalhar com o ser humano. É uma sociedade cujos apelos se baseiam no egoísmo, no individualismo, no jogo de interesses, no pega pra capar, em tudo isso que você vê. Uma sociedade onde quem não entra nessa roda é definitivamente um otário.
E a solução?
Não sei, mas ainda acredito que uma sociedade, onde a renda seja de tal modo distribuída que possa assegurar ao homem suas necessidades básicas, uma sociedade assim pode gerar um homem novo: um homem menos egoísta, um homem mais social, um homem realmente livre.
Já o acusaram de oportunismo?
Já, e eu sei ao que você está se referindo. Acontece que nesse caso como num outro parecido e mais recente, a acusação não tinha fundamento porque eu não vivo nas capas das revistas semanais, não poso para publicidade, não assino contratos milionários com a televisão, muito menos me candidatei a intelectual do ano, como se insinuou. Mas eu podia ter feito qualquer dessas coisas sem precisar ser necessariamente um oportunista. Agora, fazendo o advogado do diabo contra mim mesmo e outros colegas, é verdade que o artista que se manifesta contra o sistema vigente conta de cara com a simpatia da grande maioria do público. Assim como quem se manifesta abertamente favorável a isso aí, não tem muito futuro não. Então, o contexto permite que um ou outro artista se manifeste contra as coisas por mero oportunismo. Mas isso nós vamos conferir daqui a pouco. E é secundário. O importante é constatar que a opinião pública, em sua grande maioria, apóia quem se manifesta contra isso aí.
Oue prefere: dar shows, compor ou escrever?
O problema dos shows é que eles são muito desgastantes e, geralmente, tomam muito tempo e muita emoção, impedindo que eu me dedique a compor ou a escrever. O diabo é que, se a gente faz show num determinado ano, tem que fazer no ano seguinte para pagar o imposto de renda, pelo menos. Mas agora eu engatei esses cinco meses com a Bethânia no Canecão, que é uma coisa mais tranqüila. Não tem avião, não tem hotel, e eu tive tranqüilidade para trabalhar nas tardes em cima do "Gota d'Água".
Fale de "Gota d'Água".
É uma adaptação da Medéia de Eurípedes para um subúrbio carioca. A idéia original é do Vianinha, que chegou a escrever um "caso especial" que passou na televisão. Aí ele não teve tempo de desenvolver a peça para o teatro. O Paulo Pontes resolveu levar adiante o projeto e me procurou para um trabalho a quatro mãos. É claro que estou apaixonado pela peça, ficou pronta agora há pouco. Mas como ninguém conhece ainda, não fica bem eu elogiar o trabalho. Só posso dizer que deu uma tremenda mão-de-obra tudo rimado e metrificado como manda o figurino, 4 mil versos e dez canções. Os versos podem até ser ruins, mas 4 mil é um número que impressiona, não é mesmo? Bem, a peça está há três semanas em Brasilia, acho que estão gostando muito dela, estão lendo com a maior atenção. Mas, falando sério, acho que desta vez não vai haver problemas.
Parece que agora você prefere escrever...
Talvez sim, acho que é fase. Mesmo assim, tenho composto uma canção ou outra, pouca coisa. Acontece que, antes de começar a compor, eu já escrevia. Nos meus tempos de estudante não livrei a cara de nenhum jornalzinho. Modéstia à parte, sou fundador do glorioso hebdomadário "Verbâmidas". Bem antes da Banda publiquei um conto, aliás fraquinho, um conto chamado "Ulisses", no Suplemento Literário do Estado de São Paulo. Depois, foi a música que me desviou. Mas eu continuava escrevendo, sem muita continuidade, uma coisa ou outra que eu submetia ao crivo de meu pai, que é um crítico literário exigente. Digo isso tudo porque, quando achei que estava preparado, desfiz contratos e me tranquei num quarto durante nove meses para parir a "Fazenda Modelo". E digo isso tudo porque tenho certeza de que fiz um bom trabalho.
"Eu só podia resistir"
O COMPOSITOR DE "CONSTRUÇAO", PRONTO PARA NOVO VÔO, CONTA OS PROBLEMAS QUE ENFRENTOU
Às 5 horas de uma tarde ensolarada, entrevista pelas janelas da Phonogram, no Rio de Janeiro, produtores e funcionários da gravadora ouviam a fita original do último LP de Chico Buarque de Hollanda, "Meus Caros Amigos", a sair dentro de três semanas. À beleza do sol quase se pondo vinha se juntar, após algumas passadas da fita, a certeza geral de que aquele disco se constituía, quando menos, em mais uma prova do nunca desmentido talento criador de Chico Buarque. A luminosidade do momento, porém, era quebrada por uma perspectiva inquietante. A faixa mais forte, "O que Será" (música e letra de Chico, gravada em dupla com Milton Nascimento), justamente aquela para a qual os homens da Phonogram previam, em realista projeção de mercado, sucesso imediato de venda e de crítica, ainda não fora liberada pela Censura.
A aprovação dos censores talvez aclarasse, pelo menos parcialmente, o quadro profissional enfrentado pelo compositor nos últimos anos: uma peça, "Calabar", proibida inclusive de citação pela imprensa; a gravação de um LP necessariamente confuso, "Chico Canta", em que as músicas da peça teatral eram apresentadas com letras pela metade ou, em algumas faixas, inteiramente emudecidas. Mais: o LP seguinte, "Sinal Fechado", trouxera apenas músicas de outros compositores.
Eis, no entanto, que o telefone tocou no estúdio e Sérgio Carvalho, o produtor, atendeu. Um sorriso, de canto a canto do rosto, e a notícia: "O que será" acabara de ser liberada, sem cortes. Imediatamente, os circuitos de som da Phonogram passaram a transmitir as vozes de Chico e Milton Nascimento em dueto de insuspeitada adequação vocal. "Que será, que será/Que andam suspirando pelas alcovas/ Que estão falando alto pelos botecos/Que vive nas idéias desses amantes/ Que cantam os poetas mais delirantes/Que juram os profetas embriagados/Que está na romaria dos mutilados/Que está na fantasia dos infelizes/Que está no dia-a-dia das meretrizes?"
Chico Buarque, que havia condicionado esta entrevista ao término de todos os trabalhos do disco, aproximou-se então do repórter de VEJA e comunicou-lhe que o instante era chegado. Aos 32 anos, compositor e cantor ligado à música popular brasileira desde 1966, ano de lançamento de "A Banda", autor de três peças de teatro — "RodaViva", "Calabar" (com Ruy Guerra) e "Gota d'Água" (com Paulo Pontes)-, pai de três filhas (Sílvia, 7 anos, Helena, 5, Luísa, 10 meses), Chico passou quase duas horas trancado numa sala com seu entrevistador. A conversa:
VEJA — Recentemente, a imprensa carioca divulgou que você estaria se despedindo oficialmente de toda e qualquer apresentação ao vivo. No mesmo sentido, nota-se um esforço seu em se concentrar mais na criação, em detrimento da imagem pública do astro. O que está de fato acontecendo?
CHICO — Estou, realmente, me concentrando mais no trabalho criativo. Muito mais do que antes. Agora, escrevo peças - eu e Paulo Pontes já partimos até para uma nova empreitada, uma comédia —, faço músicas para filmes e teatro, eventualmente posso até voltar a escrever um livro. Isso me toma todo o tempo. Uma opção, porque fazer show me desgasta muito. Agora apareceram notícias, aqui no Rio, sobre isso. Realmente, eu não estou com nenhuma intenção de fazer shows nos próximos tempos. Mas daí a me despedir vai uma grande distância. Depois, pode aparecer uma boa proposta e eu estar numa época de vazante financeira.
VEJA — Uma curiosidade: você mesmo diz que tem até disenteria durante as temporadas. É medo?
CHICO — Medo não. É pânico de público. Se fosse só o momento de pisar no palco ainda daria para entender. Mas todo o meu dia, todo trabalho que esteja fazendo ficam prejudicados pela idéia de que à noite vou estar à frente de centenas, milhares, sei lá, de pessoas, escondidas naquele buraco escuro que é a boca de cena. A gente é visto sem ver. Terrível.
VEJA — Se você sente pânico em relação a público por que aceitou, até hoje, participar de festivais, espetáculos, tudo isso?
CHICO — Já é um problema de sobrevivência. Como compositor, eu não posso viver só de direitos autorais. Quando se lança um disco e ele faz sucesso, é possível ficar, durante três ou quatro meses, na dependência financeira das rendas desse disco. Fora disso, a solução é aceitar as regras do mercado. enfrentar o público.
VEJA — Você grava as suas músicas, faz sucesso, é famoso. De uma ou de outra forma, pelo que se entende, fatura bem e, conseqüentemente, mantém seu tipo de vida. Além do bem que sua arte proporciona a você mesmo, subjetiva e objetivamente, qual seria a ação dela sobre os outros?
CHICO — Esse negócio de "fatura bem" é que eu não gosto. Não é bem assim. No tempo da Televisão Record, por exemplo, em que eu era o astro de que você falou, ganhava muito dinheiro. Dois anos depois pedia dinheiro emprestado para sobreviver, na Itália. Voltei ao Brasil, ganhei dinheiro de novo, comprei um terreno em Petrópolis. Proibiram "Calabar" de que, além de autor, eu era um dos produtores. Tive prejuízo grande. Vendi o terreno de Petrópolis, hipotequei o apartamento em que morava, meus únicos bens na época. Então, faturo? Sou rico? Na verdade, nunca vi artista enriquecer no Brasil através de sua arte. Enriquece quando aplica bem, especula por fora. E eu sou mau investidor, não tenho jeito para negócios.
VEJA — Por que a palavra faturamento o incomoda tanto?
CHICO — Estamos vivendo um momento perigoso. Qualquer pessoa que tenha um certo destaque de repente se vê envolvido numa rede de boatos. Passo a vida pensando em responder por carta aos jornais e revistas que publicam coisas erradas sobre mim. Mas aí já não haveria tempo para viver minha vida, pois as invenções, não sei se propositadas ou não, são divulgadas quase diariamente. Então aproveito agora para esclarecer: essa história de que o artista está rico — no meu caso, particularmente — parece destinada a colocar esse artista contra o povo, contra o público de que ele depende, para ser compreendido e para sobreviver. Podem falar mal de meus discos que não me importo. Profissão é profissão. Agora, as acusações pessoais, essas sim, machucam, prejudicam minha vida. meu trabalho. E muito.
VEJA — Qual seria, no seu entender, a utilidade social maior da arte?
CHICO — Não tenho condições de ver, de fora, qual a importância do meu trabalho. Mas às vezes me passa pela cabeça se a música, mesmo a música de forma mais revolucionária. teria mesmo condições de alterar, em alguma coisa, o processo político. Agora proíbem tanto que sou obrigado a acreditar que uma música, uma peça de teatro, um filme, importam, de fato, dentro de um contexto geral. Essa é uma impressão de fora para dentro, causada pelas proibições. De dentro para fora, minha tendência é desprezar um pouco o que faço porque sou um sujeito cheio de dúvidas, de autocrítica.
VEJA — Mas você tem tido menos problemas com a Censura nos últimos meses. Ou não?
CHICO — Estatisticamente, sim. Inclusive está havendo revisão de algumas proibições anteriores. Mas a gente não pode ficar todo contente só por isso. O problema é mais grave. A censura tem de acabar e não voltar nunca mais. Ela mutila todas as características de uma época. Esses meninos que estão começando a fazer música agora. Já imaginou? Se nas primeiras tentativas, como tem havido tantas — e tantas que ninguém nem sabe — tudo já vem proibido, isso produz a monstruosidade da autocensura, fatal a qualquer tipo de atividade criadora. Há uma geração que nasceu dentro da censura, para a qual o certificado de liberação é tão normal e necessário quanto a carteira de identidade. Para mim, para uma geração que se criou quase que sem censura, é chocante ter de mandar textos, às vezes muito íntimos — toda criação requer uma entrega muito particular — , para um funcionário examinar, dizer se pode ser divulgado ou não. Com o garoto que surge agora não é assim. Por isso que tem tanta gente compondo em inglês, pois é mais fácil de passar. "Da próxima vez vou procurar acertar, pois parece que fiz algo de muito errado." Esse é capaz de ser o raciocínio do garoto que começa e se vê censurado.
VEJA — Nesse caso, o panorama objetivo da musica brasileira ou da arte no Brasil seria desolador?
CHICO — Sem dúvida nenhuma. O pessoal tido por novo que está aparecendo tem de 30 anos para mais. Criadores que já existiam antes da institucionalização da censura absoluta. Pessoas, portanto, habituadas a criar dentro de uma outra realidade, que só não apareceram antes e divulgaram o seu trabalho por questões circunstanciais, pela própria luta que é firmar uma carreira artística num meio adverso. E a radicalização da censura já existe pelo menos há oito anos e afetou toda uma geração que poderia ter gerado criadores. Isso na música, no teatro, no cinema, na literatura. Noventa por cento dos compositores, dos cineastas, dos dramaturgos que aí estão já existiam há dez anos. De repente, lá por volta de 1960, todo mundo era jovem inteligente, bonito, genial — e agora não. Por quê? Aquela gente não era mais inteligente do que esta de agora. Simplesmente estava acostumada à euforia pela arte do seu país, ao reconhecimento de seu valor. E não existia censura, pelo menos assim como atualmente.
VEJA — Então, o problema da descaracterização de uma arte brasileira, e a tão debatida questão da colonização cultural teriam muito a ver com a censura?
CHICO — Claro, basicamente tem muito a ver. Não gosto de ficar discutindo questões de raízes culturais, mas não há muito sentido em ficar tentando fazer, por exemplo, um som eletrificado rotulado de universal, num país que tem música própria riquíssima, tanto que todos os astros do rock internacional, do jazz, da música erudita, se apropriam, direta ou indiretamente, dessas fonte musicais de inspiração, autenticamente brasileiras. É aí que surge a questão econômica. Já estão fabricando pandeiro cuíca nos Estados Unidos melhores que os nossos. Chegam ali na birosca do Manuel, pegam um pandeiro, examinam, viram do avesso, levam para os Estados Unidos. Logo depois surge, como está surgindo, um pandeiro made in USA. Acho que estamos desperdiçando o que temos de melhor, o nosso talento. Aos pouquinhos, estamos perdendo tudo que temos. E a garotada que faz música só pode gostar de rock, que às vezes eu também gosto. Não condeno, mas eles crescem só escutando rock, nas rádios e na televisão. Ninguém pode exigir deles que façam música brasileira se a formação deles, imposta, é outra.
VEJA — Mais claramente, o que ocasiona esse impasse cultural, aqui mesmo dentro das fronteiras nacionais?
CHICO — Além da censura, a questão do dinheiro. É mais barato para as gravadoras importarem matrizes de discos gravados no exterior do que aumentar a produção interna, quase sempre também reduzida ao consumo interno. Não sei muito de dados, números, estatísticas precisas mas, Roberto Menescal, por acaso, já comentou comigo que um lote de dez matrizes estrangeiras pode ser comprado, pela filial de uma gravadora estrangeira instalada no Brasil pelo modesto adiantamento de hipotéticos 100 000 dólares, cerca de milhão de cruzeiros. Isso, se no lote houver pelo menos dois sucessos, daqueles que estouraram nos hits parades. Fora desses 100 000 dólares, o que a importadora pagará serão apenas porcentagens sobre os lucros, se as músicas estourarem também aqui, o que não é raro acontecer. Quando se sabe que a produção de um disco como esse meu, que vai sair, custou 450.000 cruzeiros antes mesmo de chegar à linha de prensagem das cópias, além do trabalho, da luta, do desgaste pela sua liberação, é fácil entender porque os discjóqueis têm muito mais material estrangeiro para tocar nas rádios do que discos nacionais, criados, labutados, produzidos dentro de um prisma político-cultural brasileiro. Instala-se, nesse caso, um danoso circulo vicioso do qual é preciso fugir.
VEJA —Concretamente, fugir como?
CHICO — Eliminação da censura. Liberdade para criar e ver o Brasil. Do lado prático, proteção governamental, através de leis como as que já existem — e são cumpridas — para o cinema brasileiro. Uma lei como a de exibição obrigatória — a chamada reserva de mercado — de tantos filmes brasileiros por ano. Se o produto estrangeiro é mais barato, já vem pago de seu país de origem compete aos brasileiros, só aos brasileiros, a ninguém mais, proteger o que é seu. Existe uma lei, sim, do tempo de Jânio Quadros, que obriga a divulgação meio a meio, 50% de música estrangeira e 50% de música nacional, pelas emissoras de rádio. Mas nunca foi cumprida. No caso, bastaria cumprir uma lei que já existe. Não parece simples? Mas só parece, a gente sabe.
VEJA — Isso seria, a seu ver, o reflexo de uma situação mais grave e mais profunda?
CHICO —É, eu acho que sim. Mas daí já se entra num campo um tanto ou quanto mais delicado... Digamos que aí já vou entrar num campo que não domino, de política econômico-financeira, de que não sei nem a terminologia, e sou capaz de fazer uma afirmativa sem base, no ar, o que é sempre um perigo. Mas é claro, está na cara, que no meu tempo aqui não era a terra do Marlboro. Os cigarros ainda tinham o recato de se chamar Continental. Agora, é tudo mais ostensivo. As marcas de fora são aceitas como melhores tanto nos cigarros quanto no teatro, na música ou no cinema.
VEJA — Durante a entrega dos prêmios Molière, dos melhores do teatro carioca, recentemente, no teatro Hotel Nacional, correu a notícia, ou boato, de que sua ausência e a de Paulo Pontes, escolhidos como melhores autores teatrais de 1975, por "Gota d'Agua", teria, vamos dizer, uma relação com tudo o que você disse acima.
CHICO — Muita gente disse: que atitude orgulhosa, antipática. Pois é, uma atitude antipática a gente tem de tomar de vez em quando. No caso, porque as pessoas se esqueceram de que, em 1975, quando "Gota d'Àgua" foi considerada a melhor peça, no mesmo ano, para citar só um caso, "Abajur Lilás", de Plínio Marcos, foi proibida. Neste mesmo ano, "Rasga Coração", de Oduvaldo Vianna Filho, teve abortada uma tentativa de encenação, também por ordem da Censura. Eu e Paulo Pontes conversamos e chegamos à conclusão de que seria pouco ético botar smoking e ir lá receber um prêmio que talvez nem fosse da gente. Se "Abajur Lilás" ou "Rasga Coração tivessem conseguido chegar ao público, portanto disputar aquele prêmio, será que nós teríamos sido os autores escolhidos? Por isso não fomos.
VEJA — A festa do Molière foi transmitida pela Rede Globo. E seu relacionamento atual com a Globo parece não ser dos melhores.
CHICO — Não é mesmo. Mas isso não influiu no fato de estarmos ausentes da festa de entrega dos prêmios. Agora, se quer saber, meu caso com a Globo tem outras implicações. Na época em que mais precisei de dinheiro, em que a Censura estava mais brava, eu todo endividado, o pessoal da Globo, ninguém em particular, apenas um porta-voz da máquina Globo de Televisão, disse que eu estava proibido de aparecer em seus programas. Depois suspenderam a proibição e ficou um problema cíclico, de proibição ou ausência voluntária, de minha parte. Porque nunca ninguém se responsabilizou pela proibição, porque a Globo é prepotente, resolvi me afastar voluntariamente de seus programas. Chegaram a dizer que não precisavam de mim. Eu também não preciso dessa máquina desumana, alienante. Então estamos quites. A verdade é que quiseram fazer molecagem comigo. E isso eu não admito. Máquina nenhuma do mundo, em nome de nada, pode desrespeitar um ser humano no seu direito básico de trabalhar para seu sustento.
VEJA — Já que se chegou ao terreno pessoal, vamos nos aprofundar. Quando viveu fora do Brasil, quando as proibições aumentaram, houve desânimo, vontade de parar?
CHICO — Desânimo? Sim. Quase desespero. Mas surgia a idéia de que, se estavam me proibindo, proibindo tudo que fazia, isso devia ter alguma importância. Meu trabalho, então, parecia poder ser útil a alguém. Minha resistência também. Daí eu só podia resistir. E continuei.
VEJA — A que esta espécie de estoicismo poderia conduzir?
CHICO — Os momentos de perplexidade, quando bem digeridos, só podem conduzir à ação, aos fatos. Nada daquela história de coitadinho. Nem de dizer que artista censurado é artista proibido, que vende mais. Para um raciocínio honesto, realista, podemos, exemplo, citar números. O LP "Chico Canta" era para chamar "Chico Canta Calabar". Com a proibição da peça, o título diminuiu. A capa também, censurada, ficou toda branca. E o "Chico Canta" do título cantava o quê? Muito pouca coisa, apenas algumas letras pedaços de letras permitidos pelos censores. Pensa que isso gerou promoção Foi o disco meu que menos vendeu. Censura não rende nada, nem divulgação
VEJA — Finalmente, o que pode ser feito, de objetivo, para a sanidade da arte produzida no Brasil?
CHICO — Primeiro, a arte teria ser deixada em paz. Só depois é que se poderia pensar em medidas de apoio, de proteção. Primeiro, a liberdade. Depois, as leis de proteção, as verbas de incentivo, o apoio oficial realmente positivo do tipo que fomenta sem subjugar.
VEJA — De seu ângulo, como vão os artistas brasileiros, neste instante
CHICO — Apesar de tudo vão bem. Só que sem muito obrigado, pois o há de positivo não se deve a ninguém mas a todos. Sinto meus colegas muito atuantes. O pessoal de teatro se juntar para mudar uma injusta lei de regulamentação de sua profisssão. Um filme como "Xica da Silva", de Cacá Diegues, um show como "Doces Bárbaros", dos baianos, são provas de que a arte brasileira está aí, viva, produtiva. A Sombras reúne compositores em defesa de si mesmos, de seus direitos mais primários. Então, o momento é — sempre foi, sempre será — de união de todos os que desejam preservar a arte brasileira em sua pujança nunca negada e em uso pleno da necessária liberdade de criar
O som do Pasquim
Quando Chico Buarque soube que a entrevista que deu pro PASQUIM ia sair neste livro, bronqueou: "De jeito nenhum, aquilo está completamente desatualizado!" "Mas como é que o livro vai sair sem você, Chico?", ripostamos. O jeito era fazer nova entrevista; Chico teve que interromper os ensaios da "Gota d'água" e nós largamos a redação no dia do fechamento de edição, numa sexta-feira. Antes passamos num armazém pra comprar a bebida predileta do Chico, uma garrafa de Fernet Branca, e fomos nos encontrar com ele no Comidinhas e Bebidinhas ali na Lagoa. Tudo às carreiras, numa verdadeira reprise da "Roda Viva". Mas valeu: pra nós que papeamos com o Chico durante 3 horas e bebemos com ele o Fernet, muito chope e caipirinha e pra vocês que ganharam uma entrevista zero quilômetro, inédita e exclusiva.
Jaguar - (A entrevista começa com Ziraldo brindando os presentes com uma magnífica interpretação de "Carolina" em espanhol, batucando o bolero com os dedos na mesa).
Ziraldo - Quando você era adolescente, sacava que música iria ser a sua?
Chico - Até receber meu primeiro cachê - e até mesmo depois - nunca imaginei que fosse viver de música. Não tava nos meus planos. Sempre gostei muito de música, escutei muita música na minha infância, inventava músicas de brincadeira na escola...
Ziraldo - Você lembra de algumas dessas músicas?
Chico - Não. Mas havia colaborações no nosso jornalizinho de escola, escrevia versos, bobagens mesmo.
Ziraldo - Antes de compor, você gostava de escrever?
Chico - Sim. Tudo que era jornalzinho de escola...
Jaguar - Quais escolas?
Chico - Fiz ginásio e científico numa escola de padres em São Paulo, Santa Cruz, com uma saidinha pra Cataguases, onde fiquei interno seis meses. Também escrevi para um jornal de Cataguases. Jornalzinho era comigo.
Ziraldo - Em Cataguases contam com grande orgulho que você foi aluno do colégio de lá. Parece até que você passou a vida toda lá.
Jaguar - É aquele colégio que tem o painel do Tiradentes?
Chico - É. Tem muita coisa lá.
Ziraldo - Você é paulista, né?
Chico - Não, sou carioca, mas me formei em São Paulo.
Ziraldo - Que maternidade você nasceu?
Chico - Na São Sebastião, no Largo do Machado.
Ziraldo - Foi garotíssimo pra São Paulo?
Chico - Com dois anos de idade. Mas não me considero muito paulista. Minha família toda era do Rio, e passava o tempo todo, as férias, no Rio. Meu apelido em São Paulo era "Carioca". Fiquei meio equidistante entre paulista e carioca.
Ziraldo - Você é desses Hollandas todos que desceram do Nordeste?
Chico - Meu pai é paulista. Minha mãe é carioca.
Ziraldo - Que que o Aurélio é seu?
Chico - Nada. Deve ser parente lá nessas lendas.
Jaguar - (decepcionado) Eu pensei que fosse seu tio.
Ziraldo - Ele não é primo do Sérgio Buarque de Hollanda?
Chico - A bem da verdade ele não é Buarque de Hollanda. Esses nomes as pessoas vão montando. Quem inventou "Buarque de Hollanda" foi meu avô. Juntou "Buarque" com "Hollanda". O pai do Aurélio é Buarque Ferreira, tem um "Hollanda" noutro lugar, e juntou. Aí criou essa confusão.
Jaguar - Você conheceu o Paulo Duarte?
Chico - Muito. Ia lá em casa, ele, Juanita.
Ziraldo - (começando a misturar os Buarque e os Hollanda): Teu pai é o Sérgio, né?
Chico - Sérgio Buarque de Hollanda.
Ziraldo - Você fez vestibular pra alguma faculdade?
Chico - Pra Arquitetura. Larguei a FAU no terceiro ano.
Ivan Lessa - Aí já tava indo de música?
Chico - O violão baixou com a bossa-nova. Foi aí que comecei a me interessar por música, pra valer.
Jaguar - Alguma pessoa te levou pra fazer música?
Chico - Vinícius era muito amigo lá de casa. Moramos dois anos em Roma, e Vinícius era cônsul. Era meio um mito, chegava lá com o violão, cantava as músicas dele. Lembro exatamente o dia em que saiu o disco do João Gilberto. Dizia-se lá em casa: "Saiu um disco com músicas do Vinícius". Naquele tempo ele tinha poucas coisas de sucesso, e "Chega de Saudade" tava pintando. O pessoal lá em casa comprou o disco pelas músicas do Vinícius. Quando eu ouvi me bateu na hora. "Chega de Saudade" bateu... (bate na mão) pa! Negócio de ficar ouvindo dez, vinte vezes seguido.
Ziraldo - Você tinha tocado violão, aquele negócio de duas posições?
Chico - Não. A minha irmã tinha tentado me ensinar, mas eu não tinha me ligado. Quando comecei a aprender tinha aquele negócio de bossa-velha e bossa-nova. Minha irmã estudava bossa velha. Eu não queria saber mais... Eu e um amigo meu começamos a tirar, de ouvido, imitar, a batida de bossa-nova no violão.
Ziraldo - Pegou com facilidade?
Chico - Não. A minha mão... (olha para os dedos) não tem habilidade manual nenhuma. Sou mau violonista até hoje.
Ziraldo - Mas dá pra quebrar o galho?
Chico - Dá inclusive pra compor. Dá pra tocar. Mas em gravação minha não ouso tocar violão. Nunca toquei violão em gravação minha. A não ser na primeira, "Pedro Pedreiro". Toco mal, por deficiência motora. Faço nada direito com as mãos.
Ziraldo - Música também você nunca estudou?
Chico - Mais tarde tomei aulas com a Dona Graça. Aprendi alguma coisa de teoria. Depois, com o contato com o violão, sei o que estou fazendo. Sei fazer cifra.
Jaguar - Você escreve música?
Chico - Muito mal.
Ziraldo - Mas se não tiver um gravador, você escreve pra não esquecer?
Chico - Sim, acontece. Mas é quase impossível esquecer, porque na hora que a gente faz, fica repetindo, repetindo. Quando tenho que sair, um negócio que não pssoo desmarcar, aí gravo ou escrevo.
Ivan - Foi "Chega de Saudade" que te despertou, te levou pro trabalho. Então você é filho da bossa-nova.
Chico - Sem dúvida nenhuma. Claro que depois voltou toda uma carga que eu tinha. Mas antes da bossa-nova não tinha me interessado em pegar no violão.
Ziraldo - Isso foi em Roma ou em São Paulo?
Chico - São Paulo. Volta de 60, 61.
Ziraldo - Tava na faculdade?
Chico - Não. Antes da faculdade já tinha cantado em showzinhos de escola, de formosura.
Ivan - Cantava o quê?
Chico - Aí comecei a fazer minhas musiquinhas. Queria ser bossa-nova, queria cantar igual João. As melodias eram bossa-nova, a harmonia procurava ser... tudo imitação.
Jaguar - Com aquela voz bem desmilinguida.
Ziraldo - Você é um cara criativo demais, tem uma inquietação criativa, mania de ficar bolando coisas. Inventa jogo, escreve verso, escreve peças. Você tem essa criatividade desde garoto?
Chico - Sim
Ziraldo - E a poesia? Pintou antes da música?
Chico - Fazia poeminhas, na escola.
Jaguar - Sonetinhos?
Chico - Sempre.
Ziraldo - E acrósticos?
Chico - Acrósticos! Pra namorada, a Liliana!
Tarik de Sousa - Não teve uma influência também do Vinícius anterior ao João Gilberto?
Chico - Tinha, mas nunca me estimulou a tocar violão. Minha irmã, a Miúcha, seu violão chamava Vinícius, cantava aqueles negócios. Mas eu pegava o violão pra ouvir João Gilberto.
Jaguar - Obrigado, João Gilberto! Olha, muitas vezes acontece comigo de estar quase dormindo e bolar um cartum. Aí penso: "Porra, amanhã eu anoto a idéia". E aí, no dia seguinte, fico puto da vida, dando voltas, e não consigo me lembrar. Isso acontece com você? Você já perdeu uma música,
Chico - Perder, não.
Jaguar - (enchendo o copo) Isso acontece muito com a gente que toma Fernet Branca.
Chico - (enchendo o seu também) Tem um negócio que experimentei em Nova Iorque. Existe um estágio que chamam de alfa. Através de um treino com eletroencefalograma, você aprende a entrar, por vontade sua, nesse estado alfa. É o estado logo antes do sono, meio letárgico.
Ricky - Muita gente diz que é o estado mais criativo, as coisas sobem à tona.
Chico - Mas quando acontece de pintar uma idéia, não consigo dormir mais não. Aí: (estala os dedos). Agora acontece também de no dia seguinte eu olhar e achar uma merda.
Ziraldo - Eu sonho cartuns. Com música não dá pra sonhar um acorde, mas cartuns já sonhei uns 30.
Chico - Dá pra sonhar uma idéia de letra pra uma música.
Ziraldo - Você já sonhou uma coisa, achando uma perfeição, e no dia seguinte, acordado, não acha nada? "No sonho era uma beleza..."
Chico - Isso acontece muito.
Ivan - Aconteceu com o poema "Kubla Khan", do Coleridge. Ele tinha tomado Laudanum, e adormeceu. No sono provocado pelo Laudanum compôs o poema, todinho.
Jaguar - Acordou e passou a limpo.
Ivan - Viu o poema inteiro, todo. De repente bateram na porta e disseram: "Há uma pessoa de Porlock que quer falar com o senhor". Cortou o poema. E ele esqueceu o resto. Até hoje em inglês, a "person from Porlock" é o sujeito que cortou essa. E é um dos poemas mais sérios da língua inglesa.
Jaguar - Depois desse toque erudito, continuamos com a entrevista.
Redi - Você sente um tema, vai fazendo letra e música sobre ela, na inspiração, ou pensa: "Vou fazer um samba sobre esse tema", passando a meditar sobre ela?
Chico - As duas coisas. Na maioria das músicas as idéias vêm de fora, espontaneamente. Mas também há as músicas de encomenda. Por exemplo, músicas para uma peça, um filme.
Ziraldo - Trabalhar sob encomenda te machuca? Não tem grilo nenhum?
Chico - Não. Tenho que ter liberdade total. Não é uma encomenda que te restringe, mas uma sugestão, quase. Filme do Hugo Carvana, por exemplo. Te mostram uma cena. Uma vila do Catete, as pessoas, aquela promiscuidade, coisa meio italiana. Aquilo me sugeriu uma música que não tem nada a ver com o filme, mas tem a ver com aquilo que o Carvana me mostrou. Inclusive "Com Açúcar, Com Afeto". A Nara pediu uma música assim.
Tarik - Foi sugestão da Nara?
Chico - Ela cantava uma música... não me lembro se era "Meu Moreno fez Bobagem". Uma música nessa linha. E me pediu uma música assim, na linha da "Amélia". Não lembro, foi um pedido dela.
Ziraldo - Você bola a letra primeiro e vai encaixando a música nela; ou vai cantando a música e depois bota uma letra na melodia que inventou? Como é o seu processo criativo?
Chico - Isso também varia muito. As mais bem sucedidas são feitas quase que pau-a-pau. Tenho músicas que terminei e não pintou letra nenhuma.
Ziraldo - Você faz como o Caymmi: uma letra monstro pra depois arrumar?
Chico - Faço quando é de parceria.
Ivan - Nunca entendi como funciona a parceria.
Chico - É outro processo completamente diferente. Varia de compositor pra compositor.
Ziraldo - Parceria é muito menos inspiração e mais transpiração. Fica a noite inteira conversando com o cara: "Não é por aí não, vamos por aqui".
Chico - Acho um exercício ótimo.
Tarik - Quando eu te conheci em São Paulo, você estava com o pessoal da FAU, e tinha o Sambafo. Era um negócio muito mais ligado ao samba do que à bossa-nova. Qual foi o intermediário pra você passar de João Gilberto ao samba?
Chico - Assisti a um show no Mackenzie onde apareceu Vinícius com Baden. Tinham acabado de chegar, cantando sambas novos. Eram sambões, "Formosa". Me lembro de um comentário de uma cantora que eu conhecia: torceu o nariz e falou: "Aquilo é meio bossa-velha". Havia esse preconceito. Mas comecei a gostar daquilo de novo. Negócio de ir pra butiquim e cantar todo mundo junto. Não dava mais. A bossa-nova já tinha uns cinco anos.
Ziraldo - Você tinha 19 anos?
Chico - É. Estava na FAU.
Ziraldo - Mas você sabia fazer projetos?!
Chico - (rindo) Sabia nada. Fui por exclusão. Gostava de mil coisas, tinha muita criatividade, mas nada de prático.
Jaguar - Você tava fosseado estudando arquitetura? Estudava por estudar, achando que tava numa errada?
Chico - Não, fiz o primeiro ano direitinho.
Ziraldo - Você copiou aquelas retículas e sombras de desenho artístico?
Chico - (sorri) Fiz aquilo tudo. Tinha 3 desenhos: esse aí, de fazer textura, que aprendi no cursinho; o geométrico; e um que era livre. Dava um tema: Ferrovia. (risos) Aí fiz um trilho assim... (desenha com o dedo na mesa) uma família de retirantes assim... fiz como se fosse um X... (ri) achei essa idéia genial. Mas passei com quatro, quatro e meio.
Ziraldo - Seu negócio era esperar o trem em "Pedro Pedreiro" e não na faculdade.
Chico - Consegui a média pra passar com Matemática, que eu gostava.
Jaguar - Você era bom em Matemática?
Ziraldo - Equação do terceiro grau?
Chico - Sabia essas coisas todas.
Jaguar - É raro um artista gostar disso.
Ziraldo - Mas músico em geral pensa como um matemático.
Ricky - O Serialismo, por exemplo, era baseado em princípios matemáticos. As letras do Chico, também, são matematicamente precisas e construídas em série.
Ziraldo - Eu saquei isso imediatamente com "Sonho de um Carnaval" que foi a primeira coisa sua que pintou num festival. (canta) "Carnaval, desengano..."
Chico - Foi classificada num festival, foi pra final, e aí não aconteceu nada. Vandré que cantava.
Ziraldo - Seu primeiro sucessão foi esse, não?
Chico - Saiu um compacto, com "Pedro Pedreiro" e "Sonho de um Carnaval". Depois veio "Olê, Olá".
Jaguar - Você tem alguma organização de trabalho, um sistema? Só trabalhar de manhã, de tarde...?
Chico - Com música não. Quando me meto a fazer uma peça de teatro aí tenho uma certa estrutura.
Jaguar - Música é aonde pinta.
Chico - Música você pode fazer em cinco minutos. Às vezes se leva dois meses. Não adianta impor uma disciplina pra música.
Ivan - E a bossa-velha? Como é que você encontrou ela?
Chico - Nunca procurei nada.
Ziraldo - Mas a sua casa era muito musical. Você ouvia disco pra burro. Sabe 40.000 letras de música.
Chico - Sei bastante.
Jaguar - O Tom tem uma memória prodigiosa.
Chico - Tom sabe muito mais que eu. Caetano também sabe.
Ziraldo - Tom sabe muito mais?
Chico - Sei bastante.
Ziraldo - Caetano é impressionante. Você também andou com ele naquele programa?
Ricky - "Essa Noite se Improvisa".
Chico - Quando ele começou eu tava meio saindo.
Ivan - Eu via todos esses programas!
Ricky - Os prêmios para o primeiro lugar eram Gordinis.
Chico - Uma vez eu inventei a música.
Ziraldo - (rindo) Apertou e não sabia...
Chico - Vinícius era engraçadissímo. Sempre distraído, na hora de apertar o botão nunca chegava a tempo "A palavra é: 'Garota"'. Aí o Vinícius pããã! Foi cantar, felicíssimo. "Olha que coisa mais linda, mais cheia..." (Chico não consegue cantar mais de tanto rir). Não tem "garota"! Era "Garota de Ipanema"... "olha que coisa mais linda..."
Ziraldo - Não tem garota! (risos gerais)
Chico - Tava ao meu lado, aquela felicidade. Conseguiu apertar o botão antes de todo mundo!
Ziraldo - Agora eu pergunto a você: garota?
(Chico pensa).
Ivan - (rapidamente): "Só tem garota na guarnição..."
Ziraldo - (lembrando-se) Ah é: "Eu sou o pirata da perna de pau..."
Ivan e Jaguar - "Só tem garota na guarnição..."
Chico - Essas brincadeiras dependem de treino.
Ivan - Mas essa eu ganhei.
Ziraldo - Ponto para Ivan Lessa! (aplausos)
Redi - Ganhou a "garota".
Jaguar - (hesitando e escolhendo as palavras) Seus fãs... acham suas letras sensacionais... Mas sua música...
Ziraldo - ... é uma merda! (risos)
Jaguar - (ficando vermelho) Não, não é merda não! Mas o forte é a letra. Agora, tem um amigo meu, o Bobby Moover que casou com uma aeromoça e andou aqui pelo Brasil. Um cara do cacete, tocou com Chet Baker, fez um show com Lúcio Alves. Esse cara, no fim, tocava Pixinguinha perfeitamente. E na opinião dele o maior músico em termos de criação era você. Eu mesmo fiquei surpreso com isso. (risos)
Chico - Eu também.
Jaguar - "Mas não é o Milton Nascimento?" "Não. Chico Buarque." Aí começou a tocar no seu saxofone a variedade de coisas que você faz.
Ivan - A riqueza harmônica e melódica.
Jaguar - Puxa vida, o que seria de mim sem você, Ivan!
Chico - Meu trabalho habitual, de fazer música e letra, acho meio furado. Tanto é que o Ênio Silveira tá querendo publicar o livro das letras e eu tô resistindo. Não acho que seja poema. Pra mim a letra e a música são juntas. Vão juntas.
Ivan - Ler "Chão de Estrelas" sem a música...
Ziraldo - A letra de uma música não tem nada a ver com poesia. É uma coisa que não se pode separar da música.
Chico - Não pode. Assim como ouvi agora no dentista uma música minha tocada em FM. Não gosto daquilo. (Cantarola "Januária" rapidamente e com desdém). Não acho legal.
Ivan - Mas tem umas letras que são poesias, apenas pela inversão, pelo malabarismo, pela riqueza. Cole Porter tem umas... Aquela sua: "Vem a noite mais um copo / Sei que alegre ma non troppo", é sensacional.
Chico - Prefiro ouvir com a música. Tenho a impressão que publicar uma letra é metade do meu trabalho. É um negócio filmado a cores exibido em branco e preto.
Ivan - E é um livro só pra sair depois de morto.
Ziraldo - Você faz o verso da palavra. E faz o verso melódico. E um não parece com o outro. Tem que mudar.
Chico - Isso acontece demais.
Redi - Nesse caso muda a palavra ou muda a música?
Chico - Eu acho mais fácil mudar a palavra. Já mudei música também. Esse processo de criação é muito...
Tárik - Momentâneo.
Ivan - Graças a Deus continua um mistério
Ziraldo - Sempre fui preocupado em separar o poeta que faz letra pra música do poeta-poeta.
Chico - É completamente diferente.
Tárik - Você tava lá no Sambafo começando a fazer uns sambas. Conta um pouco dessa fase. O hino era o "Bafo da Onça", aquele samba do Osvaldo Nunes.
Ziraldo - (canta) "Olha o bafo da onça / que acabou de chegar.
Tárik - O negócio era mais um tipo de batucada.
Chico - Na época do Sambafo eu não funcionava muito como compositor. Cantava as músicas. Era "O Bafo da Onça", aquela do Sérgio Ricardo: (canta) "nasceu uma rosa na favela". Era música de circunstância. Tinha uma que fiz de parceria com um amigo meu: "Todo povo tem um osso / O nosso é um presidente sem pescoço". Uma gozação, nada sério, coisa de butiquim.
Tárik - Mas foi praticamente dali que você começou a fazer os shows.
Chico - Mas não era o Sambafo, era uma coisa paralela.
Ziraldo - Isso foi antes de aparecer?
Tárik - Foi. Teve aquela coisa para o Arena, onde você já tinha feito "Marcha para um Dia de Sol".
Chico - O Sambafo era mais uma transa de todo mundo cantar junto. Eu não fazia música pra lá. Só essas de sacanagem.
Ziraldo - Na sua família, não havia uma necessidade de formar? Teve grilo pra sair da faculdade?
Chico - Volta e meia ela fala: "Você não vai voltar"? (risos)
Ziraldo - Que coisa chata: você não é o Dr. Francisco Buarque. Como é que chama sua mãe?
Chico - Maria Amélia.
Ziraldo - Vocês são quantos?
Chico - 7.
Ivan - Dá um coral.
Chico - E era um coral. A gente cantava junto, música americana, Miúcha minha irmã tocava violão.
Ivan - Música americana?
Chico - Tipo The Platters.
Jaguar - Eram uns Garotos de Ébano Branco. (risos)
Ivan - (imita as vocalizações dos Garotos de Ébano)
Ziraldo - A sua primeira experiência de musicar letra foi com João Cabral?
Chico - Foi a primeira e única.
Ziraldo - Você não musicou mais nada?
Chico - Só Cecília Meireles: "O Romanceiro da Inconfidência". Para um espetáculo feito por Flávio Rangel.
Ziraldo - Das suas músicas, tem algumas com letras de outras pessoas?
Chico - Tem parcerias, mas aí não é bem "letra de outra pessoa". Faço a letra junto com outros. Trabalhei com Ruy Guerra, com Vinícius.
Ziraldo - A quatro mãos.
Chico - Tem letras que não consegui desenvolver, parei no meio. Em geral parceria que faço é letra pra música. Com Tom, Francis Hime, Toquinho, Edu...
Ziraldo - Vocês sentam juntos, ou levam a música pra casa?
Chico - Em geral é junto. Fica a fita, a gente trabalha sozinho. Mas trabalhar só com fita, à distancia, é difícil.
Ziraldo - Eu queria saber como foi sua experiência com João Cabral. Tem aquele negócio da métrica: às vezes precisa de mais uma palavrinha no verso pro acorde ficar igual, aí tem que segurar a ponta do acorde. Como foi?
Chico - Era uma luta.
Ziraldo - Saiu um negócio direito pra burro.
Chico - Existiu uma malandragem no meio. Me lembro de um verso que não coube de jeito nenhum. O trabalho era de equipe. Roberto Freire é que estava dirigindo o negócio. Mesmo no começo os atores participavam desse processo. Lembro de uma música no final, quando nascia a criança: "De sua formatura / deixai-me que diga / é belo como um coqueiro... Bom como caderno novo" Um verso não cabia de jeito nenhum. Convenci eles colocarem de uma atriz correndo de repente e dizendo o verso. (falando rapidamente) "Da sua formosura deixai-me que diga!" (risos gerais).
Ziraldo - Colou! Criatividade é isso.
Chico - E outras coisas que fomos cortando porque não cabia na letra. Uma delas fiquei chateado, depois porque cortei sem pensar. Não tinha pensado mesmo. Era uma brincadeira, uma crítica, ao Gilberto Freyre. E eu não tava sabendo. Depois o João Cabral me perguntou porque eu tinha tirado. Realmente era porque não cabia na música. "...um mocambo modelar / como dizem os sociólogos do lugar." Mas eu não tinha ligado sociólogos a Gilberto Freyre. E "so-ció-lo-gos"... não dá.
Ziraldo - Livrou a cara do Gilberto sem querer. Se soubesse, não tinha livrado.
Chico - Botava "SOCIÓLGOS":
Jaguar - Adoro fazer perguntas de estagiário! Qual a sua música predileta?
Chico - Não tenho.
Ivan - Que achas do "Beijo"? Ë uma música?
Jaguar - Não tanto, né Ivan.
Chico - A música que se está fazendo na hora é a paixão absoluta.
Jaguar - E qual é?
Chico - No momento não estou fazendo nenhuma. Segundo, a que se acabou de fazer. Depois, ouvir a música pela primeira vez no rádio.
Jaguar - E dos seus clássicos?
Chico - Não escuto. Não tenho predileção nem gosto por nenhuma delas.
Jaguar - Você é que nem o Robert Mitchum, que não vê os próprios filmes.
Tárik - Qual foi a coisa que fez você sentir que ia virar um profissional de música e largar a faculdade?
Chico - Não houve um momento. Foi aos poucos e sem me dar conta.
Ivan - E você sempre lendo muito?
Chico - Eu lia muito. Agora tem fase que eu leio.
Jaguar - E sempre escrevendo, como uma atividade paralela?
Chico - Não sei se é paralela ou se está me absorvendo mais do que antes. Paralela não é. Quando estou fazendo uma coisa não consigo fazer a outra.
Jaguar - Jornalismo infelizmente parece que só quando batia um banzo da pátria e você escrevia pr'O PASQUIM
Ziraldo - Encerrou sua carreira de jornalista? Não quer voltar?
Chico - Não tenho projeto de fazer nem isso nem aquilo. De repente pode ser... Não quero é me comprometer.
Ivan - "Entrega na quarta-feira", aquele negócio.
Ziraldo - Você se considera um cara de muita leitura, ou de muita informação por intuir?
Chico - Sou muito mais intuitivo. 90% do que li, li cedo demais, e pra dizer que tinha lido. Aquele negócio, de gostar de ter lido, um pouco do meu pai. Meu pai, Sérgio Buarque de Hollanda, é um culto. Foi historiador, crítico literário.
Ziraldo - Você freqüentava muito a biblioteca dele?
Chico - Transava seus livros todos.
Tárik - Até que página você chegou de "Ulysses"?
Chico - Confesso que não li.
Ivan - Não leu, mas escreveu seu próprio "Ulysses".
Chico - Fiquei com "Ulysses" muito tempo na cabeceira, queria ler no original, cara.
Ziraldo - Lê em inglês?
Chico - Razoavelmente.
Ziraldo - Parla italiano?
Chico - Falo, morei lá.
Ziraldo - Quantas peças você tem, publicadas?
Chico - Duas. E agora essa, "Gota d'água", vai sair.
Ziraldo - As outras duas são "Roda Viva" e "Calabar".
Jaguar - Por que essa nova chama "Gota d'água"? Será que é aquela gota que tou pensando? Ai, ai ai.
Chico - Por aí...
Ziraldo - Li "Fazenda Modelo" e achei muito inventivo. Inclusive muito engraçado. Tem algumas coisas lá que não cabe aqui discutir.
Jaguar - Cabe sim.
Ziraldo - Pegar coisas factuais e meter na obra sem necessidade. Como obra literária, ficava melhor sem isso. Mas não vem ao caso.
Jaguar - Vem sim.
Ziraldo - Negócio de violência necessária e desnecessária.
Chico - Fui acusado disso que você está me acusando, e do contrário também. "Muito barroco. Você tinha que ser mais claro."
Ziraldo - Mas aí seria loucura!
Chico - Não fazer é pior.
Ziraldo - Seria melhor se fosse projetado, fora do tempo, como "1984", do Orwell. Não precisa ficar fazendo pequenas referências factuais, fazendo humor com uma coisa menor.
Ivan - Isso é opinião sua. Ele fez o livro que queria fazer, não o livro que você queria que ele fizesse.
Ziraldo - Não é isso que quero discutir.
Chico - Em todo o caso eu discordo. Não concordo que sejam piadas factuais. O negócio da Copa não entrou nesse livro com essa intenção. Inclusive, se fosse pra disfarçar, teria evitado. Mas inconscientemente tava me marcando muito no momento. O cara não pode se libertar do seu momento pra fazer um livro sem nada de factual.
Ziraldo - Mas podia ficar melhor acabado. Em literatura dá pra você voltar 40 vezes em cima do período.
Chico - Mas eu voltei 50 vezes, Ziraldo. Uma crítica que não se pode fazer é de eu ter soltado coisas sem correia.
Ziraldo - Mas não podia ter deixado.
Chico - Passou assim pra você. Pra mim, que olhei de fora 50 vezes, não apareceu.
Ziraldo - Não quero diminuir seu livro. Acho muito brilhante. Brilhante até demais. Podia ser menos brilhante. O livro peca por excesso de brilhantismo.
Ivan - Você está fazendo uma crítica literária aqui que...
Ziraldo - É uma crítica literária. Pensei até em escrever isso.
Chico - Eu aceito você entrar nesse negócio, porque a crítica literária que se fez foi descuidada.
Ziraldo - Muito ruim.
Chico - Passando por cima. De sacanagem.
Ziraldo - É muito comum uma certa implicância com o eclético. Não admitem que um sujeito seja um gênio numa atividade, e depois venha pra sua atividade. O crítico não resiste à tentação de achar que o cara tá invadindo uma área que não devia. Mas o cara pode ser genial em tudo, pô!
Chico - Quando o sujeito larga tudo, como eu fiz, durante 9 meses, pra editar um livro... Não fazer aquilo de que você vive... Então não está querendo a glória, faturar dinheiro. Tá cagando. É uma necessidade biológica do homem. Pra valer.
Ziraldo - O livro foi uma necessidade biológica?
Chico - Não foi brincadeira. O que me irrita não é o que você está falando, mas o livro ser levado como uma brincadeira, com pouco caso.
Ivan - Teve pouco caso?
Ziraldo - Um pouco caso enorme!
Chico - No Globo saiu uma besteira, um cara dizendo que é um desabafo. Desabafo a puta-que-pariu! Na Veja, talvez por eu ser um romancista estreante, convocam um critico estreante. No Jornal do Brasil saiu um trabalho sério no Suplemento do Livro. Em seguida: pá! aquele Hélio Pólvora gozando.
Ziraldo - Mas o Hélio é um excelente escritor. Só que não admite o eclético.
Chico - Tem que levar em consideração o trabalho da pessoa. A "Última Hora de São Paulo também foi de sacanagem. A crítica foi muito boa mas o tal de Gibaúna não deixou sair. Aí é fogo, né"?
Jaguar - Todo mundo acha que o Chico, sendo compositor, não tem que escrever.
Ziraldo - Tem que escrever sim, ué!
Ivan - Eu acho que o Chico foi de uma coragem enorme ao escrever esse livro. Está exposto a essas coisas todas. Sabe como funciona o mercado.
Chico - No próprio meio teatral há um ressentimento da crítica quanto ao fato de eu escrever teatro. É fogo. Com esse livro tava me candidatando a outra cacetada.
Ziraldo - Eu sofro isso também. A única coisa que não faço é música.
Jaguar - Ainda bem.
Ziraldo - Mas eu quero fazer tudo! Tudo que faço é com o maior zelo. Os caras dizem aí: "Devia se limitar a fazer..." Tem que limitar nada! A pergunta que eu ia fazer era em cima da coincidência que fazem com o "Animal Farm". Ouvi que você tinha dito que nunca tinha lido esse livro.
Chico - Não li mesmo. (ri) Agora não vou ler. Eu conhecia o Orwell de nome, de "1984".
Ziraldo - Esse cê leu, né?
Chico - Também não li.
Ivan - Não precisa ler não. Já tá por aí.
Chico - Vi um negócio no Jornal do Brasil sobre o Orwell. Falava de "Animal Farm" e tinha a capa do livro. "Puta-que-pariu, Essa capa podia ser do meu livro." O livro já estava pronto. Mas nã li "Animal Farm". Nem tinha ouvido falar.
(Chegada do editor argentino do Chico, que informa, em primeira mão para O PASQUIM, que "Fazenda Modelo" será lançado na Argentina.)
Ziraldo - Acho "Calabar" melhor do que "Fazenda Modelo".
Ivan - São dois gêneros.
Ziraldo - Então vamos mudar de assunto. Chega de livro.
Ivan - Só quero estabelecer essa diferença. "Calabar" é uma peça. "Fazenda Modelo" não é.
Chico - Não consigo compará-los.
Jaguar - O que você acha mais burra: a crítica literária ou a crítica musical?
Chico - (franze o nariz)... Páreo duro. Eu não gosto muito também de ficar mostrando ressentimento com crítica. Me queixo só do pouco caso com o trabalho de um autor novo. Com música é diferente, tenho 10 anos de experiência.
Ivan - Não acho pouco caso, acho má vontade. "Vou deixar pra lá, pra que mexer nisso? Ele faz música."
Ziraldo - Quero registrar nesse momento a presença de minha mulher Wilma, e minha cunhada.
Ricky - Por isso não. Registro também a presença de minha mulher, Wilma, e minha cunhada.
Jaguar - Quero aproveitar a ocasião para cumprimentar meus familiares.
Ivan - Gostaria de enviar um beijo para minha filha Juliana, que faz seis meses na próxima quarta-feira.
(Anoitece. A lagoa fede. O Cristo brilha. Pela janela as luzes acendem. Os garçons desviram as cadeiras, ruidosamente, e passam panos na mesa.)
Ziraldo - Chico, quando você começou a incomodar e a se sentir incomodado?
Ivan - Ou seja: quando é que ficou moça?
Chico - Minha primeira experiência assim foi com a música do Tamandaré. No fim, deixa pra lá, a música não era grandes coisas. Mas o Tamandaré era patrono da Marinha.
Tárik - Isso foi 66.
Chico - O negócio começou a engrossar mais com "Roda Viva". Espancaram os atores e destruíram tudo em São Paulo e Porto Alegre. Aí proibiram a peça de vez, em todo o território nacional. Foi a primeira engrossada maior.
Ivan - Porque entenderam ou porque não entenderam?
Chico - A história que me contam é a seguinte: em São Paulo, o CCC - Comando de Caças aos Comunistas ia empastelar outra peça. Iam acabar com a "Feira de Opinião". Chegaram lá, já armados, preparados, e a peça já tinha acabado. Aí aproveitaram... (risos) Pra não perder a viagem, esculhambaram o "Roda Viva".
Ivan - São desorganizados pacas.
Chico - Mais tarde, numa espécie de interrogatório, uma autoridade perguntou o que tinha na peça. A peça não tinha absolutamente nada, era sobre o meio artístico
Jaguar - Sobre "A Máquina".
Chico - A engrenagem que nos tritura. Aí ele diz: "Se você acha que não tinha nada, porque é que fomos obrigados a fazer o que fizemos"?
(silêncio geral)
Ivan - Tenho medo de fazer a pergunta seguinte. Façam aí! Eu não faço!
(Ziraldo, coragem súbita, fala.)
Ziraldo - Antes do Zé Celso entrar na jogada, em vi o seu texto. Era outra idéia. Depois de montada, considerei "Roda Viva" muito mais Zé Celso do que você.
Ivan - O que era "Roda Viva"?
Chico - "Roda Viva" texto, não era nada.
Ziraldo - O espetáculo não era o que você tinha proposto na sua cuca. Zé Celso entrou no meio do caminho. Botou aquela loucura na peça. Ela tinha aquela loucura proposta?
Chico - Não, mas eu acompanhei a loucura.
Jaguar - Avalizou.
Chico - Entrei mesmo e assumi. Tava presente durante a montagem toda. Fiz música, durante os ensaios.
Ziraldo - Você mudou o final.
Chico - Fui burilando.
Ziraldo - Você queria levar a peça de qualquer jeito ou foi porque o que o Zé Celso propôs se aproximava mais da sua intenção?
Chico - Porque a peça, assim que ficou pronta, era muito vazia. Não tinha nada.
Ivan - Dê um resumo.
Chico - Negócio de empresário, público, de IBOPE, de televisão.
Ivan - Era simplesmente sobre a máquina e a engrenagem.
Ziraldo - Não tinha o teor político que passou a ter.
Ivan - Tudo é político.
Chico - Não sei se ficou mais política. Ficou mais polêmica, mais forte, brutal.
Tárik - Ficou política no sentido visceral, das vísceras.
Ziraldo - Isso, tava no estômago do problema do país.
Chico - Apareceu o Zé Celso pra montar. Eu conhecia "O Rei da Vela". Na hora pensei: "Vai ser uma barra". Topei a barra, inclusive me anulando como autor. O espetáculo montado é praticamente dele. Só ele teria imaginado aquilo a partir do texto escrito.
Tárik - A "carpintaria teatral" foi dele.
Chico - Eu tava lá. Não fui traído. Reconheci, conscientemente, que a peça era fraca, e que só o trabalho dele daria uma dimensão melhor.
Ivan - A agressividade direta... Vou eu com meu pai ver "Roda Viva". Antes vejo o Peréio na porta, bato papo, "Oi, tudo bem?". Tem uma parte que o Peréio fica sentado do lado, e dependendo de quem tá na platéia ele dá uma agressão. Como fez com Flávio Rangel e Paulo Francis "Ei, Flávio Rangel é boneca!"
Jaguar - Comigo também.
Chico - Comigo também.
Ivan - Com todo mundo.
Ziraldo - Você queria essa agressividade?
Chico - Ficou combinado que aquele personagem, do Peréio, ficaria por conta dele. Tinha liberdade pra xingar quem quisesse, como me xingou todas as vezes que fui assistir. Não me livrou a cara. Era a participação do Peréio dentro do negócio.
Ivan - Perfeito. Dava ódio: "Aquele é mau caráter. Bom caráter é o pai dele, o Orígenes". Fiquei puto da vida. Agora que sei que é coisa do Peréio, acho ótimo.
Ziraldo - Se a gente pegar toda a sua obra, que faz parte do mais importante que estamos vivendo, vemos que é profundamente agressiva e criativa. O que não é, de jeito nenhum, é grossa. Mesmo a engrossada da "Fazenda Modelo" é meio contida. Você não bate com os dois pés no peito. Mas bate bem. É aquele boxeur que não viu onde a porrada pegou. Mas a "Roda Viva" era um pé na cara. Isso não te violentou?
Chico - Na hora que dei o espetáculo pra ele montar, tava sabendo que ia ser um espetáculo do Zé Celso. É um criador genial. Agora, não tem texto. Essa peça, "Gota d'água", não entregaria não! É uma peça que prezo, faço questão que as palavras sejam aquelas. "Roda Viva" não existia. Foi um ensaiozinho de quem nunca tinha feito teatro. Agora, porra, sou 10 anos mais velho. Tenho mais experiência e confiança no que tô fazendo. Se você falar que a peça é uma merda, vou discutir contigo. Vou brigar. "Roda Viva", antes que você fale, digo: "É uma merda".
Jaguar - Qual é a mensagem de "Gota d'água"?
Chico - (pensa e vai falando devagar marcando as palavras com as mãos) É a "Medéia", de Eurípedes, adaptada para o subúrbio carioca. Toda a tragédia grega é essa tragédia carioca. O Layout da peça é a Luta Democrática. Medéia mata as crianças, aquele clima da Fera da Penha. Nessa base.
Ivan - Luta Democrática é perigoso. Vai de O Dia. Um conselho que lhe dou: nome que tem democrática...
Tárik - Você já tinha feito a música "Roda Viva". E a peça foi uma ampliação. Como é que surgiu a idéia da peça?
Chico - Não, quando fiz a música já tava fazendo a peça. Saiu da peça e foi pro festival.
Ziraldo - A música é o resumo da peça.
Tárik - Porque a idéia de ir pro teatro, fazer peça?
Chico - Desde o começo tenho ligação com o teatro. "Morte e Vida Severina". Fiz músicas pro Oficina, "Os Inimigos". Acompanhei teatro, farta parte do negócio a que estava ligado.
Jaguar - E cinema?
Chico - Faço músicas pra cinema. Inclusive tô fazendo agora.
Ziraldo - Você já foi ator num filme.
Ricky - "Quando o Carnaval Chegar", de Cacá Diegues.
Ziraldo - Te acho um cara muito acordado. Percebeu a Roda Viva, sentiu que era uma parada, correu o risco. Você corre o risco. Fez sucesso ganhou dinheiro, e é um homem realizado. E um cara cuidadoso com sua própria vida. Mas porque você deixou sair aquele livro com manuscritos seus, esse tipo de coisa? Infantilidade?
Chico - Claro.
Ivan - Desculpa ótima: "Ha! eu era garoto e não sabia o que fava fazendo."
Chico - Não é só isso não. A gente entra em várias. No começo... Tem mil besteiras que hoje eu não faria. Hoje sou cuidadoso. Mas não era. Porra, de repente, sucesso, "A Banda", o cacete, viagem pra cima e pra baixo.
Tárik - Lembra do Mug?
Chico - Porra, o Mug! Você entra... É um universitário, cheio de amigos. De repente fica famoso. A maioria são grandes amigos, mas tem aquela meia dúzia que pinta: "Pô, tenho uma idéia genial. Lançamos as Roupas Calhambeque pra Roberto Carlos. Agora vamos lançar o Mug". O Mug dava sorte, e tal. Agora vou livrar a cara e explicar porque eu entrei nessa. Pô, um dos caras era o Simonal. Mas outro era Sérgio Porto. Um cara em que sempre confiei. "Vamos lá, qualquer coisa." Topar tudo. Entra aí: o Mug, esse livro, o cara da TV te convidar pra ser Júri do Festival da Canção. Não tá ganhando dinheiro nenhum. Mas de repente tá lá, no Maracanãzinho, entra, tá tocando "A Banda". Tudo de graça. Por nada. (Bate as mãos, displicentemente.)
Ziraldo - É o clima, a loucura.
Tárik - É a Roda Viva.
Chico - Era o porra-louca do quarteirão, e agora é o porra-louca nacional. Fazendo besteira em todo lugar.
Ivan - E tudo que fizer vira acontecimento.
Chico - Júri de Escola de Samba! Ricardo Cravo Alvim: "Vem aqui". "Não entendo nada disso." "Não faz mal. Tamos aí." O sonho da minha vida, durante anos, era vir morar no Rio. Queria morar no Rio e ser amigo de todo mundo, do cara que escreve em jornal. Tá naquela baratinação. Não acha que alguém vá jogar contra. Depois passa a ficar o cara chato, que não dá entrevista. Até encontrar o meio-termo... Tem que dar porrada e fazer besteira.
Ziraldo - Tem que amadurecer.
Ivan - Resumindo: a Máquina, mesmo que ela não saiba, existe.
Chico - A televisão agora tem mais novela. Mas no meu tempo era mais ligado à música. E era imediato. Então a gente não tinha estrutura. Não é um negócio que aos poucos vai-se criando um nome. Não tem como ter discernimento do que vai fazer. O que aconteceu comigo na Itália: estava lá e não sabia como era. Lá, te mandam, você vai. Meus orientadores na vida profissional aqui foram Hugo Carvana e Antônio Carlos Fontoura, pô. (risos) Carvana me levou pra TV Globo: "Tenho um negócio maravilhoso pra você! Um programa! Você vai ganhar 2 milhões por mês! Chama "A Banda". Assinei na hora. Cara assina, pô. Carvana falou que é bom... (ri) Se eu continuasse fazendo aquela merda... O programa era tão ruim... sempre terminava com "A Banda" cantada por um coro de meninos. No terceiro programa simplesmente não fui. Por intuição. Uma intuição que me valeu um processo mas que me valeu uma vergonha a menos.
Jaguar - Olha, vou te contar uma coisa: sempre odiei "A Banda". (protestos gerais) Odiei! Eu ia em Minas, Ouro Preto, aquela burguesada toda cantando. "Nhém nhém nhém nhém nhém nhém nhém". Essa música é insuportável! (risos) Eu posso dizer isso porque sou fã do Chico. Agora, realmente, "A Banda"... Começou muito mal, Chico.
Ivan - Vá à merda, Jaguar.
Jaguar - Você não acha "A Banda" insuportável?
Chico - Eu tenho que achar, depois de ter cantado ela 1.500 vezes.
Jaguar - É uma música sentimentalóide!
Ziraldo - Você viu a sua cara de menino nesse programa "25 Anos de TV" cantando "A Banda" ? Que loucura! Parecia escoteiro!
Chico - Todo mundo arrumadinho. A platéia era um sarro.
Ziraldo - Parecia negócio de 1912. Você ficou quanto tempo na Itália?
Chico - Quase dois anos.
Ziraldo - Esse distanciamento deu pra amadurecer uma porrada de coisas na tua cuca?
Chico - Muito.
(Enquanto Ziraldo faz essas perguntas, Jaguar e Ivan cochicham e morrem de rir).
Ziraldo - (indignado) Os entrevistadores estão ficando de porre.
Jaguar - (rindo) Quando estive em Ouro Preto, como empresário de Nelson Cavaquinho e Zé Keti, era o auge de "A Banda". Os mineiros adoram cantar. Já imaginou 50 Ziraldos cantando "A Banda"? (risos gerais) Que ódio que eu ficava!
Ziraldo - Ele tem ódio é de mim, Chico.
Ivan - 50 mineiros! E nenhum deles acertando uma nota!
Ziraldo - Essa entrevista é para livro, e livro é eterno.
Ziraldo - Daqui a 30 anos essa entrevista será lida.
Jaguar - Espero que o livro esgote antes.
Ivan - Livro é eterno ? Isso é slogan? Vai vender isso pro Instituto Nacional do Livro?
Ziraldo - Ai cacete! (esconde o rosto no braço. Desfalece. Risos vitoriosos do Jaguar.)
Ivan - (com pena) Continue, Ziraldo.
Ziraldo - De 66 a 68 pintou a passeata dos Cem Mil, aquela transa toda. O que você fez na música que levou o pessoal, na hora do AI-5, a te incluir entre os inimigos públicos n.° 1? A gente tava mandando ver, gritando alto, reclamando pra cacete. Foi a última fase em que se reclamou.
Chico - Engrossou por muito pouco. Não dá pra entender. Engrossou mesmo, negócio de acordar com polícia dentro do quarto.
Jaguar - Dentro do seu quarto?! Como entraram pela porta principal do seu apartamento?
Chico - Não é muito difícil.
Ziraldo - Foi aí que você chamou um ladrão?
Chico - Acordei com aquelas cara ali e o zelador atrás.
Ziraldo - Chegaram a te levar? Você ficou recluso?
Chico - Não, soltaram no mesmo dia.
Jaguar - Houve alguma violência específica?
Chico - Física não.
Ziraldo - Quanto tempo depois você saiu pra Itália?
Chico - Dias depois.
Ziraldo - Conta-se que foi sugerido a você.
Chico - Não, eu ia sair mesmo. Ia fazer o MIDEM. Aí aconteceu esse negócio. Pra mim, isso muda a cabeça de qualquer um. Acordar com a polícia dentro do quarto...
Ivan - Você só se politiza depois que for acordado às três da manhã com a polícia batendo na sua porta. Bertold Brecht.
Chico - Brecht falou por mim, (para o garçon) Traz uma caipirinha de vodca, pouco açúcar.
Jaguar - Dois! Pouco açúcar!
Ziraldo - Registro: o Chico já tomou Fernet Branca, chope e agora vai de vodca.
Chico - O chope é pra quebrar o Fernet, que sozinho dá dor de barriga. Tem que tomar os dois.
Ziraldo - E o passaporte pra sair?
Chico - Quando fui lá, fiquei com aquele negócio de prisão domiciliar. Mas afinal, tudo bem, "você é um bom rapaz". Eu tinha simplesmente que avisar toda vez que saísse do Rio. Nessa hora mesmo coloquei que estava com a passagem comprada, pra daí a 10 ou 15 dias. Tudo bem.
Ziraldo - Aí você achou melhor não voltar.
Chico - Já conhecia Roma, adoro. "Tudo bem. Vou com coisa pra fazer, disco pra gravar, trabalho e tal, dinheiro." Fiquei hospedado no Hilton.
Tárik - Você fez uma excursão com a Josephine Baker.
Chico - Isso já foi na fase de horror.
Ziraldo - Explica isso aí.
Chico - Isso foi depois. Vou chegar lá. Bom, iam lançar Chico Buarque na Itália. Os caras da RGE tavam me esperando lá, eu ia ser um grande sucesso na Itália. Fui pra TV italiana e comecei a fazer os programas que me mandavam fazer. Aí começaram as besteiras de novo. Fazia os programas pra divulgar o disco. Estavam esperando certo tipo de coisa e chegou outro cara.
Ziraldo - Esperavam um Domenico Modugno, e chega um cara todo enrustido, falando baixinho.
Chico - Pois é, "A Banda" tinha feito sucesso recentemente lá. Pra mim já tinha 3 anos, não agüentava mais "A Banda".
Ivan - Tava que nem o Jaguar.
Jaguar - (conciliador) Hoje sou capaz de gostar da Banda. Mas sem o apoio da classe média.
Chico - O resultado é que não fiz sucesso porra nenhuma. O pessoal começou a maltratar. No começo era Hilton Hotel, flores pra Marieta, uísque pra mim, almoços, jantares.
Ziraldo - Marieta grávida.
Chico - Não aconteceu nada, começou a esfriar tudo. O segundo disco já não foi gravado. o show prometido já não pintou. Aí começou o horror.
Ivan - O que que foi esse horror?
Chico - Começou o negócio de ter que trabalhar.
Ivan - Cabou o dinheiro.
Chico - Ninguém te conhece. Fiz shows que... Uma hora Toquinho foi me dar uma mão lá. Fizemos um show pra 20 pessoas, na casa de uma marquesa. Começamos a cantar e vimos que não tinha nada a ver, ninguém tava sabendo nada. "Vamos mandar um carnaval!" (ricos) Apelamos pro carnaval. Depois "A Banda". Aí o pessoal cantava. Depois da "A Banda", não tinha outra marcha... Aí ia de "Mamãe eu Quero". Levamos muitos canos também.
Jaguar - Pra nós essa época foi ótima. Você virou até correspondente d'O PASQUIM.
Chico - Não tinha mais que fazer! Ficava formando parte de um terceiro time. É aquele nível que ninguém conhece, daqueles que gravaram o primeiro disco, ou não gravaram ainda. Ou artista velho, que já refudeu. Pra ficar na cerca mesmo. Tinha aqueles também pra que nada tinha dado certo, o que era o meu caso. Com esses tavam putos, porque investiram uma nota, pagaram a minha passagem. Tive que me rebolar mesmo. Ficava mais apavorado do que aqui. Ia sozinho, com meu violão, ou só com o Toquinho. Cantando aquelas coisas que ninguém entendia, olhavam com aquela cara séria. É um troço horroroso!
Ziraldo - E a saudade adoidada do Brasil.
Chico - Minha filha nasceu e tive que fazer mais shows.
Tárik - "Samba de Orly é dessa época, né?
Chico - É. Eu e Toquinho, fizemos uma temporada de 45 dias pela Itália inteira, fazendo o final da primeira parte do show da Josephine Baker. Tinha vários artistas. Tinha uma cantora canadense, um conjunto não sei de onde, e terminava com eu e Toquinho cantando músicas brasileiras.
Ivan - Mas conseguiam fazer alguma coisa?
Chico - Nada, porra, o pessoal ia ver Josephine Baker! Média de idade pelo menos 75 anos.
Ivan - Ma que! Ma cosa fare il brasilliani?
Chico - Foi uma merda! A gente cantou num negócio que parecia sede do Partido Monarquista. Tinha retrato do Rei Umberto. (risos) Não era teatro, era um salão.
Ziraldo - Dava pra pagar suas dívidas lá?
Chico - A gente fazia que dava. Mais 200 dólares que vinha do Brasil. Só podiam mandar 200.
Ziraldo - Ah sim, sua família mandava.
Chico - O PASQUIM também me ajudou nesse horror.
Jaguar - Me lembrei de uma sacanagem que fizeram com você, não só te envolvendo mas também uma porção de pessoas maravilhosas. Foi aquela Escola de Samba que teve como tema Chico Buarque". Era uma escola super simples.
Tárik - De samba mesmo. Lá de Niterói.
Jaguar - O enredo foi simplesmente proibido, por motivos não esclarecidos
Chico - Liberaram uma semana antes do carnaval. Aí já tava esculhambado. Não tinham ensaiado.
Ziraldo - Isso aí, Jaguar, não tem nada a ver com o que estamos falando. Estamos em Roma.
Ivan - Eu não. Tô na Lagoa Rodrigo de Freitas
Ziraldo - A sua volta foi gloriosa e apoteótica.
Chico - Pra voltar, tem que ser fazendo barulho.
Ziraldo - Você voltou pra quê?
Chico - Pra voltar.
Ivan - Porque ele voltou? "Minha terra tem palmeiras..."
Chico - Para um Especial na TV Globo. Voltei na base do "Cheguei!".
Ziraldo - Teve problema pra voltar?
Chico - Não. Mas dá medo.
Ziraldo - No Galeão tinha gente te esperando?
Chico - Tinha a TV Globo inteira. Fui pra casa tranqüilo.
Ivan - Em que ano estamos?
Chico - 70. Cheguei, lancei um disco, fiz esse especial na televisão.
Ziraldo - A única música que você gravou e não é sua é aquela... (cantarola).
Chico - "Menino Jesus".
Ziraldo - De quem é?
Chico - De um italiano, Lúcio Dalla, e de uma mulher, professora, que faz essa letra.
Ziraldo - Por que você gravou essa música? Numa outra gravação, com Nélson Ned, por exemplo, virava uma bosta.
Chico - Não...
Ziraldo - O fato de você gostar dessa música não é o que lhe dá a qualidade?
Chico - Gravei essa música na Itália. Depois de um ano e meio, saudade do Brasil, a gente perde muito a noção das coisas. Fica completamente desnorteado. Quando cheguei no Brasil fiquei completamente desorientado. Esse ano e meio que passei lá, pra mim, pessoalmente, foi maravilhoso. Como artista foi uma merda. Esse disco que gravei lá foi o mais errado que já fiz. Gosto de algumas músicas... Mas tem coisas que não perdôo, que não gosto mesmo. As que gosto são... só quase... São como as mulheres da Argentina: quase maravilhosas. (para o editor argentino) Desculpa. (risos) Não acoplam... (mão direita resvalando na esquerda).
Ziraldo - Vocês conhecem "Dolores Sierra"? (canta) "Dolores Sierra / de mi Barcelona..." (Jaguar tampa os ouvidos). E a mesma história de "Menino Jesus". E é cafona. Se o Chico gravasse uma música de Nélson Gonçalves, venderia.
Jaguar - O leitor adora esse tipo de pergunta: quais os livros que você leu e achou maravilhoso?
Ziraldo - Que pergunta embaraçosa! (para Ricky) Jaguar é o rei da cuia. Sempre enfiando no assunto.
Jaguar - Dostoievsky, por exemplo.
Ivan - Como Dostoievsky?! Um epilético russo!
Jaguar - Vá à merda. Pode falar, Chico.
Ivan - Se falar "Pequeno Príncipe", vou embora.
Chico - Guimarães Rosa... Tem livros que eu adoro que não tem nada a ver com isso: "Jorge, Um Brasileiro", de Oswaldo França Lima.
Ziraldo - A história começa em Caratinga, bicho!
Ivan - (desesperado) Mineirou!
Jaguar - Mas é um senhor romancista.
Chico - Outro mineiro bom é Sérgio Sant'Anna, esse contista.
Tárik - Rubem Fonseca?
Jaguar - Não admito sugestões. Quero ouvir o Chico
Chico - Gosto de "A Coleira do Cão". Li também "O Caso Morel".
Tárik - E "Feliz Ano Novo"?
Ziraldo - É aquele romance.
Jaguar - (ameaçador) Vou desligar, hein! Olha, vou desligar!
Ivan - Vocês estão querendo testar a cultura do Chico Buarque, o que é desagradável.
Jaguar - Não, eu quero que diga o que gosta sem preocupação de cultura. Eu, por exemplo, gosto de "Winetou".
Chico - Quando eu era garoto tinha mania de ler em francês.
Ziraldo - Tu parle français?
Chico - Não, esqueci tudo quando aprendi italiano. Eu lia os russos em francês também. Não li nada de literatura inglesa ou americana. De uns tempos pra cá só li brasileiros.
Jaguar - O que você leu aos 18 anos? Os livros dos 18 é que formam o cara.
Chico - Comecei a ler Mário de Andrade, Graciliano Ramos...
Jaguar - Poesia? Quem são os poetas?
Ivan - (de saco cheio) Tenho ódio de poesia. Todos os poetas entubam.
Chico - Nunca li poesia em língua estrangeira.
Ziraldo - Nunca leu Yeats, Keats?
Chico - Pra ler poesia em outra língua tem que dominar paca.
Jaguar - Que você leu de poesia brasileira?
- Bandeira, Drummond, Jorge de Lima. Ferreira Gullar...
Ziraldo - Chico Buarque, a chamada conjuntura, o sistema, o capitalismo, o Ocidente, a organização social que conhecemos, te deu tudo. Individualmente você não pode se queixar do sistema. Foi um menino que teve uma infância feliz, protegida, rica. Rica no sentido de coisas, aventuras. Então de onde vem a sua indignação social?
Chico - Indignação, mesmo, é um pouco forte.
Ivan - Exatamente.
Chico - Mas é um termo certo. Só que isso se colocou mais recentemente. É uma história comprida pra cacete.
Ziraldo - Sammy Davis Jr. escreveu um livro chamado "Yes, I Can". É um livro canalha. Se o cara tiver talento fura o bloqueio da injustiça social. O fato de você ter vencido te coloca como privilegiado. Mas isso não significa que o mundo seja bom, justo. E você sabe disso. A sua obra prova isso. Por que essa indignação é a tônica da sua obra?
Chico - (pensa bastante e trança os dedos) Meus pais não eram burgueses. Meu pai era um intelectual. Estudei nas boas escolas, e tal. Mas foi sempre mais da molecagem. Quando era garoto, 16, 17 anos, fui preso umas três vezes. Gostava de transar meio...
Ziraldo - Marginalmente.
Chico - Nunca gostei da outra transa. Eu estudava num colégio de gente bem em São Paulo. Onde eu era um dos mais pobres da classe. Meus colegas iam à aula de Mercedes, chofer. Eu era aquele que apanhava ônibus e carona. Ficava no caminho. Pinheiros, aquele bairro meio fuleiro. Aquele clima de São Paulo. Aí... comecei a roubar automóvel. Roubei automóveis... (ri e fica vermelho).
Jaguar - Como assim?
Ivan - Roubava pra dar uma voltinha.
Chico - Comecei a transar muito com essa gente. Pra farra, né. Tinha a polícia... Polícia sempre teve atração por mim. Chegou aquele guarda ali, penso: "É comigo". Eu era de menor, então livrava a cara. Apesar disso, uma vez fui preso. Eu e um amigo meu, aquele que transava bossa-nova comigo. Tinha roubado carro. Chegou aquele carro da Rádio-Patrulha, parou a gente no Pacaembu. Parou ao lado: "Flagrante, não sei o que"! Tomamos porrada pra burro. Mas porrada pra valer. Não tinha documento nem nada. "Menor de idade que nada! Quê isso! Vamos levar pro DI." Veio a gente no banco de trás, algemado, eu e ele. Só que eu tava no meio. Então eu tomava mais porrada do que ele, que tava mais longe, fora do alcance. Quando um dava porrada os outros todos davam também. Achavam que pegando a gente tinham apanhado a maior rede de puxadores de carros. E a gente mal sabia, tinha feito um erro primário; roubamos o mesmo carro pela segunda vez. Parece que o cara tinha tirado o cachimbo do carro. Era um Peugeot, um carrinho velho daqueles. Perto de onde moravam meus pais, tinha aquelas ladeiras do Pacaembu. A gente descia com o carro na maciota, abria o vidro... Isso eu sei até hoje. Se alguém esquecer a chave dentro do carro, eu sei abrir. Descia, e na descida... (faz barulho de carro acelerando).
Tárik - Aproveitava o embalo.
Chico - Fazia a ligação. Mas esse não dava nada. A gente, tchoc. tchoc, até lá embaixo. Aí os caras pegaram a gente. Fomos pro DI.
Ivan - Departamento de Investigações.
Chico - E era porrada de ascensorista... A gente parou na casa do dono do carro. O dono do carro: "Esses é que são os ladrões". Saímos do carro. Na hora de voltar, dei um jeitinho de ficar com as mãos cruzadas e entrar no fundo. E assim, da casa do dono do carro até o DI, meu colega tomou mais porrada do que eu. (risos) Até o que cara que tava guiando: pá! dava porrada. Acabou que passamos a noite numa cela com um garoto que tinha roubado um burro. Esse tipo de transa é que foi a minha formação de adolescência.
Ivan - Um pouco James Dean.
Ziraldo - Quer dizer que você deu muito trabalho pra papai e mamãe?
Chico - Mas era barra pesada. Enfim, tivemos contato com esse garoto que roubou o burro.
Jaguar - E seu pai? Foi à delegacia depois?
Chico - Não, por esses dias estavam comemorando bodas de prata em Ouro Preto. Foi minha irmã, a Miúcha, que foi lá, no dia seguinte. Ficou fula da vida.
Ziraldo - "Esse menino não me dá sossego!" Eu achava que você era comportadíssimo. Mas você teve uma vivência que te permitiu viver, além da cuca, o mecanismo do mundo.
Chico - Essa história faz parte de outras histórias assim. Coloquei essa aqui pra quebrar um pouco essa distância que você está colocando. Não foi um negócio visto de cima pra baixo.
Ivan - Um tapa na cara é o começo. A indignação leva muito tempo.
Chico - Eu já tinha muitos casos, criando confusão em casa. Fui interno pra Cataguases.
Ziraldo - Já não te agüentavam mais?
Chico - Não, aí foram problemas religiosos.
Ivan - Teve problemas religiosos?
Chico - Tive. Dentro dessa escola que a gente estudava, pintou um negócio de um grupo ultra-católico. Que mais tarde inclusive foi dar na TFP, que não existia naquela época. Comungar todo dia.
Ziraldo - Você chegou a comungar?
Chico - Comungava pacas. Era muito católico. Ao mesmo tempo... (risos)
Ziraldo - Você resolveu esse problema na sua cabeça?
Chico - Não tenho mais.
Ziraldo - Qual foi a última vez que você comungou?
Chico - Deve ter sido por aí, essa época, fui pra Cataguases, 15 anos.
Tarik - O que aconteceu no grupo ultra-católico? Por que você foi parar em Cataguases?
Chico - Eram os Ultramontanos. Negócio medieval. Diziam eles que vinham aí abalar, que iam sobrar só os bons predestinados. E os garotos bons predestinados vão ser criados pro novo mundo que vai surgir. Garotos de 14 anos, 15, embarcam nessa. Até que as pessoas atinam.
Tárik - Você era contra o pessoal?
Chico - Não, entrou todo um grupo.
Ziraldo - Você chegou a ser dos Ultramontanos?
Chico - Quando era admitido começava a usar o escudinho. Não cheguei a entrar nessa. Mas tava sendo preparado. Barra pesadíssima. Acontece que o pessoal, os pais, sacaram qual era. No começo achavam muito bom: as crianças de repente quietinhas, estudando, rezando, comungando todo dia. Mas antes que o negócio engrossasse, dissolveu.
Ziraldo - Isso é interessante pra conhecermos a sua vivência.
Chico - Não é questão de tomar uma porrada na cara quando garoto, porque foi preso, e ter que devolver o negócio. É como o Ivan falou, mais tarde... Leva tempo. Tem que ter as duas coisas. A vivência e um conhecimento existencial. Junta as duas coisas e dá uma indignacão maravilhosa. (ri) Com base de corpo inteiro.
Ziraldo - No momento em que o artista fala não só pro cara ali na sua frente, mas pra muita gente, se soube da coisa, tem como obrigação comunicar isso pra todo mundo. É fundamental. Por que você faz isso? Por que toda obra sua é quase um aviso?
COCO - Não coloco como obrigação pra ninguém porque não tô aqui pra ditar regra.
Ziraldo - A tônica do seu trabalho é a busca da felicidade. A felicidade social, humana, do convívio. Qual é a consciência que o Chico tem disso? Sai naturalmente? Ou você, achando a obra vazia, enxerta? Até mesmo "Valsinha" não é solta, tá preocupada com o ser humano.
Chico - Tudo isso que você falou, e a minha dificuldade em responder, está nisso: porque sai naturalmente.
Ziraldo - Porque não podia sair outra coisa.
Chico - Vou ter que parar pra pensar porque fiz tal coisa, quando ao fazê-lo não pensei. Minha resposta pode soar falso.
Ivan - Todo homem é o resultado daquilo que fez, de onde esteve e com quem falou.
Ziraldo - Esse tipo de colocação te preocupa de vez em quando?
Chico - Que tipo?
Ziraldo - "Porque estou fazendo isso?"
Chico - (faz que não com a cabeça...) O que estou fazendo, como criação, não posso parar pra pensar. Esse tipo de explicativa procuro para as minhas atitudes fora da criação. Faço isso ou não... isso é certo ou errado. Apesar de na minha vida ser também intuitivo. Ir fazendo as coisas porque pintou, porque é legal ou não é legal fazer.
Ivan - E Julinho de Adelaide? O PASQUIM ia fazer uma matéria a respeito, mas foi cortada.
Tárik - Foi enterrado.
Chico - Mataram.
Ziraldo - Quando foi que descobriram que Julinho de Adelaide era você?
Chico - Não sei. Foram descobrindo aos poucos. Começou a sair, em jornal. A única informação que podiam ter era na UBC, a arrecadadora.
Ziraldo - "Acorda Amor" é Julinho de Adelaide?
Chico - É.
Ziraldo - Não sairia com teu nome de jeito nenhum, né?
Chico - Acho que não. E agora não pode mais.
Ivan - Por que não?
Chico - Depois dessa história de Julinho de Adelaide, pintou um negócio que pra mandar a música pra Censura, tem que mandar carteira de identidade, CPF, o cacete. Tem que explicar direitinho.
Ziraldo - O que você achou do Glauber ter te chamado de nosso "Errol Flynn"?
Chico - Acho o Glauber muito engraçado.
Ziraldo - Você entendeu o que quis dizer?
Chico - O que você acha que quis dizer?
Ziraldo - Que você virou um pouco o herói que tá fazendo as coisas pra gente. Muita gente quieta em casa, puta da vida, que diz: "Isso Chico! Dá-lhe Chico"! E não faz nada.
Chico - É. Pode ser colocado assim.
Ziraldo - Porque você sabe do negócio de catarse do teu trabalho.
Chico - Situado diante do Gláuber é outra conversa. Mas quanto a esse problema, porra, tenho muita consciência dele. Vivo com esse problema e tenho falado sobre, respondido a isso. Acho que tenho consciência de já ter reagido a isso. Deu mil mal-entendidos. Fui interpelado por estudantes que entenderam errado.
Ziraldo - Isso te incomoda, as pessoas te passarem o bastão e exigirem um comportamento?
Chico - É claro: fui xingado por isso. Tava me referindo ao show do Casa Grande e ao Circuito Universitário. Falei "Não vou fazer mais não. Do jeito que tá não dá". Os Diretórios Acadêmicos começaram a fazer um show atrás do outro, e deu aquele delírio que eu não te a fim de endossar. Deô ser o Errol Flynn desses estudantes. Tenho muita coisa mais importante do que isso a fazer. Apesar de que, de vez em quando, o fato de manter uma chama acesa é bom. Viver disso é que não é legal.
Ricky - E Canecão?
Chico - "Tá fazendo isso pra ganhar dinheiro." Ganho a mesma coisa que ganhava no circuito Universitário. Agora estou um pouco mais tranqüilo quanto a isso. "Tô fazendo esse show pra classe média que tá vindo aí."
Ziraldo - É a sua profissão, pô.
Chico - Tá legal. Isso acabou. Mas o outro negócio cria um conflito. Há um ano, mais ou menos, sem querer, estou sendo sustentado por essa imagem de Errol Flynn. As pessoas achando que era despojamento. Não é não. É o mesmo trabalho de sempre. Não vou botar uma máscara pra fazer aquilo. Também não pode ficar com essa mistificação, essa catarse em cima, que aí eu acho uma merda. (para o garçom) Outra caipirinha com vodca, pouco açúcar e um maço de Charme.
Todos - Charm?
Ivan - Não fumas o cigarro do Kojak?
Wilma - Ainda precisa pedir mais um maço de Charme...?
(Chico sorri, abrindo o bigode sobre os dentes brancos, perfeitos, franzindo os olhos profundamente verdes... Daí pra frente o papo degenerou na noite carioca.)
Transcrição da fita da entrevista gravada em setembro de 1974
Última Hora- Não ia fotografar?
Julinho da Adelaide - O que?
UH - Você tá com duas cicatrizes?
(Referindo-se ao episódio em que Sérgio Ricardo, tendo sido vaiado durante a apresentação de sua canção Beto bom de bola, num dos festivais de MPB, atirou o violão contra a platéia.)
JA - Não, pegou assim, o cabo pegou assim aqui e a caixa desse outro lado.
UH - Quer dizer que você é um sujeito marcado pela música popular brasileira? (risos)
JA - Sou marcado pela música popular brasileira. Foi aí que eu despertei para a música, inclusive foi nesse momento que eu despertei para a música popular.
UH - Certo. Ô Julinho, é essa 2ª vez que você... Essa primeira vez que você veio para São Paulo, você estava passeando. Só.
JA - Tava. Eu, inclusive,não tinha vocação nenhuma musical, foi...
UH - Como foi?
JA - Aí que eu despertei realmente para a música popular.
UH - Como é que você veio? Veio de ônibus, trem, como foi?
JA - Vim de ônibus.
UH - Nessa época, você estava construindo casa na Gávea?
JA - Não, isso é um pouco de confusão que estão fazendo. Quem está construindo casa na Gávea é meu irmão Leonel.
UH - Leonel?
JA - É.
UH - Mas o...
JA - Meu irmão e procurador.
UH - Certo. Depois a gente fala do Leonel... Mas, Julinho é essa a 2ª vez que você está em São Paulo. Você está aqui profissionalmente? Eu soube que você está com 3 músicas novas aí, você tá pra...
JA - Três não, têm muito mais de três! Devo dizer isso. Agora, não tenho culpa se pessoas pedem sempre as mesmas. As pessoas pedem, em geral, o Chama o ladrão, o Jorge maravilha e O milagre, são as 3 que pedem mais. Agora têm muito mais músicas que isso. Olha, o Chama o ladrão teve um problema com a censura e O Milagre teve também. Inclusive, eu queria dizer que eu não quero criar nenhum conflito com a censura, entende? Porque eu tenho, através do Leonel, um diálogo muito bom com eles, entende?
UH - O Leonel faz o quê?
JA - Eu entendo que.. O Leonel é meu procurador, é ele que quebra todos os galhos, em todos os sentidos, entende?
UH - Mas ele tem... Qual a profissão dele?
JA - Na carteira, é comerciário, mas ele não exerce muito a profissão de comerciário. Ele trabalha mais mesmo como meu procurador e tem assim boas relações. Ele vive disso. Inclusive tem boas relações com a polícia. Então com relação à censura eu tenho essa posição. Eu acho bobagem a pessoa falar que a censura prejudica, quando eu acho que o negócio é fazer samba, tem que fazer muito samba mesmo, entende? Eu faço muito samba, quer dizer, faço vários por dia mesmo. Tanto que o sujeito que trabalha lá, o trabalho dele é censurar música, eu respeito muito o trabalho do cara, quer dizer, ele terminou o dia... quantas músicas você censurou hoje? Ele fala: 7. O cara que disser 17, por exemplo, vai ser promovido logo. Eu também, meu trabalho é fazer samba, quantos samba você fez hoje? Oito, nove? No dia que eu faço dez vou dormir em paz com a minha consciência, entende? Cada um no seu ramo.
UH - Mas você realmente faz oito, dez sambas por dia?
JA - Faço e faço samba duplex também.
UH - Espera aí, antes de falar sobre samba duplex, por que você só foi descoberto agora, por que só agora que estão cantando suas músicas?
JA - Porque eu, relativamente há pouco tempo que estou fazendo mesmo, profissionalmente. E estou divulgando, e tem um grande problema... O autor jovem tem um grande problema: eu andei em todas as empresas e não consegui nada.
UH - Sei...
JA - É claro que minha voz não é muito boa. Eu não sou cantor. Hoje em dia, quase todos os compositores são cantores, entende? Eles que defendem o material, a matéria-prima deles, eles que se lançam. Eu não posso fazer isso, tenho que procurar. Tenho que procurar as fábricas. Aí o sujeito me empurra pro outro. Um dia, eu fui parar na Phillips e acabei no departamento gráfico, (risos) eu fui de porta em porta..."Não, você fala com o fulano... Isso lá no Rio, na Phillips.
UH - Sei. Agora esse negócio...
JA - Cheguei até a falar com Roberto Menescal, autor do Barquinho.
UH - ...da cicatriz te grila muito também, não é?
JA - Embora eu não seja cantor, um dia, pretendo gravar um disco. Você vê, gente que canta bem como Chico Buarque, o Vinícius de Moraes, o Antonio Carlos Jobim, essa gente toda canta também, entende? A minha voz não é muito boa. Outro dia, eu vi o disco do Nelson Cavaquinho, ele é mais rouco do que eu. E grava um disco. Eu posso até gravar um disco um dia, entende? Aí a minha foto vai atrapalhar a vendagem do disco, não é? É claro que eu não vou botar na capa do disco a minha foto. Mas se já estiver a minha foto ligada a minha pessoa, amanhã, sei lá, menininhas dessas bonitas aí da Rua Augusta e tal que... podem comprar pensando que é um sujeito bonito e vende mais o disco, acho, não é? Pelo menos com a minha cara ligada a minha pessoa vende menos. Então, é melhor não ter cara do que ter a cara que eu tenho.
UH - Não vamos nem discutir isso...
JA - Eu fico meio nervoso quando falo nisso, eu fico meio nervoso, viu?
UH - Não. Aí é um problema pessoal, a gente não vai forçar. O Bosco pode inclusive...
JA - Quem?
UH - O Bosco, o fotógrafo, ele vai entender isso, não tem problema nenhum.
JA - Se quiser tirar, tira de costas ou então tira do meu irmão Leonel, é claro. O Leonel já se ofereceu, inclusive, para se eu fizer um disco ele aparecer na capa. (risos) O Leonel é um quebra galho.
UH - O Leonel está aqui com você, agora?
JA - Não, ele me mandou... porque disse que leu nos jornais, o Leonel lê muitos jornais.
UH - O que ele está fazendo aqui?
JA - Aqui em São Paulo, tem muita casa de samba, uma coisa que lá no Rio não tem. Lá tinha uma só. Era o Sucata. Mas um show já montado e não podia entrar e cantar no meio. E aqui parece que as pessoas podem chegar e... Eu não sei porque cheguei agora, eu quero até pedir um conselho, quais são as casas melhores. Vou lá e vou pedir minha vez pra cantar, já avisando antes e pedindo desculpas que não sou bom cantor, mas acho que tenho muita música, já fiz uma chegando aqui hoje.
UH - Você já fez música e a letra?
JA - Faço tudo junto. É claro que eu faço samba duplex. E quase todos são duplex.
UH - Samba, duplex, o que que é?
JA - São sambas que você pode mudar, entende? Por exemplo, esse que eu fiz agora pode mudar... é sobre o problema da meningite que o Leonel falou que tinha isso aí. Falou: "Olha, vai para lá e cuidado com a meningite". Ele me explicou o que significava, porque eu não leio muito jornal. Ele é que lê mais. Aí eu fiz o samba no meio do caminho que diz assim: "Eu fui para São Paulo com a Judite, só saí de lá com meningite." Agora, do jeito que é feito a música, dá pra cantar.... porque eu sei que tem umas propagandas de vir para São Paulo nos fins-de-semana e tal. Eu não quero prejudicar ninguém. Pode dar problema isso. Se der problema: "Eu fui para São Paulo com meningite e sai de lá com a Judite", Inclusive, fica como se São Paulo tivesse curado a meningite.
UH - A Judite é paulista?
JA - Não, o samba é duplex. Se eu tivesse chegado com a Judite, cheguei de algum lugar, da Bahia, pode ser que ela seja baiana. Se eu tivesse chegado com a baiana e saísse com a Judite, então a Judite é paulista. O samba é duplex. Inclusive eu faço adaptação de samba. Tenho umas idéias pra contar agora para o Vinícius de Morais, que admiro muito.
UH - Você vai gravar com ele?
JA - Não, eu não conheço ele pessoalmente. Estou procurando um contato com ele, porque eu fiz uma adaptação daquele samba dele: "Formosa" que fica assim "China nacionalista". Quer dizer, eu já estou com bastante tarimba nesse negócio.
UH - Julinho, você lê muitos jornais?
JA - Não, só que o Leonel manda ler... Agora, em geral, ele já dá o serviço todo em vez de mandar ler. Porque sou o criador, entende? Se eu ficar o tempo todo lendo, não vou poder me expressar bem.
UH - O Leonel é uma figura importante em sua vida?
JA - Acho que devo tudo na minha carreira... Bom, devo a criação. Devo minha vida à duas pessoas. À minha mãe, Adelaide, à qual devo inclusive o meu nome. Meu sobrenome é Oliveira, mas Oliveira todo mundo é. Então eu sou da Adelaide, que aqui pode não ser muito conhecida, mas no Rio é. E devo ao Leonel, que me orienta agora, na minha carreira.
UH - Fala um pouco da Adelaide.
JA -Adelaide foi a pessoa que me orientou a vida inteira, entende?
UH - Existe um boato, que li numa revista, que Adelaide teria sido uma das mulheres do Vinícius? Desculpe (risos).
JA - Não se pode falar assim da minha mãe (risos). Minha mãe é muito honesta. Ela casou mais de uma vez, mas casou sempre. Quando ela viajou para a Alemanha, casou com um luterano. O Leonel é luterano por causa disso, loiro e luterano. Inclusive agora ele alisou o cabelo e está dizendo que é parecido com esse Robert Redford (risos). Mas ele não é muito parecido, não, que o nariz dele é igual o da minha mãe. É grossão, assim.
UH - Mas é loiro?
JA - Loiro sarará. Aquele negócio, parecido assim com o Ademir da Guia. É bem parecido. Tipo físico do Ademir da Guia, só que agora ele alisou o cabelo e está achando que é artista de cinema. A minha mãe casou com esse alemão. Ela esteve na Europa com a Brasiliana. Ela era casada na igreja Católica Apostólica Romana, na igreja Católica Brasileira, na Luterana e tem mais 3 casamentos aí. Eu sou filho da Igreja Católica Brasileira.
UH - Você é filho do primeiro casamento?
JA - Não, do terceiro.
UH - Como a gente não sabe nada da sua mãe, então se ela foi com a Brasiliana, ela é mulata mesmo?
JA - Mulata retinta. Quase preta, quase sangue puro.
UH - Mas e essa sua cor mais clara?
JA - É que meu pai, eu não cheguei a conhecer, entende? Ele morreu pouco depois de eu nascer (risos).
UH - Ele fazia o quê?
JA - Meu pai? (pena, hesitação) Meu pai trabalhava em jornal (risos). Era copy-desk (risos). Naquele tempo...
UH - Então quer dizer que você já teve uma origem um pouco mais cultural, você teve uma certa informação?
JA - Sempre tive muitos livros, apesar de morar sempre em favela. Não tenho nenhuma vergonha disso, de ter sido criado em favela, porque tem muita favela lá que é melhor do que essas coisas que estão construindo agora no Rio, que são casas de tijolo e cimento armado, mas eu não trocava a favela onde eu me criei por esses empreendimentos que estão fazendo. Eu vi até um anúncio, no intervalo daquela novela "O Espigão", eles anunciam muito esses novos apartamentos, sala e quarto... Eu fui ver um porque o Leonel disse que tinha um dinheirinho para mim que talvez desse. Fui ver, um quartinho menor que o barraco onde eu me criei...
UH - Então já está pintando um dinheirinho?
JA - Diz o Leonel que sim. Eu ainda não pus a mão nesse dinheiro porque o Leonel tem procuração minha para fazer tudo. Ele acha que não é bom pegar o dinheiro e fazer logo alguma coisa. É melhor empregar e ele empregou meu dinheiro. E parece que o dinheiro já vai dar agora um dividendo, uma coisa assim...
UH - Mas, e aquela casa que você está construindo lá na Barra? É com dinheiro de vendagem?
JA - Não sou eu que construí... Quem comprou um terreno na Barra foi o Leonel e vai construir uma casa lá. Mas isso é problema do Leonel, ele tem os bicos dele por fora. Leonel tem participação nos meus lucros e ele faz com o dinheiro dele o que ele bem entende.
UH - Julinho, essa transposição do anonimato... Aqui em São Paulo não, que você está chegando aqui agora, você teve só um incidente aqui, mas lá no Rio você é muito conhecido, pelo menos no Degrau, no Antônio's.... Como é que foi essa transposição do anonimato - com o devido respeito - da favela para as colunas sociais, colunas de música? Quem é que te deu essa força? Porque é muito difícil para compositor novo.
JA - Isso eu devo ao Leonel, porque ele é muito ligado ao pessoal do Rio de Janeiro, Zózimo Barroso do Amaral, que trabalha no Jornal do Brasil. Ele é ligadíssimo. É como se fossem irmãos. Tem amigo que é dono de jornal, já falou de muita gente que ele é amigo... do Doc... Ele me promove, me promove muito. Ele é um cara 100%. Vocês precisam conhecer ele.
UH - Eu te conheço recentemente, e, convenhamos, você é uma figura pouco conhecida no Brasil.
JA - Ainda sou, infelizmente, mas eu confio em Deus e que com a ajuda dele e a do Leonel eu...
UH - Você não seria uma criação da imprensa carioca? Como você entende isso?
JA - Por algum tempo eu fiquei magoado com isso...
UH - Seu pai foi um copy-desk de jornal. Você acha que está sendo lançado pela imprensa carioca, que tem repercussão nacional? Como você se sente?
JA - Claro que a imprensa ajuda muito, mas eu tenho o meu trabalho também. Eu vim aqui para mostrar o meu trabalho, não é badalação só. Esse negócio de badalação de jornal, não dá dinheiro a ninguém. Não dá camisa a ninguém. Minha primeira música vai ser gravada agora, finalmente! Só agora, mas eu tenho feito, em média, de quatro a cinco músicas por dia. Com essa primeira música, acho que vai ser um grande empurrão que vou receber na minha carreira. E, daqui por diante, acho que todo mundo se interessa em gravar música do Julinho da Adelaide.
UH - Quem já cantou música tua até agora, ou já gravou?
JA - O Chico Buarque cantou num show que ele fez no Rio. E, aliás, foi muito bom. Leonel diz que daí que deu mais dinheiro porque teve dinheiro de SBAT e tal
UH - Qual?
JA - O Jorge maravilha. E o MPB-4, a Nara Leão. Eu entreguei outras músicas aí, mas não sei se estão cantando. Pra uma porção de gente: Tim Maia, Ângela Maria, vários estilos inclusive, entende? Não sei se estão cantando também, não tenho controle, o Leonel que sabe.
UH - Estou curioso pra saber o seguinte: o nome Julinho da Adelaide começou a se projetar, é inegável isso...
JA - Você quer saber da onde vem o nome?
UH - Eu estou preocupado em saber se você realmente tem uma produção muito boa ou se você está se utilizando do Chico Buarque, do MPB-4, Tim Maia e todo esse pessoal pra quem você mandou música, para se projetar...
JA - Desculpe, mas como já disse antes, eu não sou cantor. Eu preciso dos cantores para lançar o meu nome. Acho que é um interesse recíproco. Eu não devo nada a ele e ele também não. Ele tá faturando em cima do meu nome e eu estou faturando em cima do dele. Acho que isso é normal. Não acho que seja ético da minha parte. Eu sou pragmático.
UH - Julinho, aqui em São Paulo, o pouco que se sabe de você são histórias mirabolantes, inclusive o Chico Buarque - não sei se você soube - em um show falou que Julinho era figura das crônicas policiais que passou para as crônicas sociais. Ele tem (Prata corrige) Você tem, realmente, um passado que o denigra...
JA - Eu sou muito tímido, você pode perceber que eu sou tímido. O Leonel, com essa história dele ser procurador, é uma pessoa muito descontraída e ele faz muitas coisas, inclusive "impensadas", e quando vão perguntar o nome dele, ele diz (ri) que tem procuração minha. Então, é justo que eu pague as coisas boas e ruins que ele faz (risos). Às vezes ele faz coisas ruins. E depois não acontecem muitas coisas com ele, porque quando o sujeito tem relações muito boas na polícia, coisa que eu não tenho...
UH - Coisas ruins, como? Por exemplo?
JA - Ah! Ele faz muita bagunça, entende? Esses negócios de forró...
UH - Ele já foi preso alguma vez?
JA - Já. Algumas vezes. Eu conto isso, inclusive num samba: Chama o ladrão.
UH - Eu quero lembrar o seguinte: à medida que você mesmo disse que é muito pragmático, esse negócio de carregar o nome da mãe, não é uma jogada oportunista da sua parte para sensibilizar uma faixa do público?
JA - Não, de jeito nenhum. Mais uma vez eu queria repetir que não sou aético. Eu me chamo Julinho da Adelaide porque todo mundo só me chama assim lá no morro. Minha mãe é mais famosa do que eu, lá no Rio. Ainda é! (Alterado) Minha mãe é séria!
UH - O que é que ela fez?
JA - (quase gritando) Vou te contar o que ela fez! Ela estava no primeiro elenco do Orfeu Negro. Foi amiga íntima de Vinícius de Moraes, Antonio Carlos Jobim e Oscar Niemeyer. E fazia o cenário do.... (perde-se um pouco) Não... o Haroldo Costa. Ela conheceu intimamente o Oscar, tanto é que há cinco, seis anos atrás, eles moravam na Favela da Rocinha e quando começaram a erguer o Hotel Nacional ela dizia pra mim: "Está vendo filho? Está vendo Julinho? É homenagem do Oscar para mim." Inclusive, brotou uma porção de homenagens na Barra e ela lembra dele assim, entende? É claro que ela está mais velhinha agora e ela falando isso, eu estou sabendo que não é homenagem do Oscar Niemeyer pra ela. O Oscar talvez nem se lembre dela. Mas ela viajou com a Brasiliana, casou com o luterano, não é pouca coisa, não! Aprendeu a fazer caçulé, e a feijoada branca dela, no morro, é conhecidíssima,. Então eu fiquei sendo o Julinho. Qual Julinho?, Julinho da Adelaide. Não sou o Julinho de Oliveira.
UH - Você está consciente de que está faturando a sua mãe com esse negócio de Julinho da Adelaide. Tanto que o Leonel não se chama Leonel da Adelaide...
JA - Leonel é Leonel Kuntz. (Confusão. Todos falam ao mesmo tempo)
UH - Pode ser que doravante a sua mãe seja conhecida como Adelaide do Julinho (risos)
JA - Não tenho nada contra isso.
UH - A Adelaide mora com você ainda?
JA - Eu não tenho moradia muito fixa, mas, sempre que posso, passo uma noite com ela.
UH - Mas você mora aonde, atualmente, no Rio?
JA - Atualmente eu estou morando na Selva de Pedra. O Leonel alugou um apartamento para mim.
UH - Está dando um dinheirinho?
JA - Está dando para comer e...
UH - Morar na Selva de Pedra?
JA - ,É morar na Selva de Pedra e pegar ônibus pra São Paulo.
UH - O que é Selva de Pedra?
JA - Selva de Pedra é um conjunto que fizeram lá no Rio. Iam fazer um parque, quando derrubaram a favela do Pinto. Eu tenho origens lá, inclusive já morei na Favela do Pinto.
UH - Você nasceu em que favela?
JA - Eu nasci na favela da Rocinha, mudei para várias favelas. Tenho mais raízes na favela da Rocinha, mas também tenho na favela do Pinto. E hoje eu moro lá, que não deixa de ser uma volta as raízes. Destruíram a favela do Pinto, no fizeram muito bem. Iam fazer um jardim lá. Depois mudaram de idéia e fizeram uma Selva de Pedra, que são vários prédios com janelas pequenas, mas perto da praia.
UH - Você mora sozinho, sem tua mãe?
JA - Lá, eu moro sozinho.
UH - E a Adelaide, como é que está?
JA - A Adelaide está muito bem, fazendo aquele feijão dela, cada vez melhor.
UH - Pra fora?
JA - Pra fora como?
UH - Ela...
JA - Ela tem um quiosque, não é? A casa dela, uma vez por semana, enche de gente e o pessoal...
UH - Tua mãe é do Rio mesmo?
JA - É, é carioca.
UH - Neta de escravos, não é?
JA - É. Ela conheceu a avó dela e a mãe dela foi beneficiada com a Lei do Ventre Livre. A gente tem uma gratidão muito grande com José Bonifácio.
UH - O que você acha dessa música feita aqui no asfalto sobre a música do morro? Você acha que é autêntico?
JA - Olha, eu não quero me comprometer, eu sei que aqui em São Paulo estão fazendo muito samba. Eu não posso dizer para vocês que não é boa música, se não, a entrevista pode sair e eu vou ficar muito mal com meus colegas aqui e é capaz que eu nem arranje emprego. Só vou dizer que prefiro a música autêntica.
UH - O que é música autêntica?
JA - É música da favela feita na favela, música da cidade, feita... por exemplo, eu gosto muito do Charles Mingus.
UH - Mas qual a relação do Charles Mingus com a música da favela?
JA - Charles Mingus é Americano, então ele faz música americana, entende? Esse negócio de morar aqui e fazer música de outro lugar, eu não gosto. Agora, eu gosto também. Às vezes são boas...
UH - Essa é a segunda vez que você vêm pra São Paulo?
JA - Em São Paulo é a 2ª vez. Encontrei muito mudada. De 67, 68. pra cá, quando eu vim pro Festival.
UH - Esse Festival foi interesse musical ou você estava...
JA - Não, eu mandei... Claro, foi quando eu despertei para a música... mas antes de despertar, eu fiz umas músicas... mas não havia despertado pra música. Eu fazia quase que como se a minha mão fizesse e eu não soubesse delas. Quando eu tomei aquela pancada na cara (risos)... Eu rio mas eu fico muito nervoso com esse negócio de novo.
UH - Como foi o seu contato com o Chico, com o Vinícius, com o Tim Maia?
UH - O Chico, principalmente, está divulgando sobremaneira.
JA -. Isso é o seguinte: há um ano atrás eu estava trabalhando na fábrica lá no Rio de Janeiro, no Alto Boa Vista, na Phonogram. Na fábrica, entende? Prensagem de disco e tal. E lá eles tem um time que aos sábados joga contra compositores, contra essa gente assim. Eu estava sempre nessa pelada. E aí que fui conhecendo esse pessoal. Fiquei conhecendo o Silvio César, Maestro Erlon Chaves, Paulo Sérgio Valle, uma porção de artistas...E o Chico Buarque, e o MPB 4.
UH - Mas como é que foi? Você chegou para o Chico e mostrou a música, deu uma fita, cantou para ele?
JA - Eu não falei direto com ele, falei antes com um dos integrantes do conjunto vocal MPB-4. Foi justamente quando eu estava entrando na área e, sabe aquele baixinho, o Rui? Me deu uma porrada por trás. O juiz não deu pênalti. E na hora que eu estava caído no chão, ele foi legal: "desculpa". Eu aproveitei que ele tinha puxado conversa comigo (risos) e daí: "eu sou compositor"(mais risos). Ele não deu muita bola, mas o contato já tava feito, e como eu trabalhei na fábrica e tem prensagem de disco, consegui prensar um acetato, camaradagem do pessoal lá. Eu prensei um acetato com duas músicas, com "Jorge maravilha" e "Chama o ladrão". Aí parece que gostaram e mostraram pro Chico Buarque. Depois eu fiz "O milagre" e achei que era melhor ainda, para mim é a música mais forte. Gravei de novo no acetato para eles. Parece que a Nara Leão se interessou pelo "Chama o ladrão" mas aí houve um problema com a música.
UH - Há um problema, Julinho, sem querer dedar ninguém, que o Chico tem cantado essa música e tem dado a entender que a música é dele. Ele fala de você como se fosse uma figura mitológica, mas no fundo parece que é dele. Acho que você tinha que tomar uma certa providência.
JA - Olha eu não sei... Esse pessoal que têm nome feito pode fazer muita coisa, não adianta eu ficar aqui reclamando desse pessoal. Como disse, sou pragmático. Eu preciso dele, ele precisa de mim. Não adianta você me dizer isso, parece que está me colocando contra ele. No dia em que eu for conhecido e famoso talvez eu faça dele a mesma coisa, entende? As pessoas tem que tirar proveito do que lhe cai na mão. O Leonel que me disse isso.
UH - Agora, eu queria que você se definisse. A expressão "pragmático" foi utilizada o tempo todo. Faça uma definição de você.
JA - Não sei. Pra falar a verdade, o Leonel que mandou eu dizer que sou pragmático (risos). Quando perguntassem alguma coisa, o que eu achava disso ou daquilo, coisa mais complicada, entende? O que que você acha da censura? Pragmático?. Ele falou outra também, ecumênico (risos). Isso foi a propósito da versão que fiz pro negócio da China.
UH - Eu não sei disso.
JA - Eu não contei da "Formosa" que eu mudei a letra pra China nacionalista? Disse que quando perguntarem se você gosta da China ou de Cuba? Se falarem, se você gosta de Cuba, você fala: que é pragmático e ecumênico. Se não, você se mete em complicação. Então eu digo, mas não posso definir exatamente a expressão: sou pragmático. (Acho que essa foi uma definição pragmática) (risos).
UH - Assim encerrou a entrevista, mas prossigamos.
JA - Hein, Quem deu a revista?
UH - Você encerrou, mas prossigamos...
JA - Só não quero ficar muito tempo aqui, porque tenho que fazer a ronda da noite, agora.
UH - Você vai aonde?
JA - Eu quero, inclusive, um roteiro de vocês, porque eu tô aí pronto pra...
UH - Fala Avenida Ibirapuera.
JA - Fala o quê?
UH - Fala Avenida Ibirapuera.
JA - Avenida Ibirapuera. (risos)
UH - Na Avenida Ibirapuera tem boas Casas de Samba, você vai se dar bem.
JA - É lá que é a boca, é?
UH - É lá.
JA - Então é para lá que eu vou. Fala com um taxi aí... Avenida Ibirapuera?
UH - Eles conhecem, não tem problema nenhum.
JA - E qual a melhor casa? Eles pagam bem?
UH - Tem o Bambu, o Sambão.
JA - O Leonel só me deu um nome, foi um tal de Catedral do Samba, é lá também?
UH - A Catedral não, Catedral é samba de Benito de Paula. Conhece?
JA - Conheço.
UH - O que você acha?
JA - Eu acho legal (risos). Acho que todo mundo deve fazer o que pode, o que sabe. Eles dão chance aos novos? Ou tem que ter contrato?
UH - Não.
JA - Vou falar a verdade do que eu quero. Eu quero entrar num lugar desse, cantar um samba meu e se possível arrebatar o pessoal. Aí o dono da casa vem lá e.... como eu vi num filme...
UH - Porque o Leonel não veio? Ele tá sempre com você ou te dá as dicas?
JA - Às vezes ele dá as dicas e me manda pro lugar. Ele não sai do Rio porque tem muitos afazeres lá.
UH - Mas ô Julinho, com o maior respeito a você e sua família, o que eu ouço falar do Leonel é que ele é um tremendo mau caráter, que ele não paga conta, pede aval...
JA - (irritado) Bom eu... Se vocês estiverem querendo me irritar... Acabei de falar... Vocês são de jornal, meu pai foi de jornal, eu não quero me irritar com ninguém. É meu irmão, se você quiser falar isso...
UH - Tem uma história... deixa só eu completar, um parêntesis só, Julinho. Tem uma história que ele alugou um apartamento lá onde era a favela do Pinto e depois mudou do Rio. O compromisso caiu em cima de você, ele sumiu, tem umas histórias assim... Não sei, não sei se é boato, mas corre. Corre à boca pequena.
JA - É normal.
UH - A respeito de ... de.... de...Leonel...(gagueja. ESQUECE O NOME DO IRMÃO) tudo é possível.
JA - Eu quero ver você dizer isso na frente dele. Eu não vou te responder, diga a ele (risos, confusão). Eu devo tudo ao meu irmão.
UH - Você não acha um, problema?
JA - Irmão a gente só tem um, apesar de ter vários. Mas cada um é único para mim.
UH - Como apesar de ter vários?
JA - Eu tenho outros irmãos que eu não vejo, quase. Mas eu estou mais ligado ao Leonel, estou ligado não só afetivamente, mas profissionalmente. Devo tudo da minha carreira ao Leonel. Ou você acha que não?
UH - Não sei, estou te conhecendo hoje. Estou dizendo o que ouço falar.
JA - Certo! Você está me conhecendo porque o Leonel me mandou para cá.
UH - Foi.
JA - E eu dando a minha primeira entrevista para um jornal de São Paulo. No Rio dei muitas entrevistas, viu?
UH - Eu sei, pra onde?
JA - Dei pra Notícia, pra Última Hora do Rio de Janeiro, e dei uma para Manchete, que até agora não saiu, mas deve sair daqui a pouco.
UH - Julinho, eu só levantei esse problema, porque o Leonel é um... inclusive você poderia corrigir isso, se defender, porque falam que ele assina contrato com e você não aparece, e que ele está vivendo, atualmente, em função do teu nome. Inclusive, ele já está dizendo: sou Leonel da Adelaide, coisa que ele nunca disse.
JA - Leonel Kuntz. (Começa a enrolar um pouco a língua) Ele não é Leonel da Adelaide porque ele saiu cedo de casa. Ele não era conhecido como Leonel da Adelaide, era Leonel. Tem gente que pensa que ele é meu primo, um parente próximo ou um amigo que vai lá de vez em quando. Outro dia, veio um cara e disse que tinha feito um contrato leonino comigo (risos). Isso é trocadilho, porque o cara chama Leonel e o contrato leonino. E só porque ele ganha 50%. E dizem que os empresários normalmente têm 20 só. Aqui no Brasil, porque diz que lá fora tem dez. Agora, ele não é só um empresário. Se fosse só um empresário, tá legal, ganhava 20%. Ele não é meu empresário. Ele é meu conselheiro e meu irmão, entende? Então, a gente divide irmamente as partes. Acho justo isso. E tem mais, ele ainda aplica nos mercados de capitais os meus lucros.
UH - Julinho, uma pergunta de ordem econômica. Vocês que estão no Rio de Janeiro, onde o mercado de música é muito maior, por que você está agora em São Paulo tentando...
JA - Não, o mercado da música não é maior no Rio. Pelo que me informaram, pro tipo de música que eu faço, São Paulo está muito melhor agora. Aliás, casa de samba, no Rio não tem, entende?
UH - Você é mais um cantor da noite do que um compositor? É isso?
JA - É como eu disse para você. Para falar a verdade eu tenho bastante autocrítica, eu não sou bom cantor. Então eu só posso cantar depois da meia-noite (risos). Porque lá pras oito ou nove horas, horário de teatro, ninguém me atura, não. Não canto muito bem. Mas depois da meia-noite, como todo mundo canta, está todo mundo mais alegre, as pessoas nas mesas cantam. Eu sou um cara que canta no microfone como se estivesse cantando na mesa. Agora, o que eu estou vendendo ali não é minha voz, é meu material, minhas composições. Eu sou compositor.
UH - Aqui em São Paulo você não fez nenhum show, ainda?
JA - Não, se eu tiver sorte, começo hoje. (risos)
UH - No Rio você não tem promoções, não é?
JA - No Rio eu já fiz promoções naquelas noites de samba de opinião, segunda-feira, já apresentei lá. Mas não pagam, entende? Lá é mais pra prestígio, ganhei muito prestígio com isso. A gente canta em troca do prestígio. Agora, eu acho que já tenho um certo prestígio.
UH - Você está achando que seu nome está crescendo aqui?
JA - O Leonel disse que estavam falando muito em mim aqui, quando mandou eu vir.
UH - Realmente estão.
JA - A prova é que vocês estão aí. Jornalistas me entrevistando aqui. Não fui eu que fui até a redação do jornal, como era antigamente.
UH - Agora, você acha que essa facilidade de adaptação da tua música ao gosto do momento, que existe e você reconhece, não te aproxima assim de Dom e Ravel, por exemplo, na música brasileira? Apesar de pobre, assim completamente diferente....
JA - Não... Eu admiro essa dupla, Dom e Ravel, pela oportunidade que eles aproveitaram em determinado momento de fazer uma música determinada. E é mais ou menos esse tipo de trabalho que eu faço.
UH - Já que você está na vanguarda nesse sentido de adaptação ao gosto da sociedade brasileira hoje, o que eu acho muito importante... você não acha que tem uma influência direta de Dom e Ravel?
JA - Não citaria só eles. Tem muita gente boa está fazendo esse trabalho agora, e acho isso uma coisa muita boa. É um trabalho quase parente do "jingle" e parente do samba-crônica, samba que o sujeito lê no jornal e no dia seguinte tem um negócio oportuno, tem um assunto fervendo. Aquele samba que talvez não vai se eternizar, mas que no momento...
UH - O samba pragmático, o que você está fazendo. Por exemplo a TV Globo não se interessou ainda em publicar nenhuma novela, usar como tema esse seu alto sentido pragmático?
JA - Eu fui contatado, já estive lá nos corredores da TV Globo. Um dia vi até o Boni.
UH - Falou com quem?
JA - Falei com um rapaz lá que eu não sei o nome. Disse que era Walter. Mas não sei o sobrenome, nem sei bem qual é a função dele lá.
UH - Você acha válido ou você teria qualquer tipo de objeção? Você acha válido? Acho que essa é a palavra certa.
JA - Acho que tudo é válido, desde que a gente esteja fazendo, entende? Desde que a gente esteja criando. O importante é criar, não é mesmo? (confusão) Eu faço qualquer coisa, entende? Faço até para novela se me pedirem. E acho que vou fazer muito bem.
UH - Julinho, você estudou até que ano?
JA - Eu fiz até o 1º ginásial.
UH - Primeiro. Parou por quê?
JA - Depois eu fui tomar aula particular.... na escola da vida! (risos)
UH - Mas enfim e daí?
JA - E daí que eu sei ler e escrever e acho que me exprimo muito bem. Você não está me entendo?
UH - Mas as suas músicas, das seis que eu conheço, denotam uma certa cultura, assim não de vivência, mas uma cultura geral, daonde teria vindo?
UH - Você incorpora uma série de coisas que realmente não são normais em pessoas assim do teu nível
JA - Eu tenho explicação para isso: a minha origem. Vamos dizer, eu tenho parceiros pela vida. (risos)
UH - Seu pai é copy-desk?
JA - Meu pai é copy-desk, então eu faço copy-desk do cotidiano do morro (risos). Vamos dizer assim. Muitas das músicas que eu faço são...
UH - Interessante não é, porque você não mora mais no morro.
JA - Mas eu vou sempre lá, porque eu tenho que voltar às raízes. Apesar de eu estar nas minhas raíze, porque eu estou em cima da favela do Pinto, como eu disse pra vocês, pelo menos uma vez por semana eu durmo na casa da minha mãe, na Rocinha, na casa da Adelaide.
UH - Você está com quantos anos?
JA - Vinte e cinco.
UH - Teu nome inteiro como é?
JA - Tem gente que me chama de Gato. Mas não é verdade não.
UH - Teu nome todo como é?
JA - Julio César de Oliveira.
UH - ... você tem uma figura assim bem popular, uma figura física; você acredita que poderia fazer uma experiência de androginia? Você acha que daria pé? Nunca pensou nisso? Acha interessante o movimento andrógino brasileiro? Te interessa?
JA - É esse negócio de Secos e Molhados, não é? Olha meu amigo, não (risos) Com todo respeito, eu não ia fazer uma coisas dessas. Eu acho aquilo uma viadagem, entende? Agora, eu respeito o trabalho deles.(risos) Eu respeito o trabalho deles. (risos) como eu respeito todo mundo. Como já disse antes. Mas eu não ia fazer uma coisa daquelas, não (risos)
UH - Mas por quê? É um problema de formação cultural, familiar ou é apenas um pragmatismo?
JA - Bom, aí é que tá... me entenda... se me dessem um cachê muito bom na TV Globo para fazer um número musical que tivesse que ficar com o corpo pintado, bom, então aí talvez eu fosse pragmático, entende? Mas assim falando de fora... A experiência que ensina à gente muita coisa, não é? Eu estou falando sem experiência porque eu nunca tive uma experiência andrógina, entende?
UH - Eu só perguntei isso, porque o Caetano Veloso, você deve conhecer, obviamente...
JA - Conheço e admiro muito.
UH - Caetano Veloso, num show que está em cartaz aqui em São Paulo, ele fica o tempo todo passando a mão no cabelo e tem brinco na orelha esquerda. Você usa esses recursos?
JA - Não, não uso brinco, não senhor, de jeito nenhum. E nem passo a mão no cabelo, porque o meu cabelo do jeito que é, pode passar a mão quanto quiser que ele fica... já é difícil é passar a mão dentro (risos). só passa por fora.
UH - Me falaram uma coisa, tudo que eu sei de você é o que me falaram...
JA - Porque eu sou muito falado e realmente eu acho isso muito bom. É bom sinal. O Leonel me disse: isso mesmo: está todo mundo falando de você.
UH - O Leonel deu uma entrevista para a rádio Marconi.
JA - É mesmo? Quando? Aqui em São Paulo?
UH - É, há duas semanas atrás. Perguntaram para ele se o Julinho seria a favor ou contra o black power. Aí ele contou uma história do Julinho, que antigamente, quando o Julinho tinha uns 15, 16 anos, ele alisava o cabelo. E depois quando começou o black power ele começou a alisar o cabelo, é verdade isso? Você teve uma fase assim de ocidentalização no cabelo?
JA - Tive sim, agora ele não está black power, ele está...
UH - Normal.
JA - Pragmático, desculpe abusar... (risos)
UH - Agora eu queria que você desse nota de zero a dez a três pessoas: Nara Leão, Ibraim Sued e Gerald Ford.
JA - Dez para todos. Alguns com louvor, outros...
UH - Garrincha?
JA - Garrincha.... Garrincha eu não dou nota dez pra ele...Se bem que ele é casado com a Elza Sores, amanhã ela pode querer gravar um samba meu (risos), é bom a gente estar sempre... É isso que eu falei: Nara Leão vai gravar um samba meu, O Gerald Ford, o presidente, nota 10. Ele pode fazer um arranjo muito bom. O Ibraim Sued pode dar uma nota a meu respeito, não é? Nota 10. Agora, não publica isso que eu estou falando, as explicações das notas que estou dando não. Só põe as notas.
UH - Outra figura. Wilson Simonal.
JA - Nota 10.
UH - Eu estou achando você muito condescendente.
JA - Como?
UH - Você me perdoe, não me leve a mal, mas você não me parece ter uma posição política definida. Você me parece muito preocupado em colocar sua música no mercado...
JA - Você vai me obrigar a dizer que eu sou pragmático de novo (risos). Eu não só sou pragmático como sou descontraído, entende? Você está querendo me contrair, me deixar...
UH - Em absoluto. Não, de maneira nenhuma.
UH - Ainda dentro daquela linha do nosso amigo aqui eu vou te pedir pra você dar notas pra três personalidades, Sabu...
JA - Sabu morreu, não é? Eu não achava ele muito bom ator, não. Nota quatro.
UH - Ainda mais agora, morto. (risos)
UH - Golbery
JA - Golbery, nota dez.
UH - Caetano Veloso
JA - Caetano Veloso, nota dez.
UH - Perfeito
JA - Eu não sou como aquela moça da televisão que dá 10 pra todo mundo. Você viu que pro Sabu eu dei nota 4. Eu lembro de ter visto um filme dele do tapete voador, negócio do tapete mágico e tal, do gênio da lâmpada, e eu não achei ele muito bom ator não.
UH - A gente só tem visto você pessoalmente, nunca na televisão, por quê?
JA - Eu sou cantor de rádio, esse é um problema que já falei antes. O problema da fotografia - eu não posso... Eu tenho uma imagem a preservar (risos). É uma imagem que não deve aparecer a preservar. Eu tenho uma falta de imagem a preservar (risos). Eu tenho esse probleminha... tem Pitanguy pra essas coisas. Por enquanto, não dá. Se eu colocar umas quatro ou cinco músicas de sucesso eu faço... Então fica aqui um alô ao Pitanguy: se por acaso pintar alguma coisa e quiser fazer um trabalho de solidariedade... ou se a ordem dos músicos financiar... não sei... a idéia fica lançada... pode haver um show em benefício... eu não vou pedir nada...
UH - Julinho, você gostaria de dizer o que para esse pessoal todo?
JA - (alto) Aquele abraço pro povo paulistano.
UH - Antes disso, Julinho. É que a gente está com um jornal aqui, eu te trouxe três exemplares pra você dar uma olhada
JA - Logo três?
UH - Você gostou, né? A gente tem uma liberdade para dizer o que quiser. Então, o grupo Frias está lhe oferecendo uma página para você dizer o que quiser. O que o Julinho da Adelaide quer dizer hoje, quer passar hoje? Agosto 74? O que você quer dizer? Não, eu não digo uma mensagem assim. Pragmático, mas nem tanto.
JA - Mas não entendi. Uma página inteira para dizer o quê?
UH - É que eu tenho uma página inteira para a matéria. Fala o que você quiser, pedir asfalto na favela, pedir ao Leonel que tire o alisamento do cabelo... para ser mais honesto com você.
JA - Não, eu não tenho queixa nenhuma de ninguém. Como eu falei. Eu estou chegando aqui em São Paulo, eu quero mandar aquele abraço pro povo paulistano. E se alguém ler, imagino que vá ler a sua coluna, me disseram que ela é muito lida. Qual o jornal, mesmo? (risos)
UH - Diário de Notícias.
JA - Diário de Notícias é muito lido aqui em São Paulo. O Leonel disse mesmo que era o mais lido. Então, se alguém se interessar, alguém que tem uma casa de samba, eu estou aí.
UH - Você está em que hotel?
JA - Eu não estou em hotel, eu cheguei agora, estou aqui, como você está me vendo, aqui na...
UH - Na redação.
JA - Na redação. Eu não quis dizer que vim à redação, eu não conheço nenhum jornal. Isso eu não sei como é que você vai resolver. Porque fica meio chato o artista que vai à redação.
UH - Não, todo mundo honesto faz isso. Você não deve se envergonhar... (confusão)
JA - Então, eu tive uma idéia... Aproveitando o fato do meu pai ter sido copy-desk e de eu ter esse vínculo muito estreito com a imprensa, diga na sua entrevista que, se alguém se interessar pelo meu concurso, entende, pelo meu trabalho nessas casas de samba, pra enviar para qualquer redação de jornal, que eu recebo (risos).
UH - Mas no fundo no fundo, seja pragmático, faça uma frase nessa linha. Pra despedida
JA - Com é? Seja pragmático? (Confusão)
UH - O Caetano Veloso, dando numa entrevista, num jornal de São Paulo, disse, pessoalmente, que, pra ele, a censura não tem causado grandes problemas. Você poderia dizer a mesma coisa de você?
JA - Eu disse isso no começo da entrevista. Vou repetir. Eu digo abertamente tudo. Não tenho pêlos na língua. Disse tudo no começo da entrevista. É que você... o senhor não estava aqui. Eu disse mesmo, entende? E....
UH - Eu gostaria que o senhor respondesse a pergunta dele...
JA - Já disse tudo.
UH - Esqueceu... (risos)...
UH - Pelo seguinte. Eu não sei se você sabe, Julinho, mas a censura hoje, isso na minha parca opinião, ela tem, eu não diria tesourado, mas ela tem bloqueado o trabalho criativo dos criadores. Frase bonita, não? (risos). Eu quero saber se essa mesma censura - que tem, inclusive, perturbado um colega teu, um rapaz que eu acho que tá dando uma força pra você, que é o Chico Buarque de Hollanda - se ela tem também te prejudicado. Porque uma das história que Leonel divulgou na Rádio Marconi é que você teria já uma música proibida e pelo fato (inclusive eu acho que Leonel foi um pouco sacana com você, ele falou que bastou você ter uma música proibida, você começou a construir uma casa no bairro da Tijuca), então eu queria saber se você realmente tem alguma coisa proibida, algum problema com a censura.
JA - Eu tenho, já te falei que tenho, mas eu tenho mais diálogo do que problema. Cada vez que surge um problema, para isso que eu fiz o samba duplex, que eu pretendo, inclusive, patentear, porque é uma idéia minha que se puder patentear, eu não sei como que é esse negócio de patente. ... E depois eu acho que quem faz um samba, faz dez. Se proíbem um... Então é o tal negócio. O rapaz que trabalha na censura é um homem, pai de família e tem que trabalhar, (todos falam) como eu. Ele está lá cumprindo seu trabalho. Se ele parar de proibir, vai perder o emprego, porque fica um trabalho inútil. Assim como se eu parar de fazer samba, eu deixo de ser sambista. Então, o censurador deixa de ser censor quando ele parar de proibir. Então, vamos nos unir, né, num grande abraço. Então, o censor censura e a gente faz música e o censor censura e a gente faz música. (todos falam)
UH - ...se o Julinho tem consciência de que isso pode realmente inaugurar até uma vanguarda no Brasil. Esse samba duplex, que eu acho que é uma obra aberta, que é o samba que o ouvinte completa em casa. Você tem uma oportunidade de atingir uma faixa muito grande de ouvintes... É um samba que dá várias leituras, em qualquer nível.
JA - Não, aí é diferente. O samba duplex não se propõe isso. Não uma obra aberta. É uma obra aberta até passar pelo filtro. Quer dizer, ele é duplex, quando eu componho. Quando chega nos canais competentes, o samba assume uma das duas versões. Se eu pudesse, eu faria samba duplex de um lado e outro. Tem que agradar gregos e troianos. Quem me falou isso foi o Leonel (risos). Então eu tenho que fazer em primeiro lugar para gregos e troianos, depois vai ver se o censor é grego ou é troiano e vê o quê que ele acha bom. Porque muitas vezes eu não sei mesmo se devo falar a favor ou contra a meningite. Eu sou contra a meningite, mas eu devo dizer que a meningite está brava aqui em São Paulo, porque é um fato que parece que é real, ou devo dizer que a meningite não está brava aqui em São Paulo? Então eu faço samba duplex. Um dizendo que a meningite está terrível, está uma péssima epidemia grassando por aí. (Cantarola). Eu fui pra São Paulo com a Judite, saí de lá com meningite, ou Eu fui pra São Paulo com a meningite e saí com a Judite. Quer dizer, pra secretaria de sáude, tudo bem tudo bag, a secretaria da saúde pode inclusive se basear nisso pra, se não curar a meningite, pelo menos pra fazer um slogan, né? Eu fui pra São Paulo com a meningite e saí com Judite. Ao mesmo tempo se ele quiser alertar a população contra o perigo da meningite, ela vai usar o outro. Aí que eu tenho que ver se o sujeito, na hora, é a favor da meningite ou contra.
UH - E ao mesmo tempo, se no próprio filtro for bloqueada as duas versões, sobre a mesma base melódica, você acredita que é válido ainda criar, sempre existe...
JA - Você está lançando o samba triplex, né? É aquele que a terceira letra fala de futebol (risos), de um jogo que termina empatado (mais risos), que é um samba que eu tenho em que cabem todas as letras. (risos), que conta uma história de futebol que termina empatado. E tem muito gol dos dois lados pra não dizer que é só retranca. É 4 a 4 que termina o jogo, se não for 5 a 5.
UH - Eu tenho a impressão que o samba duplex vai ser muito bem recebido no seio da família brasileira.
UH - Você está interessado apenas em fazer música para boate, para shows, ou você quer tentar teatro, cinema? Ou coisas paralelas?
JA - Coisas paralelas. Todas as paralelas interessam. Música para novela, música para teatro, música pra cinema, para boate, música para teatro, música música, entende?.
UH - Julinho, eu queria que você cantasse, pra encerrar, uma quadrinha do samba do ladrão.
JA - (Cantarola. Pára no fim da primeira parte. Se perde.) É que é uma musica que precisa de violão. Precisa da harmonia pra acompanhar. A segunda parte é muito romântica e diz assim... Não, deixa eu cantar a segunda parte (cantarola)
UH - Põe em palavras
JA - O pedaço todo da letra? Pra falar a verdade não tá pronta.. (diz um pedaço da letra)
UH - Só para encerrar, você tem alguma coisa para dizer?
JA - Aquele abraço ao povo paulistano (risos), um abraço amplo, descontraído, aético e pragmático, aético não.
UH - Você gosta de São Paulo?
JA - Gosto demais de São Paulo. Todos falam
O samba duplex e pragmático de Julinho da Adelaide
Nos bares do Rio de Janeiro, nas praias badaladas, na favela da Rocinha e mesmo na casa de alguns milionários e ainda em algumas delegacias de polícia, Julio Cesar Botelho de Oliveira talvez não seja muito conhecido. Mas Julinho da Adelaide é figura das mais notórias, simpáticas e comentadas do momento. Não se admite mais uma festa ou rodada de samba sem a presença de Julinho da Adelaide.
Seu nome passou das crônicas policiais para as sociais quando cantores famosos começaram a se interessar pelo seu samba. Chico Buarque gravou Jorge Maravilha, o MPB-4, O milagre e Nara Leão deverá gravar uma música nova.
Como começou a ficar conhecido em São Paulo, esteve aqui no começo da semana para tentar mostrar o seu trabalho nas casas de samba. Não lhe deram muita chance. Três dias depois encontrei em cima da minha mesa um bilhete assinado por Julinho e que terminava assim: "e como a barra não está dando por aqui, eu e Leonel vamos amanhã para Portugal. Parece que a barra lá tá melhor pru meu samba". Junto ao bilhete a fotografia de sua mãe, nos áureos tempos do Orfeu Negro, no Teatro Municipal do Rio.
Julinho da Adelaide - Eu não estou acostumado com o clima de São Paulo. Devo dizer que esta é a segunda vez que venho. A primeira vez faz muito tempo, foi na época dos festivais. Inclusive, tenho um fato interessante para contar: eu estava na platéia quando o Sergio Ricardo jogou aquele violão. Acertou aqui, ó.
Mário Prata - Esta cicatriz é do violão?
JA - É. Inclusive eu pedi para não fotografar, por isso.
MP - Mas são duas cicatrizes.
Chico Buarque - É que pegou o cabo aqui e a caixa aqui deste outro lado. Eu tenho a pele quelóide, entende?
MP - Quer dizer que você é um sujeito marcado pela música popular brasileira?
JA - Sou. Foi aí que eu despertei para a música, inclusive. Eu não tinha ainda muita vocação musical. Quer dizer, eu já tinha feito a letra do Juca que o Chico Buarque de Hollanda gravou. Juca foi autuado em flagrante, como meliante, lembra? Foi um caso que aconteceu comigo. Mas foi no festival mesmo que eu despertei. Eu vim de ônibus.
MP - Nesta época, você ainda não estava nem pensando em construir casa na Gávea, não é?
JA - Não, isto é um pouco de confusão que estão fazendo. Quem está construindo é meu irmão, o Leonel. Meu irmão é procurador.
MP - E esta segunda vinda a São Paulo? Você está aqui profissionalmente? Eu soube que você está com três músicas novas.
JA - Três não, tenho muito mais que três, devo dizer isso. Não tenho culpa se as pessoas pedem sempre as mesmas. Em geral pedem Chama o Ladrão, Jorge Maravilha e O Milagre. Mas eu tenho muito mais músicas. Chama o Ladrão teve um problema com a Censura e O Milagre teve também. Eu queria, inclusive, aproveitar e dizer que eu não quero criar nenhum problema com a Censura, porque, através do Leonel, eu tenho um diálogo muito bom com eles, entende? O Leonel sendo meu procurador, me quebra todos os galhos em todos os sentidos.
MP - Qual a profissão do Leonel?
JA - Na carteira tá comerciário, mas ele não exerce a profissão não. Ele trabalha mais como meu procurador, tem boas relações e tal. Tem, inclusive, boas relações na polícia. Então, em relação à Censura, eu tenho esta posição: eu acho bobagem as pessoas falarem que a Censura prejudica, quando eu acho que o negócio de fazer samba, tem que se fazer muito samba. Eu faço muito samba, entende? Faço vários por dia, mesmo. O sujeito que trabalha lá, o trabalho dele é censurar música. Eu respeito muito o trabalho do cara. Quando termina o dia, perguntam: quantas músicas você censurou hoje? O meu trabalho é fazer música. Quantos sambas você fez hoje? Oito, nove. O dia que eu faço dez eu vou dormir em paz com a minha consciência. Cada um no seu ramo.
MP - Mas você realmente faz oito ou nove sambas por dia?
JA - Faço. E faço samba duplex, também.
MP - Antes de falar sobre samba duplex, por que você só foi descoberto agora? Porque só agora que estão cantando as suas músicas?
JA - Porque eu estou profissionalmente na jogada tem pouco tempo. O autor jovem é difícil, meu. Eu, por exemplo, andei em todas as fábricas e não consegui nada. É claro que minha voz não é muito boa pra cantar. Eu não sou cantor e hoje em dia todos os compositores são cantores. Eles que defendam a matéria-prima deles. Eu não posso fazer isto, então tenho que procurar as fábricas. Mas ficavam me empurrando de um cara pra outro. Um dia, na Phillips, eu acabei no Departamento Gráfico, lá no Rio. Fui de porta em porta. Cheguei até a falar com o Roberto Menescal, autor do Barquinho, conhece?
MP - E estas cicatrizes, atrapalham muito?
JA - Embora eu não seja cantor, um dia eu pretendo gravar um disco. Você vê, gente que não canta bem como o Chico Buarque, o Vinícius de Moraes, o Antonio Carlos Jobim, estão cantando. Quer dizer,a minha voz não é muito boa mas outro dia eu ouvi o disco do Nelson Cavaquinho e ele é mais rouco do que eu e gravou um disco. Eu posso ter que gravar um dia, entende? Aí a minha foto vai atrapalhar a vendagem do disco, não é? É claro que eu não vou pôr na capa a minha foto. Assim, uma destas menininhas bonitas da Rua Augusta pode comprar pensando que é um sujeito bonito e vende mais o disco, não é? Com a minha cara eu acho que vai vender menos. Então, é melhor não ter a cara do que ter a cara que eu tenho.
MP - Não vamos falar nisto.
JA - Eu fico muito nervoso quando eu falo nisto. Se quiser, tira a fotografia de costas. Ou então tira do meu irmão. O Leonel se ofereceu, inclusive, para aparecer na capa, se um dia eu fizer um disco.
MP - O Leonel está com você aqui em São Paulo?
JA - Não. Vem amanhã. Ele me mandou porque disse que leu nos jornais - ele lê muito jornal - que aqui em São Paulo tem muita casa de samba, que lá no Rio não tem. Lá só tinha uma, o Sucata, mas era um show já montado e que não podia entrar e cantar no meio. Aqui, me parece, as pessoas podem chegar e pedir a vez para cantar. Vou lá e já vou logo avisando antes para me desculparem por não ser um bom cantor. Tenho muita música para mostrar. Fiz uma chegando aqui, hoje.
MP - Você faz a música e a letra, junto?
JA - Faço tudo junto, claro. É claro que eu faço samba duplex. Quase todos os meus sambas são duplex.
"Minha mãe casou mais de uma vez, mas casou sempre"
MP - Samba duplex o que é?
JA - São sambas que você pode mudar. Este que eu fiz agora você pode mudar. É sobre o problema da meningite, porque o Leonel me avisou: vai para casa de samba, mas cuidado com a meningite. Me explicou o que era, porque eu não leio muito jornal. Aí eu fiz o samba pelo caminho que diz assim: "eu fui para São Paulo com a Judith e só saí de lá com a meningite". Eu sei que tem agora umas propagandas de vir pra São Paulo nos fins-de-semana e eu não quero prejudicar ninguém. Então, se der problema, eu mudo "eu fui para São Paulo com a meningite e só saí de lá com a Judith". Fica, inclusive, como se São Paulo tivesse curado a minha meningite. Faço também adaptações de sambas antigos. Eu tenho umas idéias para o Vinícius de Moraes, que eu admiro muito, aliás.
MP - Você conhece ele?
JA - Pessoalmente, não. Eu estou procurando um contato com ele porque eu fiz uma adaptação daquele samba dele, Formosa, conhece? Mudei pra China Nacionalista. Já estou com bastante tarimba neste negócio.
MP - Mas você diz que não lê jornal, como é este negócio de China Nacionalista?
JA - Eu leio só o que o Leonel manda. Ele já dá o serviço todo, entende? Se eu ficar o tempo todo lendo, eu acho que eu não vou poder me expressar bem. Eu sou um criador, entende?
MP - Quer dizer que o Leonel é uma figura importante na sua vida?
JA - Eu devo toda a minha carreira e minha vida a duas pessoas. A minha mãe Adelaide, a quem devo inclusive o meu nome - meu sobrenome é Oliveira, mas Oliveira todo mundo é. Então eu sou Da Adelaide. Aqui ela pode não ser muito conhecida, mas no Rio é, e muito. E devo ao Leonel que é quem me orienta agora a minha carreira.
MP - Fala um pouco da Adelaide.
JA - Adelaide foi a pessoa que me orientou a minha vida inteira.
MP - Existe um boato de que ela teria sido uma das mulheres do Vinícius.
JA - Eu não posso falar assim da minha mãe, não é? "Uma das mulheres do Vinícius", o que é isto? Em todo o caso, que ela conheceu o Vinícius, conheceu. A minha mãe é uma mulher muito honesta. Ela casou mais de uma vez, mas casou sempre, viu? Quando ela viajou para a Alemanha, ela casou com um luterano. O Leonel é luterano por causa disto. É loiro e é luterano. Ele agora alisou o cabelo e está dizendo que ele é parecido com este tal de Roberto Redford. Mas ele não é muito parecido, não. O nariz dele é igual ao da minha mãe, grossão. Ele é loiro sarará, sabe? Parecido, fisicamente, com o Ademir da Guia. Só que agora alisou o cabelo e tá achando que é artista de cinema.
MP - E a Adelaide?
JA - Mamãe esteve lá na Europa, com a Brasiliana. Ela é casada na Igreja Católica Apostólica Romana, na igreja Católica Brasileira, é casada na Igreja Luterana e tem mais uns três casamentos aí. Eu sou filho da Igreja Católica Brasileira.
MP - Do primeiro casamento?
JA - Terceiro.
MP - Se a sua mãe foi com a Brasiliana, ela é mulata mesmo?
JA - Mulata retinta, quase preta. Quase sangue puro.
MP - Mas e você com esta cor mais clara?
JA - Meu pai, que eu não cheguei a conhecer. Ele morreu pouco depois de eu nascer. O nome dele era F. Botelho. Este F. nem minha mãe sabe o que é.
MP - Ele fazia o quê?
JA - Meu pai? Meu pai trabalhava em jornal. Era copydesk, naquele tempo.
MP - Então você teve uma origem assim já um pouco cultural. Você recebeu uma certa formação.
JA - Eu sempre tive muitos livros, apesar de morar na favela. Mas eu não tenho nenhuma vergonha disto. Tem muita favela lá no Rio que é melhor que estas coisas que estão fazendo agora. Se bem que eu aluguei um cantinho pra escritório da firma que tenho com o Leonel. Eu vi até um anúncio agora, no intervalo daquela novela, o "Espigão", onde eles anunciam muito estes novos apartamentos de sala e quarto. Menor que o barraco onde me criei, entende?
MP - Quer dizer que já está pintando um dinheirinho?
JA - Diz o Leonel que sim. Eu ainda não pus a mão neste dinheiro porque o Leonel acha que não é legal pegar o dinheiro e fazer alguma coisa agora. É melhor empregar, entende? E ele empregou. Parece que o dinheiro já vai dar uns dividendos. É isso, né?
"O Chico Buarque está faturando em cima do meu nome"
MP - E aquela casa que você está fazendo lá na Barra? É com dinheiro da vendagem?
JA - Não sou eu que estou construindo. Quem comprou um terreno lá foi o Leonel e vai construir uma casa agora. Mas isto é problema dele. Ele tem os bicos por fora, além da participação nos meus lucros.
MP - Aqui em São Paulo ainda não, mas no Rio você é muito conhecido. No Degrau, no Antonio's, no Final do Leblon. Como é que se deu esta transposição da favela para as colunas sociais e de músicas? Quem é que te deu esta força?
JA - Isso eu devo ao Leonel. Ele é muito ligado ao pessoal do Rio. O Zózimo Barroso do Amaral é como se fosse irmão dele, do Jornal do Brasil. O Carlos Imperial, da revista Amiga. Ele vive me falando dos amigos dele de jornais. Tem muita gente aí que é amigo dele. Bloch, um negócio assim. Então, eles me promovem. O Leonel é um cara cem por cento. Você precisa conhecer ele.
MP - Mas mesmo assim você ainda é uma figura pouco conhecida no Brasil.
JA - Ainda sou, devo confessar isto. Confio em Deus que, com a ajuda Dele e do Leonel eu vou chegar lá.
MP - Você não seria uma criação da imprensa carioca? Como é que você vê isto?
JA - Por algum tempo eu fiquei meio magoado com isto.
MP - Seu pai foi um copydesk no Rio. Você não estaria sendo lançado pela imprensa carioca que tem penetração nacional?
JA - É claro que a imprensa carioca me ajuda muito, mas eu tenho o meu trabalho. Eu vim aqui para mostrar o meu trabalho, entende? Não é só badalação, não. Este negócio de só badalação em jornal não dá camisa a ninguém, já me dizia o Leonel. Tem que se fazer as coisas. Eu vou lançar o meu primeiro compacto duplo que vai ser gravado agora, finalmente. Eu tenho feito uma média de cinco a seis sambas por dia. Com este trabalho eu acho que vou levar um grande empurrão na minha carreira e daí por diante eu acho que todo mundo vai se interessar em gravar música do Julinho da Adelaide.
MP - Quem é que está cantando música sua, hoje, Julinho?
JA - O Chico Buarque cantou num show que ele fez no Rio. Foi muito bom porque deu dinheiro na SBAT, o Jorge Maravilha. Tem também o MPB-4 e a Nara Leão. Eu entreguei umas outras músicas aí, que eu não sei se estão cantando, pra uma porção de gente. Eu tenho vários estilos, sabe? Mandei música para o Tim Maia, para a Angela Maria. Não sei se estão cantando porque eu não tenho muito controle. O Leonel que sabe.
MP - Mas você tem realmente uma produção muito boa ou está se utilizando de nomes como Chico e MPB-4?
JA - Mas, ô cara, escuta. Você vai me desculpar, mas eu já disse que não sou cantor. Eu preciso dos cantores pra lançar meu nome, entende? O Chico Buarque eu não devo nada a ele e nem ele deve nada a mim. Ele tá faturando em cima do meu nome e eu estou faturando em cima do nome dele. Acho que isto é normal. Não acho que seja aético da minha parte, entende? Eu sou é pragmático.
MP - Aético?
JA - Parece que a origem desta palavra é luterana.
MP - Julinho, aqui em São Paulo, o pouco que se sabe de você são histórias mirabolantes. O próprio Chico falou no show dele, não sei se você sabe, que você é uma figura das crônicas policiais que passou para as crônicas sociais. O seu passado...
JA - Vou lhe explicar isto. Eu sou muito tímido, conforme você deve ter percebido, e o Leonel, com esta história dele ser procurador e sendo uma pessoa descontraída, muitas vezes ele faz coisas impensadas. E aí, quando vão perguntar o nome dele, ele diz: Julinho da Adelaide. Só porque tem procuração minha. Então, é justo que eu pague pelas coisas boas e ruins que ele faz. E olha que não acontece muita coisa ruim com ele porque ele tem relações muito boas na polícia.
"Adelaide era amiga íntima do Vinícius, do Jobim e do Oscar Niemeyer"
MP - E você já foi preso?
JA - Algumas vezes. Eu conto isto, inclusive, no samba Chama o ladrão.
MP - Na medida que você mesmo diz que é muito pragmático, este negócio de carregar o nome da mãe não é uma jogada oportunista da sua parte? Pra sensibilizar uma parte do público?
JA - Não, de maneira nenhuma. Eu me chamo Julinho da Adelaide porque todo mundo só me chama assim lá no morro. Acontece que a minha mãe é mais famosa do que eu lá no Rio. Ainda é. Minha mãe é célebre. Eu vou te contar o que ela já fez. Minha mãe estava no primeiro elenco do Orfeu Negro. Foi amiga íntima de Vinícius de Moraes, Antonio Carlos Jobim e Oscar Niemeyer, que fazia o cenário do Orfeu no Municipal. Do Haroldo Costa, também. Ela conheceu mais intimamente o Oscar. Tanto é que há cinco ou seis anos atrás a gente morava ali na Favela da Rocinha quando começaram a erguer o Hotel Nacional. Aquele redondo. Mamãe dizia pra mim: "Tá vendo, filho? Tá vendo, Julinho? Aquilo é homenagem do Oscar para mim." Inclusive agora botaram uma porção de homenagens na Barra. Ela lembra dele muito bem. É claro que ela está mais velha agora e não pode receber muita homenagem. Eu estou sabendo que não é homenagem do Oscar Niemeyer pra ela, mas não vou tirar esta ilusão dela, né? É bonito ela ficar pensando assim. Mamãe tem muita imaginação. Mas continuando, depois ela viajou com a Brasiliana, casou com o luterano, foi presa na fronteira do Tibet por causa de um monge, aprendeu a fazer cassulé e a feijoada branca. O feijão branco dela é conhecido lá no morro. Então todo mundo perguntava assim: qual Julinho? O Julinho da Adelaide.
MP - Mas a própria imprensa carioca está achando que você está usando o nome da sua mãe para se promover. Tanto é que o Leonel não se chama Leonel da Adelaide.
JA - Leonel Kuntis. Mas pode ser que daqui uns tempos a Adelaide passe a ser a Adelaide do Julinho. Não tenho nada contra isto.
MP - Como vai ela?
JA - Mamãe está muito bem. Fazendo aquele feijão cada vez melhor. Ela tem um quiosque. A casa dela, uma vez por semana, enche de gente.
MP - Ela é neta de escravos, não é?
JA - Neta de escravos. A mãe dela foi beneficiada pela Lei do Ventre Livre. A gente tem uma gratidão muito grande pelo José Bonifácio, o Moço.
MP - Como foi o seu primeiro contato com o Chico?
JA - EU trabalhava na Phillips. Na fábrica, lá no Alto da Boa Vista, na Phonogram, na prensagem de disco. Lá eles tinham um time que dia de sábado jogava contra os compositores, contra esta gente assim, e eu estava sempre nesta pelada e fui conhecendo o pessoal. Fiquei conhecendo o Silvio Cesar, fiquei conhecendo o Maestro Erlon Chaves, fiquei conhecendo o Paulo Sérgio Valle.
MP - Mas, como foi? Você chegou para o Chico e mostrou a música, deu uma fita, cantou para ele, como é que foi?
JA - Não, eu não falei direto com ele. Falei antes com um rapaz integrante do conjunto vocal MPB-4. Eu estava entrando na área e aquele mais baixinho, gordinho, chamado Rui, me deu uma pancada por trás e o juiz não deu pênalti. Na hora que eu estava caindo no chão ele foi legal. Me pediu desculpas. Eu aproveitei que ele tinha puxado conversa e falei: eu sou compositor. Ele não deu muita bola e ainda marcou o gol. Mas, como eu tenho amizade e o primeiro contato já estava feito, eu consegui prensar um acetato por camaradagem do pessoal da Phonogram. Este acetato tinha duas músicas, o Jorge Maravilha e Chama o Ladrão. Parece que eles gostaram, mostraram para o Chico e cada um gravou uma.
MP - O Chico tem cantado a sua música e tem dado a entender que a música é dele. Ele se refere a você como se você fosse uma figura mitológica.
JA - Não sei, rapaz. Este pessoal que tem o nome feito, pode fazer muita coisa e não adianta eu ficar aqui reclamando, entende? Como eu já disse, eu sou pragmático. Eu preciso dele e ele de mim. Então eu não vou me colocar contra ele como você está querendo. Talvez o dia que eu for mais conhecido eu faça a mesma coisa. As pessoas têm que tirar proveito do que lhe cai nas mãos, não é? O Leonel que me disse isso.
MP - Eu queria que você se definisse, já que usa tanto a expressão pragmática.
JA - Eu não sei. Pra falar a verdade, o Leonel que mandou eu dizer que eu sou pragmático. Quando perguntassem coisa mais complicada, pra dizer isto. Por exemplo: "O que você acha da Censura?" Sou pragmático. Ele falou ecumênico, também. Disse que quando me perguntassem o que eu acho de Cuba, para eu responder que sou pragmático e ecumênico. Senão eu me meteria em complicações. Mas eu não posso definir exatamente como eu sou. Eu sou pragmático, pô!
"Cala boca Bárbara"
Chico - Há uma diferença de seis anos de Roda Viva para Calabar. Para mim, nessa faixa de 20 a quase 30 anos, a gente muda muito. Calabar é um trabalho bem mais elaborado. Roda Viva foi escrito, assim, em um mês, um mês e pouco, e praticamente remontado e reestruturado. Calabar nós começamos a fazer em agosto/setembro do ano passado, foi um ano de trabalho, de mudar no meio, começar tudo de novo. Não é que a gente tenha entregue o texto fechadíssmo. É um trabalho mais denso e, por outro lado, também é um trabalho que exigiu pesquisas. É um tema histórico. Não é um tema de televisão, como Roda Viva era, um tema de experiência pessoal. E depois é um trabalho feito de parceria, o que já muda muita coisa. É um trabalho totalmente diferente. Inclusive, a montagem de Fernando Peixoto é bastante diferente da do José Celso, apesar do Fernando ter trabalhado muito com ele. É outro tipo de teatro: aquele tipo de teatro de agressão não é a intenção do Fernando, aquele negócio de entrar no meio do público... só tem é um boi que voa...
Ruy - A montagem do Fernando é uma coisa mais clássica, mas vai desde o Teatro de Revista até Planchon, se quiser. Não há um interesse em revolucionar o teatro. Pelo contrário, a interpretação é marcada num sentido assim bem quadrado.
Chico - E também naquela época alguma coisa era possível: uma liberdade de improvisação. Tinha horas, em Roda Viva, em que o personagem podia fazer o que queria. Ele falava o que bem entendia, dedicava o espetáculo a quem queria, xingava os caras, ao Vinícius, por exemplo. Eu, quando assistia a peça, era pichado sempre. Então, hoje, não pode mais fazer isso, quer dizer, o sujeito tem que seguir direitinho o texto. A única coisa que tem, é que são duas peças de teatro. Mas eu também já trabalhei com o teatro, desde o começo, desde a música para o poema de João Cabral, e fiz outras músicas para o Oficina. Meu trabalho sempre foi muito ligado ao teatro.
Ruy - Antes de Calabar, a gente se preocupou mais com a traição; parece que Calabar veio com a preocupação da traição. E a traição é um negócio que a gente pode bater em muitos níveis. Pode bater num nível inteiramente metafísico. Pode bater num nível inteiramente circunstancial. Pode bater num nível ideológico. E é evidente que, para nós, não interessa discutir a traição de uma forma absoluta, porque a traição é um tema filosófico. Eu acho que a traição é um negócio que está patente no mundo moderno: o conceito de traição, o conceito de fidelidade. Você pode citar Jane Fonda, pode citar a fidelidade ao poder do Nixon (que não quer dar as fitas). Onde é que está a traição, no eleitorado dele, ou não?
Chico - Inclusive eu me lembro de que nessa época eu estava escrevendo. A gente começou a escrever. Tinha aquele episódio da Jane Fonda, por exemplo, que a gente comentou, até: você não vai colocar a Jane Fonda na peça, vai? Mas, mais ou menos, foi isso: um senador, não sei que, e quiseram processar a Jane Fonda por crime de alta traição.
Ruy - No comportamento dela em relação à guerra do Vietnã, não é ? Então a traição... ou a fidelidade, hoje, é um negócio que você encontra em todas as áreas de comportamento. Se você quiser debater num nível até pessoal, você encontra um conceito de traição. Então, a partir daí, nós colocamos a matéria. É difícil, portanto, de ver a gênese da coisa: se a gente buscou Calabar para debater a traição, ou se o Calabar justamente nos proporcionou o debate. Não é, pois, uma idéia primeira a partir da qual você desenvolve. É um conjunto de coisas. O que se debate também em Calabar, não explicitamente, mas obrigatoriamente, é o conceito de Pátria. Porque é coisa fundamental da época. Quer dizer: naquela época, tínhamos os brasileiros, os portugueses, os espanhóis, os holandeses, aquela confusão toda. Havia uma série de divisões internas. Mathias representa toda uma.
De "Cala a boca Bárbara", entrevista de Chico Buarque e Ruy Guerra editada pelo DCE-PUC, Rio 1973.
Chico põe nossa música na linha
Depois de seis anos, ainda não me acostumei ao palco. Quando tenho um show à noite, já acordo agitado, passo o dia tossindo e entro em cena apavorado. Mas à medida que o show engrena, que o público responde, vou ficando à vontade. Na televisão, geralmente, não encontro condições para isso. É tudo muito artificial. O auditório, quando há, é condicionado, o calor é sufocante. E o cachê não costuma ser pago com menos de seis meses de atraso. Mas a televisão não se perturba: o artista é que precisa dela.
Quando vai fazer show de apenas um dia, em qualquer cidade, a bagagem de Chico é uma sacola de plástico e lá dentro uma escova de dentes, a pasta e uma camisa. Seu empresário, Roberto Colossi, afirma que ele se fosse um pouquinho mais preocupado em ganhar dinheiro - seria "o produto artístico mais fácil de se vender no Brasil".
Na hora do show, toda a preparação de Chico para entrar em cena é trocar de camisa. E tem hora que eu fico em dúvida. A camisa que está na sacola, ali jogada a olho, às vezes está mais feia do que a que ele está usando.
Quando o show é de mais de um dia, a mulher de Chico, a pequenina e expressiva atriz Marieta Severo (que vai voltar a trabalhar), arruma a sua mala, com tantas camisas, calças, meias e cuecas quantos são os dias de show. Chico, então, é homem bastante para abrir a mala e apanhar a roupa limpa. O que ainda não consegue é recolher a roupa usada. Assim, no fim da excursão, Chico não se esquece da mala e chega em casa com ela direitinho - só que vazia.
Tímido, desajeitado, encabulado, inquieto - isso tudo é verdade. Mas não interessa: Chico Buarque é hoje um dos maiores show-man do Brasil, em solicitações e na cotação (Flávio Cavalcanti oferece-lhe Cr$ 25.000,00 para participar do seu programa; ele tem sempre convites para ir à televisão e para fazer shows fora do Rio; precisou prorrogar sua temporada no Canecão; um diretor insiste para que ele apareça no cinema como ator). Fausto Canova, estudioso da música popular brasileira e também homem experimentado em shows de teatro e televisão, acha que Chico é, hoje, talvez o mais importante show-man do Brasil:
Inteligente, agrada aos intelectuais e aos universitários; bonito, sem ser bonitinho, excita as mulheres e a meninada; brioso e atuante, sensibiliza a juventude; cantor de voz agradável e ajustada às músicas, compõe um espetáculo bom de ver de ouvir, e com uma vantagem adicional: seu público não é específico; gente de todas as idades e condições gosta dele. A voz de Chico, segundo o maestro Rogério Duprat, tem o registro de um violoncelo e o timbre de sax-barítono.
Tímido, desajeitado, encabulado, inquieto - isso não interessa. Como não interessa? - pergunta André Midani, diretor da maior gravadora de discos no Brasil (Philips).
Chico é assim porque o brasileiro é assim. O tempo que o show-man precisava dizer gracinhas ou plantar bananeira no palco já se foi. Agora o povo quer ver é quem tem recado a dar, e isso é o que ele tem.
Poucos cantores no Brasil, em 1971, venderam mais de 100 000 discos, em compactos ou elepês. E Chico está em ambas as listas. Entre os elepês, segundo a Philips, com só dois companheiros: Roberto Carlos e Martinho da Vila. O disco "Construção" criou problemas industriais nunca antes vividos pela Phillips. A demanda de 10 000 discos por dia, nas primeiras semanas, levou a fábrica a contratar duas gravadoras concorrentes para prensá-los, obrigou o pessoal a trabalhar em turnos de 24 horas por dia e o futebol de sábado, rotina de vários anos dos empregados e artistas, ficou suspenso durante quase dois meses.
Também, nunca antes a Philips tinha vendido tantos elepês em tão pouco tempo (140 000 nas primeiras quatro semanas). E um fato novo se deu no mercado. Dezembro é o mês em que Roberto Carlos (campeão absoluto de venda de elepês no Brasil há quase seis anos) lança o seu disco anual e tradicionalmente subverte a parada de sucessos, indo de pronto para o primeiro lugar é lá permanecendo, incontestável, por quase seis meses. Dessa vez, Roberto encontrou uma construção pela frente e teve dificuldade para desbancá-la no Rio, enquanto continuava perdendo em São Paulo durante todo o primeiro mês. Ao final da corrida, Roberto venderá mais discos do que o Chico, pois sua procura é quase uniforme em todo o país, enquanto Chico é consumido em quase 80% no eixo Rio - São Paulo.
Mais do que um marco na carreira de Chico (a venda será igual aproximadamente a três vezes a média dos seus discos anteriores). "Construção" vem sendo apontada como um marco na música brasileira. O crítico de música Walter Silva, de São Paulo, não se dá pessoalmente com Chico Buarque. Mas diz:
"Construção" é o melhor disco feito nos últimos vinte anos no Brasil. Um desses que se houvesse por ano, em toda a música brasileira, e eu me daria por feliz.
Chico e o passado
Costumo compor de enxurrada. No momento (janeiro) estou parado. Quem sabe, na próxima enxurrada consigo por em cena um velho projeto: um musical. Não tanto uma peça, mas uma seqüência de canções novas dentro de um mesmo espírito. Por outro lado, estou trabalhando com Cacá Diegues e Hugo Carvana no roteiro dum filme. E estou pensando em montar um circo.
No dia 20 de dezembro de 1965 houve em Campinas, SP, um show de Bossa-nova era então a palavra mágica da música popular brasileira. De todos os artistas que participaram daquele show, talvez um só, hoje em dia, se lembre de tudo o que se passou em Campinas. Com seu insuficiente e desajeitado violão, o estudante de arquitetura Francisco Buarque de Hollanda, 21 anos, cantou naquela noite, a sua música "Pedro pedreiro". Eram dois desconhecidos - ele e a música - e assistência quase nem os notou. Mas Chico nunca mais vai esquecer-se daquela noite em Campinas porque ali, pela primeira vez, ele subia a um palco para cantar ganhando cinqüenta contos.
No seu primeiro ano de arquitetura, Chico Buarque já vira que tinha entrado na escola errada. Pensava que ia desenhar poéticas plantas de cidades (coisa que faz até hoje), e tudo o que o mandavam fazer era "ser mordido pela régua T" e estudar concreto protentido. Se a música não desse certo, ele seria jornalista., ou escritor, poeta, essas coisas.
Em setembro do ano seguinte - 1966 -- ele já estava "desconfiado" que tinha escolhido o caminho certo: dois discos gravados (compacto simples), alguns convites para televisão e shows em teatros, e elogios entusiasmados pela música da peça "Morte e vida severina", dirigida por Roberto Freire no Teatro da Universidade Católica. Ainda assim, era um jovem compositor conhecido praticamente só em São Paulo e, na sua situação, havia muitos outros principiantes que na mesma época chegavam ao público pela efervescência e as aberturas da bossa-nova. Aí chegou outubro de 1966 e, com ele, uma explosão.
Dividindo o primeiro lugar com "Disparada" no II Festival de Música da Record, "A banda" pôs o Brasil inteiro "cantando coisas de amor". Câmaras municipais começaram a conceder a Chico Buarque os títulos de cidadão honorário, mocinhas descobriram os seus olhos azuis, velhos sambistas como Ismael Silva, Ataulfo Alves, Adoniram Barbosa (que tinham virado o nariz á bossa-nova) agora sorriam: "esse sim!" Com 300.000 discos vendidos rapidamente no Brasil (e 1 milhão e 200.000 nos EUA e Itália), "A banda" virou um hino nacional e Millôr Fernandes diria, de Chico Buarque. "É a maior unanimidade viva do país".
Menos de um ano depois do seu show em Campinas, Chico passava de jovem futuroso a catedrático da música brasileira. O diploma foi passado pelo Museu da Imagem e do Som, o austero museu que até então só ouvia o depoimento de artistas consagrados e indiscutidos, geralmente bem idosos, como se corressem a registar as vozes antes que morressem. Com 22 anos, e pouco mais de trinta músicas (algumas delas nem mesmo gravadas), Chico virou peça de museu.
E seu papel na música brasileira só estava começando. Mas começava forte demais: o fechamento da fase da bossa-nova, e a preparação do caminho para o tropicalismo de Caetano, Gil e seus Baianos variados.
Diz o crítico musical Tárik de Souza: - A ascensão estonteante parecia mágica, mas não envolvia nenhum ilusionismo. Chico e sua música tinham os pés na terra e as raízes de suas criações eram visíveis e fortes. Em sua primeira fase, a bossa-nova tinha ido longe demais em experiências jazzísticas e de câmara; agora, exagerava em outro extremo.
Cantores como Elis Regina, Peri Ribeiro, Simonal, pareciam levar a bossa a malabarismos da era do be-bop (anterior ao cool jazz que influenciara a bossa-nova no início). Alguns compositores preocupavam-se em achar novos caminhos rebuscando épocas anteriores ou passagens pouco exploradas da música brasileira. Sérgio Ricardo, que tinha feito uma incursão no samba de morro ("Zelão"), agora ia para o ponto de macumba ("Esse mundo é meu") e procurava ligações afro-nordestinas em "Pregão", "Brincadeira de Angola", "Corisco". Carlos Lira, também iniciador da bossa-nova mas que fizera uma autocrítica com "Influência do Jazz", agora com vários parceiros, tentava ora o nordestino ora o afro-samba, ora o samba de morro, Vandré redescobria as toadas nordestinas e o baião ("Fica mal com Deus") e voltava a gravar com o acompanhamento simples do próprio violão ("Canções nordestinas"). Edu Lobo, de natural ascendência nordestina ("Chegança", "Borondá", "Reza"), experiência também os temas afro e chegava a "Arrastão", "Zambi", "Canção da terra". E Baden e Vinícius, após uma pesquisa na Bahia, oficializavam a corrente do afro-samba com "Berimbau", "Consolação", "Canto de Ossanha", "Samba da bênção".
Em todas essas idas e vindas às fontes de nossa música popular, uma delas - seguramente a mais próxima, e talvez a mais rica e a mais expressiva - fica quase de lado: a música urbana, principalmente a música urbana carioca. Era por esse filão que entraria o talento e a fome de Chico Buarque. O terreno estava quase livre: entre os compositores brancos de classe média, apenas Billy Blanco (com seus sambas satírios da década de 50) e Juca Chaves, com as sátiras e as modinhas dos anos 60, tinham explorado a fonte. E, com um papel mais de pesquisadora do que de cantora, Nara Leão parecia apontar a mina, quando punha, em seus discos, ao lado de Chico e de Sidney Miller, os compositores de morro, se aprimoravam na cidade sem negar, as origens, como Paulinho da Viola e Elton Medeiros.
Com uma obra maior, mais diversificada e mais potente do que seus compositores brancos ou pretos, Chico trouxe ao caldeirão da música brasileira os ingredientes que, naquele momento, todos pediam: o samba em várias formas (principalmente o do verso fácil e contagiante de Noel), a seresta, a modinha, o maxixe, o chorinho, a marcha-rancho.
Era o fim da bossa-nova. E logo haveria uma nova explosão, muito luminosa mas muito curta: o mergulho antropofágico do tropicalismo, que iria renegar tudo o que estava aí, até mesmo - num primeiro momento - o próprio Chico.
Entre os livros de meu pai a coleção da Plêiade. E eu achava genial ler em francês. Li quase todos os clássicos franceses e a tradução francesa dos russos. Cheguei até Céline, achando-me o descobridor de "Voyage au Bout de la Nuit". Aí um colega me disse que eu não tinha um mínimo de formação brasileira. Mergulhei em "Macunaíma", Graciliano, Guimarães Rosa, Drummond, Bandeira.
Agora que o tempo está curto, tenho lido menos, mas estou tentando me organizar.
Minha filha mais velha tem dois anos e meio. Já vai à escola, o que é ótimo. Não posso isolar a menina do mundo que a cerca. Mesmo que esse mundo não seja o ideal, não sou eu quem a vai atirar contra ele. Por outro lado, e apesar de tudo tenho certeza que minhas filhas estarão preparadas para um tempo melhor.
Marieta, vem aí aquele rapaz trazer o cheque e combinar os outros pagamentos. Eu disse que é você quem vai tratar disso, viu?
Mas, Chico, outra vez eu?!
Apesar da sua falta de vocação e de jeito, Chico Buarque é hoje um homem que movimenta uma massa respeitável de dinheiro. Só o seu disco "Construção" deve render-lhe, em dois meses, perto de 350 000 cruzeiros. Sem paciência para isso de investir ou empregar, entrou em negócios desastrosos. Tentou a Bolsa e comprou ações da Açonorte a Cr$ 8,40. Dois meses depois verificou que as ações estavam valendo um quarto, e que tinha comprado no máximo da alta. Experimentou transformar a mulher em seu "ministro da Fazenda", mas Marieta, também meio poeta, não aceitou o papel. Gosta de viver bem e, havendo dinheiro, vive sempre o melhor que pode, com o coração aberto - e a mão também. Agora comprou uma área de 30 000 metros quadrados perto de Mangaratiba, com uma pequena baía particular a uma plantação de banana querendo até Cr$ 300,00 por mês. Vai construir uma casa lá e fazer do sítio o seu refúgio. E está pronto para iniciar a construção de sua casa na Gávea, num amplo terreno de frente para o parque florestal da Guanabara.
Com 27 anos, duas filhas, a vida conjugal aparentemente bem ajustada, Chico Buarque não se prende a nenhum formalismo ou esquema - em sua casa é difícil vê-lo calçado ou de camisa -, mas é "um senhor muito respeitável", no dizer do zelador do edifício onde ele mora e do qual é o síndico.
Acima de tudo, é um artista com muito sentido de solidariedade de classe e muita consciência de que a liberdade para homem de criação é tão importante quando o ar.
Se eu deixar penetrar no inconsciente a idéia de censura e fazer surgir um mecanismo mental automático, de auto-censura e restrição, todo o meu processo de criação pode vir a bloquear-se, e daí eu não faço mais coisa nenhuma.
O manifesto que assinou, junto com os autores mais importantes da música brasileira, contra a censura no Festival da Canção e, mais recentemente, a sua decisão de não permitir o uso da "Banda" como peça de propaganda oficial, trouxeram-lhe (ao lado de alguns aborrecimentos) muitas manifestações de apoio e criou-se em torno dele, em certas áreas, um ar de euforia.
Tem gente pensando - diz Chico - que eu tenho vocação de herói, ou pretenda me transformar em bandeira ou num líder das oposições do Brasil. Não é isso, eu não sou político. Sou um artista. Quando grito e reclamo é porque estou sentido que se estão pondo coisas que impedem o trabalho de criação, do qual eu dependo e dependem todos os artistas. Mas, se defender a liberdade de criação é hoje um ato político, também não tenho porque fugir dele.
Uma coisa ele despreza: os artistas que acomodam sua arte às concessões do momento, seja para alcançar as paradas, seja para ganhar o beijo dos poderosos.
Meu contato com Tom Jobim e Vinícius, apesar da amizade, é ainda um pouco tímido. Vinícius eu conhecia de criança, era amigo do meu pai. Papai também foi amigo de Jorge Jobim, talvez por isso o Tom seja tão bacana comigo. Compus meus primeiros sambas ouvindo os deles, via João Gilberto. Isso me inibiu nas primeiras parcerias. "Olha Maria", por exemplo, eu já acho mais livre que "Retrato em branco e preto" e "Sabiá".
Além de Tom e Vinícius, Chico fez músicas com Toquinho ("Lua cheia" e "Samba de Orly") e Carlos Lira ("Essa passou"). Fez letra, junto com Vinícius, para a linda canção "Gente humilde", do violonista Garoto. E fez música para dois poemas consagrados: "Morte e vida severina", de João Cabral de Mello Neto, e "Romanceiro da Inconfidência", de Cecília Meirelles.
Fez uma versão: "Menino de Jesus", de autoria de Dalla. No original italiano, o drama da música está em que o menino vai para a guerra e morre. O subtítulo da canção, lá, é "O filho da guerra". Recriando o tema para o Brasil, e como o problema da guerra é distante para nós, Chico abandonou-o e trabalhou sobre o drama da mulher fácil. Pôs o título de "Minha História", mas, de brincadeira, e seguindo a linha de "O filho da guerra" da versão italiana, Chico diz que o apelo da canção é "O filho da p...".
A influência de Vinícius sobre Chico não se exprime nas músicas que fizeram juntos. Tom Jobim é que é o seu grande parceiro, ainda que o casamento dos dois não tenha feito nenhum filho genial. A formação camerística e erudita do maestro Tom Jobim como que inibe Chico Buarque, no momento de criar as letras.
De outro lado, Chico só se sente bem quando trabalha com amigos - isso explica por exemplo a sua ligação de quase irmãos com os integrantes do MPB-4, conjunto com o qual ele faz todos os seus shows. E como a amizade Chico-Jobim é muito forte, é possível que o entendimento artístico entre eles chegue a um ponto que permita bons resultados para os dois. "Olha Maria", a última música da dupla, onde Chico consegue contar uma história ao seu jeito, é bem mais redonda que as anteriores.
Mas o cientista Paulo Emílio Vanzolini é autor de teses sobre o comportamento sexual dos répteis da Amazônia, e também de grandes sambas ("Volta por cima", "Ronda", "Cravo branco"). O sambista-zoólogo garante que, desde que ouviu "Pedro pedreiro", já se sentiu diante de um gênio da música brasileira.
Vanzolini, qual é o melhor parceiro para Chico Buarque?
Para Chico Buarque? Chico Buarque!
Meu primeiro violão era de minha irmã menor. Era desses pequenos, de aprendiz. Minha mão não cabia entre os trastes. Chamava-se Catupiry porque era grená e tinha um som muito ruim. Para ganhar um violão de verdade, igual ao do Toquinho, precisava estudar física, geometria descritiva e passar no vestibular de arquitetura. Mas eu ficava só tocando o Catupiry, tocando errado, aprendendo sozinho, de ouvido. Não sei como, passei no exame e fui de violão para a Europa, com o Tuca. Perdi o violão acho que em Londres, comprei outro, espanhol, que esqueci num táxi, em São Paulo. Aprendi um pouco de teoria musical com a Vilma Graça, fiquei animado e comprei um piano. Interrompi as aulas, nas pretendo retomar. O piano é um instrumento mais completo.
A música popular tem uma vida curta. Não posso impedir (e parece que as leis do direito autoral também não podem) que uma canção minha seja utilizada, de velha, como mero veículo publicitário. "Com Açúcar e com Afeto", por exemplo, virou anúncio de bombom, açúcar e afeto. O que importa é o momento da criação. Componho aquilo que quero. Depois a canção será consumida ou não, mas não como simples objeto e, de preferência, jamais como mero adorno.
Repare o polegar esquerdo do Chico, quando ele está tocando. É o típico jeito de usar o dedão de quem não sabe tocar violão. Qualquer bom violonista aprende cedo que o polegar só serve de apoio atrás, nunca para premer as cordas.
Chico diz que seu violão é ruim porque aprendeu sozinho, sem querer ver alguém tocar. Punha o João Gilberto na vitrola e repetia o disco cinqüenta vezes, até alcançar a posição desejada. Mas, apesar do dedão mal usado - e da promessa sempre relegada de voltar ao piano -, todos concordam que o violão dá a posições que já constituem um acervo respeitável e variado.
"A banda", sobre renovar o batido repertório das xarangas do interior, é hoje peça quase obrigatória em todos os bailes de carnaval.
Suas primeiras músicas eram de carnaval. O violão de João Gilberto e a bossa-nova foram que o encaminharam para um estilo próprio, de que "Pedro Pedreiro" e "Sonho de um Carnaval" já mostram as características básicas. Chico tirava da bossa-nova alguns ensinamentos e, com acordes fortes e dimensionados procurava uma saída melódica mais densa, mais redonda. Começa a fundir a bossa com o samba de morro ("Sonho de um carnaval") ou com a seresta ("Olê, olá", ele começa num estilo serestereiro e contemplativo - "Não chore ainda não/que eu tenho a impressão/que o samba vem aí" - e logo, com a letra puxando a música, deságua em bossa-nova - "Seu padre toca o sino/que é/pra/todo mundo saber/que a noite é criança/que o samba é menino..."
O crítico Tárik de Souza vê as coisas de um ponto de vista técnico:
A construção harmônica de "Olê, olá" reforça a idéia central: ao invés de obedecer sua seqüência tradicional de passagem de acordes, ele cria um clima de suspense, reforçado na segunda parte pelo sucessivos alteios de meio tom para cada frase e a volta suave ao tom inicial, onde recomeça a progressão de imagens da música.
Na contracapa de seu primeiro elepê, Chico explica que chegou a essa habilidade formal durante o trabalho de musicar "Morte e vida severina"":
Aprendi que melodia e letra podem, e devem, formar um só corpo procuro frear o orgulho das melodias.
Para Tárik de Souza, outro dos trunfos importantes da música de Chico é a variedade dos ritmos e temas que ele desenvolve. É como se tivesse um tronco - as suas composições mais elaboradas - "Roda-viva", "Olê, olá", "Construção" - e vários afluentes, e entre esses um dos mais caudalosos seria o que o próprio Chico chama de noelesco.
"Rita", "Quem te viu, quem te vê", "Madalena", "Juca", "Logo eu", seriam sambas noelescos, composições que revelam o músico intuitivo, inspirado, mas harmonicamente descomprometido. A melodia é elaborada em cima de tons básicos, num estilo tradicional de harmonia em que determinadas notas sugerem as que vêm a seguir. Acordes preparatórias quase sempre levam à tônica ou à primeira - um tipo de solução quase nunca usado, por exemplo, por Milton Nascimento, e passagens praticamente imprevisíveis comparativo dos dois).
A fonte de Chico nesses casos - lembra Tárik - não vem só de Noel. Vem também de Ataulfo Alves, no compasso arrastado de "Quem te viu, quem te vê". Vem de Caymmi, no tema e na letra de "Morena dos olhos d'água". E "Malandro quando morre" é um samba réquiem que se aproxima de "Pranto de poeta", de Nelson Cavaquinho ("Hei de ter um alguém a chorar por mim/sob a forma de um pandeiro e de um tamborim").
Chico como que entremeia composições mais elaboradas com uma volta às origens - às vezes faz isso dentro de uma mesma música, como em "Olê, olá" e "Bom tempo" -, o que faz dele um permanente elo entre o novo e o tradicional, na música popular brasileira. Em "Bom tempo", ele revive o maxixe; em "Chorinho", traz de volta esse ritmo que só não estava esquecido dos flautistas e dos tocadores de cavaquinho e que - segundo Vila-Lobos - é o mais expressivo e genuíno ritmo brasileiro.
Uma outra face do Chico, também poderosa, é a autor lírico de modinhas, serestas e de canções evocativas ou de lamento ("Realejo", "Televisão", "O Vegatória"). "Até pensei" entrou na lista obrigatória do pessoal que ainda faz serenatas, e "Carolina" - um samba-canção - foi gravado com três tratamentos diferentes: por Orlando Silva (tradicional), Dick Farney (moderno) e Caetano Veloso (tropicalista).
Mas nem tudo dá samba na obra de Chico. Em alguns de seus elepês há quedas de qualidade como as discutíveis acrobacias de "Ela e sua janela", no primeiro disco, ou excessivas repetições de temas como no caso de "Fica" (um samba parecido com vários outros de sua linha noelesca) e "Januária" (uma espécie suite de "Carolina"). Um vôo rasante, porém, começava a se desenhar com certo perigo em "Benvinda", um samba de ritmo entusiástico, mas que não dizia muita coisa. Nessa época o resultado das circunstâncias que o levaram a passar mais de um ano e meio na Itália pareciam influir em sua influência um pouco pelo medíocre iê-iê-iê italiano, e depois de "Cara a cara" (que de certa forma repetia "Roda-viva") entrou numa confusa fase de transição. Seu quarto elepê tem momentos dessa indecisão, mas tem também uma volta ao sincopado da bossa-nova ("Essa moça tá diferente"), uma toada moderna ("Rosa dos ventos"), e um quase bailão ("Agora falando sério"), cuja letra é significativa: "Dou um chute no lirismo/um pega no cachorro/e um tiro no sabiá./Dou um fora no violino/faço a mala e corro/pra não ver a banda passar".
Aí, de volta ao Brasil, o homem voltou mesmo "falando sério". Dos tempos difíceis começou a surgir o compositor em sua fase mais afirmativa, mais cortante, mais madura. É como se ele tivesse voltado às esplêndidas lições sonoras de "Morte e vida severina" e, menos preocupado com a harmonia, passou a construir suas músicas amarradas à intenção da letra. É o caso de "Apesar de você", um samba simples, na linha dos sambões de Paulinho da Viola e Baden Powell, mas com imenso poder de comunicação e grande força melódica. E em seu último elepê - principalmente com "Deus lhe pague", "Construção" e "Cotidiano" - as músicas parecem extraídas da letra e sua economia permite apenas que os poemas não sejam citados, mas cantados. À complexidade da letra de "Construção", corresponde uma linha de apenas dois acordes, repetidos à medida que se sucedem as imagens como se ele tivesse realmente colocando laje sobre laje num edifício. Em "Deus lhe pague" o tom sempre crescente leva a música a um ponto agudo sem solução (a linha melódica não se resolve, não volta ao começo), reforçando dramaticamente a intenção do recado poético.
Lírico ou agressivo - diz Tárik de Souza -, Chico Buarque consegue uma difícil proeza: a de ser admirado e ser entendido. E tem 27 anos, está apenas começando...
Tenho aqui um rascunho de "Construção". São versos soltos, já dentro da métrica e do ritmo final. Alguns desses versos foram abandonados: "Pôs pedra sobre pedra até perder o fôlego"/"E o máximo suor por um salário mínimo". Num rascunho posterior, a melodia sugere o agrupamento dos versos em quadro. Só depois de concluída a primeira parte é que aparecem as alternativas: "Tijolo com tijolo num desenho mágico (ou lógico)/E flutuou no ar como se fosse um pássaro (ou Sábado)", etc.
As proparoxítonas finais alternam-se à vontade, como se fossem peças. Como se tudo fosse um jogo, sobre um tabuleiro trágico.
Com a bossa-nova, a letra na música brasileira ficou mais intelectualizada, enriqueceu. Através de Vinícius de Moraes, poeta consagrado, ela deu um imenso salto em direção à qualidade, e Vinícius permaneceu incontestado até que Caetano e Gil de um lado, de outro Chico Buarque, levaram-na a um altíssimo padrão poético.
O professor Antonio Houaiss, da Academia Brasileira de Letras e reconhecido como um dos homens mais eruditos do Brasil, aprecia (num trabalho feito para REALIDADE) as letras de Chico.
A criação de Chico Buarque vem sendo uma escalada - de paz.
Sempre vinculada à música, de início talvez tenha sido mais dependente dela do que devia. A lição de "Morte e vida severina" foi seu primeiro grande passo: de como a poesia com palavras alheias pode preexistir à música, de como esta pode ser fiel aquela. Depois - muito além da "Banda", mas mantendo-lhe os grandes valores deliberadamente ingênuos e profundos - houve a segunda explosão "Roda-viva", isto é, de como música e poética se fundem para mais que lirismo, fazendo-se expressão de mágoa coletiva desespero-esperançada. Agora, atinge maturação sensível em quase tudo o que dele vem, representável em "Deus lhe pague", "Cotidiano", "Construção", para só referir momentos cruciais. Neste instante do Poeta, agoniam-se algumas coisas: como é que alguém, tão cedo pode chegar a tanto?
Como poderá vir a ser mais ainda?
Como foi possível dar tanto à sua gente com o só instrumento do seu sentir, saber e amar?
Aos requintados (aos do "ah!" para com a "música popular", para com a "poesia popular"), há que lembrar-lhes que a artesania de "Construção", por exemplo se emparelha, na sua sofrida singeleza, com a de qualquer grande poema antigo-novo: os dois blocos contra pesados de quatro quadras e sua finda; a quintilha final e seu remate aberto; o jogo descomparativo dos como - 3- 1 - 4 - 2:3 - 1 - 4 - 2:4 ("quebrados" pelos feito em lugar de como) - valorizando palavra dita sem valor; o recurso patético ao proparoxítono humorístico ou sarcástico ou satírico tornado sonambúlico, irônico, trágico, crítico; os apoios fonéticos internos; o combinatório aleatório das rimas - sempre válidas, para quaisquer dos versos nas possibilidades continuadas geradas pelo poema, de tal modo que a sua relembrança obsessiva pede o esquecimento da posição de cada uma, pois cada uma passa a acumular o valor de todas as outras para reiterarem-se sempre renovadamente não apenas como sonoridades significativas, mas como um protesto, como uma náusea, como uma gana, como amor, como antifuzil, como a triste alegria de saber que a alienada tristeza de hoje pode ser também fonte de construção de amanhãs cantantes.
Você sabe, no tempo da bossa-nova a produção de violões subiu demais. Assim como acontece hoje com as guitarras e os amplificadores. É natural que o adolescente de hoje esteja vidrado em John Lennon. Assim como eu era vidrado em João, Tom, Vinícius, há dez anos. A vantagem que a gente levava era a proximidade dos ídolos. Estavam ali, palpáveis, nos teatros e nas faculdades. Como estavam ali a garota de Ipanema, a opinião e o morro que não tem vez. Por isso acho que foi mais fácil a gente entrar "na deles", do que será para o adolescente de hoje entrar na dos Beatles. Eles entram mas entram atrasados, entram de tabela através de uma divulgação comercial. Mas seria impossível apontar outros caminhos para os futuros compositores. Eles vão compor com base no que consomem hoje, não nas raízes ocultas.
Eis um teste: ligue o rádio a qualquer hora, e veja quantas estações você precisa passar para encontrar um som brasileiro.
Desde que o rádio dispensou os artistas e passou a funcionar quase exclusivamente com discos, alguma coisa mudou no ar do Brasil. Nossas maiores gravadoras são estrangeiras e, entre as nacionais, quase todas tem representação de gravadoras no exterior. Em números absolutos, juntando-se elepês e compactos, são feitos mais discos estrangeiros do que nacionais em nosso país. E, em geral, os discos são de melhor qualidade - artística e técnica - do que os nacionais (por exemplo, um disco brasileiro é gravado em quatro ou seis canais; um americano, em 32. Além do fato de que, na média, os músicos e arranjadores americanos são melhores do que os nossos).
Walter Silva, cronista de música e produtor de shows, diz assim:
Em São Paulo, a proporção às vezes chega a 5 por 1; cinco músicas estrangeiras para uma nacional (sem contar as madrugadas sertanejas). E isso, como é lógico, condiciona o ouvido, principalmente das crianças. Chico Buarque que cresceu ouvindo Caymmi, Noel, Ataulfo, João Gilberto, bossa-nova. Mas o Chico Buarque do futuro, que hoje tem sete, oito anos, ouve quase exclusivamente o chamado "som internacional", e na hora de compor, certamente comporá iê-iê-iê, rock international sound. Isso, para mim, é colonialismo cultural...
Há outro lado da questão. A bossa-nova desembocou em Chico Buarque, em Caetano Veloso e no tropicalismo. Tudo era muito discutível, mas muito vivo. No momento, entretanto, em que Caetano, Gil, Vandré e o próprio Chico precisavam ir para a Europa, um grande vácuo de música brasileira se abriu. Coincidiu com o esvaziamento dos festivais nacionais de música e com o declínio do iê-iê-iê nacional (agora praticamente restrito a Roberto Carlos). Com isso, desde o tropicalismo nenhum outro movimento de massa surgiu na música brasileira. Atuando em faixa própria, bons compositores - como Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Jorge Bem e outros - continuaram fazendo suas coisas, mas isso não era bastante para uma retomada dos tempos de diversificação de ofertas musicais como na época da bossa-nova, por exemplo.
Imperou, então, a música estrangeira, a ponto de surgir na Câmara dos Deputados como salvação nacional, um projeto restringindo a ação da música estrangeira a 30% do tempo nas rádios e tevês.
O vazio da música brasileira no ar era tão dramático que o soul, um movimento de cantores e compositores formados, na corrente do sucesso da música americana, teve êxito fulminante: Tim Maia, Ivan Lins, Paulo Diniz vendem milhares de discos.
Mas o "soul brasileiro" não foi suficientemente forte para quebrar o império do som estrangeiro. Do primeiro para o segundo semestre de 1971, e usando pesquisa do Ibope o crítico carioca Julio Hungria aponta o declínio da música brasileira. Entre os compactos simples, a venda de nacionais caiu de 57,5% para 37%; os estrangeiros subiram de 42,5% para 63%; entre os elepês, os nacionais desceram de 72,5% no primeiro semestre para 53,5% no segundo enquanto os estrangeiros iam de 27,5% a 46,5%.
Mais do que os artistas, o disco tornou-se o show. Dois disc-jóqueis cariocas - Big Boy e Ademir - transformaram-se em show-men, com a grande função de chegar nos palcos, anunciar os discos e colocá-los no prato... E duas revistas de variedades americanas - "Cash Box" e "Billboard" - transformaram-se, por via de ação dos disc-jóqueis e da programação das emissoras, em ditadoras do sucesso no Brasil. Novos conjuntos musicais não se contentam com o nome americanizado; cantam direto em inglês.
Mas no finzinho do ano passado, as coisas pareciam mudar. Nas notícias de jornal, nos shows, na vendagem de discos, a música brasileira retomou a frente. Chico, Betânia, Roberto Carlos, Tim Maia disputaram entre si os primeiros lugares na parada de sucessos. A virada começou no meio do ano, com "Apesar de você" e "Minha história", de Chico Buarque. E ganhou força definitiva com "Construção", "Deus lhe pague", "Cotidiano".
O crítico Tárik de Souza vê um bom sinal:
Chico representou uma espécie de ligação do tradicional com a bossa-nova, depois viu morrer o movimento e surgir o tropicalismo. A partir de "Apesar de Você" e principalmente "Construção", ele parece destinado a cumprir uma nova missão, talvez ainda mais importante. A julgar por seu atual sucesso, ele está abrindo de novo o caminho do mercado aos autores mais criativos da música brasileira moderna. Música, que, apesar de todas as distorções de uma pesada estrutura industrial, é aplaudida, e vende, quando consegue ser bem divulgada.
Cores de dos estilos
Numa interpretação dos gráficos da música Chico e Milton Nascimento, pode-se ver como Chico emprega muitos acordes preparatórios, em cor rosa no gráfico, seguindo a harmonia barroca, bastante usada na música popular, pouco usada na música erudita do século XX e totalmente ausente do jazz. Nela, o acorde preparatório quase obriga o acorde seguinte, criando uma tensão que leva a uma solução harmônica lógica ("temperada", como no "Cravo Bem Temperado" de Bach), caindo no acorde principal, a tônica. Os acordes empregados são básicos, sem nenhuma nota dissonante.
Milton Nascimento, ao contrário, cria suas músicas em cima de harmonia jazzística (livre da tradição barroca do "tempero"). Várias notas são acrescentadas a cada acorde, criando dissonâncias (explicadas pela variação de cor de cada coluna). A influência recebida das toadas e cantigas de violeiro - cujas raízes situam-se em músicas anteriores ao barroco - faz com que as melodias de Milton se desenvolvam sem acordes de preparação em soluções que lembram o cantochão ou baladas medievais.
Pelo gráfico também se vê como toda a harmonia usada por Chico é constituída por acordes afins, que pouco se afastam da tônica (linha horizontal). No caso de Milton, um mesmo acorde é usado sucessivamente em vários tons. Os sinais e as cores do gráfico têm os seguintes significados:
a linha horizontal serve para marcar o tom da música (a tônica) ou sua relativa menor;
o amarelo indica os acordes básicos em tom maior, que têm uma característica mais aberta e alegre;
o abóbora representa os tons básicos menores, mais tristes;
o rosa, abundante em Chico, significa a preparação para se cair num acorde básico;
as colunas com cores escuras representam acordes tristes, e as claras, acordes alegres.
Balaio - Numa de suas músicas você fala o seguinte: "Você quer saber o que está acontecendo com as flores do meu quintal? O amor perfeito traindo / A sempre - viva morrendo. E a Rosa cheirando mal?" Atualmente como está seu "quintal" Chico?
Chico - Mais ou menos isso. É uma maneira um pouco revoltada, minha, num momento em que precisava dizer estas coisas. Mas, de lá para cá, as coisas não mudaram muito. Pelo menos eu estou sobrevivendo.
Balaio - O que mudou, mudou pra melhor?
Chico - Não, as coisas não mudaram. Pra melhor, muito menos. Meu quintal tá... Pelo menos eu estou sobrevivendo.
Balaio - Como você está sentindo a platéia do Recife?
Chico - Muito boa, diferente de um dia pro outro. Muito boa.
Balaio - Pelas suas andadas por aí, São Paulo, Rio, Salvador, Você acha que ela está boa mesmo?
Chico - A gente não pode comparar público, exceto São Paulo, que é a maior parte Universitário e a turma é mais quente. Acho que não tem muito isso. Se o público é Universitário é melhor.
Balaio - Por que, durante quase todo o show, você canta amargo, com raiva, em tom de angústia e quase desesperado?
Chico - Eu não acho tanto.
Balaio -Deu pra notar bem no lº dia, principalmente quando vocês canta "caçada", parece que você trinca os dentes...
Chico - Sei lá, não sei. Na hora em que eu estou cantando, estou preocupado em passar a música adiante, entende? Porque é diferente de compor. Eu sempre fui mais compositor do que cantor. Agora, com o tempo a gente vai botando as coisas mais pra fora. O que há é o seguinte: acho que vou te responder agora. É que o tipo de interpretação que prevaleceu e me influenciou muito até há pouco tempo, foi coisa intimista da bossa nova que guardava tudo multo dentro e passava para perfeição e agora parece que a tendência é colocar tudo pra fora, com todos os sentimentos mais fortes e expostos, tirando essa angústia e esse desespero de que você está falando. Nada de coisas muito escondidas.
Balaio - Hoje a música popular brasileira se encontra estacionária ou em busca de novos caminhos?
Chico - Tenta novos caminhos.
Balaio - Com os compositores que estão surgindo dá pra ir?
Chico - É... tá aparecendo gente boa. Não sei, não sei. Eu não tenho muita visão crítica da MPB. Porque eu vivo muito no meio da confusão.
Balaio - O Chico da "Banda" e o Chico da "Construção", são diferentes? Por que você "deu um chute no lirismo e um tiro no sa-biá"?
Chico - Não, isso não é verdade. Não são diferentes, e tanto é que eu fiz músicas menos líricas, mais fortes ou mais doces ou agridoces, certo? Não tem... Não gosto de estar botando limites nas coisas e botando rótulo nas coisas. A diferença é que fiz a Banda com 21 anos e fiz Construção com 27.
Balaio - Você acha que a evolução foi natural?
Chico - Ah! Acho!
Balaio - O que é que você acha da guerra do vestibular?
Chico - Eu felizmente, já passei por ela; quer dizer, saí. Que eu vou dizer mais?
Balaio - Você acha que poderia haver um reforma que modificasse e desse mais condições aos estudantes?
Chico - É uma coisa em que eu estava empenhado há dez anos atrás, eu estava muito ligado nisso. Tua pergunta é a mesma que eu fazia há dez anos atrás. Eu não posso te responder porque inguém me deu resposta também, e as coisas ficaram na mesma.
Balaio - Você se sente comprometido com o desenvolvimento do Brasil e inserido no seu processo histórico de transformação?
Chico - Não... Não porque eu não quero ser guia, nem condutor ou líder. A juventude pode descobrir nas minhas músicas as mensagens, e podem se definir de acordo com elas. Tenho medo que minhas músicas transmitam coisas utópicas. Os Jovens devem ser livres...
Balaio - Sendo você amigo de D. Helder...
Chico - E sou mesmo...
Balaio - O que é que você acha dele como pessoa? Que vive dentro da Igreja?
Chico - Acho ele um cara legal, pois ele não vive dentro da Igreja, e sim no meio do povo...
Balaio - Mas a Igreja não é o povo?
Chico - É, é. Pelos menos ele não vive ostentando medalhões, pregando o que não faz, vive lutando por aquilo que acha certo e não vive profanando... Se vocês publicam isso...
Balaio - Chico, ontem foi publicado num dos nossos jornais uma reportagem sobre você. Falava que você se achava tímido, até fazer o show com Caetano, e por causa da voz dele, muito alta, você tinha que acompanhar, daí você perdeu muito da timidez. O que é que você acha disso? Você se acha tímido?
Chico - Não me considero tímido e desconheço essa reportagem. Não me lembro de ter falado nada disso. Realmente o Caetano canta num tom muito alto e eu tinha que me esforçar para acompanhá-lo naquela entrada de Cotidiano, depois de "e quero que você venha comigo", por exemplo...
Balaio - Chico, você sabe que houve uma missa em São Paulo, em homenagem a Alexandre, um estudante..."atropelado"..., onde cantavam cinco vezes a música "Caminhando", de Vandré. Você acha que isso pode trazer algum prejuízo ou aperto para os estudantes?
Chico - Eu soube sim. Inclusive fui convidado para cantar e tocar na missa, mas não pude ir pois estava já com um show marcado. Eu acho que a gente não deve temer em fazer nada. Se a gente começa a medir as conseqüências, a gente estaciona e nunca faz nada.
Balaio - Na música "Partido alto", você acha que ofende a moral dos brasileiros? Porque você diz que são seus "amigos", da censura, cortaram algumas partes?
Chico - Não. Primeiro, a música retrata a linguagem comum, usada pelo povo e que eu coloquei no filme.
Quanto ao problema de cortar ou deixar de cortar, eles achavam que a letra da música era muito rasteira, vulgar e que poderia ferir.
Balaio - Naquela música "Gente humilde" o verso que fala que "mesmo não crendo peço a Deus por minha gente", é seu o do Vinícius?
Chico - É do Vinícius. Pra falar a verdade a letra quase toda é dele, entende? Eu fiz pouca coisa, mas eu endosso toda letra feita por ele.
Balaio - Bom, o que nos queríamos saber era exatamente não que parte é de quem, mas sim se você realmente crê ou não em Deus.
Chico - Não, eu não creio.
Balaio - Por que?
Chico - Sei lá!
Balaio - Não tem nenhuma explicação? Você não crê e pronto?
Chico - Olhe, você está desembaralhando coisas. Você sabe que essa historia terá que ser explicada num papo muito longo. Agora não dá...
Balaio - Quando você fez aquele rock, que você canta aí no show (não lembro do nome agora) foi por quê? A titulo de sátira? Ou porque quis fazer assim mesmo, sendo compositor de música popular brasileira e colocando palavras no meio da música como baby etc...?
Chico - Não foi a titulo de sátira. É a historia de mulher... de uma pessoa que mora no interior e vive ouvindo seu radinho de pilha, ama Ipanema, ama a cidade grande, porque não conhece a realidade. Aí é quando começa a dançar o baião e entra no rock... Influência. É a tal historia de "Morte e vida severina". O cara sai descendo do interior até chegar no Recife...
Balaio - Qual a mensagem ou o recado que você tem aí pra turma do Balaio?
Chico - Olha, eu vou repetir o que já disse antes: eu não gosto de ditar normas nem regras, prefiro ser livre, aceitar as coisas por mim mesmo. A minha mensagem, o que eu quero falar, transmito nas minhas músicas. Elas são tudo o que eu quero dizer. Um abraço, e só.
Esta entrevista foi concedida por Chico Buarque de Hollanda, em 1972, quando veio ao Recife para apresentar-se, juntamente com o MPB 4, no Teatro Santa Izabel, a um grupo de jovens católicos, chamado S.O.S, que editava um pequeno jornal chamado "O balaio", que circulava entre os estudantes engajados em grupos e movimentos católicos da época.
Entrevista enviada por Rejane Menezes
Entrevista Chico Buarque
Em dois encontros, conversamos 5 horas com Chico Buarque. No primeiro encontro, antes de sair para o seu show no Canecão, ele falou de futebol, de seu trabalho atual, da situação dos artistas em geral. Estava bem-humorado e fazia piada o tempo todo. A entrevista foi então marcada para o dia seguinte à tarde, em seu apartamento mesmo. Chico chegou atrasado com Marieta, sua mulher. Para evitar o barulho das suas crianças, ele sugeriu gravarmos em seu quarto. Falou durante três horas, tomando Fernet e cerveja. Começou a responder sentado na cama, bem disposto. E no fim do trabalho, recostado, quase deitado, mostrava-se bastante triste. Um minuto depois, de novo na sala com a mulher e as crianças, ele era o mesmo Chico da noite anterior.
(Chico Buarque falou aos repórteres Hamilton Almeida e Mylton Severiano; e foi fotografado por Walter Firmo.)
Bondinho - Contando os acontecimentos que levaram você e os compositores... não precisa falar dos outros se quiser... a não participar do FIC, o que é que aconteceu? Aquele negócio de outubro, se desse pra você contar...
Chico - Os termos da carta exatamente eu não me lembro, mas a gente saiu, se recusou a participar depois de ter aceitado o convite da imprensa, em protesto. O documento é muito claro. Protesto contra as atitudes da censura esse ano todo; a gente viu que ia se realizar um festival e talvez até nesse festival, durante o festival, as músicas não fossem tão severamente censuradas, face aí haver uma festa bacana e tal... mas que o resto do ano inteiro tínhamos sofrido uma porção de cortes.
Bondinho - Praticamente, você poderia dar um exemplo assim de quantas músicas você teve problemas no ano que antecedeu este festival? Assim, se você tem música cortada, letra cortada...
Chico - É. Mas antes de responder tenho que dizer o seguinte: depois disso parece que houve uma certa manifestação, liberaram inclusive músicas que tavam encrencadas lá.
Bondinho - Na época você tinha algumas pendentes lá...
Chico - Tinha. Várias. A proporção estava realmente de duas censuradas em três. Cada três músicas, duas censuradas. Tava assim, nessa base.
Bondinho - De que maneira, Mandando cortar?
Chico - Depende. Algumas sim. Algumas inclusive eu cortei, eu mudei, como "Deus Ihe Pague", eu mudei... "Samba de Orly", mesma coisa.
Bondinho - Como é que eram as frases e como é que ficaram?
Chico - Olha, o "Deus lhe Pague" eu vou ter que pensar um pouquinho porque nem me lembro. "O Samba de Orly" foi uma frase só: "pede perdão pela duração desta temporada." Então eu mudei. Aliás, essa foi que eu cortei. E o "Deus lhe Pague" foi uma quadra que falava de tempestade e pelo pavor... dessa tempestade que está aí, uma coisa assim... Mas isso é ainda o que de melhor pode acontecer, no fim eu estava pedindo pra explicarem essa frase, aquela frase eu mudo. Eu tava precisando, porque afinal das contas eu não tava conseguindo... eu tou querendo fazer um long-play. Esse meu long-play é do tempo de "Apesar de Você." "Apesar de Você" eu lancei em janeiro, se não me engano. Antes até, dezembro... ano passado. Meu long-play era pra sair depois do carnaval, março. Ai já, "Apesar de Você", que era a música que ia puxar o long-play, já de cara fora censurada, outras tiveram problemas. Então, eu cheguei em junho, julho e tô sem, não é possível, tinha que gravar um long-play. Quer dizer, eu gravava meu long-play, ou fazia meu trabalho, ou então realmente parava e partia pra outro negócio.
Bondinho -Você já tava há quanto tempo sem gravar um long-play? Qual foi o espaço de tempo entre o último e o atual?
Chico - O último tinha sido em março do ano passado, entende? Então, normalmente, de ano em ano eu lanço um long-play. Então, tava planejado. Bom, vamos lançar Apesar de Você agora, no fim de dezembro, pega Natal, pega Carnaval, arrefece tal, nos meses de janeiro, fevereiro, a gente grava. Aí não deu, entende? Não tinha. Meu LP tem dez músicas e nessa época nem dez músicas eu consegui reunir, entende? Nao tinha.
Bondinho - O que acontecia era uma coisa mais ou menos sem explicação, a música era vetada, não havia resposta nenhuma?
Chico - A coisa culminou quando Mário Reis me pediu a música. Mário me pediu um samba que eu tinha prometido a ele. Aí eu fiz a coisa mais uma brincadeira. Peguei, ouvi disco de Mário Reis. Queria fazer uma coisa pro Mário Reis mesmo. Ouvi as coisas que ele gravava, sambas antigos, aquelas coisas... Da Moreninha da Praia, das coisas que estavam na moda. Bom, o que estava na moda? A bolsa. Vou fazer uma brincadeira com a bolsa. Uma brincadeira! Aí censuraram. Alegaram que era uma ofensa à mulher brasileira. Ofensa à mulher, não sei e não me diz respeito. Aí eu vi que tava difícil mesmo. Quando eu entreguei na Odeon, um dos dirigentes da Odeon falou: "agora só falta passar na censura", depois eu ouvi, ah, ah, ah,... Como quem diz, é uma piada, né? Tá tudo gravado, como quem diz, agora só falta a coisa mais comum, corriqueira. Aí, qual não foi minha surpresa que ela é realmente censurada. Aí eu vi que a coisa tava preta mesmo.
Bondinho - Quando você diz que a coisa tava preta era sob o ponto de vista do trabalho. Você trabalha com isso...
Chico - É uma coisa pessoal... não quero nem me alongar. Pro meu trabalho tava muito preto. Meu trabalho é com música. Se alguém censura essa música, esta letra, Bolsa de Amores, então não dá pra fazer nada. Aí apareceu o negócio do Festival. Aí bom, convidado, a imprensa, homenagem, aquela coisa... Aí chegou uma hora que a gente disse, bom, também não era só comigo não. Todo mundo sentiu esse problema, todo mundo, todo mundo se uniu, quase praticamente, outros não, outros solidários, mas a maioria dos compositores tinha problemas assim, entende?
Bondinho - Agora, Chico, você acha que a música popular brasileira é normalmente uma música de protesto que precise ser tão vigiada assim? A criação da música popular brasileira é de protesto?
Chico - Inclusive, não é. Se fosse esse problema, censurar a música de protesto. . . Mas não, a censura está indo muito mais longe do que uma censura política, não sei. Talvez fosse bom, pegasse a subversão, vamos lá; mas não, já transcende isso. E a música brasileira não precisa ser uma música de protesto mas precisa haver uma certa, uma pequenina liberdade pra você compor e não precisa ser uma coisa política, não precisa ser nada de protesto, não precisa ser nada. Precisa ter um pouco de liberdade pra fazer uma música falando de Bolsa de Amores, uma bobagem, pô. Se a gente não tem liberdade pra isso, aí também não dá pé.
Bondinho - E nem existe essa categoria de gente que faz música só de protesto.
Chico - Está fora de cogitação.
Bondinho - E você acredita que seja possível fazer música popular sem que se mexa com problemas do dia-a-dia do povo que vai ouvir a música? Isto é, problemas sociais ou políticos, ou mesmo de costumes? É possível fazer música popular sem tocar em nada disso?
Chico - É claro que não é possível. O que há é um limite que a gente mesmo reconhece, quer dizer, os compositores já sabem mais ou menos até onde podem ir. Agora, se não puder abordar problema nenhum, se não puder começar a coisa, aí, fica uma bobagem, né? Você não pode ser contra, só pode ser isso ou aquilo, aí não quer dizer nada. A música popular, afinal de contas, não quer dizer nada... Porque eu acho sensacional, você ouve os carnavais antigos, ao mesmo tempo você ouve "Lata D'água na Cabeça", um samba social, e ao mesmo tempo tem a música de carnaval do Pierrot e tal e as duas coisas sempre existiram. Aí é que não querem entender. Não é o problema de dizer "lata d'água na cabeça", o problema é que não pode cortar o braço de uma pessoa. Cortar o membro dum negócio. É a mesma coisa, seria tão grave, te digo não como política, você não pode tirar uma parte nada. Não pode dizer que não pode falar. Pra mim é tão absurdo como amanhã não poder falar: "eu te amo."
Bondinho - Você passou a ter esse tipo de problema a partir de Roda Viva ou foi muito depois? Ou só foi a partir de "Bolsa de Amores?" Com Roda Viva você já teve problema.
Chico - Tive. A peça foi proibida.
Bondinho - Mas musicalmente, do ponto de vista da música...
Chico - A peça foi censurada com o que tinha dentro. Sobraram músicas que só... Havia Roda Viva e Sem Fantasia, eram as duas da peça e que eram músicas de disco também. Roda Viva já existia antes da peça. Quer dizer, foi gravada antes da peça. E Sem Fantasia também. Já desde o começo, foi logo no comecinho, a música Tamandaré foi censurada.
Bondinho - O que era a música Tamandaré?
Chico - Era uma brincadeira falando da nota de um cruzeiro. Foi considerada um desrespeito.
Bondinho - Quando foi a censura?
Chico - Isso foi logo no começo. No tempo de Pedro Pedreiro, em 66. Aí, mais dois anos, foi Roda Viva; aí também eu fui embora e não fiz mais nada. Aí, com "Apesar de Você" começou tudo de novo. Vamos dizer, marcação, né?
Bondinho - Com "Apesar de Você", deixaram gravar, deixaram tocar e só depois..
Chico - Pois é, a mancada aí foi essa. Quer dizer, existe censura prévia. Eu mandei a letra direitinho pra censura, eles não gravam sem censurar; foi liberado, carimbado, tudo certinho, foi gravado, censurado uma vez, voltaram a lançar e depois retiraram. Agora, não foi uma coisa legal não, porque nem sei como mandaram retirar, se houve algum papel ou ordem baseada em alguma coisa. Aí eu fiquei sem saber mais nada.
Bondinho - Quando você passou algum tempo na Itália, já tinha alguma coisa que ver com esse clima de trabalho, ou não?
Chico - Eu fui porque eu já ia mesmo, entende? Eu fui porque já tinha um negócio marcado lá. Já tinha o MIDEM lá, aquele festival, aquela feira. isso já estava marcado antes de qualquer coisa. Este ano acho que vai Maria Betânia. Eles marcam com antecedência. Já estava marcado. Agora, eu não voltei evidentemente porque não tava agradável de voltar. Eu prolonguei. Era pra ir e voltar em um mês, no máximo. E ficou sendo um ano e três ou quatro meses.
Bondinho - Logo que você surgiu você tinha Pedro Pedreiro. Uma música que abordava tema parecido com o de "Construção"; o intervalo todo entre uma música e outra é fruto desse clima, ou na época você estava simplesmente preocupado com outros temas em suas músicas?
Chico - Aí tem que colocar uma porção de coisas, Porque foram uns dois, três anos, que se eu for pegar agora meus discos e te mostrar, entende? As músicas estavam todas lá, inclusive continuação de "Pedro Pedreiro", quer dizer a ligação toda tava lá. Ao lado disso eu sempre fiz música do tipo mais lírico. O fato de uma música ter mais sucesso - "Carolina" teve mais sucesso - não depende de mim. E não foi feito pensando em nada, é uma música como outra, entende? Então meu disco tem "Desalento", um samba que eu adoro. Um samba que não tem nada a ver com Construção e tá no disco Construção e eu acho que o trabalho é isso tudo. Aí é que tá, quando eu digo que não pode censurar é porque se eu fosse cantor de protesto por excelência, então censurasse todas. Tá bom, não posso cantar, mas não....Eu acho que eu faço isto, faço aquilo... Agora. censurar uma parte, também não tá certo, porque não quero ser um cantor não de protesto. Cantor de não-protesto, cantor de amor. Não sou, nunca fui, e acho que isso está em todos os discos. Independente de faixa de certo tipo de música fazer mais sucesso. Construção faz mais sucesso que as outras. É mais bem feita que as outras, sei lá, teve uma promoção maior, não interessa. É uma música que está aparecendo mais que as outras no disco. Tem outras músicas lá que, se aparecessem mais, iam me perguntar por quê.
Bondinho - É um problema da tua obra inteira.
Chico - Eu sempre coloquei isso. Cada disco meu eu acho que sempre foi uma coisa assim. E não tô, eu nunca quis, aliás, quando começou isso eu já disse noutra entrevista... mas não custa repetir. Quando eu comecei a aparecer é que me perguntaram: "Por que sua música é social, de tema social?" "Porque você não... Eu era fanzoca de Vinícius. Porque Vinícius fala de amor, de mulher e eu queria sempre... aí de repente eu começo a falar e tal, e aí de repente perguntam: "por que só Carolina?" É outro negócio, tá junto. No outro lado do disco, na faixa seguinte.
Bondinho - Uma coisa eu queria te perguntar. Você acha que é um trabalho de todo mundo, todo mundo que mexe com composição, criação, tá sofrendo esse tipo de coisa, não saber bem o que está acontecendo?
Chico - Bom, a gente não se reúne tanto, mas o pessoal que eu tenho contato, há já inclusive um underground; gente que pega o violão e mostra, "olha!". Mostra e já nem pensa no problema de gravar porque já sabe que não vai ser gravado. Estou falando tudo isso apesar de agora terem liberado uma porção de músicas minhas que estavam penduradas, entende? Fica uma situação um pouco esquisita, porque eu não sei o que está acontecendo. As coisas vão acontecendo independentemente. O que marcou mais não foi isso de liberarem as músicas. O que marcou foi terem me censurado. Eu não vou esquecer isso, porque chegou uma hora que eu falei: pôxa, então não dá, vou procurar uma outra coisa pra fazer porque não dá mesmo...
Bondinho - Você chegou a pensar em mudar de profissão?
Chico - Bom, eu pensei nisso. É claro que eu pensei nisso. Ou então parar de gravar... partir pra show, mas isso também não ia continuar muito tempo, não. Porque você não tem muita condição de fazer um show sem um disco, a rádio que toca você. Apesar de já ter um certo nome. Então, eu posso pegar um lugarzinho pequeno, pra me apresentar toda noite, apresentar músicas novas. Sei lá, eu fiquei pensando essas coisas... Que nem lá na Itália tem o que eles chamam de cabaré, que essa gente, não porque é censurada, mas porque lá a coisa comercial já chegou a um ponto tão grande que quem não tem grande sucesso comercial, não existe. Aliás, não é o meu caso, pois estou com bom sucesso comercial e estou vendendo disco. Mas se eu não estivesse vendendo muito bem mesmo eu não ia fazer porcaria nenhuma. Porque eu não tinha acesso à televisão, acesso à rádio. Então, o que faz? Faz uma espécie de clubezinho de gente que vai assistir jazz, vai assistir Edu Lobo, a mim, Paulinho da Viola. Então a gente é outro negócio. Além disso, é um submundo, e ao lado disso grava disco. Aí vende mil discos, e daí? Gravam quase como um documento. É o que eles chamam de cabaré de lá. Os cantores de cabaré. Eu seria um cantor de cabaré lá. Se eu fosse levar adiante o negócio, partia pra isso. Que é um meio de sobreviver. Daqui a pouco aqui é capaz de acontecer isso. Tem público pra isso, público de estudante. Que não é público de comprar 100 mil discos, não.
Bondinho - Mas não ia ficar estranho pro seu público?
Chico - Eu acho que ficaria, claro, né? O público ia ficar muito menor também porque a coisa não ia dar oportunidade de acesso a nenhum meio de divulgação maior, e sem gravar disco e sem nada ia ser uma coisa pequena, restrita, mas ia dar pé. Agora, eu não sei quanto tempo daria pra levar isso adiante, não. Tinha que pegar uma boatezinha e ficar cantando. Aí, o pessoal vai lá ouvir música nova. Aí, depois de dois anos já não interessa mais. A não ser lá na Itália, onde a coisa é quase institucionalizada - o cantor de cabaré. Existe esse gênero. Porque já não vende disco nenhum; vende pouquíssimo. Aquilo lá tem prestígio e tem um pouco de sucesso.
Bondinho - Como é a censura lá e aqui? Lá também tem que mandar a letra...
Chico - Não. Aqui só existe de dois anos pra cá, uns três anos; antes disso não havia.
Bondinho - Como é o funcionamento burocrático? Você pega a letra e manda pra onde? Pra quem, quem é que lê?
Chico - É uma coisa que nunca me preocupou. Igualzinho o que era aqui. Eu não sei como é que era, mas a gente não tinha que mandar a letra. A gente gravava o disco e pronto. Acabou.
Bondinho - E agora, como é que é?
Chico - Agora, no meu caso é a gravadora. Eu não vou bater papo, só falo quando sou chamado porque eu não tenho nada interessante pra dizer.
Bondinho - Você, quando voltou da Itália, teve a sensação de que voltou porque está melhor, daria pra trabalhar?
Chico - Eu voltei porque me garantiram que aqui estava tranqüilo e me ofereceram contratos. E na verdade estava lá já de saco cheio, não é? Depois de um ano começou a encher muito o saco. E comecei a brigar e comecei a... porque a Itália é maravilhosa, Roma é uma cidade... eu tô morrendo de saudade dela. Agora, você morar lá um ano, mais de um ano, tem que ser um cara especial. E eu não sou esse cara especial. Esse cara, que é o Murilo Mendes, um poeta que a gente não sabe se é italiano ou brasileiro. Eu me sentia lá um estrangeiro, não gostava de viver lá. Depois de um ano passei a não gostar, passei a brigar e aí pensei: ih, não está ficando bom, não. Aí apareceu o negócio de poder voltar que "não tem problema"; pelo contrário, a TV Globo me ofereceu pra fazer um programa especial, 20 milhões, e fazer um show na Sucata, eu achei que dava pé. Tava chato paca, no fundo era isso.
Bondinho - Agora, quando você fala assim porque disseram "pode voltar e tal", a gente, que não é do meio como você, não dá pra perceber, porque... Quem era esse "pode voltar"' assim... São as pessoas, são as televisões que passam a procurar você de novo, o cara se afasfa em determinado momento, são os contratos que deixem de existir em determinado tempo...
Chico - Não. Contrato sempre houve. Não foi por isso que fui embora. E nem por isso que eu voltei. Trabalho tinha, se eu quisesse trabalhar. O que há é o seguinte: é que tem duas maneiras de ser indesejável num lugar. Ou te dizem claramente ou mandam um indireto, entende? Então eu recebi indiretas, sempre, todo dia. "Melhor você não voltar porque a barra está pesada, melhor você não voltar porque vão fazer isso, melhor você não voltar porque o fulano disse." Pô, por via das dúvidas, você não volta, né? Pelo menos eu não volto.
Bondinho - Esse tipo de indiretas, você recebeu muitas no tempo de "Roda Viva"? Ou passou a receber nessa época?
Chico - Não, só recebi mesmo lá fora. Quer dizer é que prestei mais atenção lá fora, entende? Quer dizer, antes disso, mesmo no tempo de "Roda Viva" eu senti muita coisa, mas a mim pessoalmente não chegava, não. Inclusive porque na época do "Roda Viva" a coisa foi muito distribuída e se atribuía muita coisa ao Zé Celso. Zé Celso foi muito mais marcado que eu, por causa da linha dele, na peça. E a coisa chegou à agressão física ao elenco, e eu não tava aqui não, tava noutra. Quer dizer, aí chega o Nelson Rodrigues, diz que não, que eu sou um bom menino e tal, que o Zé Celso deturpou tudo, falaram essas coisas...
Bondinho - Que você acha disso?
Chico - Não, eu falei cem vezes não, que não era verdade. Agora não vou ficar respondendo ao Nelson Rodrigues. Falei que eu assumia inteiramente. Mas a verdade é que tinham mais raiva do Zé Celso que de mim.
Bondinho - Você falou que em determinado momento tinham raiva do Ze Celsó e não de você. Acho que havia sempre uma tentativa de encarar você assim como bom menino, uma série de coisas... Isolar, inclusive, seu trabalho do trabalho de outras pessoas como Edu, Caetano, Gil e outros compositores. Você acha que sempre existia essa separação, ou era um trabalho de música popular como outros também?
Chico - Não. Eu não acho que havia... o Zé Celso é outra coisa. Um cara que só trabalha com teatro não é cara de penetração popular. Por aí vai uma diferença muito grande. O sujeito que tem uma certa penetração popular vai ao programa de televisão, dá entrevista e tal, e canta. É uma coisa. E Zé Celso é outra.
Bondinho - A ferramenta de trabalho é uma coisa...
Chico - Pois é. A gente tem que contar isso tudo. E aí esse ódio é muito mais pessoal do que pelo trabalho propriamente. Eu te digo, há muito mais raiva do Gil que do Caetano. Odeia-se o Gil - não se gosta do Caetano mas também não se odeia. Você vê na cara de um e entende por quê.
Bondinho - Pela cara?
Chico - Pela cara, pela atitude, pela narina, pela cabeça do Gil; pelo Caetano que é mais branco e mais magro, e franzino, raquítico. Há esse negócio.
Bondinho - Queria que você localizasse mais. Tentaram, mais ou menos, intrigar os trabalhos de vários compositores?
Chico - Mas aí foi um outro negócio. Foi uma espécie de guerrinha de bastidores, criada para promover uma porção de coisas, onde eu entrei de Cristo apesar de ser amicíssimo de todo mundo aí. Agora, isso não foi criado por nenhuma força oculta, não. Isso foi claro.
Bondinho - Foi mais um problema do métier que...
Chico - Foi simplesmente.
Bondinho - Você estava preparando uma música pro FIC, você contou ontem. Como que era a música?
Chico - Por quê?
Bondinho - Por curiosidade.
Chico - É uma canção do Tom que eu tinha feito a letra. Aliás, nem terminei, faltava ajeitar a letra. Não terminou, qualquer hora a gente termina.
Bondinho - Você não pode dizer a letra pra gente?
Chico - Eu tenho o rascunho dela espalhado por aí. Qualquer hora eu posso achar, mas não está pronta ainda. Ela não tem nada com o FIC, nem tem problema com o FIC. Isso nunca ficou bem claro, apesar da carta ficar bem clara. Parecia que a gente ia retirar; enfim, não é por causa da censura no FIC. Não, não era por causa da censura. A minha música nunca foi censurada, não dava, pois não tava nem pronta. Por causa da censura de uma maneira geral, censuraram todos.
Bondinho -Aproveitando a oportunidade do FIC.
Chico - Já que estamos todos aqui, vamos dizer que a censura não tava muito boa e nós todos saímos fora do Festival. Inclusive pouquíssimos dos caras que assinaram mandaram as músicas pro FIC. Ainda tava na fase de pensar se iam ou não iam mandar. Por coincidência a música que o Paulo Sérgio Vale tinha mandado foi censurada, mas isso não tem nada que ver com a carta. A minha música, acho que não seria censurada. Não tem nada pra ser censurada.
Bondinho - Quando você fala "eu acho", já entra a autocensura?
Chico - É claro. É aquela do "não" e aquela do "talvez". Esta "não" e tem aquela que "talvez" vão censurar. A "Bolsa de Amores" eu achava que "talvez".
Bondinho - São três categorias?
Chico - Tem a que é censurada mesmo, essa o autor nem manda. Tem a talvez, vamos tentar. E tem aquela que é tranqüila.
Bondinho - O "Apesar de Você", em que categoria estava?
Chico - Eu não sei, tive medo, tive um pouco de... achei... tava temeroso, se bem que comigo a barra piorou depois de "Apesar de Você". Naquela época, justamente, se eu tivesse mandado "Apesar de Você" depois do Apesar de Você, ela não passava. Mas eu mandei, liberaram e eu falei "tá". Quer dizer que eu mandei no talvez, né?
Bondinho - Isso tudo explica que você não tem nada contra festivais. Você pode estar o ano que vem participando de um festival. Seja o FIC, seja qualquer outro.
Chico - Não, a atitude não foi contra o festival. De jeito nenhum, se bem que eu não goste. Não gosto de festival e não tenho vontade de participar de festival. O FIC, o único que existe atualmente, desse não há condições de gostar. Não há condições de fazer um trabalho direito lá, porque ou você faz a coisa pro festival - que não me interessa fazer -,ou então você vai se sujeitar à opinião de um júri. Ou então o público que não tá ouvindo o som direito e não é culpa dele, ele não vai ter condições de gostar ou não gostar da música. Ele vai engolir ou não vai engolir. A gente não pode fazer música pra isso. Se o cara tá se lançando, aí ele aceita um convite da imprensa, um negócio social. No fim, pra nós foi mesmo uma oportunidade de manifestar o negócio. Manifestar o nosso repúdio à censura.
Bondinho - Bom, por causa da censura, você acha que está sendo trancada a sua comunicação com o seu público?
Chico - Olha, quando eu disse aquele negócio das três músicas, a do "não", a do "talvez", a do "sim", eu digo o seguinte: eu produzo muito pouco. Não sou um cara de grande produção. Eu faço uma música por mês, vamos dizer. Numa época faço várias músicas, e uma época não faço nenhuma. Eu não faço música pra não ser gravada. Não faço mesmo. Nem por enquanto, tava falando aquela hora, se fosse o caso; aí eu mudaria tudo, mas por enquanto só me interessa a música pra ser gravada. Não me interessa eu cantar porque eu não faço isso, pegar um violão pra te mostrar uma música: ah, olha aqui, ligo o gravador pra te mostrar uma música. Não, só me interessa música que vai ser gravada. Então, é claro, isso me limita uma porção de coisas, porque eu já sei que essa música como eu fiz não vai dar pé, então eu vou aproveitar o trabalho que tive com ela e vou transformá-la numa música que talvez dê pé. Isso muitas vezes, ela perde uma porção de coisas.
Bondinho - E, além disso, por que você parou de aparecer mais? Você só aparece em show ou disco, ou no rádio. Você não aparece em programas de TV. Tem algum problema nisso?
Chico - Não tem programa pra aparecer quase. O que tem eu não gosto e acho que não vale a pena. Eu tô achando que dá pra fazer um trabalho de trabalhar, trabalhar de vender disco, show, sem fazer TV. A televisão é um negócio que você tem que fazer concessão. Quer dizer, é claro que tv é importante. Agora, pra mim, tudo que se passa em televisão, ou quase tudo, me cheira a concessão. Ah, vou topar proposta do sr. não sei o quê, patrocinador e tal. Acho que tá dando pé quase fazendo um trabalho subterrâneo, entende? E apesar disso aproveitar a máquina do embalo da gravadora, não sei o que... e vender discos e ser divulgado.
Bondinho - Pra uma comunicação maior, usar o disco.
Chico - Bom, aí é que tá o negócio. Sem o disco, aí, vira underground. Underground mesmo. O cabaré italiano. Mas acho que aí há um meio - termo. No momento há. Eu não acho que público que compre o meu disco precise me ver na televisão. Eu não gosto de TV já de cara. Já não gosto, nunca gostei, então... Dinheiro, se for pra resolver o problema de dinheiro, eles não pagam muito e depois pra você receber precisa pedir tanta esmola porque, eles demoram meses pra pagar, não pagam, oferecem liquidificador... Por dinheiro não vou fazer TV não.
Bondinho - Foi pensando assim que você se juntou com Karabchevshi e Klein pra fazer o show do Canecão? Pensando só nessa faixa, a faixa intermediária?
Chico - Eu já tava fazendo show desde o começo do ano.
Bondinho - O Canecão é um show com mais gente.
Chico - Pois é. Isso eu pensei mesmo. Inclusive quando a gente fala em fazer circo, realmente é isso. O circo é mais gente que o Canecão. Já que não é pra TV, também não tem sentido ficar virando cantor de Zona Sul, de grã-fino, de publicozinho de elite. Não é isso. Minha música não é música pra elite. Eu não quero que seja, pelo menos. Então, já que não é pra fazer TV, procurar fazer um contato direto com um público maior.
Bondinho - E o desdobramento dessa experiência é o circo, né? Você podia dar uma explicada...
Chico - Agora não dá certo ainda porque o circo caiu, né? Caiu com a ventania que bateu anteontem, que derrubou até o cartaz do Canecão, também. A gente vai acertar um circo, e é só isso, levar um show lá. A preço realmente popular. A arquibancada a seis contos, preço de circo.
Bondinho - Como chama o circo?
Chico - Fu-Man-Chu.
Bondinho - Você vai ficar, ou sair por aí?
Chico - Bom, se as coisas funcionarem, a gente vai. Tô achando genial. Só penso nisso. Faço o show do Canecão pensando nisso. O show não é o mesmo, não; não vai ter o Isac nem o Klein, eles já têm viagem marcada. Vai ser com a Marlene. Ela é bacana à beça, tá animada, ela faz o carnaval, canta Lata D'água na Cabeça... Ela tá por dentro de tudo.
Bondinho - Vai ser uma experiência bacana.
Chico - Inclusive a gente tá querendo manter algumas coisas do circo. Quer dizer, não é pra fazer um show de música num circo, não! É pra botar, deixar palhaços, anão, alguma coisa. Não vamos fazer número de circo mesmo, mas deixar de alguma forma. A gente ainda não pensou, mas vamos dar um caráter circense ao negócio, né? Claro, cantando uma música romântica, não vai deixar entrar um palhaço no meio da música. Mas nos intervalos...
Bondinho - Chico, você se considera subversivo?
Chico - Não sou subversivo, não, porque inclusive não pretendo dizer nada por baixo... Se alguém me faz subversivo é a própria censura. Porque eu quero dizer as coisas claramente. Não quero dizer sub não. Inclusive eu acho chato que às vezes tenha que procurar uma imagem, uma metáfora, pra dizer um negócio. Eu gosto de dizer as coisas claras: "A Rita levou meu sorriso no sorriso dela..."; eu gosto de dizer essas besteiras. Agora, se disserem que não posso levar os bons discos de Noel, se tiver que fazer uma metáfora pra dizer, ah, a gente acaba virando subversivo mesmo. Não há um código, eu não escrevo em código não.
Bondinho - Agora, todo esse clima que, pelo visto, já era até subversão, porque as pessoas passam a ter que fazer as coisas por metáforas, está influenciando de uma maneira geral a música popular, você não acha?
Chico - Mas você vê que ela tá complicada. Vê as coisas complicadíssimas. Às vezes você ouve uma música e conhece o compositor e sabe o que ele tá querendo dizer, mas você mesmo não entende... você sabe o que ele quer dizer, mas você fica procurando... por quê? Porque ele tem que fazer subversão. Ele tem que dizer a coisa de uma maneira tão enrolada que não... eu não sei... eu não gosto. Eu acho que a música tá passando por isso.
Bondinho - Uma fase negativa.
Chico - Acho. Porque então o sujeito diz a coisa banal claramente, ou diz a coisa não banal de uma maneira tão complicada que fica sendo chata. E a música banal é chata, não gosto. Às vezes tem uma chave, de certa maneira, isso existe, é claro. Mas a maioria das vezes você quer dizer uma porção de coisas e isso é tão complicado, tão enrolado, que no fim não passa nada. O máximo que explica é na contracapa ou nas entrelinhas. Você tem que ler nas entrelinhas o que quer dizer. Deforma. Eu acho que isso deforma a música.
Bondinho - Diga uma coisa, Chico, há um monte de gente aí que partiu pra agradar a situação, com um tipo de música do maior mau-gosto. Isso também não estaria prejudicando a nossa música?
Chico - Pois é, tem dado um modelo, né? Inclusive eu acho que esses caras, agora vamos pichar mesmo, são gente pouco capacitada, gente tecnicamente ruim pra fazer música. Porque a gente vê na televisão filmes de propaganda muito bem-feitos. entende? Mas, em música, uns troços horrorosos, e não pega, não cola. Até agora não colou.
Bondinho - Você acha que é possível saírem músicas oficiais maravilhosas só porque são tecnicamente bem feitas?
Chico - Não sei. Por que não? Eu acho que há vários compositores, eu não sou tecnicamente bom compositor, acho que sou bom compositor porque sei fazer minhas músicas... Mas há compositores tecnicamente bons que poderiam fazer música em qualquer sentido. Poderiam ser ótimos jingleístas, formidáveis. Esses que estão aí são muito ruins. Don e Ravel são horrorosos, e são primários, entende? São compositores de colégio, parece aquelas músicas de formatura. Eu não vou dizer quem, mas acho que há compositores que podem fazer...
Bondinho - Jorge Ben não entrou nessa? Você não acha que o Jorge Ben é tecnicamente bom?
Chico - Não, Jorge Ben é outra coisa.
Bondinho - Mas ele entrou nessa...
Chico - Não. O que houve aí do Jorge Ben, foi, que eu saiba, não sei... ele é muito ingênuo também. Mas, agora, o que houve, esse negócio do Erlon Chaves que ele tá fazendo aí, aquilo não, aquilo ele fez com o pessoal do Pasquim e o Erlon Chaves começou a botar a transamazônica, 200 milhas, é coisa nossa, é coisa nossa! Ele fez a Coisa Nossa do Pasquim. Olha, o que eu gosto do Jorge Ben, que ele realmente é, como um Chico da Silva e eu, um primitivo mesmo. É um cara que pode perfeitamente acreditar e ver televisão, "porra, é mesmo!", e fazer os sambas dele. Esse caso você não pode recriminar. Eu pelo menos não me sinto em condições. Agora, um porra desses Don e Ravel, péssimos músicos, péssimos letristas, péssimos caráter, péssimos em tudo. Então quando digo, e alguém fizer, é espontaneamente, não é porque o cara vai parar de fazer, não. Fez porque achou bacana. Então, porra, música ufanista foi feita sempre. Ary Barroso e tal, já se fez e tal. Pô, o Tom, o Tom tem um frevo brasileiro e ufanista que é bacanérrimo mesmo. Muito bonito. Daquela época do Juscelino.
Bondinho - Não era clima criado...
Chico - Não era, era um troço espontâneo. Então, pô, Brasília, realmente, pô, era um troço emocionante. O negócio de Brasília eu era muito garoto, não me lembro de haver tanta bandeira, essa propaganda de cinco em cinco minutos pela televisão. Então havia aquele frevo que era "taram ra ra li ra ra... vem, vamos dançar ao Sol/ vem que a banda vai passar / vem ouvir os toques dos clarins anunciando o carnaval / e vão brilhando os seus metais/ por entre cores mil, verde mar, céu de anil/ nunca se viu tanta beleza/ ai, meu Deus, que lindo o meu Brasil. Trara ram pam..." Ôrra, maravilhoso, maravilhoso... Agora, se você juntar com as coisas...
Bondinho - Se você trocar o tempo...
Chico - É. Com a diferença que seria uma linda música agora. Eu até seria capaz de ficar emocionado vendo televisão...
Bondinho - Você, no tempo do Juscelino, seria capaz de fazer uma música ufanista?
Chico - É difícil. Não sei. Tinha 11 anos, 12. Eu ouvia meus pais falarem. Lembro que eles eram UDN, do Juarez, e eu me lembro de 1950, pregar cartaz, eu tinha 6 anos, pregar cartazes do Brigadeiro. "Brigadeiro é bonito e é solteiro." Agora, no tempo do Juscelino começou aquela coisa toda de cinema, quando comecei a me interessar por música também, comecei a tocar violão, a bossa-nova, quer dizer, eu não...
Bondinho - Era uma época mais criativa, né?
Chico - Ah, sim. Foi tudo ali. Acho que tudo isso que eles têm hoje em matéria de cinema, música - música eu sei, porque toda a minha geração começou ouvindo tudo o que fazia naquela época. Acho que cinema foi a mesma coisa. Acho que apareceu tanta coisa que...
Bondinho - E essa época atual pode fazer perder todo aquele trabalho na música, no cinema...
Chico - Eu acho que a gente vai ficando velho, né? Eu não vejo muito a garotada, sei lá, o que é que ela vê. O que ela tem na cabeça. Até aparecer outro negócio assim, não sou eu que vou fazer. Não vejo pessoal da minha geração em condições de. Cada um tem o seu caminho. Eu não tou com muito contato com ninguém. Nem tenho mais entusiasmo pra inventar, sei lá, ir na casa de não sei quem, como naquela época se fazia, entende? Ah, vamos na casa de não sei quem, pegar o violão... Não tem mais. Já tenho o meu caminho traçado, separado de todo mundo. Cada um tem o seu. é muito difícil de entender. Fica artificial. "Bom, amanhã vamo fazê..." existe muito disso, né? Ir na casa do Sérgio Ricardo ver o movimento. Que, nunca vai ninguém, pô! O cara lá chega atrasado, outro chega bêbado, outro chega com pressa. Não se faz mais isso. Isso tem que ser a garotada. A garotada, os caras de 19, 20 anos...
Bondinho - Você acha que eles têm clima pra fazer...
Chico - Eu não. Isso que eu acho, acho que peguei o rabinho, o finzinho de geração. O cara três, quatro, cinco anos mais moço que eu tem tido uma experiência brutal. Tem uma porção de outras coisas bacanas, mas não sei se vai poder fazer uma. Tem um "não" muito mais bacana, não é como o "não" da gente, que era meio misturado com um "sim". O cara, pô, eu vejo a garotada olhando assim, e eu chego mais perto do Tom que tem 14 anos mais que eu. Parece que eu sou mais geração dele que a minha, estou mais na geração dele que de um cara de 20 anos. Cara de 20 anos é um outro bicho. Tá aberto pra uma porção de coisa bacana pra burro, inclusive eu não vejo muito a condição dele fazer... eu não conheço, não vi aparecer nada. Sinceramente, não vi.
Bondinho - No meio disso tudo a música popular brasileira não tá perdendo terrivelmente a parada para a música estrangeira?
Chico - Está, mesmo porque o jovem de hoje, ao contrário dos jovens do meu tempo, procura na coisa internacional, uma coisa modelo inglês, ou modelo não sei o quê, uma libertação que aqui não existe. No meu tempo era muito diferente, né? Eu era garoto, quando comecei a cantar usava cabelo curto, porque a gente de minha idade não tinha aquele negócio de usar cabelo comprido pra parecer músico, pra parecer Beatle. O brasileiro não tinha de usar cabelo comprido. Agora, tem que usar, pô, tem que usar porque se não usar vou me atrapalhar, confundir, pensar que eu tô. . . naquela época era diferente, entende? O líder, sei lá, o líder estudantil era outra coisa, não tinha nada, conotação nenhuma com a tua geração. Agora não existe mais nenhum, entende? Não existe mais modelo nacional. Você não pode dizer: "não, eu uso cabelo curto e eu saio, sei lá...", alguma coisa assim. Que aí vão nos confundir com um negócio. . . bem, careta, ou pior, entende? Então, você falar inglês hoje, você saber falar uns troços em inglês, pode, tá, porque você é um cara bacana. Tá bem informado, tá sabendo de tudo que está se passando no mundo. Há cinco anos atrás, não era não. No tempo que eu comecei não era não. O que você tinha de saber era de Mário de Andrade, Vila Lobos, tinha que saber de Manuel Bandeira, tinha que saber essas coisas todas. Só podia se basear nesses caras pra dizer alguma coisa. Hoje não pode mais não. Então, ao mesmo tempo, a garotada que tem 20 anos, 19 anos, usa cabelos compridos até aqui e barba, e quer tocar cítara e não sei o quê. É um troço bacana dizer não a tudo isso, mas eu não vejo como é que eles vão, que é que eles vão fazer com isso, além do que já foi feito lá fora. Em que base eles vão tocar cítara? Por quê? O que isto tem que ver com a Índia, pô! Que ligação é essa? Que os Beatles foram à Índia e disseram pra tocar, e o brasileiro... Então você diz: não, é melhor você pegar o berimbau e aí você já fica achando: que é isso, porra? Você tá atacando de nacionalista... Não pode mais, confundiu tudo. Acho que naquela época, eu me f... um pouco nessa brincadeira, entende? Porque eu representava mais ou menos a imagem da música brasileira. De repente eu vi que não podia ser, que eu não sei fazer outra coisa senão samba. E adoro samba, adoro cultura brasileira, mas não posso ficar propagando isso por aí não, viu? Senão, vão me confundir com o Plínio Salgado.
Bondinho - Você acha que - pelo que eu estou sentindo no que você está falando - quem está sofrendo mais, sendo mais prejudicado, é a geração mais jovem, né?
Chico - Não tem dúvida. E tenho medo pela geração mais jovem: minha filha, por exemplo. Que que é? Vive desde o começo educação moral e cívica, essas coisas no colégio que eu não sei se daqui a vinte anos, se continuar assim, o que é que vai ser, né? Porque ninguém sabe nada. Ninguém sabe nada de cultura brasileira, coisa nenhuma. Se fosse ser hippie... Bem, a melhor coisa que tem é ser hippie. A garotada que eu conheço, 5 anos mais moça do que eu, gente de 20, 21, 22 anos que eu conheço, gente bacana, são todos hippies. A melhor coisa que se pode fazer é ser hippie, porra. Se eu fosse da idade deles, que é que eu seria, pó? Nisso tudo você viu que sinto que há uma diferença de geração como se fosse cem anos. E são cinco anos.
Bondinho - Isso, de uma forma geral, vai gerar um empobrecimento dessa cultura brasileira, não?
Chico - Eu acho que sim. Quer dizer, eu não vejo dentro desse nosso hippie e tal, como fazer... posso estar errado, pode ser que se faça, que se crie dentro de algum tempo... Essa gente que tá começando a ser hippie hoje, no Brasil, não sei o que eles vão poder fazer mais que artesanato com couro, quero dizer, em matéria de criação. De música, por exemplo.
Bondinho - Você falou de geração, de um espaço de cinco anos que parece muito maior. Isso de alguma forma te frustra, te dá problemas, você gostaria de estar falando com essa geração de diferença de 5 anos?
Chico - Me perturba muito. Contato com um cara assim em geral me inibe um bocado, né? Me dá ... não sei se é sentimento de culpa. Não, ou me dá... não sei o que é... é um negócio estranho. Tem-se a impressão de que o cara tá olhando pra você e dizendo "Pô, como é que você deixou esta m..."como se a gente tivesse podido fazer qualquer coisa. Inclusive vejo esses caras com uma coragem muito maior que a minha.
Bondinho - Será que você localiza o porquê desse envelhecimento na nossa geração, esse buraco?
Chico - Você quantos anos tem?
Bondinho - Tenho 26. Será que daria pra gente identificar mais um pouco na falta do que foi realmente? Falta de universidades? Falta de comunicação?
Chico - Eu, por acaso, quando entrei pra universidade já era mais ou menos... tinha umas transas, conhecia bastante gente e tal. E vi amigos que ao entrar na faculdade se transformaram, começaram a enxergar as coisas. O cara dois anos mais moço que eu não tava na faculdade, tava cursando o vestibular. O cara que não teve essa transformação que a gente teve, né... entrando pra faculdade. Não é bem entrar na faculdade, quer dizer entrar em contato com novos tipos de informação. Pois é, sair da festa de família, da casinha, desse círculo fechado, partir pra outro negócio, começar a ver tudo direito. E o cara começou a ver tudo errado, tudo fechado do mesmo jeito. Porque tudo parece que virou um imenso colégio interno, né? Minha impressão é essa. Os caras saíram do ginásio e continuaram no colégio.
Bondinho - Eu acho que é por isso que se tem tanto interesse em modelo de fora, né? O interesse pela política surge muito dai, né?
Chico - Esse pessoal olha pra gente e diz: "porra, esses caras são uns merdas, porque esses caras vieram antes da gente e não ajudaram porra nenhuma!" E aí o cara que tem dois anos menos que eu, 3, 4, 5 anos, sabe que eu sou uma merda mesmo, eu e toda a minha geração. Então o que vão querer? Se identificar com o irmão mais velho? Não! Vão querer saber do primo lá que mora em Liverpool, Liverpool - que é uma cidade horrorosa... nem sabe porque é Liverpool, mas ouviu falar que lá tinha os Beatles, que aquilo era outro negócio, e no fundo não é porra! Isso é que me irrita mais. Não é, pô! Europa não existe, Suécia, que merda... Inglaterra, pô... merda. Daí não dá pra pensar em Brasil nestes termos, nem você sendo um cara de direita, esquerda, meio... não pode. Vai ser nada daquilo. Eu, como sonho, é um país maravilha, viu?
Bondinho - Essa impressão que você tem da Europa, como é que você colocaria mais nitidamente?
Chico - É porque é tudo tão velho, tão escroto, tão podre. Aquilo não tem remédio, não. A Itália não tem remédio, não tem, não adianta.
Bondinho - Quando se vai à Europa e se conversa com gente jovem... se esquece a política e se mostra samba, fala de Bahia, de berimbau, dessas coisas, tem-se a impressão de que todos eles queriam vir pra cá.
Chico - Mas é claro. Porque qualquer cara aberto lá quer, pois é, porque é perigoso falar disso por aí, porque o Brasil é o país da maravilha, poderia ser... aqui dá, é tudo pra ser feito, né? Não as estradas, mas é tudo. Porque ainda não tem nada. Pô, então você já viu que foi tudo feito errado lá fora, então vamos fazer diferente. Não é fazer o que querem fazer. Tão querendo fazer o exemplo do menos mal-sucedido de todos.
Bondinho - No meio de tudo isso, você compondo. Você como autor, não sei, no meio disso tudo, essas importações todas, você já pensou em mudar, tocar outra coisa, cantar outra coisa, compor outra coisa?
Chico - Não, o que acontece é o seguinte: eu não posso fazer outro tipo de música, outro ritmo. Eu, feliz ou infelizmente, sou muito condicionado à minha formação, entende? Minha formação é basicamente em música brasileira, samba... é difícil agora pegar e começar a fazer outro tipo de música, fazer iê-iê-iê. Não saberia fazer, não.
Bondinho - Uma outra coisa, também. Acredito que você passa se comunicando com gente jovem através de tua música. Você acredita nisso também?
Chico - Eu acredito que tenha receptividade, mas acho que há uma certa desconfiança. Isso pode ser impressão minha, pode ser problema meu.
Bondinho - Qual seria a desconfiança?
Chico - Há qualquer tipo de relação que eles fazem com a música atual, inglesa ou americana, não sei, música de... sei lá, enfim, os caras, pra eles, acho que são os ídolos mesmo. Não tem mais negócio de João Gilberto, não tem disso não, entende?
Bondinho - É o ídolo nacional perdendo a parada, né?
Chico - É isso tudo que a gente lá falando, eu acho. Eles vêem aquilo, se identificam com o jovem inglês, ou americano que seja, e com os ídolos, e por isso mesmo com os cantores de lá. Estão querendo saber dos discos importados. O que o idioma mesmo tá dizendo, acho que isso é mais importante pra eles do que o que eu tou dizendo.
Bondinho - Mas só se preocuparem com isso vai ser um traço ruim, né?
Chico - Eu sou suspeito de falar, né? Parece que se eu for dizer que sim, concordar contigo, parece que eu tou dizendo que... inclusive eu não acho que seja uma coisa tão radical. Acho que eles... eu tenho sentido que eles querem saber dessas coisas. Mas no fundo, no fundo, eles não confiam mais, eles confiam mais no John Lennon que no Sérgio Ricardo, como exemplo.
Bondinho - O Veloso já escapa desse esquema.
Chico - É. Inclusive a saída dele foi muito inteligente. Digo, dele, Gil e tal. O cara parte pra um esquema internacional, mesmo que ele não seja muito bem sucedido lá, aqui no Brasil se mantém como um cara que está fugindo, é a mesma coisa. Então, é claro que a garotada se identifique com o Caetano ou com o Gil e tal. O cara que procura ir lá fora... o camarada foge, o cara que sai e o cara que compõe em inglês. Quer dizer, eles mesmos quase que são da mesma geração, apesar de não ser dela, eles, muito mais que eu, se identificam com a geração mais nova. Isso eu digo com a maior isenção. Eu sinto isso. Desde o começo eles pegavam o negócio que tava aí.
Bondinho - É uma geração que está bem mais próxima da linha de interesse de agora. Cantar em inglês, o ritmo que tá lá fora...
Chico - Inclusive consciente; acho que é uma saída, porque eles sabem disso tudo. Caetano, Gil... Não são garotos deslumbrados com o negócio. São muito mais velhos que eu, eles viveram tudo que eu vivi e por um motivo ou por outro foram levados a isso e descobriram isso.
Bondinho - Nas coisas que você falou em termos de juventude, há mil coisas em contradição. Aquele negocio do "não", deles, o "não" é muito mais bonito que o da geração anterior, muito mais agressivo, mas você acha que vai levar a alguma coisa? Por exemplo, você não se casou formalmente, né?
Chico - Eu não me casei mesmo!
Bondinho - Não se casou mesmo e isso é uma coisa que faz parte das relações dessa gente mais nova. Não ligar pra isso.
Chico - Pois é. Eu me identifico perfeitamente nisso com eles. É um problema quase que de atitude, entende? Eu tou fazendo montes pra casamento, tá na cara. Agora, eu não faço disso um estandarte, entende? Porque eu talvez não esteja mais em tempo de fazer isso. E eles fazem, eles estão na hora de fazer isso. Pode ser que eles consigam, sei lá, mudar tudo.
Bondinho - Chico, nota-se que nas músicas principais do seu último LP, as melodias se simplificaram totalmente. Não são melodias com refrão, pro nego embarcar junto, ficar cantando... elas dizem mais pelas palavras. Isso é um negócio intencional?
Chico - Não foi intencional, mas acho que você tem razão quando diz que é um disco mais pra ser ouvido que pra ser cantado. Mas não foi intencional.
Bondinho - Você mexe muito bem com as palavras, né? Você sente muita diferença em mexer com a palavra ou mexer com a melodia? Pessoalmente, você gosta mais de uma coisa ou de outra?
Chico - O que acontece é o seguinte: tenho mais habilidade de mexer com a palavra que com a música. Tenho bastante facilidade pra música. Quer dizer, eu não sei escrever poema, não escrevo, nem nunca me passou pela cabeça. A não ser quando era garoto. Um livro de poesia, por exemplo, eu não escrevo.
Bondinho - A reação é simultânea?
Chico - É simultânea. Mas eu sinto que na hora de puxar, talvez as palavras valham mais, elas pedem mais que a música na hora de puxar prum determinado caminho. Às vezes é o contrário. Às vezes tem uma idéia de música que me conduz prum outro negócio, então as palavras têm que obedecer o negócio, vão ter que seguir o caminho que a música for traçando. Mas não há uma dependência assim.
Bondinho - Você teve mais contato com gente de palavra que com gente de música, né? Gente... muito mais escritor, poeta, que gente de música, né?
Chico - Tive. Tive. Mas a casa de meu pai, por exemplo, que é uma casa cheia de livros, tem livros por todas as paredes, sempre tem muita música também, entende? Meu pai toca piano, mal e porcamente, mas toca de ouvido; e minha mãe é daquelas que aprenderam a tocar piano desde cedo. E tenho um tio-avô que foi maestro. Quer dizer, tem muita música nela. Sou muito ligado, não quero dizer que sou mais ligado em uma ou outra coisa, não quero distorcer porque não sou mesmo. Talvez fosse mais bacana ser, eu não sou, eu só sou ligado, ih, porra, eu leio bastante, mas eu não me emociono tanto com... porque é muita emoção, entende? Eu sou vidrado em Fernando Pessoa, ou Drummond que seja e tal, mas eu me emociono mais com Vinícius. Com a música, entende? Com Minha Namorada mais que com poema de Drummond de Andrade. E sou fanzoca doido de Drummond, de Fernando Pessoa, entende? Desses poetas todos que a gente lê todo dia. E de tudo que eu li. Sou vidrado, mas não me toca como me toca a música popular. Em suma, é isso. Nasci pra ser músico popular e acabou. E a música clássica também não me toca não. Também sou vidrado, pois volta e meia escuto Bach, Beethoven, mas não é a mesma coisa, né?
Bondinho - Você falou - outro dado de curiosidade - desses poetas, Fernando Pessoa, Drummond, e se deixasse você ia falar de outros, porque você lê todos os dias. Então, em música, hem? Quem eram então os da música popular?
Chico - Há uma diferença. Aí eu, parece que vou me contradizer, mas eu não escuto muito música, inclusive porque eu não gosto de ouvir, de pegar um disco e botar na vitrola, um troço que eu não... Mas quando eu tou num negócio pra ouvir, pra cantar, então aí é mais cantar, é lembrar, aí um Baden, um Tom, sem parar, entende? Nélson Cavaquinho, pô, aí me toca profundamente. Nélson Cavaquinho me toca profundamente. E não interessa aquilo orquestrado, nem a letra do Nélson Cavaquinho em volume... mas me interessa muito mais pegar, ouvir...
Bondinho - Na música a gente participa muito mais, né?
Chico - Pois é, acho que pessoalmente pra mim me pega pelos dois lados. E pega pela música, pega pela letra igualmente, não sei do que eu gosto mais, se é de Tom ou de Vinícius, quando escuto Insensatez. Ou de João Gilberto que está cantando simplesmente tocando violão, que é outra coisa; que além de Vinícius e Tom, tem João Gilberto. Tudo isso me pega, pô, me envolve pô, negócio genial. E eu gosto mais do que - aquilo que eu disse - dum poema, coisa mais maravilhosa que tem. Ou do que uma sinfonia.
Bondinho - Tua única incursão com a palavra foi a peça, né?
Chico - Eu gosto, eu escrevo, sabe? Tenho essa mesa cheia de besteiras que eu escrevo. Eu gosto. Volta e meia eu pego e sento... pra mim é um exercício muito... eu gosto paca, entende? Eu, não é... hum... não é a minha vocação, realmente não é o meu caminho. Pode ser que seja um dia, talvez, não sei... Um dia posso ter mais calma, tranqüilamente, sentar e coisar. Mas nisso sou muito tímido, muito cuidadoso, entende? Não quero... Eu teria que sentar e ficar escrevendo, pensando. Não tenho tempo pra isso não tenho saco, ou não tenho talento, não sei. Mas por enquanto não é o meu negócio. Apesar de gostar, como gosto de arquitetura. Fui estudar, cheguei no terceiro ano e... Inclusive adoro, pô, quando vejo uma planta fico olhando aquelas coisas...
Bondinho - Engraçado imaginar você na arquitetura.
Chico - Inclusive eu fiz um projeto que tinha nossa escola no fim do ano. Então tinha uma área enorme, não sei quantos mil metros quadrados, e tinha que botar tantas pessoas, localizar não sei quantas mil pessoas, aí passei a noite em claro, um cano, fiz o projeto e quando cheguei na escola de manhã cedo ouvi aquele papo: "Quantos edifícios? Fiz cento e sessenta"; outro: "Fiz cento e trinta e dois"; outro: "Cento e vinte", quer dizer, eu tinha feito dois... O que tinha feito menos era oitenta e quatro. Aí fiquei com uma vergonha que nem entreguei o trabalho.
Bondinho - Uma coisa, também, Chico. As letras das tuas músicas são muito incisivas, não sei se tá bem explicado; dificilmente elas são alegrinhas - vai entre aspas esse alegrinhas - e você é uma pessoa bem-humorada. Nos seus contatos você está sempre rindo, buscando alguma graça nas coisas. Por que será, bem, que a gente tem a impressão de que é muito difícil falar com você, de que você é muito sério, muito... sabe? E você é bem-humorado, gosta de...
Chico - Sei lá, não sei, aí eu não sei... Não quer dizer que eu seja mal-humorado quando trabalho, mas quando tou sozinho, quando tou trabalhando e tal, eu só trabalho sozinho mesmo. Não tem a ver com sorrisos, a simpatia e o papo, entende?
Bondinho - Dá a impressão que você e o pessoal do MPB-4, por exemplo, vocês devem matar uma porção de uísques, entende? Vocês estão juntos desde o início seu, né?
Chico - Estamos casados um com o outro. Desde de antes ainda.
Bondinho - Vocês se conheceram aqui no Rio?
Chico - Não, em São Paulo. Conheci eles lá no bar, lá na Quitanda.
Bondinho - O Bar Sem Nome, né?
Chico - É. Eu tava lá bebendo e eles estavam fazendo. Tinham ido pra São Paulo, estavam começando a carreira deles... e eu nada, tava lá bebendo. Tinha começado a compor, mas não tinha nada profissional. E eles foram fazer um show lá naquele... em cima do Cravo e Canela. Eles fizeram o show, o Chico de Assis apresentou a gente lá; ele é quem dirigia o show deles. Aí, quando logo depois, bom, eu fiz contrato com a Record, comprei um Volkswagen, subi na vida... Ai eu vim fazer um show aqui no Rio, no Arpege, aí já tava. Aí ficamos aí.
De novo com você, o mesmo Chico
Ele mesmo reconhece que ainda não é um sucesso na Itália, mas volta para lá em agosto, com um plano para o seu lançamento em toda a Europa. Chico Buarque, em seu apartamento, no Rio, conta a sua viagem, fala de música e até da seleção brasileira.
Ah, os italianos precisam de ver isso. Lá, a gente tem que lutar, dar duro e passar aperto. Não existe esta história de chegar ver e vencer. Na minha última turnê, com Josephine Baker, por exemplo, começou com um show às duas horas da manhã, em Turim. Saímos de lá correndo, com vários ônibus levando a companhia, e viajamos até o sul da Itália, onde fizemos um novo show, às oito horas da noite do dia seguinte.
Mas também havia dias em que eu não fazia absolutamente nada e podia ficar em casa o dia inteiro. Ou semanas em que eu trabalhava três dias e descansava os outros quatro.
O engraçado foi eu ter gravado um disco na Itália para ser lançado no Brasil e agora ter de preparar um disco no Brasil para ser lançado justamente na Itália, em abril.
Uma coisa é preciso esclarecer: eu não briguei com a RGE, conforme eu ouvi muita gente dizer. Meu contrato simplesmente acabou e eu mudei de gravadora. Mais nada.
Agora minhas obrigações são limitadas: em época de gravação, tenho de ficar à disposição da fábrica. Eles é que escolhem o arranjo, os músicos - fazem tudo. Eu nem dou palpite. Aqui no Brasil, eu consigo impor o que eu quero, porque conheço todo mundo. Mas lá não dá para fazer isso.
No início eu gravava com músicos italianos e ficava muito nervoso. Tinha medo de errar e, também, não gosto mesmo de me apresentar em público. Se fosse possível, ficava mesmo só com os discos. Quando Toquinho chegou à Itália e começou a me acompanhar, eu fiquei muito mais tranqüilo - e olhe que os músicos italianos são muito bons. O problema é que faltava bossa. Depois que nos apresentamos, Toquinho e eu, em um programa de TV, vimos muita gente famosa fazendo o mesmo.
Eu não sou sucesso na Itália. É claro que existe quem me conheça. Eu fiz uns cinco programas nos sábados à noite, e no dia seguinte dei autógrafos na rua. Mas isso é comum, acontece com todo mundo. E mais: no outro dia somos logo esquecidos e não conseguimos ter a sorte das estrelas de cinema: nenhum papparazzi nos persegue na rua.
Fiz também muitos programas secundários, à tarde. Mas deu para viver, mesmo sem ganhar muito. Se fizermos uma comparação com o sucesso que faço no Brasil e a "onda" que sou na Itália, e o que ganhei e viajei, acho que por lá ainda saio ganhando.
O problema é que a vida lá é cara. Temos de ganhar para comer e viver com o dinheiro contadinho. A falta de adaptação imediata é o mais difícil. Uma empregada em Roma, por exemplo, é um luxo que poucos têm. Enquanto deu para ter esse luxo, tivemos. Quando o dinheiro ficou curto, a Marieta teve de aprender a cozinhar e fez muita limpeza na casa. Nosso apartamento em Roma não se transformou em ponto de encontro dos brasileiros, como disseram. Eu viajava muito, conheci toda a Itália. E fiz muitos contatos - já tenho planos quando voltar, em agosto.
De saída, fico três meses na RCA, que vai me lançar em toda a Europa. Vai ser um pouco diferente dos shows que fiz na Bussola - espécie de Urso Branco, com três mil lugares, onde já se apresentaram artistas brasileiros como Sérgio Mendes, João Gilberto e Maysa.
Se der certo, poderei repetir outras viagens de 45 dias, como a que fiz com Josephine Baker. E a Marieta não vai mais precisar comprar comida pronta nos restaurantes populares de Roma.
Tenho planos para levar o MPB-4 comigo. Vamos relembrar tudo o que já fizemos e lançar coisa nova. E não é nova fase nenhuma, como já ouvi dizer por aí. No meu novo disco, por exemplo, não existe guitarra elétrica ou outra inovação. Continuo o mesmo. A única mudança por que passei foi no meu terceiro LP. Naquele tempo eu tava muito preocupado com a música.
Vou cantar e lançar, na Itália, músicas em português e italiano. Lá eles não dão muita importância para música estrangeira. O Sérgio Mendes é conhecido, os Beatles e o Roberto Carlos também. Os dois primeiros podem até chegar a ocupar os primeiros lugares nas paradas de sucesso. Mas não são os mais procurados de sempre. Quem quiser vencer tem de cantar em italiano. É claro que o original deve estar por perto, para os que quiserem conhecer - a nossa colônia, por exemplo.
Já resolvi que meu LP italiano terá temas ligados aos carnavais passados. A Marcha da quarta-Feira de Cinzas será um deles.
Elza Soares está com um bom empresário e acredito mesmo que fará sucesso. Por enquanto, só posso dizer que ele agradou na estréia. Mas isso já aconteceu também com muitos outros. Na Itália, fazer sucesso na estréia é uma vantagem, porque todos os dias aparecem e somem mil cartazes internacionais. Ninguém chega lá e faz tanto a ponto de obrigar todo mundo a falar só nisso no outro dia. Para se ter uma idéia de como a coisa é dura, basta dizer que Charles Aznavour vai à Itália e canta em italiano.
Seria ótimo se a Elza Soares fizesse. Ela é uma grande sambista. Outra coisa: por incrível que pareça, só vi alguma coisa do show do Caetano e do Gil em Londres depois que recebi um exemplar de uma revista brasileira. Na Europa, os jornais têm só meia página para falar dos grandes cartazes. Todo mundo está por perto, mas cada país tem o seu próprio esquema. Daí a dificuldade de divulgação.
Recebi regularmente jornais brasileiros e fiquei sabendo de tudo o que passou por aqui. Posso garantir, por exemplo, que toda a crise da seleção brasileira não repercutiu na Itália. Lá, nós ainda somos os favoritos.
Minha vida continuará a ser vivida no Brasil, onde eu serei apenas um compositor e cantor brasileiro que passa três meses por ano na Europa. Por enquanto, vou me apresentar na boate Sucata, mas ainda nem sei a data certa - se no dia 10 ou 14 de abril. Devo ficar um mês na boate, com algumas apresentações na TV-Globo.
É mentira esta história que vou receber NCr$ 300 mil. Mesmo que estivesse disposto a trabalhar quatro meses seguidos, nem assim daria para receber tanto. Como eu vou trabalhar o mínimo que for possível, posso garantir que não vou ganhar nem a terça parte.
Confusão na chegada, como ele queria
Bem mais gordo, com a pele mais clara - por causa da falta do sol das praias cariocas, - Chico Buarque de Hollanda chegou com a mesma calma e timidez de sempre, mas contente em ver tantos amigos à sua espera.
O avião que trouxe Chico, sua mulher, a filha Sílvia e a babá chegou com duas horas de atraso - às 7 horas e 50 minutos. Mas já havia gente no Galeão desde às 4 horas da manhã. Chico demorou 10 minutos para aparecer na porta do avião, acenando e carregando, com alguma dificuldade, uma grande mala.
Sua mulher vinha logo atrás, com Sílvia nos braços. Chico estava de camisa esporte e sapatos marrons, calças claras. Enquanto descia, ele tirou a filha dos braços de Marieta e colocou-a montada no pescoço. Mas Sílvia não gostou muito da idéia e acabou chorando.
A alfândega demorou apenas 20 minutos para liberar as 13 malas do compositor, que saiu do aeroporto protegido por um cordão de isolamento. Mas isso não evitou que amigos da Banda de Ipanema e vários torcedores do Jovem Flu — parte da torcida organizada do Fluminense — o carregassem nos ombros, enquanto Chico sorria — meio encabulado.
Ricardo Amaral levou-o para casa, na lagoa Rodrigo de Freitas, seguido por vários carros de jornais cariocas atrás, em fila indiana. No cortejo alguns amigos nem tiveram tempo de cumprimentar Chico: Paulinho da Viola, o pessoal do conjunto MPB-4, Beti Faria e Claudio Marzo.
Durante toda a tarde não conseguiu descansar, apesar de tentar: toda família resolveu visitá-lo. De noite deu uma entrevista à imprensa, no Antonio's - seu restaurante favorito quando vivia no Brasil. No fim de um dia duro, comentou para sua mulher:
- Eu até que estava precisando de tudo isso.
Os conselhos da Sra. Chico Buarque
Os artistas brasileiros que sonham com o sucesso na Europa devem prestar atenção a este aviso: é muito difícil fazer sucesso por lá e apenas alguns aplausos não significam que os brasileiros descobriram o mundo.
Depois de passar mais de um ano com seu marido na Itália, Marieta Severo chegou a essa conclusão com base na experiência do próprio Chico e de outros artistas brasileiros que se apresentaram lá. Todos enfrentaram muitas dificuldades e uma exigência: sempre que se apresentaram, tiveram que cantar em italiano.
Marieta explica assim a impressão que o público brasileiro tem de um extraordinário sucesso de alguns artistas brasileiros na Europa:
- Sei que a imprensa brasileira é muito boazinha, mas digo porque vi e quem disser que fez muito sucesso está mentindo.
Durante o tempo que passou na Itália, Marieta preocupou-se apenas em ser dona de casa e cuidar de sua filha, Silvinha. Mas agora ela quer voltar a trabalhar um pouco, talvez em algum filme ou novela de televisão.
Ela está mais magra, cortou os cabelos e voltou com muitas espinhas no rosto. Não se preocupa com isso, mas não gostou de ter perdido a cor morena dos tempos de praia, no Rio. Sua maior alegria ao chegar ao Brasil foi saber que muitas boas atrizes do cinema novo estão fazendo novela. Em Roma, além de cuidar da casa e de sua filha, ela gostava de passear e visitar lugares históricos. Chico não tinha hora para chegar ou sair, quando havia show ou gravação. Ele viajou muitas vezes. Então, quando havia uma folga ou uma pausa de alguns dias numa cidade qualquer da Itália, Marieta ia se encontrar com ele. Foi assim em Livorno, Trieste, Milão e Verona.
Mas quando eles estavam em Roma preferiam ficar em casa. Lá Marieta notou uma mudança nos hábitos de Chico:
- Ele nunca foi tão caseiro. Se havia folga total, ele acordava tarde, almoçava e nos levava para passear pela cidade. Com um ano em Roma nós nos sentíamos turistas. Aprendemos a falar italiano muito mal e acho que Silvinha está fazendo uma enorme confusão com tudo que dizemos aqui.
Há um mês os dois não sabiam se voltariam ou não. Então apareceu a oferta do empresário Ricardo Amaral para um contrato e Marieta ajudou na decisão:
- Eu estava mesmo ansiosa para voltar ao Brasil e ao trabalho. E o Chico vivia falando de calor, sol, praia e dos amigos.
Os versos estranhos do novo disco
A letra de Rosa dos Ventos será a maior surpresa do novo disco de Chico Buarque de Hollanda, porque não lembra em nada o estilo simples e direto do compositor. Começa assim: "Do amor gritou-se o escândalo / Do medo criou-se o trágico / No rosto pintou-se o pálido / E não rolou uma lágrima / Nem uma lágrima / Pra socorrer".
As 12 músicas desse LP, o quarto de Chico Buarque e que será lançado na próxima semana, são todas inéditas: uma de parceria com Antônio Carlos Jobim (Pois é); outra com Garoto e Vinícius de Moraes (Gente humilde); e uma canção para um trecho do poema Os inconfidentes, de Cecília Meireles; as outras nove são, letra e música, do próprio Chico: Rosa dos ventos, Essa moça tá diferente, Não fala de Maria, Nicanor, Cara a cara, Mulher, vou te dizer quanto te amo, Agora falando sério, Samba e amor e Ilmo. Sr. Ciro Monteiro ou receita para virar casaca de neném.
O disco foi feito parte na Itália e parte no Brasil. Inicialmente Chico gravou suas novas composições, acompanhando-se só com um violão, e mandou as fitas para o Brasil. Manuel Barenbein, da Phillips, depois de receber as primeiras gravações, combinou com Chico — através de telefonemas quase que diários — como seriam feitos os arranjos e as gravações definitivas. Já com tudo combinado foi gravada a "base" de cada canção, isto é: piano, contrabaixo e bateria. Levando todas as bases gravadas, Manuel viajou para a Itália e fez com que Chico gravasse sua voz sobre a parte do ritmo. (A Phillips explica que isso é possível porque este tipo de gravação sempre é feito em quatro canais de som diferentes: no primeiro, grava-se a voz; no segundo, só a parte do violão; no terceiro, a parte rítmica — a "base"; e, no quarto, a orquestra.)
Trazendo as fitas gravadas com a voz de Chico e a "base", Manuel voltou ao Brasil para providenciar as partes do violão e da orquestra. Os arranjos finais foram feitos por Erlon Chaves; Cesar Camargo Mariano e pelo Magro — um dos cantores do conjunto MPB-4.
Para o Folheto da montagem paulista de Roda Viva.
Chico, você está trocando o imenso público das televisões pela platéia reduzida de um teatro?
Chico - O ideal, é claro, seria que o público de TV freqüentasse teatro. Mas diante da opção, desta vez fiquei com o pequeno palco. Você sabe, à medida que se conquista um público maior, menor é a possibilidade que se tem de transmitir algo sinceramente seu. No momento prefiro dizer mais coisa a menos gente.
E com essa peça você pretende criticar o que se faz atualmente em música popular brasileira?
Chico - Não pretendo julgar música alguma e nem me coloco em posição para tanto. Sendo o personagem central um cantor, é natural que cante motivos e ritmos do momento. Procurei, portanto, parodiar modelos de iê-iê-iê, canção de protesto, "som universal", etc., usando chavões de cada um desses gêneros (que todos os tem). Brinco inclusive comigo mesmo, dentro do tom que o espetáculo pede.
E você não se define por nenhuma dessas correntes?
Chico - Aqui não entra em questão o valor musical de coisa alguma. O meu iê-iê-iê, por exemplo, tem uma letra boboca. Mas os compositores brasileiros desse gênero (que não são, como querem uns, monstros dispostos a destruir a nossa música autêntica) pretendem apenas compor canções alegres, inocentes e dançantes. Já os compositores que se dizem sérios, correm com essa seriedade o seu maior perigo. Vários valores indiscutíveis, pesquisam realmente a linguagem do povo para lhes devolver em forma de canção. E que se tristeza é assistir, meses depois, seu trabalho desbotado num programa de domingo à tarde na televisão, bailarinas cansadas balançando as pernas, pra lá e pra cá, em ritmo de protesto. É por isso que me incluo no rol dos debochados. Um mês depois de composto, meu samba já não é meu. É mercadoria exposta ao consumo, desgaste, ridículo e rejeite.
Você não acha que está colocando em jogo seu nome?
Chico - É um risco necessário. Estou certo de que meu nome como compositor atrairá um público que não há de encontrar o que espera. Mas eu acho que vale a pena romper às vezes com a própria imagem, principalmente quando essa imagem é criada pelo gosto fácil da televisão. Eu não quis fazer "show", nem mostrar um samba novo. Eu quis fazer teatro na linguagem própria do teatro.
Trata-se duma primeira experiência? Outras se seguirão?
Chico - Foi uma primeira experiência que poderá se repetir. O texto foi escrito com entusiasmo, ainda há muito a aprender. O trabalho com José Celso e Flávio Império já me valeu muitas lições. Dotados de notável espírito criador, deram a vida que faltava ao texto. E assisti com espanto a cada fase crescente da comédia pequenina, que resultou num espetáculo em que acredito plenamente.
Um paulista chamado Chico
Segundo um vereador, a Câmara "parou para ver, ouvir e dar passagem ao sr. Francisco Buarque de Hollanda", apesar de nunca ter estado à toa na vida. Chico ouviu histórias engraçadas de sua vida e contou como achou a fonte de seu samba. A folha de papel na sua mão tremia enquanto lia o discurso.
Chico Buarque de Hollanda é o mais novo cidadão paulistano: nasceu para cidadania ontem á tarde,já fazendo piada com a falta de charuto para comemorar - " O pai, onde estão os charutos? Não é normal que se ofereça charutos quando nasce um cidadão ?" diz êleao dr. Sérgio Buarque de Hollanda. O dr. Sérgio não era um pai como os outros no dia do nascimento de mais um cidadão: estava tranquilo e sorridente, Mas como os outros pais, fumou bastante.Também não contou vantagem do filho, mesmo porque não teve tempo: a beleza de filho que ele tem, os outros é que contaram. E da tribuna da camara municipal para todo mundo ouvir.
Gente para ouvir é que não faltava: em todo plenário, na sacada de fora, no salão de entrada,nas escadas, nos corresdores,nas calçadas e no meio da rua Líbero Badaró, em toda parte havia gente.mocinhas,meninas, senhoras jovens e não muito jovens; rapazes cabeludos e senhores de capa e guarda-chuva.
Na calçada uma banda - a da guarda civil - esperando o Chico chega para tocar a banda.Nas escadas,funcionárias da camara se acotovelavam .Um pouquinho depois das cinco horas da tarde, chegou Chico : de terno e camiseta azul,gravata mais escura um sorriso meio encabulado nos lábios , um cigarro na mão
--"Esta casa legislativa,conquanto nunca estivesse e nem nunca estará á toa na vida, também parou para ver,ouvir e dar passagem ao senhor Francisco Buarque de Hollanda".
Quem disse isso foi o vereador Leonardo Mônaco,autor da proposta que deu ao Chico o titulo. Muita gente riu dela,mas todo mundo concordou que trazia . ao menos, uma meia verdade a Camara parou para ver o Chico.E Leonardo Mônaco,no seu discurso de saudação.contou Algumas verdades inteiras sóbre a vida do novo cidadão paulistano , pouca gente conhecia.
O caso da sueca por exemplo : em 1955 a familia buarque de Hollanda voltava ao Brasil Depois de morar algum tempo na Italia . O Chico a essa altura, erav um perfeito " bambino Romano" faltava o italiano com perfeição . No dia 31 de dezembro,estavam no navio e entre as passageiras havia uma sueca muito "excêntrica". Ela chegou ao comandante e disse:" Tenho uma superstição.Em todo fim de ano tenho de ser beijada por doze homens,o senhor não poderia convocar sua tripulção?" E o garoto Chico , que passava por perto , entrou logo na conversa, dizendo num italiano perfeito: " Anche io suono uomo'". Á noite o Chico estava na lista da sueca.
Uma verdade dessas, Chico não contestou, mesmo porque foi ele quem contou ao Mônaco. Nem aquela outra do tempo em que estudava no colégio Santa Cruz e organizou uma escola de samba: só que fazia questão das pastorinhas e da porta - estndarte e no colégio só estudavam meninos.
Enquanto o vereador Mônaco ia contando as histórias engraçadas da vida do Chico , um velhinho sentado lá atrás comentou com o vizinho:
- " Puxa, será que essa são razões para se dar o titulo de cidadão a alguem?"
O outro nem respondeu , mesmo porque Leonárdo Mônaco passava a aspectos menos engraçado,mas mais construtivos da vida do moço: suas primeiras composições, sua paixão por Noel Rosa , a influência de Ismael Silva de Ataulfo Alves , e de João Gilberto,no mocinho que um dia faria a banda , Roda Viva , Carolina , quem te viu , quem te vê e tantas outras músicas de sucesso.
E depois de ouvir os discursos do Mônaco , do João Carlos Meirelles e do padre Orlando Garcia , chegou a vez de Chico falar : sério , com aquele seu jeito timido , gaguejando um pouco , o papel tremendo nas mão , ele olhou para o pai , sentado logo na primeira fila e falou.
Falou da sua infância , das lembranças que tem do tempo em que morava na Rua Haddock Lobo , bem pertinho da Rua: Augusta , "uma Augusta provinciana, onde não me lembro se passava banda,mas passava bonde". Falou das figurinhas de balas,dos óculos de dona Iráci,da Maria Lucia dentuça , da inauguração do trolebus, das barbas de Washington Luís, da subida da ladeira,dos colegas do Santa Cruz,do sotaque de carioca , do apelido de Carioca, da bicicleta invejada e da " não menos invejada namorada "
Depois êle contou que esse amor por São Paulo lhe foi ensinado pelo pai, "um paulista convicto" , que lhe mostrou as histórias de Antonio de Alcantara Machado , que lhe apresentou o índio Macunaíma , de Mario de Andrade e o Gaetaninho " que amazzou o bonde".
-"Quando entrei na faculdade de arquitetura,São Paulo novamente se transfigurou aos meus olhos . As Universidades , a Rua: Maria Antonio os sonhos politicos, as frustrações, a profissão. O tijolo, o pedreiro, o engenheiro , São Paulo vista de dentro . As longas noites paulistas e o violão entrando em cena. E foi que encontrei a fonte do meu samba urbano, cgeirando a chaminé e a asfalto. É portanto, sem receio que confesso que Pedro pedreiro espera o trem num suburbio paulista, Juca é cidadão relapso do Brás, Carolina é senhorita de janela para a bela Vista e a Banda passou , por incrivel que pareça , no viaduto do Chá , em clara direção ao coração de São Paulo"
E foi um Chico assim tão paulista que despertou ciumes no pai , nascido aqui , " mas cidadão comum , não honorário " Foi um chico assim , muito mais paulista na sua inibição do que carioca que teve de se esconder num cantinho do salão nobre para não ser amassado peloas garôtas.
Mas foi um Chico mais carioca e gozador que entrou na sala do presidente Manoel de Figueredo Ferraz para para mais um cafézinho e algumas fotografias " históricas' ao lado dos vereadores. Foi aí que êle cobrou do pai os charutos que não existiam.
- " Agora empatou não é Chico? Antes eu tinha três filhos paulistas e quatro cariocas. - Agora você é paulista e carioca e estabeleceu o empate " disse todo orgulhoso o professor Sergio Buarque de Hollanda, descendente dos Buarques de Vila Buarque, catedrático de História do Brasil da Universidade de São Paulo e " pai do Chico".
Entrevistadores: Ricardo Cravo Albim, Ary Vasconcelos e Ilmar de Carvalho, membros do conselho superior de música popular brasileira.
E - Chico, a primeira pergunta é uma pergunta clássica e cronológica; aqui o bate-papo é informal: a data de nascimento e o local.
Chico - 19 de junho de 44, aqui no Rio.
E - Os pais?
C - Sérgio Buarque de Hollanda e Maria Amélia Alvim Buarque de Hollanda.
E - Chico, os primeiros estudos foram feitos...
C - Em São Paulo.
E - Em São Paulo. Em que colégio, em que educandário?
C - Estudei no Externato Nossa Senhora de Lourdes, fiz jardim de infância, primeiro e segundo ano.
E - O jardim da Infância teria começado em que ano? Isso é muito importante.
C - Só fazendo as contas, deixa eu ver 66...
E - Você tinha que idade?
C - Tô tentando lembrar, uns cinco, seis anos. Só fazendo as contas, mesmo.
E - Você fez o primário no mesmo educandário?
C - Fiz quase todo o primário, porque quando estava no terceiro ano nós nos mudamos para Roma. Fui morar dois anos em Roma.
E - Você tá lembrado do ano?
C - 52.
E - Em Roma, houve a continuidade dos estudos?
C - Lá eu peguei ao que corresponde o terceiro e quarto ano.
E - Você tá lembrado do nome da escola, pelo menos?
C - Tô, estudei em duas escolas. A primeira era de freiras, era a Mary Mont School, escolas americanas que eu estudei lá, entende? Depois fui para o colégio de padres, o Notre Dame International School, que corresponde à ordem dos padres canadenses, onde fiz o ginásio e o científico em São Paulo.
E - Isso, então, em 52 e 53, em Roma. E o retorno para o Brasil?
C - Eu fiz admissão naquele mesmo externato...
E - O externato onde começou o...
C - É, o Nossa Senhora de Lourdes.
E - E depois você fez o ginásio nesse mesmo colégio?
C - Não, não tinha ginásio. Eu fui para o Colégio Santa Cruz, que é um colégio de padres canadenses.
E - Em São Paulo?
C - Sim.
E - E aí ficou até que ano? Fez todo o ciclo ginasial?
C - Fiz ginásio e científico, menos um semestre da quarta série que eu fiz em Cataguases, interno.
E - No colégio de Cataguases?
C - É.
E - Depois você retornou para São Paulo?
C - Voltei, voltei para o Santa Cruz e fiquei até o fim do científico.
E - Depois a continuidade.... na Universidade optou por qual curso?
C - Terminando o terceiro científico eu passei para a faculdade de arquitetura. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Lá eu fiz primeiro, segundo ano e terceiro mais ou menos. (risos). Aí eu parei.
E - Nós estamos sabendo que você teria trancado a matrícula?
C - É, inclusive eu não tranquei ainda, eu vou trancar.
E - Chico, as primeiras influências musicais de que você se lembra, não em termos de composições mas de audição. Você tá lembrado do ano? Pode situar de quem você teria recebido, quem mais marcou você?
C - Mesmo antes...
E - Mesmo erudita, popular, semi-clássica. A primeira fonte musical que tivesse sensibilizado você.
C - Antes mesmo de ir para Roma, lembro que ainda morava em São Paulo, na Hadock Lobo. Antes dos oito anos eu já lembro de ter ouvido muita coisa assim. Fora as cantigas de roda, aqulelas coisas de São João, eu lembro bem de ter ouvido, naquele tempo, coisas de Noel Rosa, coisas de Atalfo Alves, lembro vagamente.
E - Esses ficaram na sua repentiva audição, digamos assim, mais Atalfo e Noel, que você lembra?
C - Principalmente Noel, acho que é porque os meus pais gostam muito de Noel. "São Paulo dá café, Minas dá leite" lembro que cantava esse negócio aí, não entendia bem o que era, mas eu lembro disso.
E - Daí para uma formulação musical, um aprendizado, um contato. Você pode nos dizer quando teria começado? Isso deu vontade de compor?
C - Dava sim, eu fazia musiquinha de carnaval, inventava marchinha, assim de brincadeira.
E - Isso com quantos anos, Chico?
C - Antes de oito anos, já tinha esse negócio.
E - Você já compunha marchinhas de carnaval, de São João, essas coisas?
C - É, e fazia versinho, coisinhas assim. E minha irmã já tocava um pouco de violão e isso talvez trouxesse mais música pra mim.
E - Você estaria lembrado qual a data em que você fez a primeira composição completa e o ritmo? Ou lembra dela?
C - Não lembro porque ....isso tudo... Não dá, não lembro.
E - E daí para a composição que você acha séria, a primeira, onde você tivesse procurado fora do ambiente dos amigos e da casa, já procurando um contato mais com o meio musical, você tem lembrança de quando aconteceu isso?
C - Eu comecei a me interessar mais pelo instrumento e tal, foi quando surgiu João Gilberto e o movimento Bossa Nova.
E - Ao redor de 58, né?
C - É, por aí. Eu lembro até que quando surgiu, eu tinha um amigo e nós fazíamos músicas de parceria, mas era sem violão. Era batucando assim. (batuca) E as músicas eram meio Ataulfo Alves, coisa assim..
E - Quem era esse seu amigo?
C - Esse amigo chamava-se Olivier. Hoje em dia ele toca bateria. O pai dele era um pianista, Gibson Henry Jones
E - Ele é paulista?
C - É.
E - Conviveu com seu meio em São Paulo?
C - Sim.
E - E nessa época, vou situar em 58, você já tinha amigos que eram profissionais na música? Já tinham um campo musical mais evidente em São Paulo, no Brasil?
C - Vinicius freqüentou a minha casa em Roma. Ele ia sempre, ele tava lá na embaixada. Não sei qual era o posto dele lá. E ele ia sempre em casa. Foi o primeiro contato assim, inclusive com as músicas que ele fazia, músicas e letras. Aquelas músicas, primeiras dele. Aí nesse tempo, mais tarde, eu tive contato com o pessoal que era da turma da minha irmã, que era mais ligada aos profissionais.
E - Nome da sua irmã?
C - Minha irmã é Heloisa Maria.
E - Ela compõe ou apenas toca violão?
C - Ela compunha um pouquinho e tocava violão. Agora ela não faz mais nada. Ela casou com João Gilberto e acho que se inibiu e não faz mais nada. Mas ela compunha também. Tem uma música gravada só dela.
E - Acho importante que você nos dissesse, Chico, se em Roma ao escutar Vinicius você teria se sensibilizado com o compositor, com o musicista, com o letrista. Mesmo com aquela idade que você estava.
C - Sim. Depois porque a minha irmã continuou tocando sempre as músicas do Vinicius e aquilo ficou muito na minha cabeça.
E - Vamos encontrar esse contato com Vinicius novamente já no advento da Bossa Nova, depois de 58?
C - É, depois que eu já tava tocando violão, uma vez eu fui na Clínica São Vicente, com o meu tio que apresentou o Vinicius de novo.
E - Você sabe a data? Pelo menos o ano?
C - Deve ser 61, por aí. Foi quando ele tinha feito aquela música Para que chorar, com o Baden. 61, 62...
E - Você acha que o Vinicius teria tido alguma impressão de você, preconizando o que você representaria hoje? Ou você o procurava para um estímulo?
C - Eu não procurei não, porque eu sou tímido pra esse negócio. Meu tio até que forçou um pouquinho para o Vinicius ouvir, ele não tava com vontade de ouvir não, claro. (risos). Eu toquei uma música, duas, na segunda ele disse que minha música era boa e que ele gostava, então me deu estímulo e tal. Aí chegou o Baden, de São Paulo, ele mostrou a letra da música, aí eles começaram a cantar Para que chorar, esqueceram da minha música.
E - Você lembra do que falava a música, que ritmo tinha?
C - Bossa Nova, a letra e música que eu tinha feito.
E - Você habitualmente faz letra e música?
C - Ah, sim.
E - Não tem parceiro até agora?
C - Eu fiz músicas pro João Cabral, não tenho parceiro porque... E tenho uma música em parceria com o Toquinho, o violonista, que eu fiz a letra.
E - A música já entrou em divulgação?
C - Não, a Elizete Cardoso que vai gravar agora.
E - Essa música foi feita recentemente? Onde foi feita? Em São Paulo? Em que data?
C - Em São Paulo, no começo desse ano. Estava inscrita no festival Record, mas ela foi cortada.
E - Chico, voltando ao seu começo musical. Você disse que já tocava na época em que conheceu Vinicius, por quem você tinha - naturalmente - admiração pela obra. Você já tocava violão? Como foi que você começou a tocar violão? Qual foi o processo?
C - Aquele mesmo amigo meu, nós fazíamos no boteco aqueles sambinhas meio Ataulfo Alves.
E - Onde?
C - Em São Paulo. Aí quando surgiu João Gilberto, a gente começou a se entusiasmar. Foi ouvindo o disco dele que a gente tirava a batida do violão, da Bossa Nova. Claro que eu aprendi tudo errado, tentando imitar aquele som. Só no ouvido nós tirávamos, eu aprendia um negócio, ele aprendia outro. A gente ia transmitindo um pro outro. E foi assim. Inclusive, eu nunca aprendi direito violão, fui melhorando a técnica, mas ainda tenho defeitos que vêm disso. Não foi nem de olho, foi de ouvir mesmo.
E - E a primeira, primeiríssima música que você compôs? Você poderia recordá-la aqui para o museu?
C - Nem sei se vale a pena.
E - Vale a pena como um documento. Isso é um depoimento pessoal, mas é acima de tudo um documentário. Chico, você fica à vontade, para nós é importante isso. Porque esse documentário é uma coisa que vai ficar aqui e você vai ver o registro histórico daqui 30, 40 ou 50 anos. Você tem que projetar no espaço para esse tipo de importância.
C - (canta Canção dos olhos) Uma coisa assim... (risos). Eu tocava com esse dedão aqui e não dava baixo nenhum... só tocava assim.
E - Seria interessante se você lembrasse a música toda.
C - (canta Canção dos olhos) Tinha uns 15 anos.
E - Com 15 anos você compôs essa música?
C - É.
E - Influência da primeira fase da Bossa Nova.
C - Claro, (risos) eu cantava mais João Gilberto que eu pudesse cantar.
E - E essa influência você sentia por extensão a que outros elementos da Bossa Nova?
C - As músicas do Jobim, tudo aquilo. Aquele primeiro long play (LP) do João Gilberto, desde Lobo bobo até Outra vez.
E - Menescal?
C - Não, não tinha Menescal nesse tempo. Quando saiu, O Barquinho, as primeiras músicas do Menescal, ainda era entusiasmado pela Bossa Nova, cegamente entusiasmado, e peguei uma mania de fazer essas coisas assim. Só mais tarde é que eu retomei um pouco o samba da minha infância.
E - Você poderia dizer cronologicamente, dizer do seu desenvolvimento a partir dessa melodia de 15 anos. Quais foram os fatos importantes que aconteceram logo depois disso? Nós localizamos em 15 anos você fazendo a primeira música, que foi essa que ouvimos.
C - Essa eu tocava nas rodinhas e fazia muito sucesso, porque eu sabia fazer a batida de Bossa Nova e naquele tempo era novidade. Então tocava nas rodinhas e fui fazendo outros sambinhas. E até que comecei a cantar em showzinho de colégio. Ainda era no Santa Cruz, eu tinha uns 16, 17 anos.
E - Mais as suas músicas?
C - Sim, as minhas músicas.
E - Uma informação importante, você sabe o título desse sambinha que você fez?
C - Chama-se Canção dos olhos.
E - Depois desse você lembra de outros sambas compostos nesta época?
C - Lembro. Tudo isso que vocês estão perguntando é pra tocar?
E - Seria interessante se você pudesse lembrar. Seria interessante se você pudesse tocar mais uma música característica dessa sua época, dessa sua fase e que talvez já tivesse uma modificação formal.
C - Essa música eu tocava no colégio.
E - O título, por favor.
C - Anjinho de papel. (canta)
E - De que ano é esse samba.
C - Deve ser do ano seguinte, devia ter uns 16 anos, 1960. Foi nesse tempo que eu sempre mostrei as músicas do Vinicius, era essa e a outra que ele gostava... não lembro mais como é.
E - Pelo menos um pedaço.
C - "Perdi o trem do nosso amor, fiquei sozinho na estação..." Alguma coisa assim, não lembro como era, alguma coisa de trem.
E - Como é o nome desse samba?
C - Não tinha nome, esse, não lembro se tinha nome, não.
E - Nós estamos em 60, você fazendo música desse gênero. Quando você sentiu que havia uma mudança qualquer nas suas composições?
C - Continuei um pouco com isso, esticou ainda bastante.
E - Até que ano mais ou menos?
C - Até que eu fiz uma marchinha que até foi gravada. Aí que eu comecei a tocar por... Mas foi depois disso que eu acho que teve uma mudança mais séria.
E - Mas nessa marchinha você pressentiu uma mudança?
C - Não, a mudança só foi de popularidade, passei a tocar em boate, toquei em televisão. A mudança foi assim, não do ponto de vista de composição, foi do ponto de vista de atuação.
E - Você falou dessa marchinha, então foi a primeira gravada das suas músicas?
C - É, mas ela foi gravada quando eu já não acreditava nela. Porque quando eu acreditava nela, ninguém acreditava em mim, porque eu era muito moleque. Aí quando eu parei de acreditar nela, eu já estava mais crescido, então eles resolveram gravar. Mas aí a música não tinha mais sentido nenhum.
E - E a sua mudança, Chico? Vamos entrar no capítulo da mudança, como foi?
C - Não sei bem, um dia mudei... Acho que a partir de ... mas aí é história de quase hoje, de dois anos para cá. Começou com Sonho de carnaval.
E - Começou precisamente com Sonho de carnaval?
C - É, embora tenha ainda umas duas ou três músicas anteriores a isso que eu ainda considero.
E - Dentro de todas as suas composições, qual foi a primeira gravada, imortalizada?
C - Foi essa marchinha.
E - Você poderia exemplificá-la, rapidamente?
E - Letra e música sua? Qual o título?
C - É, Marcha para um sia de sol. (canta) Naquele tempo era novidade falar de pobre e de rico, para mim era bom ... Depois ninguém queria gravar. E quando veio a revolução foi pior, porque acharam que eu era comunista, então não gravaram de vez mesmo. Só depois, a há dois anos atrás que a Maricenne Costa gravou esse disco, mas aí eu já não gostava da música.
E - Foi gravado em São Paulo? Você sabe a gravadora?
C - Foi na Philips São Paulo. Maricenne Costa gravou, depois Geraldo Queen gravou também.
E - E depois? Qual foi a outra música imediatamente gravada? Essa eu acredito, pelo que você disse, já dentro dessa nova compositorial sua.
C - Manhã de carnaval
E - Pela letra parece que é uma nova formulação; seria a música de protesto, onde você fixa o desejo de que haja uma igualdade.
C - Não, isso é fase velha. Essa marchinha...
E - Mas é posterior a Bossa Nova.
C - Acompanhando.
E - Você acha que não havia uma desvinculação?
C - É musiquinha bem Bossa Nova só que eu já dizia essas coisas. Isso talvez por influência daquelas coisas que Roberto Freire fazia já, o Catanzano... Então eu fiz isso aí. Mas era bem Bossa Novinha, naquele sentido das coisas que eu já vinha fazendo...não tinha um passo pra diante...
E - Você não acha nem que na letra tivesse um passo...
C - Não.
E - Mas a essa altura em que você gravou a sua primeira composição, que foi essa marchinha que nós ouvimos, você já estava fazendo a música dentro dessa sua nova fase, né?
C - Na hora que a Maricenne gravou?
E - Sim.
C - Eu já tava num outro negócio.
E - Você já tinha composto Sonho de carnaval?
C - Não, quando saiu... isso foi há dois anos, ainda não tinha composto Sonho de carnaval. Eu já tava caminhando para compor. Sonho de Carnaval foi no começo do ano passado, até mandei para o festival.
E - Foi a primeira música dentro dessa nova fase?
C - Sim.
E - E logo depois? Como foi Sonho de Carnaval?
C - Sonho de carnaval ainda foi intermediário. Em seguida veio Pedro pedreiro que eu acho que já é a fase mesmo. Parece que eu senti que era uma coisa mais minha.
E - Portanto, Sonho de carnaval foi um prenúncio dessa coisa sua de hoje.
C - É porque eu não senti muito como minha, entende? É aquele negócio de a gente gostar de tudo e querer fazer parecido com tudo. Sonho de carnaval ainda estava parecido com alguma coisa, eu tinha essa impressão. E Pedro pedreiro era diferente de tudo, eu já comecei a gostar mesmo do que eu fazia como eu gostava antes das coisas que os outros faziam.
E -Então veio Pedro pedreiro, não?
C - É.
E - Será que você poderia, já que representa o Pedro pedreiro, ao que se vê e pelo que você diz, uma composição muito importante na sua vida de compositor, você poderia cantar para ficar registrado?
C - Inteiro? (canta Pedro pedreiro)
E - Então tivemos Pedro Pedreiro, primeira composição da fase em que você se encontra agora. Voltando ainda a Sonho de um carnaval, a música entrou no festival da Record, gravada pelo Geraldo Vandré, você dizia há pouco.
C - É. Defendida pelo Geraldo Vandré e gravada também. Teve trinta gravações, uma coisa assim.
E - Depois de Pedro pedreiro, aí vem uma pergunta, é próprio naturalmente da criação, mas como você pode sentir uma temática tão "povo", tendo nascido em "bom berço", menino, não sei se rico, mas menino, em suma, de bom nível social, vivendo entre intelectuais...
C - Eu não vivia entre intelectuais, eu não vivia fechado. Minha infância foi toda mais aberta, com cinco anos era moleque de rua, jogava pelada. Atrás de casa tinha um circo, ia pro circo, era um moleque, como outro qualquer, não vivia fechado em nada. Meus pais nunca me fecharam em casa. Desde moleque eu tinha uma vida que era povo, afinal.
E - Você sempre teve?
C - Sempre tive.
E - Não sei se você saberia explicar, mas como nasceu Pedro pedreiro? Por quê? O que ocasionou você fazer o Pedro pedreiro? Você se sensibilizou com alguma imagem ou alguma coisa que inspirasse, eventualmente, a letra do Pedro pedreiro?
C - Não, eu não tenho idéia da origem da inspiração. Nunca tenho. Antes eu tinha, queria fazer a música parecida com alguma coisa que eu ouvi. Aí, não, é uma coisa que eu não sei qual é minha idéia anterior. É isso que eu estva dizendo aqui...O próximo samba que eu vou fazer eu não tenho idéia como vai ser. Não tenho a menor idéia e pode ser que já esteja quase feito. Agora, se eu tiver a idéia e não tiver o samba, acho que a idéia vai corrompendo o samba e quando ele sair já vai estar fabricado, corrompido. A coisa vem de um jato só. Não sei qual foi o pedreiro que me inspirou isso, mas deve ter havido uma coisa assim no subconsciente.
E - E depois de Pedro pedreiro, o quê que vem?
C - Vem tudo isso que está aí. Pela ordem eu não sei, exatamente. Veio Madalena foi pro mar, veio Olê, olá
E - E Olê, olá, fica precisamente dentro dessas características? Nada, nem uma modinha que você lembrasse uma imagem de infância o inspirou em Olê, olá.
C - Deve ter inspirado sem eu saber, inconsciente, não sei racionalizar assim o processo.
E - E como você julga Olê, olá no contexto das suas músicas, já que é tão louvada por todos e é realmente uma beleza?
C - Acho que é a filha do Pedro pedreiro mais crescida, por outro lado. Não sei explicar bem. Porque é uma música que eu fiz pouco depois de Pedro pedreiro, mas que eu não cantava porque não tinha certeza. Essas músicas que a gente não tem certeza que eu acho que são as melhores, porque tem alguma coisa nova. Acho que ela trazia uma coisa além do Pedro pedreiro. Porque eu não quero fazer a música parecida com a que eu fiz, só porque foi boa, tô querendo fazer uma coisa diferente. Ao mesmo tempo eu tenho medo dessa coisa diferente. Eu lembro que fiquei uns três, quatro meses sem mostrar para ninguém. Um dia na casa do Roberto Freire toquei e gostaram, depois que comecei a ter certeza.
E - Será que você poderia exemplificar o Olê, olá? Já que é considerado por uma boa parte da crítica uma das suas obras primas.
E - Ela foi primeiro instrumental só, e você pôs a letra depois?
C - Não. Letra e música saem ao mesmo tempo. Eu tenho muita música sem letra, porque eu acabo a música e não saiu nenhuma idéia junto, então a música fica encostada. Todas aquelas músicas do Morte e vida severina eu quis aproveitar e colocar uma letra e usar, mas nunca consegui. (canta Olê, olá)
E - E depois de Olê, olá? Ou simultaneamente, talvez...
C - Simultaneamente tinha outras coisas como Madalena foi pro mar, Juca, outras coisas fora dessa seqüência.
E - Parece que uma música muito importante na sua obra, que infelizmente não foi documentada por motivos extra musicais é o Tamandaré. Seria importantíssimo, eu acho, que ficasse documentada aqui no museu.
E - Como nasceu Tamandaré? É exatamente dessa, época logo depois de Pedro pedreiro ou é mais recente?
C - É do ano passado ainda. Deve ser de setembro, outubro do ano passado, há um ano atrás, mais ou menos.
E - Você poderia cantá-lo?
C - (canta Tamandaré)
E - Ainda no ano passado, nessa fase de Rita, do Juca, logo depois do Olê, olá, há algumas outras músicas que lhe sensibilizaram particularmente e que você acredite que sejam importantes ficarem perpetuadas, aqui no museu?
C - A confusão que eu estou fazendo é a seguinte: eu acho que tem mais ou menos uma linha que eu me propus a seguir, que é essa linha do samba que tem uma certa seqüência, tem um enredo. Então saem essas coisas mais compridas, Pedro pedreiro, Olê, olá, Tamandaré. Ao mesmo tempo tinha coisas como Madalena, Juca, Rita, que eu acho que é outra coisa que eu desenvolvo paralelamente, mas que não tem muito que ver com essa seqüência, entende? Um dia me telefonaram, um cara reclamando porque gostava muito de Olê, olá, e ele pensava que eu fosse tocar Olê, olá na televisão e toquei o Juca, aquela história de delegado, e ele achando que era uma coisa pequena. De fato é um samba que não tem uma linha que eu conte uma história. É uma coisa menor, um samba mas ligeiro mais que eu acho importante do mesmo jeito.
E - Valeria a pena documentar o Juca aqui no museu, não lhe parece?
C - Ou Juca ou Rita, esses sambinhas que eu faço ainda hoje e que não tem nada que ver com essa seqüência aí, mas acho que são importantes do mesmo jeito. (canta Juca)
E - Talvez um capítulo que nós possamos em seguida abordar seja o Morte e Vida Severina. Eu me lembro que quando nós coversamos há coisa de uns quatro meses atrás antes de você estrear no Arpége, que é um grande sucesso aqui no Rio no momento e vale o registro, até mesmo para a posteridade...
C - Como propaganda não vale...
E - Não, positivamente não vale. No começo do ano passado, ainda quase desconhecido do grande público, você convivia com quem? Quem eram seus amigos? Quais as rodas que freqüentava, era roda intelectual, ou boêmia de São Paulo, ou musical? O que era que você frequentava?
C - Nunca freqüentei roda intelectual, a boemia que eu fazia era da minha roda de estudante e meus amigos mais chegados não são intelectuais nem compositores, são estudantes. A boemia que a gente fazia era só entre nós mesmos.
E - O Paulo Cotrim me falou que quando ele tinha o João Sebastião Bar, em São Paulo, você vai confirmar ou não, vale o registro aqui, é que você teria ido lá mostrar as músicas naturalmente com o intuito de divulgação. Era a fase mais importante do João Sebastião Bar, onde foram praticamente lançados o Geraldo, a Claudete...e digamos assim, os bons músicos e compositores paulistas.
C - Eu não fui procurar não, pela mesma razão porque eu não fui procurar o Vinicius. Nunca fui muito de procurar. Sempre fui meio acanhado para isso. De fato aquela marchinha que eu toquei Marcha para um dia de sol, que eu tocava em show de estudante que o Paulo, era amigo da minha irmã, me levou para cantar lá. A Claudete Soares era a grande estrela do João naquele tempo, e era ela que ia gravar, me prometia gravar sempre e eu ficava entusiasmado.
E - E não gravava?
C - Não, não gravava. Na última hora, saía o disco, eu procurava e não tinha a música, e eu morria de triste.
E - Como começou a sua participação musicando os versos do João Cabral de Melo Neto pro Morte e vida severina? Como é que foi? Como é que aconteceu isso já que realmente é muito importante na sua carreira. E, se você depois fez algumas outras coisas, trilhas pra filme etc.
C - Isso foi no mesmo tempo do Pedro pedreiro, no começo do ano passado. O Roberto Freire, que já me acompanhava desde o começo, ele achou que eu faria essa música e me chamou. Nós nos reunimos, era ele, eu, o cenógrafo, José Armando Ferrara, e o diretor da peça, Sylney Siqueira. Ficávamos lá, oras a fio, discutindo o texto, foi um trabalho de equipe. O trabalho de um interferia no de outro, eu dava palpite no cenário e eles davam palpite na música. Foram dois meses só de anotação e então a pasta ficou com o texto todo anotado com "música forte", "ritmo não sei o quê". Depois a composição foi mais simples, foi sozinho. Mas nesse trabalho de concepção, que é o mais difícil, eu fui muito ajudado por eles.
E - Algum trecho em Morte e vida severina lhe comoveu mais, que você gostaria de exemplificar? Você gostou desse trabalho?
C - Gostei demais. Mas as músicas de lá eu não sei cantar, porque em geral não são cantadas, são para coro ou então aquelas que tem fala no meio.
E - Depois dessa experiência, você fez algumas outras? Para trilha sonora, para filme ou teatro?
C - Fiz. Esse trabalho de concepção da música foi muito útil, porque depois me chamaram para fazer a música da peça Os inimigos, de Górki, no Oficina. Tinham gostado muito do meu trabalho. Mas era uma coisa completamente diferente. Eu parti pro começo do outro trabalho, estudando o texto, porque a parte de fazer a música é a mais simples. Conceber que tipo de música, quando entra, porque entra e como, isso que é o mais difícil. Aí fiz para isso, para uma peça infantil, fiz para um filme.
E - Qual foi essa peça infantil?
C - O Patinho preto. Depois eu fiz para um filme do Dionísio de Azevedo, O anjo assassino, é só orquestral. As coisas, infelizmente, estão um pouco encostadas no ritmo que eu ando. Tem a peça Pedro pedreiro, da Renata Palottini, eu fiz quase tudo, estão faltando duas ou três músicas, mas agora está meio difícil de fazer alguma coisa.
E - O Chico disse que a música vem como um jato, não é um processo quase de elaboração. E agora nessa sua outra experiência de trilha sonora em Morte e vida severina, você não só discutiu em equipe, mais foi acompanhando inclusive o texto. Me parece que foi uma música mais elaborada, embora sem perder a sua qualidade.
C - Claro, mas é um trabalho totalmente diferente. É um trabalho muito menos intuitivo, muito mais racional. É bom, é disciplina.
E - Quando você sentiu que começou a explosão Chico Buarque de Hollanda? Foi com A banda, mesmo? Começou com um sucesso bem razoável de vendagem Pedro pedreiro, etc.
C - Foram passos. O primeiro passo foi Sonho de carnaval, porque até para alguém dar confiança para a gente é difícil. O Baden Powel ficou entusiasmado com a música, no festival ele ganhou segundo lugar com uma música que ele não gosta. Ele torcia para Sonho de carnaval. Como o Baden falava, todo mundo começou a dar bola e gravar. Primeira vez que eu comecei a me entrosar no meio, no meio de artista eu já tinha uma credencial.
E - Você tinha uma auto-confiança a partir daí?
C - Auto-confiança não.
E - Um desejo de se comunicar?
C - Isso eu sempre tive. Um reconhecimento, não popular ainda, mas no meio. Porque tem que ter sempre alguém que dá uma mãozinha, e gostar das coisas da gente, para os outros gostarem também...
E - Depois dos sambas ligeiros, que você exemplificou um deles, Juca, o que vem cronologicamente?
C - Até o final do ano é nessa linha, uma série de samba ligeiro. Eu não produzo muito, eu faço pouca música. Em geral eu faço bastante num curto tempo e paro um longo tempo. No fim do ano passado que eu fiz Rita, foi a última música, aí eu parei um tempão. Fiquei sem fazer nada, foi o tempo da viagem à Europa.
E - Essa viagem à Europa você fez quando?
C - Abril até junho, com o Tuca. E esse tempo todo não fiz mais nada. A gente dá aquela parada porque parece que já disse tudo que tinha para dizer. O que é uma besteira e o troço mais perigoso que tem. Então dá aquela estagnada, não faz mais nada.
E - Como é que nasceu A banda? Porque é realmente uma explosão na M P B, pela repercussão, pelo próprio mito de que ela se constituiu. Como é que nasceu? Como é que você a compôs? Houve alguma inspiração, alguma imagem de infância, alguma coisa?
C - Tem duas coisas. Primeiro esse problema que um jornalista escreveu que eu... E eu não poderia ter escrito A banda porque eu nasci em cidade grande e nunca vi banda. Talvez eu não tivesse visto mesmo. Eu vi, mas não me lembro de nenhuma especialmente que tenha me levado a fazer A banda, mas eu vi. Eu morava na Hadock Lobo, em São Paulo, o terreno de costas era baldio que é na rua Augusta. Hoje a rua Augusta é aquele negócio, mas naquele tempo tinha circo, parque de diversão, eu lembro que tinha bandinha lá. Quando eu estudei em Cataguases havia bandas. Quando estive na Europa eu vi a banda de escoceses, a troca de guarda, que inclusive marcou bastante. Vi que a banda é um negócio alegre para todo mundo, mas não foi um pensamento: vou fazer música com banda. Quando eu voltei da Europa veio aquela onda de fazer coisas, aí que eu fiz uma série de músicas e A banda saiu aí no meio. Eu lembro que fiz até na hora do almoço, não tinha nada a ver com banda, estava com fome, esperando o almoço. Eu tive a idéia da imagem da banda passando e vi várias coisas acontecendo. Não saiu a letra antes da música, foi a idéia da letra que saiu antes de qualquer coisa. A idéia da banda passando e das coisas que acontecem. Logo eu tive várias imagens: a moça que vai para janela, o cara contando o dinheiro. Aí peguei o violão e saiu.
E - Sabe a data precisamente?
C - Não sei, mas foi em julho desse ano.
E - Você elaborou a estrutura básica da melodia da música antes do almoço ou almoçou e de barriga cheia fez essa obra prima?
C - (risos) Eu não sei. Quando vem a coisa assim já fico entusiasmado. A coisa melhor do mundo é isso. Faz um tempão que não faço nada, ontem tive a impressão que ia fazer um samba, aí fui buscar o violão, quando achei já não tinha mais vontade. Na hora tem aquela idéia fixa, aí não tem fome, não tem nada.
E- Você não almoçou no dia em que compôs A banda?
C - Almocei sim. Devo ter almoçado mais tarde, com o lápis e papel na mão. Eu fiz quase inteira de estalo, o único problema que ficou foi de mandar a banda embora. Aquele final todo foi posterior. Não queria deixar a banda tocando para sempre na rua, porque eu gosto de deixar as coisas mais reais.
E - Qual foi o primeiro privilegiado a quem você mostrou a música? No auge do entusiasmo você compôs a música num dia e no dia seguinte mostrou ou guardou?
C - Guardei um pouquinho, a gente sempre tem medo de mostrar antes. Ao mesmo tempo tinha feito outras músicas, como Morena dos olhos d'água. Eu lembro que fui mostrar num bar, lá em São Paulo, que cantávamos com os Baianos, Gilberto Gil, Torquato. E eu lembro que eu fui mostrar mesmo era Morena dos olhos d'água que eu tinha em papel. A banda eu tinha mas estava incompleta ainda. E eu mostrei Morena dos Olhos dágua. E eles gostaram. Ainda não era a hora de eu mostrar, mas com o entusiasmo, mostrei A banda incompleta. Eles entusiasmaram-se muito mais com A banda, tanto que não ia mandar para o festival, ia mandar esse outro samba.
E - Portanto o grupo Baiano foi o primeiro a ouvir A banda? Gostaram e você resolveu mandá-la para o festival?
C - Não, aí eu acabei. Quando eu acabei chegou o Caetano Veloso, no outro dia, e pediu para eu mostrar A banda. Ele se entusiamou. Aí eu fiquei em dúvida, no fim eu mandei A banda pro Festival.
E - Você imaginou que ela pudesse fazer esse sucesso extraordinário?
C - Não, de jeito nenhum. Mostrei para a Nara, logo em seguida, já pronta. Eu nunca tenho idéia se vai fazer sucesso ou não, mas pela reação que o pessoal tinha eu comecei a pensar "essa música deve pegar". Mas desse jeito eu não imaginava, não. Olê, olá, que tive dificuldade de mostrar a primeira vez, eu achei que música nunca fosse fazer sucesso nenhum. Quando a Nara gravou disse: "Pô, nunca pensei....eu gravei porque acho bonita... não tive a menor intenção..." Principalmente em São Paulo teve um sucesso razoável, depois da A banda é difícil falaA bandar. Mas fez mais sucesso do que tinha feito Pedro pedreiro.
E - Hoje é verdadeiramente uma música-mito, na história da musicologia brasileira. E, por isso você me perdoe, talvez eu pudesse, pedir pelo Museu, pra que você executasse. Você, talvez, nem deva mais suportar a música, tantas vezes você a cantou. Mas em termos de documentação, talvez fosse interessante nós a termos na íntegra.
C - (canta A banda)
E - Chico, particurlamente você tem uma preferência por alguma dessas músicas que você citou e que compôs?
C - Não, gosto da última e da próxima.
E - A última qual é?
C - A última é modo de dizer, porque todas essas saíram na última fase. A última mesmo foi aquele samba Você não ouviu.
E - Foi a última que você compôs?
C - É, mas foi tudo no mesmo tempo, no mês de julho. Uns 6 ou 7 sambas, A banda, Noite dos mascarados, Você não ouviu, Ela e sua janela, Morena dos olhos d'água.
E - Chico, eu acredito que em termos de documento, já que você cita Você não ouviu como sua última composição, você poderia exemplificá-la ao lado da Mascarada. Porque Mascarada talvez marque a música brasileira no próximo carnaval, pela beleza. É possível que se constitua num grande êxito do carnaval.
C - Mas não vai ser lançado ainda. É uma música difícil de ser cantada, eu acho ela mais bonita musicalmente que A banda, mas é complicada, muito comprida para ser cantada em carnaval. Não pode ser lançada agora porque vai ser para o filme Garota de Ipanema. Estou segurando pra lançar no filme e tem problemas de gravação porque eu sou de uma gravadora e a Odette, que canta comigo no show, é de outra gravadora. E dá essas confusões todas. Essa marcha vai esperar um pouco.
E - Uma pergunta que valia mais por curiosidade, mas que tem um valor humano. Nesse momento de explosão, o povo todo cantando, trazendo uma mensagem de muita alegria. Implicitamente envolve você numa máquina do sucesso, a máquina do êxito. Como se sente diante disso? Você que é um homem tranqüilo, tímido.
C - Me sinto mal pra burro.
E - E os compromissos que daí advêm? Porque você não é só o compositor. É o intérprete dos shows. É o intérprete das composições, é o homem que vai pra televisão, pra todos os elementos de comunicação.
C - Isso atrapalha um bocado. Pedi para acabar com o show no dia 15, para descansar um pouco. Mas não vou descansar não, porque do dia 17 ao dia 02 eu tenho shows todos os dias. E é por aí afora: Recife, Porto Alegre. Tô vendo que até o fim do ano eu vou ter que entrar na máquina, não vai ter jeito de sair. Pra chegar em janeiro, desligar de tudo e começar outra coisa.
E - Era esse o seu desejo ou você desejaria só compor?
C - O que eu gosto mesmo é de compor, mas chega uma hora que você já está envolvido com uma série de compromissos. Você não pode fugir. Então tem que compensar isso e aproveitar a maré, inclusive, financeiramente. Pra mim é importante. Agora eu aproveito essa época que é boa pra mim pra garantir um dinheirinho e ficar mais sossegado.
E - Então você se sente satisfeito em várias partes, ao espectador, às classes que gostam de ver você interpretando suas músicas...
C - Não sinto muito prazer em cantar, para falar a verdade não gosto muito. E não gosto das coisas que já estão feitas. Pra isso eu sei que eu preciso voltar a ter o tempo que eu tinha, que eu sempre tive. Um tempo mesmo de não fazer nada que é muito importante para a gente fazer alguma coisa. É na hora que a gente não está fazendo nada, que a gente tá à toa na vida é que acontece o negócio. Do jeito que tá assim, envolvido, tem um cara ali te chamando, pra não sei o quê, aí a idéia já foi embora.
E - Você tem receio que isso aconteça, e tarde, por exemplo, a explosão de mais uma música, devido ao cerceamento da máquina na sua vida?
C - Receio sempre tenho. E independe do sucesso. Fiquei seis meses sem fazer nada e não é por compromissos. Fiquei sem fazer nada e não fiz samba também. Isso acontece. Pode ser que um dia seque e eu não faça mais nada. Esse receio eu sempre tenho.
E - Portanto, você está parado como compositor desde julho.
C - Desde fim de julho.
E - De julho até novembro você não compôs.
C - Não é julho não. Você não ouviu eu fiz em agosto, porque eu já estava aqui no Rio.
E - Você poderia nos mostrar a sua última, últimíssima composição, que é essa?
C - (canta Você não ouviu)
E - Com relação aos nossos sambistas e compositores, você tem preferência, além do Noel, da geração dos velhos sambistas e da nova geração, ou da geração anterior à sua. Você poderia citar algum nome de sua preferência?
C - Uma porção. Ismel Silva, Ataulfo, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Vinicius...
E - E Noel? É todo um capítulo à parte?
C - Eu não vejo uma ligação com o Noel como fazem. Até me constrange um pouco. Eu gosto muito do Noel, mas não é um négocio absoluto. " O segundo Noel"... essas coisas... eu não me identifico com ele a esse ponto. Com a Bossa Nova, depois que apareceu o Vinicius (na parte de letra, na parte de música acho que não tem que ver) apareceu uma porção de outros letristas seguindo a linha ou procurando seguir a linha do Vinicius. Depois veio a fase rural, e meu samba é urbano, porque eu nunca morei em fazenda e não gosto da vida do campo. Meu samba é urbano e é objetivo. Isso é mais ou menos o que o Noel fazia, mas não é só o Noel que fazia isso.
E - Você gosta dos urbanos cariocas da época do Noel?
C - De uma porção. Mas Noel foi mais marcanrte eu eu tenho impressão que isso ficou um pouco parado. O pessoal começou a falar muito do nordeste ou então falar das coisa subjetivas. E o meu samba é das coisas cotidianas e é urbano. E o do Noel era também. Mas a minha vida também é essa. Não é muito por causa do Noel. É mais pela minha vida.
E - Você quer dizer que a geografia do samba não importa na deflagração do samba como um êxito, porque Noel é conhecido em todo o país ainda hoje. Nos círculos rurais, nos centros urbanos e suburbanos. Isso pode acontecer com qualquer compositor, desde que a composição sejá válida, traga uma mensagem, seja ela qual for, sobretudo uma mensagem artística.
C - É.
E - Como que você considera a Bossa Nova dentro da evolução da M P B?
C - Acho que a Bossa Nova foi importante pelo simples fato de que todos nós que estamos fazendo alguma coisa, hoje em dia, termos sofrido influência da Bossa Nova. João Gilberto é um capítulo à parte pra mim. è o sujeito mais musical que tem aí. As conseqüências imediatas da Bossa Nova foram um pouco negativas. Foi importante porque tudo estava parado, todos entusiasmaram-se pelo samba. Nós, os compositores mais novos, a turma dos Baianos, nos entusiasmamos com João Gilberto, tocando violão. Eu não posso me entusiasmar nesse ponto com Noel Rosa, como me entusiasmei com a Bossa nova, porque é uma coisa viva, e Noel Rosa não é mais. Então eu posso gostar e tal, mas não me entusiasmar ao ponto que eu me entusiasmei com a Bossa Nova e começar a tocar violão e tal. Eu não podia também começar tocar violão imitando Noel Rosa que não tinha cabimento ficar naquele negócio em 1960. Depois de já ter sido levado pelo Bossa Nova, aí sim, acho que é importante a gente rever tudo aquilo que foi feito antes.
E - Você acha que hoje o compositor pode ter uma aculturação musical sem perder a espontaneidade?
C - Acho que pode, eu mesmo estou estudando música, acho que é inclusive necessário. É importante a gente mesmo escrever as músicas da gente. É claro que tem o perigo de perder a espontaneidade. Se ficar só nos livros, você perde a rua.
E - Quais são os projetos daqui para diante?
C - Não sei.
E - Você considera sua música mais um prolongamento da Bossa Nova ou mais um retorno ao samba tradicional?
C - Acho que é Bossa Nova, eu saí da Bossa e não posso negar a influência que tenho.
E - Se você viesse ao Museu da Imagem e do Som daqui há 30, 40 anos, o que você diria para o Chico cinqüentão, sessentão?
C - Não sei, eu tenho medo de dizer as coisas. Sei lá se vou estar vivo até lá. Tenho um medo de morrer danado. Mas eu tenho vontade de continuar, inclusive, por outros caminhos, escrever, não sei. Chico cinqüenta anos (risos)...
E - Há pretensões literárias?
C - Há sim, eu gosto muito de ler, escrever. Não sei o que vai ser, pode ser que eu seja um vagabundo aos cinqüenta anos.
E - Mesmo dentro do caminho da música, como compositor, como letrista, você acha que vai sempre procurar pesquisar, dentro de si mesmo, mais caminhos?
C - Eu estou sempre procurando novos caminhos. Eu não quero repetir o que está feito, então eu tenho que descobrir outras formas de dizer outras coisas. Pode ser que eu não faça nada, mas espero fazer.
E - Pelo que você falou, desde que hajam estes caminhos, sempre existe uma identificação da sua música com todas as camadas do povo.
C - É verdade. Acho que música popular tem que ser popular.
E - Qual foi a sua preferência, no Festival da Canção, para música nacional e internacional?
C - Música nacional eu gostei do Saveiro, já na música internacional eu era pela Peruana. Torci para Peruana, mas não votava, não fazia nada, fiquei lá parado.(risos)
E - Bom Chico, eu acredito que os meus caros colegas não tenham mais nada a perguntar e só nos resta, então, fazer o agradecimento, antes de encerrarmos, precisamente aos cinco minutos para uma hora, do dia 11 de novembro de 1966, este depoimento para a posteridade com você: Francisco Buarque de Hollanda.
C - Muito obrigado.
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