Entrevista Rádio Eldorado - 27/09/89
Geraldo Leite
Semana Chico Buarque
Pra começar, pedimos ao Chico para falar sobre a música popular e por que é tão expressiva no Brasil?
Olha, eu, como estou dentro da música, nem me sinto muito à vontade de fazer uma comparação desse tipo.
Fora daqui, na Europa, nos Estados Unidos, a música brasileira, a música popular brasileira tem consumo. Ela goza de um conceito muito alto. Eu não poderia comparar com outras artes para não ficar indelicado. Mas se chegou até a um casamento feliz, como aliás, eu tenho impressão que só acontece nos Estados Unidos e em Cuba. O casamento, quer dizer, a mestiçagem que gera a música brasileira, que é semelhante à mestiçagem que gera o jazz e toda música caribenha. O casamento entre a música e a letra, a formação européia dos nossos letristas, isso vem de muito tempo. A formação européia dos nossos melodistas, mas basicamente o ritmo. Os ritmos brasileiros é que dão um cunho muito especial à música popular. Acontece, como eu disse, aqui como lá nos Estados Unidos, como no Caribe. Você não vê esse mesmo casamento, essa mesma harmonia em músicas onde há menos presença do negro. Nos países andinos, por exemplo, tem a música popular, mas, ao nível internacional, ela não tem o pique que tem a música brasileira.
Na música brasileira esse elemento negro é fundamental. E a forma como ele entra, como ele se casa com os outros elementos que compõem a música. Eu vejo por aí.
No Brasil, a música popular... se você quiser considerar a música como música pura, vai levar desvantagem em relação à música mais elaborada, à música de vanguarda, à música erudita, porque recolhe elementos dessa música e assimila esses elementos, e produz junto com a letra, que também não é uma poesia, produz uma obra de arte única.
Eu não sei se as pessoas, tanto os criadores como os críticos, têm consciência disso. É uma opinião minha, pessoal. Em relação ao meu trabalho e de outros compositores, sempre falam muito nisso: "Ah, precisa publicar as letras e tal." Eu resisti sempre a isto porque me parecia sempre que era mutilar o resultado final que é a procura desse casamento entre música e letra.
Esse casamento já está na tradição da música brasileira. Na música brasileira dos anos 30, 40, aquela que eu ouvia quando era garoto, nos anos 50 com Dorival Caymi, sem falar em Noel Rosa, Ari Barroso, isso já existia. Tanto assim que eu acho que o pai da minha geração é o Vinícius de Moraes, o poeta do nosso pai é o Vinícius, que a certa altura renunciou um pouco à poesia erudita e foi fazer música popular, e foi muito criticado por isso. Mas, eu acho que ele tinha essa visão, não estava renunciando a uma coisa maior em troca de uma coisa menor. Não, estava, simplesmente, se dedicando a uma outra tarefa, tarefa não é a palavra boa, mas a outra arte.
Chico fala agora de suas primeiras preferências musicais.
Engraçado, eu fui descobrir Dolores Duran, o samba-canção, essa coisa toda, não exatamente na época que isso fazia muito sucesso. Eu nem gostava tanto assim, não. Eu gostava mais que tudo da música americana.
E gostava da música brasileira... gostava de música de carnaval, gostava de ritmo. Era um garoto. Queria pular, queria dançar. Então, o samba-canção e muito bolero que tocava nos anos 50 não me dizia muito não. Eu fui recuperar isso um pouco mais tarde, porque... até harmonicamente têm coisas muito interessantes nessas músicas, nas canções dos anos 50. O próprio Tom Jobim, que eu não conhecia, fui conhecer o Tom a partir da bossa-nova. Mas a época dele pré bossa-nova também é muito interessante. Mas a mim não dizia grande coisa não. Eu adorava rock, adorava Elvis Presley.
Na música brasileira eu gostava, sobretudo, das músicas de carnaval, das marchinhas e dos sambas de carnaval. Porque naquela época tinha isso, as músicas de carnaval tocavam só na época do carnaval, depois o que se tocava era isso, samba-canção e bolero. Havia um contraste muito grande entre o que se executava em rádio entre dezembro e o carnaval. A partir daí, a quaresma era uma quaresma musical mesmo. Você só ouvia canções lentas.
A seguir Chico fala de seus compositores prediletos.
Noel Rosa, sem dúvida, Ismael, Wilson Batista, Geraldo Pereira. Em outra linha: Custódio Mesquita, Ari Barroso e outros que estou me esquecendo agora.
Conheço, por exemplo, muitos críticos que sempre te alinharam mais ao lado do Noel e nem sei se de tua parte ou da parte do próprio Ismael Silva muita gente te... você mesmo indicava o Ismael como uma das maiores influências. Tinha alguma?
Não, o que havia era uma (riso), uma tentativa até de dizer: olha também do Ismael, porque eu fiquei muito marcado como uma espécie de um novo Noel, até porque havia algumas coisas. Havia até citações. Eu citava Noel no samba A Rita. Eu fiz algumas canções à maneira de Noel. Claro que Noel me marcou muito.
Mas eu queria dizer: também tem o Ismael. Eu gosto tanto de Ismael quanto de Noel. Mas eu não posso negar que Noel, pra mim, representou uma influência mais forte até do que o Ismael. Mas eu queria fazer justiça: Ismael estava aí vivo e esquecido. Ismael eu conheci muito, era um grande personagem. Noel era uma lenda pra mim.
Conviver mesmo eu não diria. Porque a vida que eu levava, a chamada roda-viva, pra cima e pra baixo. Eu me encontrava com eles muito naqueles programas da TV Record que juntava essa gente. Eu convivi bastante com o Ciro Monteiro, com o Ismael. Mas principalmente com o Ciro Monteiro. Aí entram motivos extra-musicais. A gente ia junto pro Maracanã. Ele era flamenguista, eu era tricolor. Motivos gastronômicos também, porque tinha um feijão que a mulher dele fazia, a Lu, que era uma maravilha. Ele tinha isso de reunir muita gente na casa dele. Vinícius era muito amigo dele também. Com o Ciro eu convivi bastante. Os outros não. Eu cruzava muito com Ataulfo Alves, que era outra antiga admiração minha. Tenho músicas feitas a la Ataulfo, pelo menos uma claramente, que é Quem te viu, quem te vê. A gente se cruzava nos bastidores do Teatro Record.
Influências
Chico fala sobre sua relação com o poeta Vinícius de Moraes.
Eu tinha já um carinho pessoal por ele. Mas isso não interferiu tanto. Eu conheci Vinícius quando eu era criança. Mas eu passei a ser fã de Vinícius a partir da bossa-nova. Foi aí que eu me interessei... Eu não lia muita poesia. Acho que eu não conhecia o poeta Vinícius de Moraes. Eu conhecia o boêmio e compositor Vinícius de Moraes, amigo lá de casa, e a partir de Chega de saudade passei a conhecer. A bossa-nova foi que desencadeou a minha paixão pela música popular e a paixão da minha geração inteira. É um ponto comum de referência de todos nós. É João Gilberto, é Tom Jobim e é Vinícius. Virou uma página mesmo. Foi a partir daí que eu comecei a me interessar pelo violão e querer fazer música mesmo. Eu gostava muito de musica. Mas eu seria talvez um arquiteto que gostasse de música.
Conheci João acho que em Nova Yorque. Depois ele voltou pro Brasil e aí tive mais contato com ele. O João vive um pouco isolado e eu respeito esse isolamento dele. Ele gravou Retrato em branco e preto bem mais tarde. Não faz tanto tempo. Há menos de 10 anos. Acho que já faz dez anos que eu não vejo o João Gilberto.
Chico fala sobra a possível influência dos Beatles.
Era, mas não tanto. Eu conversei isso outro dia com o Djavan, que é pouco anos mais novo que eu, apesar daquela cara de garoto, não é tão mais novo assim. Os Beatles pra ele representaram o que a bossa-nova foi pra mim. Existe uma idade, 15, 16 anos, quando você está aberto pras novidades musicais. Quando apareceram os Beatles eu já estava fazendo minha música. É claro que eu gosto dos Beatles, mas não teve o mesmo impacto que teve pra mim a bossa-nova. Ela me pegou veia, no momento certo, na idade exata da definição até profissional minha. Foi João Gilberto, foi a bossa-nova. Os Beatles já me pegaram dentro do bonde. Eu já estava fazendo música.
Chico fala agora sobre a presença da música estrangeira no Brasil e do fértil período da bossa-nova.
Nos anos 50 eu ouvia, sobretudo, música estrangeira, e gostava de música estrangeira. Você não pode recriminar o jovem de hoje por gostar de rock. E não poderia fazer isso porque eu só gostava de rock até o aparecimento da bossa-nova. Agora, também não foi de graça que apareceu a bossa-nova. Não por coincidência, bossa-nova apareceu num momento em que estavam germinando o Cinema Novo, os novos movimentos de teatro no Brasil, a arquitetura de Oscar Niemeyer, Brasília. Foi numa época em que havia uma euforia, um sentimento, não vou dizer ufanista porque essa palavra foi descaracterizada mais tarde, mas havia um sentimento nacional de orgulho bastante forte. Você era brasileiro e gostava de ser brasileiro, e queria construir uma nação. Isso foi abafado mais tarde, por motivos que todo mundo conhece. Vai ser difícil, hoje, forçar, através de um decreto-lei, de uma proteção de mercado, criar o mesmo espírito que resultou no aparecimento da bossa-nova e dos outros movimentos de que eu falei em todos os setores da cultura brasileira.
Chico fala agora da dificuldade do trabalho após 64 e de suas esperanças.
A partir de 64 a cultura brasileira esteve cerceada. Houve dificuldades em dar continuidade aos projetos. Os movimentos eram encarados com suspeitas. Acho que está na hora de aparecer gente nova. Inclusive porque tem gente com muito talento, às vezes desperdiçado, querendo fazer coisas. Eu tenho esperança, é claro, não sou pessimista. Tenho quase a certeza que mais cedo ou mais tarde essa página toda da bossa-nova vai ser uma página viradíssima. A bossa-nova existe até hoje. Volta e meia ela renasce porque ainda é uma música moderna. Foi criada em cinqüenta e poucos. Eu fico torcendo pra bossa-nova ser uma coisa do passado mesmo.
Antecipamos a solução de um problema que era esdrúxulo: a ausência de relações diplomáticas entre Brasil e Cuba. São dois países muito ligados atavicamente, culturalmente. Os mesmos escravos que foram dar na Bahia foram dar em Havana. Isso gera uma miscigenação muito parecida. E gera uma simpatia imediata entre os dois povos. Havia motivos políticos até pra eu me manifestar por isso, porque havia uma perseguição a tudo que dissesse respeito a Cuba. Mas a minha aproximação foi mais até com os artistas do que outra coisa. Havia a necessidade de se conhecer a cultura cubana, mesmo porque eles também tinham muito interesse pela cultura brasileira e havia essa barreira intransponível, ou quase. Eles conheciam tudo via Paris. Conheciam os discos de música brasileira que eram editados em Paris. Essas coletâneas misturando fulano e fulano. Chegava lá ele sabiam mais ou menos quem era quem, não sabiam exatamente.
Era uma barreira danada. E vice-versa. As relações foram cortadas em 64 e a visão que se tinha da música cubana aqui remontava àquela época. Era o cha-cha-cha. Não se conhecia nada do que foi feito depois. Eu acho que ajudei a trazer essa música pra cá. Não só a música. Depois houve um intercâmbio muito rico em termos de teatro, de cinema. Hoje em dia a cultura cubana é muito conhecida aqui.
Perguntamos ao Chico sobre as canções feitas de encomenda para alguns intérpretes.
É você tem que partir de alguma coisa. É um velho tema: o papel em branco..." O que que eu vou escrever?
Pra que que eu vou escrever? Se você tem pelo menos "pra quem que eu vou escrever", isso já ajuda. "Vou compor uma música pra GAL." É estimulante. Sou apaixonado por ela. É uma cantora maravilhosa. Aliás, tenho que fazer uma música pra ela nesses dias. Você acabou de me lembrar que eu tenho que terminar a música. Pensando na maneira dela cantar, isso sempre ajuda, estimula. Como é que eu vejo a Gal? Eu sinto a Gal tão claramente aqui, na minha cabeça, que eu sei que tem uma música com cara de Gal. Mas não sei te traduzir.
A Nara mais de uma vez até me ajudou um pouco mais. A Nara me encomendava temas. Pelo menos uma vez ela encomendou. Por exemplo: Com açúcar, com afeto foi uma canção que eu fiz pra ela sob encomenda. Ela pediu: "Eu quero uma canção que fala que a mulher sofre, a mulher espera o marido etc. e tal." Eu fiz pra Nara e pro tema exato que ela pediu. Uma canção sob encomenda mesmo. Mas, normalmente, não acontece isso não. As cantoras deixam a gente à vontade. O que ajuda e não ajuda.
A Bethânia é a mesma coisa que a Gal. Quer dizer, inteiramente diferente, mas eu também sei o que que é uma canção pra Bethânia. A Bethânia tem uma coisa teatral. Eu fiz muitas músicas para teatro, as famosas canções no feminino que eu fazia pra determinados personagens. Mas o personagem, às vezes, pra mim, não era tão claro quanto quem iria cantar. Então, às vezes, eu pensava no ator ou na atriz que iria cantar. Mas, às vezes, a atriz que iria cantar, iria cantar só teatro, porque não era uma cantora profissional. Então, misturava, na minha cabeça, a encomenda do personagem, a atriz e a cantora que eu gostaria que gravasse aquela música. Então saíram canções como Folhetim, que tinha a cara de Gal, que servia pro personagem, mas que eu já compus pensando que a Gal iria cantar lindamente; Olhos nos olhos, que não foi pra teatro nem encomenda pra ela, mas quando eu terminei eu falei: "Essa música tem a cara da Maria Bethânia."
Pedimos, a seguir, para o Chico falar sobre a versão de Cauby para Bastidores.
Bastidores eu fiz pra minha irmã Cristina.
Mas ele encarnou.
É. Ele encarnou. Eu lembro que eu estava pra viajar e um jornalista amigo meu, Tarso de Castro, me pediu uma música para um disco do Cauby que ele estava produzindo. Eu disse: "Não tenho nenhuma música nova. O que eu tenho é isso aqui, que a Cristina gravou. Se ele quiser gravar..." Mas o disco dele atropelou, acabou saindo antes e ele encarnou, como você disse. Ficou sendo a música do Cauby.
Quando chegava na hora do disco, muita vezes eu não tinha o material pra completar um disco. E então eu era obrigado a pegar de volta canções que eu tinha dado. Por exemplo, Olhos nos olhos eu gravei num disco meu; O meu guri eu gravei, regravei na verdade nos meus discos. Isso não responde a um projeto. Tenho a música, eu dou. Fulano está gravando, eu não estou gravando, eu dou pro cantor gravar. Eu só seguro pra mim, quando estou, realmente, em cima da gravação. Durante os dois três meses em que eu estou gravando um disco eu tenho que ser um pouco egoísta. Aquela músicas que eu compus ali, são pra mim, eu vou gravar no meu disco, são pra mim, e eu não dou pra ninguém. Senão meu disco só sai com regravação, com repeteco. E eu tenho a impressão que as pessoas compram o meu disco pensando no compositor. Eu ainda sou considerado um compositor que canta as suas músicas. E é natural que as pessoas esperem encontrar músicas inéditas.
Eu não posso dizer que eu me apresente em público com naturalidade. Tenho muito a sensação de super-exposição. Eu tenho a impressão, a impressão não, eu tenho certeza de que os grandes intérpretes usam uma espécie de uma máscara. Eles são intérpretes. Na hora que ele estão no palco eles são personagens. Eu cantei com Bethânia durante cinco meses no Canecão. É impressionante a transformação da Bethânia quando ela entrava em cena. Eu estava com ela até cinco minutos antes no camarim e era uma pessoa. Daí a pouco ela encarnava o personagem e entrava. E eu não. Eu levava pro palco os meus problemas todos. Era uma extensão de quem estava no camarim pouco antes.
A seguir, Chico comenta a nova mulher dos anos 70 e sua produção para teatro.
Nos anos 70 a mulher deu um salto incrível em direção a sua própria liberdade. Quando a Nara me pediu uma canção em 66, era da mulher submissa, não é à toa. Mais tarde a mulher começou a sair e vieram os movimentos feministas etc. Mas eu acho que essas canções são mais conseqüência do meu trabalho pra teatro, onde por algum motivo as mulheres sempre foram muito fortes. Desde a Joana que a Bibi Ferreira fazia no Gota d´água, até as personagens de Calabar. Calabar é a história de Calabar contada, na verdade, pela sua mulher, sua viúva, que é a grande personagem da peça. Na Ópera do malandro a Teresinha é a personagem que dá a volta na história. As mulheres são muito fortes nesse meu trabalho pra teatro. E eu compus para essas personagens femininas. Então era natural que as canções refletissem essa força da mulher, da mulher independente.
Caso Calabar 1973.
O episódio foi bem significativo do período que a gente estava vivendo. Aconteceu o seguinte: havia uma censura prévia (parece uma coisa tão distante: uma censura prévia). Você mandava o texto pra ser examinado pela censura federal. Esse texto era aprovado ou reprovado, ou aprovado com cortes. Ele foi aprovado com cortes. Alguns palavrões aqui, uma coisa ali, que a gente não podia levar ao palco. O resto estava aprovado. Quer dizer: sinal verde para montagem da peça. Então, nos reunimos, o Ruy Guerra, que é meu parceiro na peça e eu, mais o Fernando Torres, produzimos a peça. O espetáculo estava pronto. A estréia marcada. Aí tinha a segunda censura, a censura ao espetáculo, que é pra conferir se o que está em cena corresponde ao que foi aprovado no papel. Ou seja, ver se estão respeitando os cortes, se os palavrões foram realmente cortados, se não há um nu proibido, enfim, essas coisas que não eram possíveis na época.
A estréia é marcada. O ensaio geral pra censura é marcado e a censura não foi assistir ao espetáculo. Não foi, adiou, adiou...não foi, não foi, não foi... e aconteceu o quê? Chegou uma hora em que não havia como manter aquela produção em pé, então, falimos. Eles não proibiram. Eles obrigaram os produtores a jogar a toalha. A gente recorreu e meses mais tarde ela foi proibida pelo general Bandeira, que era o chefe do serviço de censura. Ele era superior ao chefe que tinha aprovado anteriormente. A peça foi proibida dessa forma esdrúxula, e foi proibida a divulgação da proibição na imprensa. E a palavra Calabar foi proibida na imprensa.
O resultado é que a gente não podia dizer que a peça havia sido proibida, ou falida. O disco que se chamava Chico canta Calabar teve o nome Calabar proibido. Então retiraram as capas que estavam impressas e que tinham um muro pixado com Calabar, e publicaram capas brancas mantendo Chico canta. A capa era a mesma do livro, mas com álbum que abria e tinha fotos dentro. Uma capa toda incrementada, muito bonita. E foi isso: foi uma proibição branca.
Como eram feitas as proibições da censura?
Havia proibição de músicas integralmente, e havia proibição de palavras dentro do texto. Ou você era obrigado a mudar essas palavras ou simplesmente não podia pronunciá-las. Você podia optar. Em algumas músicas eu desisti. Outras eu troquei palavras. Não só em Calabar como em outras músicas desse período. Por exemplo, em Partido alto, onde estava brasileiro, eu botei batuqueiro, onde estava titica eu botei coisica. Ou, então você cortava simplesmente a palavra. Ou como no disco ao vivo com Caetano na Bahia, o recurso foi aumentar os aplausos na hora das palavras proibidas. Atrás da porta tinha: "me agarrei nos seus cabelos, nos teus pêlos". Pêlos foram proibidos. Já a Elis quando gravou eu mudei para no teu peito. Já, aí, eu não podia mudar porque eu tinha cantado. Por um descuido eu cantei a letra correta no dia do show. Então o quê que a gente fez no disco? Aumentou o volume dos aplausos. Na hora dos teus pêlos sobe um aplauso assim, ah!!!!
Como era o esquema de funcionamento da censura para liberar as músicas?
A censura prévia que valia pra teatro valia para letras de músicas também. Antes de gravar qualquer música tinha que mandar a letra pra censura federal. E espera até a volta dessa letra, com carimbo e assinatura do chefe de censura. O que, aliás, provocava problemas graves porque gerava uma burocracia muito grandes, atrasos... E às vezes não era nem implicância. As letras se perdiam no meio do caminho. Os produtores ficavam desesperados. Era um atraso de vida danado.
É evidente que, uma vez proibido, ficava marcado. Eu e outros autores que tinhamos uma ou outra música proibida, ficávamos numa espécie de index da censura. Então a música que chegava com o meu nome chamava a atenção. E eu comecei a sofrer uns cortes bastante arbitrários. Tinha uma música que eu fiz pro Mário Reis e que não era nada, era brincadeira, e eles proibiram alegando que era uma ofensa à mulher brasileira. Chamava-se Bolsa de amores. Era uma brincadeira que eu fiz com o Mário Reis porque ele gostava muito jogar na bolsa, tinha mania dessas coisas... Era a época em que só se falava em bolsa...
Tem dupla leitura. Caberia no Naji Nahas hoje, pela letra que eu li...
Poderia até caber no Naji Nahas hoje, mas eu não estava prevendo isso não.
É que naquela época tudo tinha outro sentido...
As pessoas atribuíam às vezes outros sentidos que eu mesmo não tinha atribuído. Era uma brincadeira pro Mários Reis, sem nenhuma implicação política, mesmo porque o Mário era uma pessoa absolutamente distanciada da política. Ele ficou tão revoltado com esse caso... Ele morava no Copacabana Palace, e vivia com os grã-finos. Ele ia pra esses lugares, ele cantava a música nos cabeleireiros, pra madames...
Enfim, aí eu senti que a barra estava pesada e aí falei: vamos experimentar com outro nome que pode ser que melhore. E realmente melhorou. As três primeiras músicas que eu mandei, onde eu assinava como Julinho da Adelaide, passaram. Se fossem com o meu nome, provavelmente, não passariam. Foi um artifício que funcionou durante pouco tempo. Depois ficou meio marcado, porque só se gravava esse tal de Julinho da Adelaide, e começou a correr a suspeita de que o Julinho da Adelaide seria um pseudônimo, até que o Jornal do Brasil publicou uma matéria falando sobre a censura e divulgou a verdade: que o Julinho da Adelaide era realmente um pseudônimo.
O quê você mais gosta da obra do Caetano?
Eu gosto de tudo que o Caetano faz. Não tem o que eu gosto mais. Inclusive, porque ele continua fazendo e me surpreendo. Tenho uma relação pessoal com ele muito boa. Sempre tive.
O que que você acha que tem de mais diferente dele?
Eu sou inteiramente diferente dele. Por isso mesmo que a gente se entende bem. Essa história desse Fla-Flu que se criou... Eu até comentei com ele esses dias... é uma coisa artificial. Vai ser difícil me jogar contra ele. Apesar dos esforços que são feitos nesse sentido continuamente. Mas eu acho bobagem esperar que eu faça as músicas do Caetano ou que o Caetano faça as minhas músicas. Acho bom que ele faça as dele e que eu faça as minhas, que têm até uma origem comum, como eu disse no começo. A nossa formação é comum: a bossa-nova. Mas a cabeça dele é.... da minha. Eu me entendo com ele e acho que a minha música se entende com a dele também.
O que você acha que mais aproxima vocês, além da relação pessoal?
Eu não diria que é a música não. Diria o tempo. A gente tem uma história comum. Nós começamos juntos. E na relação pessoal é difícil você separar isso. Nós temos muita história vivida juntos. Essa geração toda, com Caetano, com Gil, com Milton, com Edu. Tem tanta coisa em comum que quando a gente se encontra não tem muito o que falar não.
Em 1979, num ensaio intitulado O minuto e o milênio, registrado no recém lançado songbook de Chico pela Companhia das letras, o crítico e músico José Miguel Wisnick dizia: "As correspondências, afinidades e diferenças entre Chico e Caetano precisam ser acompanhadas de perto. Não é a toa que, freqüentemente, um é jogado contra o outro. Sabe-se que são, realmente, duas forças. No entanto, temos a mania maldita de só enfrentar a complexidade da cultura brasileira na base da exclusão: de Emilinha ou Marlene, a Mário de Andrade ou Oswald de Andrade, e daí, a Chico Buarque ou Caetano Veloso."
Autocrítica
Para começar este quinto programa da semana Chico Buarque, pedimos ao Chico para falar sobre seu início de carreira.
Esses primeiros discos que eu gravava,(vou confessar uma coisa) eu gravava entre um show e outro. Eu fazia muito show. Durante onze anos não fiz outra coisa senão cantar e às vezes em condições precárias pelo Brasil a fora. Hoje em dia você tem todo um aparato que te permite mil comodidades. Naquele tempo era difícil. Às vezes eu chegava num lugar, sozinho, com o violão e um microfone só, e auto-falantes daqueles do tempo do onça. Hoje em dia é mais fácil. Eu fazia show pelo Brasil inteiro e entrava no estúdio os arranjos já estavam feitos, já estavam gravados, eu chegava lá, botava minha voz em cima. Hoje quando vou gravar um disco me dedico só a gravar o disco. Então eu estou lá trabalhando junto com arranjador, fazendo o que eu quero. Hoje eu assino inteiramente. Naquele tempo não. E ia conhecer a capa dum disco (aliás, umas capas horrorosas) quando já estavam impressas, prontas. Não posso nem culpar tanto a gravadora, porque era um pouco displicência minha também. Porque eu estava viajando, porque eu estava fazendo show pra cima e pra baixo e não era muito cuidadoso com relação aos discos. Esse ano andei trabalhando em cima desse songbook, o que me dá uma perspectiva do que foi meu trabalho esse tempo todo. Eu comecei a perceber coisas que na época eu não percebi. Eu estava fazendo as coisas sem perceber o que estava fazendo. Eu tenho a impressão que eu gravava esses discos sem a menor idéia que vinte anos depois eu iria ter que falar sobre eles. Eram produtos inteiramente descartáveis.
Chico aceita nossa proposta e analisa sua carreira através de seus próprios discos.
Eu tenho três discos que são praticamente iguais. São discos que reúnem as músicas que eu fiz ainda quase não profissionalmente. Eu era um estudante de arquitetura que fazia música e tomava cachaça. No meu terceiro disco tem músicas que eu já tinha composto na época do meu primeiro disco. Um disco é continuação do outro. São de uma fase (hoje eu falo de carreira), mas na época eu não tinha a menor idéia de que estava criando pra mim uma profissão, uma carreira. Era uma brincadeira. Uma extensão da minha vida de estudante.
Chico continua avaliando sua obra.
Já o quarto disco é um disco complicado, porque eu gravei na Itália, eu morava na Itália. É o disco mais irregular que eu tenho. Eu gravei esse disco, que chama-se Chico Buarque de Hollanda nº 4, quando eu morava na Itália. Eu mandei as fitas com as canções pro Brasil. Aqui no Brasil foram gravados os arranjos todos, as bases. O produtor, que se chamava Manuel Berimbau, voltou pra Itália com essas bases e eu coloquei a voz em cima. Eu não podia voltar pro Brasil, ou não devia voltar pro Brasil. Compus as músicas também a toque de caixa porque eu tinha que gravar, eu estava morando na Itália e vivendo com uma certa dificuldade. Esse disco é um disco de transição. É o disco da minha maturidade, não como compositor, mas como ser humano. Eu estava morando na Itália, com problemas pra voltar pro Brasil, com uma filha pequena... Virei um homem. Eu era moleque. Virei um homem e não sabia o que dizer. Então, as músicas estavam com um pé ali e outro aqui. Um pé no Brasil e outro na Itália. E eu sem saber exatamente o que ia fazer da minha vida: Ah! Bom...vou ser compositor? Vou viver disso... vou ter que encarar isso a sério... vou ter que encarar a vida a sério. Uma série de circunstâncias me levaram a isso. A estar morando fora do Brasil e estar casado e com uma filha, e a ter que pensar pra valer na vida. Eu tive dificuldade. São as músicas mais arrancadas a fórceps que eu tenho. Essa fitinha que eu falei que mandei pra cá, o Manuel Barenbein, que eu chamava de Manuel Berimbau, ficou lá, eu me lembro, durante uns quinze dias em Roma, sentado diante de mim a dois metros de distância, e eu terminando a música e dizendo: espera aí Manuel, estou terminando aqui essa música... Tem músicas que eu terminei nas coxas porque eu tinha que gravar esse disco. Tinha obrigação profissional de gravar esse disco senão... Eu tinha assinado contrato com a gravadora. Esse contrato profissional foi que me permitiu através de um adiantamento continuar vivendo na Itália, porque eu não tinha condições financeiras de me sustentar na Itália. Então eu tinha que cumprir esse contrato. Tinha que gravar as músicas pra pagar o dinheiro que eu tinha pedido emprestado. A história é essa. É um disco feito por necessidade. Os outros três discos anteriores são desnecessários (ri). Eu precisei passar por isso pra chegar ao disco seguinte, que é Construção, que já é um disco maduro como compositor. Aqui é um disco em que eu estou maduro como homem, como ser humano. Pera aí. Sou gente grande. Tenho uma filha pra criar. Acabou a brincadeira. Mas eu não sabia ainda como exprimir essa perplexidade.
Tua idéia seria os três primeiros discos, depois o Chico 4, gravado na Itália, e a partir de Contrução você entrou no teu padrão.
Eu não sei se daqui a vinte anos, quando eu olhar pra trás, eu não vou ter outra visão do que eu estou fazendo hoje, do que eu fiz há pouco tempo atrás. A gente não tem essa perspectiva. Eu fui obrigado a fazer essa revisão e entender o que se passava comigo há vinte e cinco anos, que foi quando eu comecei, há vintes anos, que foi quando eu gravei esse disco na Itália. Consegui entender isso agora.
Perguntei, a seguir, sobre um possível alívio de produção, a partir do disco branco, com ilustração de Elifas Andreatto. Como era um momento de conflito com a gravadora, ele discordou.
Parecia que aquele disco branco marcava já um Chico mais sereno...
Já vejo diferente. Vejo um disco bastante angustiado. Sem dúvida, isso que você está dizendo, agora, é outra história. Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde Construção até Meus caros amigos, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto... eu nem acho que eu faça música de protesto... mas existem músicas aqui que se referem imediatamente à realidade que eu estava vivendo, à realidade política do país. Até o disco da samambaia, que já é o disco que respira, o disco onde as músicas censuradas aparecem de novo. Não havia mais a luta contra a censura. Enfim, a luta contra a censura, pela liberdade de expressão, está muito presente nesses cinco discos dos anos 70. São discos com a cara dos anos 70. Construção, Quando o Carnaval Chegar, Caetano e Chico ao vivo, Calabar, que nem se chamou Calabar, ficou sendo só Chico Canta, Sinal fechado, onde eu canto só músicas de outros compositores, e Meus caros amigos. Disco por disco, você vai ver isso. Fica bastante claro que a partir de 78 minha música está respirando melhor.
Processo de criação.
Não existe um processo. Se houvesse me facilitava muito a vida. Às vezes eu tenho vontade de fazer, tenho a música encomendada, ou mesmo pra eu fazer um disco, e a coisa não aparece com tanta facilidade. A gente vai acabar chegando na história da encomenda. De repente, eu consigo trabalhar mais sob pressão. De onde vem eu não sei te dizer. Normalmente elas vêm em série. Uma puxa a outra. Há períodos em que não acontece nada. Posso passar 4, 5, 6 meses sem compor uma única canção. Tentando e não conseguindo. Já desistindo de tentar. Já pensando que não dá mais pé. Pensando que tem que partir pra outra. Quando eu comecei a gravar tinha na gaveta 40 músicas. Gravei meu primeiro disco, gravei o segundo e ainda gravei o terceiro com resto de músicas que estavam na gaveta. Há aquele entusiasmo juvenil, quando não se tem nenhuma autocrítica. Vai dizendo qualquer coisa. Mais adiante começam as dificuldades porque você não quer se repetir. Os caminhos começam a ficar mais estreitos. Você sabe exatamente o que não quer fazer. O que você quer fazer, às vezes, a gente perde de vista.
Quando eu aceito uma encomenda, assim como quando eu assino contrato pra gravar um disco, eu assino com a consciência de que estou blefando, que estou assinado um cheque sem fundo, porque eu não sei de onde é que eu vou tirar aquilo. Isso mais adiante vai me criar problemas. "Por que que fui aceitar tal encomenda? Por que que eu fui aceitar fazer esse disco? Por quê que eu fui aceitar escrever pra essa peça?" Mas tem funcionado. É claro que isso gera uma angústia muito grande. Uma insegurança. Você sofre.
Perguntamos ao Chico se essa paúra da encomenda, no fundo não é proposital. Se isso não torna a coisa mais quente.
Realmente se você me pedir uma música pro seu programa de rádio do ano que vem eu vou dizer: "OK. Pode deixar." Quando chegar uma semana antes eu vou lembrar: "Ih! Eu tenho que terminar essa música." Você perguntou pelo processo de criação, pra mim é um mistério. Eu não sei porque que existe isso. Eu não gostaria de ficar me criando essas angústias. Trabalhar em cima da hora não é nem saudável, porque quando você vai trabalhar vira a noite, se desgasta. Se eu pudesse ter uma disciplina de trabalho, uma organização de vida que me permitisse fazer as músicas uma por mês, direitinho, guardar ali no escaninho e amanhã apresentar, entregar sempre no prazo, seria formidável, acho. Mas não é assim. Não sei trabalhar assim.
E quando as composições não são sozinhas, são composições em parceria. Eu vi que na estante da sua casa você tem fitinhas com músicas. São músicas tuas ou de outros compositores?
Eu guardo músicas minhas que ficaram incompletas e que eu posso mais tarde retomar, como já fiz. Agora, mais do que tudo o que eu tenho lá é acervo imenso de outros compositores. Quando eu comecei a fazer letras pra outros autores... no começo eu não fazia. Depois comecei a fazer, pro Tom, uma coisa ou outra. Depois comecei a incrementar esse tipo de trabalho que é um trabalho bastante diferente do trabalho de música e letras. É outra coisa. Outro departamento. Talvez até por uma certa carência de letristas, porque a gente tem muito mais músicos do que letristas, e um pouco talvez pra suprir a falta de Vinicius. Eu herdei vários parceiros do Vinicius. O próprio Tom, Francis Hime, Edu, tinham o Vinicius como seu principal letrista... Toquinho... Então eu fiquei sendo o letrista dessa gente e de outros. Eu comecei a gostar. Eu gosto de fazer letras. Eu recebo muita encomenda. Não é tudo que eu consigo fazer. Também não é fazer porque gosta ou não gosta. Aí entra outro mistério. Você não consegue às vezes encaixar uma letra. É difícil. Tudo é difícil.
Chico fala agora sobre seu trabalho como letrista.
Você tem que entrar na cabeça do compositor. Tentar adivinhar. Se você fosse ele, o que você estaria dizendo com aquela música. Às vezes você adora uma música... eu tenho músicas lindíssimas do próprio Tom, do Piazzola, do Baden Powel, que eu não consegui fazer letra. Eu faço questão de respeitar cada nota do meu parceiro. Faço exatamente como ele quer. O fato de eu fazer música ajuda, evidentemente, porque eu fico conhecendo melhor o som das palavras, a musicalidade das palavras. Se não soubesse música eu não saberia fazer letras pra música. Mas eu respeito cada nota musical que o parceiro me manda.
O tema agora são os parceiros do Chico. Adivinhe quem é o primeiro.
O Tom é o que mais interfere. O Tom, às vezes, entrega a música, já com uma idéia do que ele quer como letra. Então, às vezes, isso cria dificuldades. Agora mesmo tem uma, que se chama Bate-boca. Ele já me entregou a música com a letra quase toda pronta. Eu falo: "Tom, essa letra você mesmo vai terminar." Mas ele quer que eu mexa ali, pra ele remexer, por sua vez. O Tom é um caso muito especial porque ele é, além de tudo, um grande letrista. Eu digo pra ele: "Tom, você é o seu melhor letrista." E ainda tem mais um agravante: eu não consegui me libertar do culto ao Tom, que é muito forte desde Chega de saudades. Eu tenho intimidade com o Tom de sentar com ele lá na Plataforma, onde ele está almoçando sempre, e conversar com ele como um amigo. Mas quando chega a coisa profissional eu fico um pouco intimidado, além de ele não me ajudar (risos), ele me intimida. Ele não me ajuda por isso, porque eu fico intimidado. "Poxa!! Fazer uma música pra Tom!!"
Chico fala agora sobre Francis Hime.
Acho que o Francis nunca escreveu uma letra. Aí é o contrário do Tom. Ele não me dá nem sugestão. Nem título nem nada. Deixa comigo e está lá... em aberto.
Chico continua falando sobre seus parceiros musicais (Milton).
Cada música tem uma história. Cada parceiro tem uma história. Quando faço eu música pro Milton, eu quero fazer com a cara do Milton. As músicas que eu fiz pro Miltom, foram pro Milton cantar. Procurei fazer uma letra que eu achasse com cara de Milton Nascimento cantar.
SIVUCA
Cada música tem uma história. Eu tenho uma parceria com o Sivuca que é engraçada. Ele fez a música, que ficou se chamando João e Maria. Ele mandou uma fita com uma música que ele compôs em 1944, por aí. Eu falei: "Mas isso foi quando eu nasci." A música tinha a minha idade. Quando eu fui fazer, a letra me remeteu obrigatoriamente pra um tema infantil. A letra saiu com cara de música infantil porque, simplesmente, na fitinha, ele dizia: "Fiz essa música em 47." Aí pensei: "Mas eu criança...". e me levou pra aquilo. Cada parceria é uma história. Cada parceiro é uma história.
Trabalho de dança e de teatro com Edu Lobo.
O Edu é diferente porque quase todas as músicas que eu fiz com ele, senão todas, foram compostas pra projetos. Pra peças de teatros e dois balés, O grande circo místico e Dança da meia-lua, do Teatro Guaíra. Então, tanto ele quando faz a música e me manda, como eu quando faço a letra, nós temos um objetivo: fazer a música pra um determinado tema, personagem. Não é em aberto como é com Francis. O que apareceu desses trabalhos, em disco, é a parte das canções. E tem todo um trabalho dele que não foi gravado porque há pouco interesse por música instrumental no Brasil hoje, mas é um trabalho muito bonito. O desenvolvimento dessas canções instrumentais é uma coisa preciosa. Ele tinha idéia de lançar em disco, mas estava difícil. Não há muito interesse por música instrumental.
Trilhas para filmes.
No caso do Cacá, Joana Francesa, ele me mostrou o roteiro. Eu li e gostei muito. E eu tinha que compor a música antes dele filmar porque a Jeanne Moreau ia cantar a canção-tema no filme. E em Quando o carnaval chegar foi a mesma coisa. Mas, normalmente, essas músicas entram quando o filme já está pronto. Eu vou compor em cima das imagens que eu assisto em banda dupla ou na moviola. É o caso do próprio Cacá, em Bye, bye, Brasil; do Bruno bsarreto, em Dona Flor e seus dois maridos, Miguelzinho Farias em República dos assassinos. Normalmente eu faço em cima das imagens.
Como é que é a tua vida hoje? Você continua tendo tempo pra ouvir?
Tenho. Agora eu estou saindo do estúdio. Praticamente saí há um mês. Fiquei durante quatro meses sem ouvir nada. Mesmo porque você tem medo até da interferência de fora. Então não vai ao cinema, não ouve música, não vai ao teatro, não faz nada disso. Agora eu vou entrar num período de alimentação. Aí vou ouvir coisa que eu deixei de ouvir ou ouvi com menos cuidado na época do lançamento. Vou ouvir isso tudo. Faço questão de ouvir. Faço questão de me informar.
Hoje, seu tempo de lazer ou profissional é um tempo mais de leitura?
Depende da época. Em período de eleição eu leio os jornais de cabo a rabo. Leio tudo. Leio todos os jornais. Vou à banca comprar jornais de outras cidades, de outros Estados. Tem épocas que eu leio desbragadamente, um livro atrás do outro. Depois fico um tempo sem ler. Mas geralmente no período em que não estou criando.
Perguntamos a seguir ao Chico se a celebridade o incomoda.
Não. Não me incomoda. Eu não assumo ares de celebridade nem ando por aí vestido de celebridade. Ando por aí normalmente pela rua. Ando um pouco depressa pra não ter que ser interrompido. Mas convivo naturalmente com isso.
Mas quando você viaja pra fora você se sente mais livre?
Eu confesso que às vezes eu gosto de dar um pulinho... Vou a Paris. Gosto muito de andar pela ruas e não ser reconhecido, ninguém perguntar nada. Às vezes preciso desse descanso. Também de ser tratado normalmente, como um ser humano comum. Aqui sempre tem aquela coisa....te fazem muita festa. Faz falta você dar um pulo aí fora e às vezes ser maltratado por aquele motorista de táxi ou aquele cara do café que joga aquela xícara de qualquer jeito....Você sente o maior prazer. "Opa!!! Sou anônimo."
Chico segue falando sobre sua rotina de vida.
Eu gosto muito de andar. Eu sou um andarilho contumaz. No Rio, apesar da ladeiras, eu ando bastante. Mas me param muito na rua e oferecem carona, pensando que eu estou com o carro quebrado. Ninguém anda nessa cidade! "Olha o Chico!!! O que está fazendo aí?" "Eu tô andando." As pessoas ficam com pena de mim subindo a ladeira e tal... Eu ando, se puder, duas, três horas seguidas. Adoro cidades. Adoro entrar num buraco e me perder num bairro. Isso aqui fica um pouco difícil.
Lá fora você faz mais isso?
Faço sem parar. Só gasto sapato. Aqui eu faço também. Eu procuro não me incomodar. Como eu disse, não saio por aí com ares de celebridade.
A seguir, Chico fala sobre morar no exterior.
Com a Itália, mais especificamente com Roma, eu tenho mais intimidade. Eu morei lá dois anos quando era criança e morei um ano e meio agora adulto. É uma cidade que eu domino perfeitamente. Conheço meus cantos. Minhas querências. Gosto de Paris também. Mas pra morar fora, nunca!
Aí perguntamos ao Chico qual é o país dos seus sonhos.
Eu sonho um Brasil onde todo mundo tenha satisfeitas as suas necessidades básicas. Isso me incomoda profundamente. A miséria nas ruas me incomoda profundamente. A falta de oportunidade de trabalhar, de estudar, de ter acesso à saúde. É um país incompleto enquanto não resolver isso. Enquanto não resolver a questão básica. Isso me incomoda porque é um absurdo um país como o Brasil estar no estágio que está. Também acho, e isso não é novidade, que a solução para o Brasil tem que ser uma solução brasileira. A gente não vai importar modelo nenhum. Quando eu falava de Cuba, e continuo falando, é um país tropical que resolveu seus problemas básicos. Então, a partir daí tem muita coisa pra ser discutida. Mas em primeiro lugar, todo mundo tem que er acesso à educação, à saúde, à moradia, transporte, enfim, viver dignamente. Eu estou falando de Cuba porque é um exemplo latino-americano. A Europa tem outra história. E a história do Brasil é a nossa história. A gente vai ter que resolver isso à nossa maneira. Não estou querendo importar nem o modelo social-democrata da Europa, nem o modelo socialista cubano. Eu não sou político, não sou candidato a nada, mas sonho com isso.
Sobre o futuro que queremos. Ele descarta a existência de modelos ideais.
O que me assusta é que o Brasil não tem nada em termos satisfação de necessidades básicas... não chega aos pés nem da Europa Ocidental, nem da Oriental. Quando ficam falando da ditadura, da falta de liberdade lá fora, eles colocam isso como empecilho pra luta pela justiça social no Brasil, isso é que me deixa um pouco irritado. Vamos resolver os problemas básicos daqui! Assustar com essa história do comunismo não cola mais. Muito menos agora. Vai-se caminhar pro socialismo, se for o caso, tendo em vista o socialismo democrático, que pra mim é o sistema ideal. Durante a época da ditadura se falava sempre no comunismo como sendo um monstro que come criancinhas, e se falava isso como justificativa para não se lutar por nada. A greve era sempre considerada subversiva e tentavam assustar as pessoas com o fantasma do comunismo. Não é por aí! A gente não podia deixar de lutar porque o comunismo devora criancinhas.
Iniciamos agora a última hora da semana Chico Buarque. Continuamos conversando sobre a vida.
Você já falou que gostaria que as condições básicas de vida fossem preenchidas para a maioria da população. Mas o que você acredita que vá acontecer nesse tempo?
Isso virá mais cedo ou mais tarde. Por bem ou por mal. Porque não é possível que continue assim. Não sou eu que estou achando. Isso salta aos olhos. A desigualdade social, a violência que isso gera. A gente vive nas cidades com uma série de muros de Berlim. Eu mesmo, vivo num condomínio, onde quem está fora não entra e quem está dentro não sai.
É a história da gafieira.
É a história da gafieira. Está se criando isso no Rio de Janeiro, São Paulo... são uns núcleos de riqueza cercados de miséria. Isso vai ter que ser resolvido, mais cedo ou mais tarde. Tomara que mais cedo e tomara que por bem!
Vamos entrar agora num terreno de dificílimo acesso: o ato de criar.
Humberto Werneck: Um dia eu cheguei na casa dele e ele falou: "Olha tem uma coisa aqui que você vai gostar." E me mostrou uma fita. E nessa fita que ele me mostrou ele está tentando arrumar, dar uma forma final a um refrão do samba Dr. Getúlio, que ele tinha feito com o Edu Lobo pra peça de mesmo nome, do Ferreira Gullar e do Dias Gomes. Então você vai ouvindo aquele refrão. Ele cantando e tocando violão, e de repente você percebe. Daquela música nasce uma outra. Feita um galho. Mas é um galho de uma outra árvore. Com uma emoção extraordinária, eu percebi que era o Vai passar. Que estava começando a nascer aquela coisa muito informe, aquela coisa meio fetal ainda, mas já se percebia a música ali. Foi uma experiência absolutamente emocionante pra mim. Você percebia que ele ia tocando aquele pedacinho de música, caía outra vez no refrão do Dr. Getúlio, voltava pro Vai passar, ainda sem letra, sem nada. Eu percebia ele se acercando da música como se a música estivesse pronta fora dele e ele estivesse tentando pegar aquilo com a mão.
Essa história não terminou aí. O Chico explica a nova idéia.
Eu tinha até o registro de eu fazendo essa música. Eu estava terminando uma música com o Edu e comecei a ter idéia desse samba. Comecei a ter a idéia musical e algumas pinceladas do que eu queria como letra. Foi na época daquela euforia das diretas. Eu imaginei que podia se fazer um samba composto a vinte mãos. Juntei lá em casa um dia uma porção de amigos e mostrei o samba como estava sendo feito. A música não estava pronta. Tinha um problema, que eu não conseguia chegar ao tom original. A música ia modulando e eu não conseguia voltar. E foi o Francis que, no fim, virou meu parceiro, concertou a melodia. Aí começamos a cantar. É claro que foi uma bebedeira e não saiu letra nenhuma. Eu acabei chegando à conclusão de que a música só pode ser feita no máximo por duas pessoas. A não ser esses sambas de carnaval. Cada um começou a dar um palpite mas não saiu nada. Era uma idéia bonita. Fiquei depois um ano com ela parada e falei: "Um dia vou fazer ainda." Aí desisti e acabei retomando um ano depois e terminei sozinho a letra.
Só agora Chico tem editado o seu songbook. O nome é Letra e música, editado pela Companhia das Letras, em dois volumes, com histórias, letras e partituras. O texto do primeiro volume é de Humberto Werneck, e é ele quem faz um balanço do trabalho.
Humberto Werneck: Uma coisa que me agrada muito de ter feito esse trabalho é ter podido devolver ao Chico uma série de memórias dele mesmo. Ouvindo mais de 50 pessoas, como a mãe, irmãs, colegas de ofício como Caetano, Gil, Milton Nascimento, Tom Jobim, a colegas de faculdade, de colégio, pessoas que testemunharam episódios diferentes da trajetória dele, eu recolhi muita coisa de que o Chico não se lembrava mais. Vou dar um exemplo: ele, numa certa altura, na época da jovem guarda, se divertia muito fazendo uns rocks. Pra tirar um sarro em cima da jovem guarda, pra rir um pouco daquilo, bem dentro do espírito moleque dele. Eu consegui reconstituir, com o Toquinho, algumas passagens dessas letras. À medida em que eu ia fazendo os capítulos eu ia mandando pro Chico. Não pra que ele avalisasse, ou desse o nihil obstat. Mas pra que ele ajudasse a filtrar algumas incorreções. A minha esperança era que ele viesse a acrescentar, como fez, algumas coisas. Eu percebi que ele se divertiu muito.
E a vida também, com o passar do tempo, a vida vai mudando. Suas filhas estão crescendo. Uma filha já casou. Pode ser que mais dia menos dia você seja avô. Com a possibilidade de ser avô, você prevê de novo uma possibilidade de um disco infantil?
É engraçada essa história de disco infantil. Na época eu tive uma dificuldade muito grande pra lançar esse disco (Saltimbancos) porque não havia o menor interesse por parte das gravadoras em lançar um disco infantil. Eu batalhei esse disco e praticamente fiz sozinho. Eu só fiz esse disco porque eu tinha um contrato com a gravadora que permitia tomar algumas liberdades. Eles não tinham interesse em lançar esse disco. Hoje em dia acho que há um excesso de música infantil. Descobriram a criança como mercado comprador de disco. Isso me incomoda um pouquinho. Então, eu não tenho muita vontade de gravar um disco infantil. Agora, se você me ameaça com essa perspectiva de ser avô, talvez o avô, daqui a uns tempos, ceda sentimentalmente ao apelo e componha pra criança de novo.
Quais são teus planos?
Autobiografia, com certeza, não. Dirigir um filme, também não. O que eu sinto no momento é uma total ausência de planos. Terminei esse disco. Depois veio a questão da eleição e eu tirei um tempo. Não tenho a menor idéia do que eu vou fazer. Não tenho essa rotina. Até gostaria de ter, já falei, talvez fosse mais saudável. Mas não. Eu estou com aquela folha de papel branco na frente agora pra fazer qualquer coisa, que não vai ser uma autobiografia, mas pode ser um disco novo, pode ser uma peça de teatro, um livro, qualquer coisa. Não estou com plano nenhum pela frente.