O eterno mistério
De compositor engajado a muso de garotas dos 30 aos 60 anos, Chico Buarque vem se renovando e ao mesmo tempo mantendo as características que fazem dele o sucesso que é: a timidez, a discrição e a capacidade de entender a alma feminina sem nunca ter levado a psicanálise a sério.
Duas décadas atrás, as aparições de Chico Buarque em manifestações políticas, somadas às sua canções mais contundentes, renderam a ele a imagem-clichê de compositor engajado. Algo diferente tem acontecido nos últimos anos; suspirando frente aos olhos verdes do autor de "Carolina", "Beatriz", e "Cecília", garotas de 20 a 60 anos têm lotado seus shows, elegendo-o como o mais sensível porta-voz da alma feminina.
Ver e ouvir Chico Buarque ao vivo, aliás, tomou-se um prazer bissexto, na última década. Desde o show "Paratodos", em 1994, ele andava ausente dos palcos, por estar se dedicando mais à literatura. Para alegria do imenso fã-clube, Chico vem reservando todo este ano à turnê do show "As Cidades", pelo Brasil e Europa. Essa maratona inclui uma nova temporada em São Paulo, em novembro e dezembro que marcará o lançamento do CD "As Cidades ao Vivo".
"Não me considero um homem especialmente bonito", diz Chico, refutando a freqüente imagem de "deus de olhos verdes" que lhe é atribuída pelas fãs mais delirantes. "O que pode encantar as moças está nas minhas músicas e não na minha presença física."
Marie Claire - Há cinco anos, você se mostrou surpreso com a garotada que freqüentava seu show "Paratodos". Isso acontece na temporada de "As Cidades"?
Chico Buarque - Sim. Gente que ainda não tinha idade para assistir ao "Paratodos" está me vendo pela primeira vez.
MC - E esses jovens vão ao seu camarim? Fazem perguntas?
Chico - Vão. Geralmente, falam comigo atraídos pelo disco, o que é engraçado. É gente com muita curiosidade musical. Também procuram muito o maestro Luis Cláudio Ramos, que fez o arranjos. Notamos isso também na minha home-page, que recebe uma quantidade grande de gente muito moça, procurando informações sobre o disco, sobre arranjos, sobre o fazer musical mesmo. Pra eles, sou um artista que estão conhecendo agora. Pra mim, de certa forma, esse tipo de abordagem é uma novidade, por ser mais musical do que política ou poética, como acontecia antes.
MC - Reencontrar o público, cinco anos após seu último show, é mais fácil hoje?
Chico - É sempre custoso. Montar um espetáculo depois de tanto tempo afastado do palco significa ensaiar muito mais, reaprender uma série de coisas. Os shows exigem bastante também pelo lado musical. Hoje eu me sinto mais músico que cinco anos atrás e muito mais do que no início da carreira, mas ainda não tiro de letra, nem uma noite. Fazer o show é prazeroso no final das contas, mas eu . ainda fico tenso. Tanto é que, desde a temporada no Rio, eu passei meus jogos de futebol para a noite, após o espetáculo. Assim o show não fica prejudicado.
MC - Por que? Prejudica a concentração?
Chico - Porque cansa mesmo, fisicamente. E a voz também se ressente um pouco.
MC - Num depoimento à revista "Época", logo depois de ter assistido ao seu show, Caetano Veloso disse que acha você "muito paulista", por você ter crescido e se educado em São Paulo, além de ter feito nessa cidade suas canções mais populares. Você sente que sua porção paulista é maior do que a carioca?
Chico - Acho que esse comentário dele deve ter a ver com a época em que a gente se conheceu, quando eu morava em São Paulo. Na verdade, eu me sinto bastante dividido. Não me sinto paulista, mas também não me sinto carioca. Já aconteceu até um caso engraçado. Uns dez anos atrás, eu assinei um manifesto político em apoio ao ex-deputado Fernando Morais. Um jornalista da "Folha de S. Paulo", tentando me atingir, escreveu três coisas. Primeiro, botou minha idade no jornal, aumentando uns quatro anos (risos). Depois botou "comunista histórico". Até aí ele já tinha me ofendido um pouquinho, mas quando me chamou de "carioca" é que eu fiquei ofendido mesmo. Com isso ele sugeria que eu não teria direito de opinar numa eleição paulista. Nesse dia, eu, que tinha o apelido de Carioca em São Paulo, percebi o quanto valorizo minha cidadania paulista.
MC - Seu pai (o historiador Sérgio Buarque de Hollanda) foi uma espécie de orientador de seus primeiros passos na literatura, sugerindo leituras e fazendo críticas a seus primeiros textos. E quanto à música?
Chico - Ele gostava muito de cantar, especialmente quando bebia um pouquinho e ficava alegre. Ele cantava em italiano, em alemão e também muitos sambas antigos. Apesar de ser muito amigo do Vinícius (de Moraes), ele não era chegado em bossa nova.
MC - Você aprendeu sambas com ele?
Chico - Muitos. Lembro dele e de minha mãe, em casa, cantando Noel Rosa. Conheci o samba "Último Desejo" (de Noel) e essas coisas todas através dos meus pais. Numa lembrança mais remota, mais do que rádio ou vitrola, é esse cantarolar constante dos dois que vem à minha memória. Eles também gostavam muito de Ismael Silva, de sambas dos anos 30, da época em que namoraram.
MC - Algum dos dois estimulou você a seguir a carreira musical?
Chico - Ao contrário, jamais houve algum empurrão. Minha mãe, que tinha uma visão da vida mais prática do que meu pai, ficou muito satisfeita quando entrei para a faculdade de Arquitetura. Eu era meio indisciplinado, quase um vagabundo. Eu já bebia bastante, e ela tinha um pouco de medo. Quando comecei a abandonar a Arquitetura para fazer música, ela até foi à faculdade trancar a matrícula por mim. Eu já sabia que não ia voltar nunca, mas ela guardou por um bom tempo a esperança de que eu voltasse ao bom caminho. Até porque, a música não era uma opção profissional pra mim, no início. Era uma farra, uma brincadeira.
MC - E por que você escolheu Arquitetura para estudar?
Chico - Por exclusão. Eu precisava entrar numa faculdade e gostava muito de Arquitetura. Aliás, ainda gosto. Tinha o hábito de ficar imaginando e desenhando cidades, e lembro de minha avó dizendo: "Chico, você vai ser urbanista, quando crescer". Tinha também aquela coisa de Brasília e de Oscar Niemeyer, que era uma figura mítica par mim, apesar de eu tê-lo conhecido, por ele ser amigo de meu pai. Na minha geração havia um interesse grande por Arquitetura. Na verdade, quando entrei para a faculdade, eu me esforcei para acreditar que eu seria arquiteto um dia, mas não tinha muita convicção. Precisava de uma profissão e tentei. Naquela época, não se podia levar a sério uma faculdade de Letras, muito menos pensar na música como profissão.
MC - Hoje você dedica a maior parte de seu tempo a dois ofícios essencialmente solitários: a composição musical e a literatura. Você era uma criança solitária?
Chico - Não, eu fui um moleque de rua normal, de jogar bola e ter muitos amigos, além de muitos irmãos (seis). Nunca fui uma criança fechada, nem mesmo introvertida. Pelo contrário, eu era até extrovertido em demasia, mas eu tinha todo um mundo particular e imaginário, que preenchia meu tempo livre. Eu gostava de narrar jogos de futebol de botão. Inventava e desenhava cidades que tinham tudo: os cinemas, os nomes das ruas, os bairros, tudo inventado por mim. Eu também desenhava filmes, numa tira de papel, que exibia numa caixa de sapato, com dois lápis. Acreditava que era cinema e persuadia minhas irmãs menores de que era mesmo cinema. Fiz várias películas, com nomes de atores americanos imaginários, como Robert River. Eu passava horas sozinho ocupado com essas brincadeiras que têm a ver com o que eu faço até hoje (risos).
MC - E a literatura? Também era um prazer solitário, ou você chegava a compartilhá-la com os amigos?
Chico - Antes de entrar na FAU, comecei a cismar de ler livros em francês. Tinha dois amigos com quem eu conversava sobre literatura, em francês. Um era filho de franceses, o outro de alemães. Nós três freqüentávamos muito o bar Riviera (na esquina da rua da Consolação com a avenida Paulista, em São Paulo), antes que ele ficasse conhecido como reduto da esquerda. Nós éramos adolescentes, tínhamos 16 ou 17 anos, e ficávamos horas ali, trocando idéias sobre os poetas e romancistas franceses. Nessa época, também comecei a ler os russos, em francês, nas edições da Gallimard, tiradas da biblioteca de meu pai. Com 18 anos, eu ostentava um pouco isso, e costumava levar esses livros para a faculdade. Um dia, um colega mais velho veio caçoar de mim: "Você não lê nem um livro brasileiro?" (risos). A partir daí comecei a ler literatura brasileira, que eu conhecia pouco.
MC - Nessa época, você lia tanto quanto jogava futebol?
Chico - Eu lia mais. Joguei muita bola, no tempo do ginásio e do Científico, mas quando entrei na faculdade, parei de jogar bola por um bom tempo.
MC - Parece que uma das suas primeiras músicas, feita ainda na adolescência, chamava-se "Canção dos Olhos". É verdade que ela tinha uma insinuação a respeito de seus próprios olhos?
Chico - (risos) Nessa canção eu falava dos olhos de um a moça mas as amigas da minha irmã, a Miúcha, diziam que eu cantava essa música, piscando os olhos (risos). Devia ser uma vaidade inconsciente. Eu não seria tão cabotino assim. Logo depois resolvi virar intelectual e já não estava mais preocupado com isso. Esse negócio de ter olhos claros, no Brasil, chama atenção mesmo. Lembro de, ainda bem pequeno, ser parado na nua por senhoras, que pediam: "Deixe eu ver seus olhos, menino".
MC - Desde cedo já tinha consciência de seu poder de sedução?
Chico - Eu era bastante namorador e tal, mas depois que entrei para a faculdade estava sinceramente interessado em literatura e, mais tarde, em música. Eu não fazia disso, de forma nenhuma, um instrumento de sedução. A música pode ser um ofício sedutor e alguns amigos meus até exercitavam isso, como o Toquinho, que eu conheci ainda quando éramos garotos. Ele via a música como um fator de sedução, de aproximação das meninas, mas eu não. Quando veio aquela paixão pela bossa nova, eu só pensava nisso o dia inteiro. Foi uma coisa de louco. Fiquei sinceramente interessado pela música.
MC - Quando você sentiu que poderia seguir carreira na música?
Chico - Foi acontecendo aos poucos. Eu era novo quando comecei a ganhar dinheiro com música, de uma forma até um pouco irresponsável. Tomei consciência de que era um profissional de música, de uma forma até dolorosa, na época em que fui morar na Itália. De repente, eu estava em um país estrangeiro e vi que não havia outra saída mesmo. Aos 24 anos, desempregado e passando dificuldades, quando nasceu a minha filha, percebi que eu era um músico profissional. Ao voltar ao Brasil, a música já tinha deixado de ser aquela farra, aquele dinheiro fácil que se ganhava, que se gastava, que se bebia. Minha relação com a profissão mudou a partir desse momento.
MC - Você ficava muito indignado, quando suas músicas eram cortadas ou mesmo proibidas, na década de 70? A idéia de usar o pseudônimo de Julinho da Adelaide, para driblar a censura, sugere que, pelo menos naquele momento, você enfrentou o problema com humor...
Chico - Na época mais difícil, eu ficava ofendido e indignado, mas não era tanto pela censura e sim por tudo que a cercava. Teve um período em que eu era intimado a depor no DOPS quase semanalmente. Eu fazia aquele circuito universitário de shows e sempre acontecia alguma coisa. Às vezes eu cantava alguma música proibida, em outras vezes nem tinha cantado, mas por causa disso eu era periodicamente chamado ao DOPS. Um dia, virei para o inspetor, que sempre me tratava mal, e gritei: "Eu não agüento mais essa situação". Manifestei minha indignação de uma forma que até deixou o sujeito meio balançado (risos).
MC - Você explodiu...
Chico - Sim, porque aquela coisa era constante. Além das músicas censuradas, havia os shows proibidos, os shows com censores na platéia e no camarim. Não era brincadeira. Esse período foi da minha volta da Itália (1970) até por volta de 1974. Quando eu inventei o Julinho da Adelaide, o clima já estava um pouquinho mais brando. Há que se distinguir um pouco a época do Médici da época do Geisel. Era ditadura sim, a tortura continuava, mataram o Vladimir Herzog, mas a gente já se sentia um pouquinho menos sufocado do que no tempo do Médici. Para que eu criasse o Julinho da Adelaide, para brincar com isso, certamente já havia um clima menos sufocante do que antes. No começo dos anos 70, não havia graça nenhuma.
MC - Em entrevistas, você parece ficar incomodado quando perguntam sobre sua "alma feminina", sua capacidade de falar no feminino. O que incomoda? A repetição freqüente desse lugar-comum ou o fato de que essa é uma habilidade de importância menor na sua obra?
Chico - As duas coisas. Isso tem uma importância menor, inclusive porque está na tradição da música popular brasileira. Antes de fazer minhas canções, eu já conhecia músicas de Assis Valente, ou de Ary Barroso, cantadas no feminino. Isso não é nenhuma novidade.
MC - Mas por que então as mulheres indicam você como o grande porta-voz da "alma feminina"? Por que elas não escolheram, por exemplo, Tom Jobim? Será que o fato de elas verem você como um "deus de olhos verdes", como dizem algumas, não influencia essa escolha?
Chico - (risos) Olha, em primeiro lugar, o Tom Jobim era um homem muito mais bonito do que eu. Ele era um homem belíssimo...
MC - Sim, até o início dos anos 70, antes de engordar...
Chico - A minha vantagem é que eu ainda jogo bole e mantenho uma certa forma. Não me considero um homem especialmente bonito, apesar de ter estes olhos verdes que já chamavam atenção quando eu era criança. Mas eu quero acreditar, ao contrário do que dizem as colunas cariocas que brincam muito com isso, que as pessoas vão ao show para ouvir as músicas. Há até um marketing involuntário, em cima dessa coisa, mas as pessoas que vão ao show para ver um "deus de olhos verdes" devem sair decepcionadas.
MC - E os gritinhos das tietes na platéia? Te incomodam?
Chico - Não. Tem gente que grita aquelas coisas, mas isso também acontece no show de outros artistas. Eu não me sinto desrespeitado por isso, porque eu não sou besta, mas acredito que o que interessa e o que pode encantar as moças é o que está nas minhas músicas e não na minha presença física. Acho que eu tenho canções que falam de amor, com propriedade, não só porque falam no feminino. Às vezes são canções feitas para as mulheres, cantadas no masculino. Forçar a barra nesse sentido, pra mim, equivale à tendência oposta de forçar demais a barra do cantor de protesto, do cantor político. Eu passei a vida inteira tentando nuançar esses clichês. Meus discos e shows têm canções de amor e de temática social. Para um determinado tipo de público e de imprensa, até bem pouco tempo atrás, eu era um cantor engajado, mas eu dizia: "Espera aí, não sou tão político assim. Escrevo músicas falando de amor, sou um cantor lírico". Talvez eu tenha exagerado e feito o barco pender demais para outro lado. Acho que está na hora de todo mundo sentar do outro lado do barco (risos).
MC - Você já disse que, na condição de escritor, o melhor da literatura está no prazer de ler o que se escreveu. Você vê a música dessa maneira? Você também compõe para si mesmo?
Chico - Eu nunca tinha pensado nisso. É claro que a música é refeita, reescrita, mas o meu prazer não é o de ouvir. Na verdade, eu gosto mais de ler do que de ouvir música. Ouço minha música durante o período em que está sendo gravada, mas desconfio que tenho mais prazer no ato de criar a música, do que no ato de escrever. Há momentos de prazer ao escrever, mas você vai refazendo e o prazer só é completo quando você lê e está satisfeito. Na música não, o prazer acontece a cada momento em que ela vai aparecendo. O fazer musical, pra mim, é mais intuitivo do que a literatura. O prazer está ali, na mágica das coisas que aparecem sem que você saiba exatamente como.
MC - Ao terminar uma canção muito especial, você já chegou a sentir a sensação de que jamais poderia fazer outra melhor?
Chico - O Tom Jobim brincava com isso. Quando alguém dizia a ele "depois dessa canção você não precisa fazer mais nada", ele tomava isso como uma provocação. "Não preciso fazer mais nada? Vocês querem que eu morra?" (risos). No momento mesmo em que você está terminando uma música, às vezes atinge um grau de prazer e satisfação, que você chega a dizer: "Ainda bem que eu não morri ontem, porque eu ainda tinha que fazer essa música". Mas isso já me aconteceu várias vezes, não com uma música em especial.
MC - O sucesso de alguma canção sua já chegou a surpreendê-lo?
Chico - Na verdade, a minha relação com o sucesso popular mudou muito. Hoje, se eu fosse ficar preocupado com isso, estaria frustrado. Quando comecei, minhas músicas tocavam muito mais no rádio do que hoje, havia os festivais. Dentro de um mesmo disco, três ou quatro músicas podiam estourar. Às vezes eu ficava surpreso com o sucesso de algumas delas, como "Carolina", que era uma música despretensiosa. Eu estava na Bahia, quando a Cynara e a Cybele cantaram "Carolina", no Festival Internacional da Canção. Lembro de ter sido procurado pelo Ruy, do MPB-4, que era casado com a Cynara. Ele me pediu uma canção para a dupla. Aí eu disse a ele: "Olha, eu tenho uma música aqui, mas não é muito boa" (risos). Eu estava em Salvador, e não estava nem ligado no festival. Mas tinha uma rádio de ondas curtas e pegou uma emissora do Rio, que estava transmitindo o festival. Eu ouvi as duas cantando, surpreso. Quando terminou foi uma ovação enorme, no mesmo Maracanãzinho que, um ano mais tarde, vaiou "Sabiá".
MC - Você já sofreu a chamada angústia da influência? Precisou superar a influência de alguém que marcou sua música?
Chico - Não. Eu comecei a fazer música sob a influência da bossa nova e fazia imitações escrachadas da bossa nova. Como eu não tinha nenhuma veleidade de compositor, naquele época, eu queria ser um sub-João Gilberto, fazendo música como um sub-Tom Jobim. Eu me assumia como um imitador de João Gilberto e não queria ser melhor do que isso. Na minha ingenuidade de amador, eu achava que conseguia fazer uma música parecida com a bossa nova e achava que isso já estava bom. Quando comecei a escrever, também tentei ser várias coisas: fui Céline, quis ser Zola por um tempo e, mais tarde, queria ser Guimarães Rosa. Na ingenuidade dos 18 ou 19 anos, eu achava que já estava escrevendo quase tão bem quanto o Guimarães Rosa (risos). Mas não era nada, apenas cacoetes e neologismos. Tem até um resquício disso, que aparece na canção "Pedro Pedreiro" o verso "Pedro pedreiro penseiro" ainda era aquela coisa de achar que eu podia ser Guimarães Rosa. Foi preciso um tempo, alguns anos para a música, e décadas para a literatura, para que eu pudesse me reconhecer como um autor com uma linguagem pessoal. Hoje, tenho consciência de que o que escrevo é meu. E a música que faço também é minha. Devo a outros autores, com certeza, mas tenho a minha marca pessoal. Nunca passei por esse tipo de angústia.
MC - E verdade que você costuma se aborrecer nas férias? Você se considera um "workaholic"?
Chico - Sim, mas o engraçado é que eu tenho fama de vagabundo. Tem o cara do Bar Jóia, lá perto de casa, onde eu vou tomar água de coco, que me provoca: "Continua vagabundo, hein?". O que eu digo é o seguinte: eu preciso de algum tempo de vagabundagem, para fazer o que eu faço. Mas se eu estiver de férias, sem nada em mente, nenhum trabalho, eu não me divirto. Lá pelo terceiro ou quarto dia, já fico meio inquieto. Isso acontece bastante. Quando eu termino um trabalho muito longo, digo: "Agora eu mereço férias". Faço planos maravilhosos de viagem, mas eles sempre são melhores do que as viagens. Como os projetos de vida, que sempre são muito melhores do que a vida. Eu me divirto pensando em como vão ser minhas férias, mas quando elas chegam não têm tanta graça.
MC - Você já fez psicanálise?
Chico - Tentei três vezes, mas não posso dizer que tenha feito mesmo. Quando começava, era porque estava sem conseguir escrever música. Daí, um mês ou dois depois, quando eu voltava a trabalhar, começava a faltar nas sessões e acabava desistindo. Então eu nunca desenvolvi um tratamento psicanalítico. Essa angústia que me levava à psicanálise estava quase sempre ligada ao vazio criativo. Toda a vez que isso acontece, a gente sabe que vai passar, mas pode ser bastante angustiante.
MC - Uma sensação de que você não tem mais nada de novo a dizer?
Chico - É, exatamente isso. Eu achava que nunca mais iria compor nada. Passavam-se quatro ou cinco meses e não saía nada, como se eu estivesse de férias. Só que essas férias acabavam no divã (risos). Já de uns dez anos pra cá, eu tenho isso mais ou menos resolvido na minha cabeça. A partir do momento em que, depois de um largo tempo sem compor, eu comecei a escrever um livro, eu tive a impressão de que posso preencher o vazio da música com outra atividade. Não sei se isso é mesmo verdade, mas de uns dez anos pra cá eu não procurei mais a psicanálise.
MC - É verdade que, apesar de sua home-page existir há meses, você nem tem conexão com a Internet em casa? Isso é desinteresse ou aversão por esse tipo de tecnologia?
Chico - Não é aversão, não. Tenho a impressão de que, se instalara Internet em casa, vou ficar sentado ali horas a fio.
MC - Então é medo de ficar viciado?
Chico - É, medo de viciar e de perder muito tempo com isso. Já perco muito tempo com coisas inúteis, até jogando paciência no computador. Para começar a escrever alguma coisa, tenho que jogar um pouco de paciência. Isso já virou uma lei na minha cabeça. Depois de uma hora jogando, eu me pergunto: "O que é mesmo que eu ia fazer?". Aí jogo mais um pouco e, quando percebo, já perdi quase uma tarde inteira.
MC - Hoje, não bastasse o impacto da TV, a atenção das crianças também se divide bastante entre a Internet e jogos eletrônicos. Você se preocupa com isso, já na condição de avô?
Chico - Avô não tem que ter obrigação, nem preocupação nenhuma. Eu fico preocupado apenas por tabela. Penso que a minha filha deve ficar atenta a isso. Vejo isso na casa de amigos, que têm filhos menores.
MC - Você se vê no papel de incentivar seus netos a ler?
Chico - Convencer o Chiquinho a ler? Como se diz por aí, é ruim, hein? (risos). Não acredito muito nesse tipo de indução, mesmo que sutil. Tenho a impressão de que talvez algum neto meu venha a se interessar por livros, ao ver que alguém da família tem prazer nisso. Ver o amor que o meu pai tinha pelos livros, o fato de a casa dele ser aquela biblioteca, me marcou bastante. Mas acho que se o meu pai ficasse me empurrando livros para ler, eu talvez rejeitasse. Aliás, para mim, essa coisa de leitura obrigatória era um aborrecimento muito grande. Eu só fui ler Eça de Queirós e coisas assim mais tarde. O que eu lia na escola era tudo de mentira. Quando tinha de escrever algo a respeito, eu lia apenas a orelha dos livros. Desconfio um pouco desses programas de incentivo à leitura.
MC - Você foi um pai menos ocupado do que o seu?
Chico - Há uma diferença grande entre a minha geração e a de meus pais, no trato com crianças. A preocupação pedagógica com a criação dos filhos praticamente não existia na geração deles. Diziam que crianças eram feitas para serem vistas e não ouvidas. E isso não acontecia apenas na minha casa. Mais tarde, nos anos 60, começou essa história de os pais ficarem preocupados com os filhos. Eu procurei ser mais atento. Ao mesmo tempo, na época em que minhas filhas nasceram, eu era mais ausente do que gostaria, porque viajava muito fazendo shows.
MC - Você se vê fazendo música e literatura até o fim da vida?
Chico - Já está de bom tamanho. Não tenho outras ambições.
Conversa de camarim
Estamos com Chico Buarque, em seu apartamento no Jardim Botânico. Eu estou tomando um uisquezinho, meio sem jeito, e acho que o Chico também está um pouco sem jeito, mas...
Chico Buarque - Sem jeito e sem uísque.
Luiz Roberto - Mas por que sem uísque?
Chico Buarque - Porque eu não bebo!
Luiz Roberto - Você não bebe nada?
Chico Buarque - Eu bebo um vinho, à noite... Aliás, eu parei de beber não por força de vontade, mas por culpa do Tom. Houve uma época em que ele parou de beber, e ele conhecia um feiticeiro. Eu bebia bem, e pedi ao feiticeiro umas ervas para ficar um mês sem beber, eu queria dar uma enxugada. O feiticeiro disse: "Você não vai beber nunca mais." E eu disse: "Nunca mais, não, eu quero beber, mas só quero dar um tempo." Eu só queria dar um tempo, parar um mês, geralmente fevereiro que é o mês mais curto. E você sabe que eu enjoei ? Enjoei de uísque, de bebidas fortes, só tomo uma cervejinha ou um vinho. E o Tom, depois, voltou a beber.
Luiz Roberto - Pois é, o feiticeiro foi-se, e ele voltou a beber... Mas nunca bebeu muito, depois disso.
Chico Buarque - O Tom gostava mesmo é de cerveja.
Luiz Roberto - Mas foi o Vinícius que botou ele no uísque.
Chico Buarque - Pois é, Vinícius era diplomata, viajava muito, mas o Tom era um cidadão carioca. No Brasil, até os anos cinqüenta e sessenta, bebia-se muito pouco uísque. Os nacionais eram muito ruins, e os importados muito caros. O Tom tinha capacidade para tomar muita cerveja e chopp.
Mais tarde, a Brahma até chegou a instalar em casa dele uma choperia, sempre reabastecida.
Luiz Roberto - A Brahma deu isso a ele?
Chico Buarque - Pois é, ele fazia muita propaganda de graça. Na Plataforma, falava de Brahma o tempo todo.
Luiz Roberto - Sem dúvida, a cerveja dele era a Brahma. E ele fala nela até na letra de "Chansong".
Um violão chamado Vinicius
Luiz Roberto - Chico, quantos anos você tem?
Chico Buarque - Cinquenta e dois.
Luiz Roberto - Qual foi a primeira vez em que você ouviu falar do Tom, ou ouviu alguma música dele?
Chico Buarque - Foi num disco em 78 rotações, talvez o primeiro disco que eu comprei, para dar para minha irmã. Eu gostava da música: Teresa da Praia.
Luiz Roberto - Qual irmã?
Chico Buarque - A Miucha.
Luiz Roberto - Que naquele tempo tinha o apelido de Bubu (risos). Aí você deu a ela Teresa da Praia.
Chico Buarque - Com Dick Farney e Lúcio Alves cantando. Mas eu me ligava na música e talvez não soubesse ainda quem era Tom Jobim. Não sabia quem era o compositor, nem que a letra era do Billy Blanco. Não lembro desta época do nome de Tom Jobim. Quem eu conhecia já algum tempo era o Vinicius, amigo do meu pai, Sérgio Buarque de Holanda, historiador e crítico literário. Ambos pertenciam ao mundo da literatura.
Luiz Roberto - Você conhecia o Vinicius desde criança?
Chico Buarque - Desde criança. Durante dois anos, entre 52 e 54, minha família morou em Roma. Meu pai foi dar aulas na universidade de Roma e nesta época o Vinicius era consul em Roma. Morando em São Paulo, a gente não via o Vinicius, mas em Roma, ele como consul volta e meia aparecia lá em casa.
Luiz Roberto - Quantos anos você tinha nesse tempo?
Chico Buarque - Fui com oito anos e voltei com dez. E quando Vinicius aparecia era uma festa lá em casa, festa para a qual nós crianças não eramos convidados, é claro, ficávamos assim de longe, ouvindo.
Luiz Roberto - E você já tinha interesse naquela época, já se ligava no Vinicius, quem era aquele cara e tal?
Chico Buarque - Muito, muito. Tinha fascínio por ele, tinha fascínio porque eu era criança e via a Miucha, minha irmã mais velha , que tinha um violão que se chamava Vinicius. E através também dos meus pais que gostavam muito dele. O meu pai era fascinado pelo Vinicius. Vinicius tinha esse poder de fascinar as pessoas que, no bom sentido, tinham um pouco de inveja da maneira como ele levava a vida. O meu pai de certa forma gostaria de ser como ele. Drummond disse uma vez que o Vinicius era o grande poeta que vivia a própria poesia. Um poeta em vida. E meu pai também volta e meia contava histórias do Vinicius. Por que o Vinicius era um mito. O Vinicius tocava no violão da Miucha aquelas canções dele em parceria com Antonio Maria, outras dele mesmo, aquela "Cem por cento", "Quando tu passas por mim". Quando começou a parceria de Vinicius e Tom, pra mim o Tom não era ninguém, era parceiro de Vinicius. Eu lembro bastante do LP que tocou muito lá em casa, a Elizete Cardoso em "Canção do amor demais".
Luiz Roberto - Em que época você morou em São Paulo?
Chico Buarque - Eu fui com dois anos de idade para São Paulo, e morei lá até os vinte e dois. Morei vinte anos em São Paulo, com esse intervalo no meio de dois anos em Roma
A ruptura
Chico Buarque - Então aí tem um ponto de ruptura, que foi quando realmente aconteceu a música na minha vida. Foi com "Chega de saudade", no compacto de João Gilberto.
O João tocou violão na música "Outra vez", no disco "Canção do amor demais", que já era uma coisa estranha pra mim, mas a estranheza mesmo veio com "Chega de saudade". E era uma estranheza geral, tanto é que houve uma ruptura mesmo de gerações, de pessoas que não gostavam daquilo, pessoas mais velhas que difìcilmente engoliram no primeiro momento a Bossa Nova, aí incluindo a música do Tom e a voz, o violão, e a maneira de cantar de João Gilberto.
Luiz Roberto - O que seu pai achava disso?
Chico Buarque - Meu pai resistiu um bocado, engraçado.
Na época eu tinha uns 14 anos e me pegou em cheio. E eu percebi que com todo mundo foi a mesma coisa. Na Bahia, com Gilberto Gil, Caetano Veloso. Quem ouviu, lembra de quando ouviu e em que circunstâncias... Eu me lembro: "Nossa, tem uma música do Vinicius tocando no rádio..." E eu pedi a meu pai um adiantamento da mesada, para comprar o disco. "Chega de saudade" foi o marco histórico.
Tom ou João?
Luiz Roberto - O Tom já no inicio já fascinou você? As músicas?...
Chico Buarque - A partir daí eu comecei a descobrir que as músicas não eram do Vinicius, eram do Tom Jobim, e eu comecei a me ligar - e cada novo disco do João tinha um punhado de músicas do Tom. Mas o Tom mesmo, quer dizer ele cantando, ele gravando, foi mais tarde...
Luiz Roberto - Naquela época ele era tímido, profissionalmente muito retraído, não queria cantar nem nada, e ganhava a vida como pianista e arranjador. Mas neste começo o Tom já fascinava você ou era apenas um bom compositor - tão bom quanto outros, como Pixinguinha, como Noel Rosa?
Chico Buarque - Não. Ele pra mim desbancou todo mundo, porque eu conhecia bastante música brasileira, essa música dos anos 30, anos 40, porque lá em casa sempre houve muita música, meus pais cantavam muito Noel Rosa, tinha histórias de Ismael Silva, Ataulfo Alves. Chegou a Bossa Nova eu rompi com esse passado todo. Houve um tempo em que eu não podia nem ouvir falar. A não ser que fosse alguma coisa recriada por João Gilberto, por exemplo, João cantando Ari Barroso. Pra mim foi assim... mudou. Mais tarde eu recuperei inclusive essa formação toda, bastante forte, de música popular, música de carnaval - eu ouvia muito rádio na época de carnaval.
Quando chegava no meio do ano, gostava muito de bolero, de sambas, de marchinhas de carnaval, sabia de cor todas as músicas. Mas quando chegou Tom... Mas agora eu não sei te dizer na medida exata até onde era Tom e até onde era João Gilberto, porque a inovação também era João cantando.
CAPÍTULO II - Ciúmes
Luiz Roberto - Quando é que você conheceu o Tom pessoalmente?
Chico Buarque - Foi bem depois. Eu fui levado à casa dele pelo Aloisio de Oliveira. A casa lá em Ipanema, na rua Nascimento Silva. O Aloisio me fez cantar o Pedro Pedreiro, que foi a primeira música que eu gravei . Eu não tinha gravado ainda, então foi entre 64 e 65, uma coisa assim. O Tom muito simpático, muito receptivo, e tal...
Luiz Roberto - E o Tom conhecia você?
Chico Buarque - Não, ficou conhecendo ali.
Luiz Roberto - Mas já tinha ouvido músicas tuas?
Chico Buarque - Não, eu não tinha gravado nada ainda, o Aloisio... talvez eu fosse gravar na Elenco e acabei gravando na RGE. Eu toquei essa música, não sei se outras também, enfim... toquei porque ele me mandou tocar, mas fui lá para ver o Tom. E pronto, foi um contato rápido e depois o Tom foi para os EUA, parece... e só viemos a ter um convívio maior quando ele voltou dos EUA, quando começou a nossa parceria, já em 67.
Chico Buarque - Naquela época eu morava na rua Dias Ferreira, no Leblon, perto da casa dele, e ele morava na Codajás. Quer dizer, dava para ir a pé. Eu ia muito à casa dele, conheci muito a casa dele, mil histórias. O piano que eu comprei foi Tom que foi comigo, me levou num lugar na Lapa e ele mesmo escolheu o piano. Foi quando eu comecei a estudar música. Porque eu não tinha conhecimento teórico nenhum, tocava de ouvido, e a minha primeira parceria com ele foi nessa época: o "Retrato em Branco e Preto".
E foi um pouco o Vinicius também que aproximou a gente.
Luiz Roberto - Sem ciúmes?
Chico Buarque - Ciúmes disfarçados. Grandes ciumes disfarçados.
Luiz Roberto - Como foi esse isso? Ele tinha ciúmes, mas aproximou vocês.
Chico Buarque - O Tom morria de ciúmes do Vinicius: (imitando o Tom) "Ah, o Vinicius fica fazendo letra pra todo mundo, pra qualquer um..." (risos) "Ele conheceu um rapaz de Juiz de Fora e já saiu fazendo músicas..." (risos) Tinha um fundo de ciúmes bravo aí...
Vinícius foi sempre muito carinhoso comigo, até por essa relação de família. Quando ele ia a São Paulo ele ia muito à casa da Rua Buri, e então, nessa época, eu me lembro muito de Vinicius com Baden e com Alaíde Costa; lembro do Baden cantando as parcerias com Vinicius pela primeira vez, lá em casa, "O samba da benção", e tal... E eu ainda não conhecia o Tom - o Vinicius foi muito generoso me apresentando a ele.
Luiz Roberto - Mas ele de alguma forma estimulou vocês para uma nova parceria, ou isso aconteceu naturalmente?
Chico Buarque - Ele sabia o que estava fazendo... Não sei te dizer porque, mas o Vinicius a partir de uma certa época deixou de fazer música com o Tom. Eles continuaram amigos até o fim. Amicíssimos.
Vinicius fez música com o Carlos Lyra, com o Baden Powell, com todo mundo. Com todos os grandes, não é?
Luiz Roberto - Com os pequenos também, muitos...
Chico Buarque - E muitos desconhecidos. E parou de fazer músicas com o Tom - eu nunca soube de nenhum problema entre os dois, pelo contrário, eles se encontravam muito, na época eles iam ao Antonio's, bebia-se muito e tal... No Antonio's, Vinicius, Tom, eu e mais tanta gente. Sempre foram grandes amigos, nunca me explicaram, não sei o que houve.
A primeira parceria
Luiz Roberto - Chico, como é que foi fazer tua primeira letra pra ele? Você achou dificil, foi uma emoção, foi uma coisa especial para você? Como é que foi esse "Retrato em branco e preto", que antes se chamava "Zíngaro"?
Chico Buarque - Quando o Tom me deu essa música para fazer letra... engraçado que nesse comecinho não sei se era uma impressão minha ou se era real, eu tinha impressão que ele estava me dando uma força, ele insistia muito para eu fazer a letra - porque comparando com outras músicas que ele fez mais tarde, quando a gente já tinha uma amizade maior, era mais difícil fazer letra para o Tom, porque ele interferia demais. Nessa letra ele não interferiu nada. Ele "Tá ótimo, tá ótimo, tá ótimo", assim como quem faz cerimonia ou paternaliza um pouco, não sei, porque nós não tínhamos uma relacão ainda assim próxima, eu ainda tinha esse respeito por ele.
Chico Buarque - Entra uma certa cerimonia. Eu não me lembro de problema nenhum, não me lembro de história nenhuma, ele me entregou a música, que já estava até gravada e era "Zíngaro" e tal... e eu fiz a letra em casa e mostrei pra ele: "Ótimo, ótimo, ótimo" e ficou por isso. Não tenho uma lembrança maior. E foi para mim um desafio grande porque eu não era letrista nessa época, quer dizer, eu era letrista de minhas próprias músicas.
Luiz Roberto - O Tom foi seu primeiro parceiro?
Chico Buarque - Não, eu tinha feito uma vez para o Toquinho. Uma música chamada "Lua cheia" em 65 por aí, então eu não tinha prática e não sabia exatamente como ele receberia a letra - aprovar assim de cara, pra mim foi ótimo eu não tinha muita segurança daquilo não, porque eu fui aprender a fazer letra com a prática, inclusive trabalhando com o Tom. De você tentar dominar a música do teu parceiro, entrar naquela música, fazer a letra que você imagina que o sujeito quer fazer com aquela música e tal. Eu era verde ainda para ser parceiro do Tom na época, e mais tarde por exemplo, dez, vinte anos depois, quando eu já estava mais consciente do que eu estava fazendo, eu tinha de discutir com o Tom porque...
Piano na Mangueira
Luiz Roberto - Por que?
Chico Buarque - Porque o Tom era implicante com o negócio da letra, e eu tinha de discutir e tinha de convencê-lo, porque ele nunca me dobrou - só que aí eu tinha certeza do que eu queria, entende, ele brincava muito e tinha aquela coisa dele...
Luiz Roberto - "Monday, tuesday, wednesday"... Aconteceu isso mesmo?
Chico Buarque - É...
Luiz Roberto - "Mandei subir"...
Chico Buarque - É, e aí eu ganhava a discussão, mas ele tinha uma coisa de pirraça de crianca, e depois mais tarde ele era capaz de gravar "Mandei subir o piano pra Mangueira" ele mesmo...
Luiz Roberto - Ele mesmo adaptou....
Chico Buarque - Mas na época ele (cantava a música) "Já mandei..." (e brincava): "monday, tuesday, wednesday..." e tal. Acusei o golpe e falei o seguinte: - ô Tom, é "já mandei" porque o piano está subindo o morro puxado naquelas cordas, está indo todo torto, então ele vai desconjuntar e tem que ter essa sílaba tônica no lugar errado: "já mandei subir"...
E ele parecia concordar: "Até que você tem razão...", e mais adiante, gravando, ele cantava mesmo é "mandei subir o piano"...
E com esta música mesmo tem várias histórias: ele fez a música, mandou a música, e eu fiz a letra respeitando cada nota, respeitando cada movimento, procurando ser o mais fiel e o mais preciso e o mais irretocável. Algumas vezes aconteceu, inclusive com o Piano na Mangueira, que quando eu terminava a letra, ele ouvia, às vezes fazia algumas brincadeiras e tal, mas eu ficava sério, pronto para sustentar o meu ponto de vista, e aí às vezes o que ele fazia? Ele mudava a música!
Depois da letra pronta, sendo que eu tinha feito a letra exatamente para a música como ela era.
Luiz Roberto - Na métrica exata da música...
Chico Buarque - E aí ele mudava a música, respeitando a letra. Eu ficava um pouquinho assim (chateado), e pensava: "Mas me deu tanto trabalho fazer a letra para essa música, e ele faz outra música com a minha letra." Com o "Piano na Mangueira" aconteceu isso - tem um trecho (de melodia) no final que ele mudou, não tinha nem na música nem na letra que eu fiz.
Luiz Roberto - Ah é ?...
Chico Buarque - Não tinha esse troço... (cantarola) "onde a cabrocha pendura a saia no amanhecer da quarta-feira..." Ele fez isso depois...
Luiz Roberto - E essa frase aguda do final ("...no amanhecer da quarta-feira") será que não foi pra dar um certo clímax, uma resolução da melodia?
Chico Buarque - É, mas ele musicou a letra ! Eu tinha certeza de ter feito correto pra música dele, e ele deu a volta, na realidade.
Luiz Roberto - E aí acabou ficando "mandei subir o piano pra Mangueira".
Chico Buarque - O "meu piano" foi outra coisa que eu discuti com ele: - ô Tom, é "o piano...". Aliás, eu trazia a letra pronta e aí ele ia cantando, cantando, e como se estivesse errando, mudava a letra. "Mandei subir meu piano pra..." e estava escrito "...o piano pra Mangueira". Eu pensava, bom, ele leu errado, agora vai cantar certo, e eu dizia: -Tom, não é "meu piano" é "o piano", uma coisa mais vaga assim... E ele dizia "Ah, tá bom" e na vez seguinte cantava "meu piano"...
Chico Buarque - E eu falava: - É bonito "o piano" sem ser "meu", porque em francês, onde tudo é possessivo (e eu tenho essa experiência agora que eu estou traduzindo um livro), tem que ser "meu piano" ou "seu piano", piano dele ou piano dela. Eu lembro de ter comentado isso com o Tom, é bonito na língua portuguesa, "mandei subir o piano"...
Quem fez o que nas parcerias. Ligia, Sabiá, e as parcerias que não aconteceram.
Vou te contar
Chico Buarque - Às vezes o Tom implicava com certas coisas, e uma vez ele abortou uma letra minha.
Luiz Roberto - Qual foi?
Chico Buarque - Não lembro qual foi a música, foi há bastante tempo, eu comecei a fazer a letra e ele começou a fazer piada em cima da letra (risos), e eu perdi (a vontade de fazer). Depois eu até usei em uma música minha. Era uma letra que falava: "Quem vem lá ? Que horas são ? É você ? É o ladrão ?" E ele dizia: "É o sapatão?..." (risos). Abria um caderno que ele tinha, pegava aquele começo de letra e fazia uma letra enorme com as palavras dele. E eu falava: "ô Tom ???!!!" Era engraçado mesmo... Porque a gente nunca brigou mas às vezes ficava nesse ponto...
Luiz Roberto - Meio tenso?
Chico Buarque - É...
Luiz Roberto - Sem querer talvez ele ridicularizava um pouco nesse negócio do "monday", "o sapatão", e tal - isso doía um pouco em você?
Chico Buarque - Não, não doia não, porque eu tinha certeza do que eu queria. Se fosse na época do "Retrato em Branco e Preto" sim, mas depois não, eu discutia com ele a letra pau a pau, e eu também já não tinha mais cerimônia com o Tom, e sabia que tinha uma coisa um pouco dele muito crítica, de querer interferir na letra. Então eu falava: "Tom, faz você a tua letra porque você é o teu melhor letrista."
Muitas vezes, muitas músicas que ele me deu eu não fiz letra, não por não querer ou não gostar - às vezes até por não conseguir - e depois ele fez lindamente. "Luiza" mesmo, ele tinha me dado para colocar letra . O "Wave" também.
Luiz Roberto - Como é que foi "Wave" ? Dizem que você fez "Vou te contar".
Chico Buarque - Exatamente, "Vou te contar" e pronto...
Luiz Roberto - Quer dizer que "Vou te contar" é teu ? (risos).
Chico Buarque - É engraçado, eu lembro do "Wave" quando ele me mostrou, e eu demorando a fazer, não saía nada além de "vou te contar", e aí ele disse: "Pô, Chico, você não quer ficar rico?" (risos)
Ele já adivinhava que "Wave" seria uma das músicas mais executadas, já pressentia que ia ser um sucesso.
Jogando futebol
Chico Buarque - E só para concluir, esta história foi até engracada. O Piazzola uma vez me mandou uma música para fazer letra, música lindissima, em setenta e pouquinhos. E eu nunca fiz, aí uma vez ele veio ao Brasil fazer um programa de televisão, aquele programa que eu tinha com o Caetano. E aí quando ele chegou, ele ia ficar uma semana ensaiando e eu lembrei daquela música e falei: "ô Piazzola, eu vou tentar fazer aquela letra, porque aquela música é tão linda, vai ser legal a gente cantar essa música no programa." Música inédita e tal. Ele me disse que não se lembrava mais daquela música, e aí eu catei a fita e ensinei pra ele, ele pegou a música, fez arranjo, fez tudo o mais. Uma semana depois, no dia da gravação, eu simplesmente não tinha conseguido fazer a letra, porque ou você consegue ou não consegue, não é?
Luiz Roberto - Não saiu...
Chico Buarque - Eu lembro que na hora do ensaio, ele tinha recebido a notícia de que eu não tinha feito a letra, e ele ficou enfurecido, coitado, ele não entendeu...
Luiz Roberto - Achou que era desleixo.
Chico Buarque - Disseram a ele: "O Chico vai chegar mais tarde porque está jogando futebol". Eu não ia fazer a letra se eu não jogasse futebol, eu jogo futebol porque eu jogo sempre... Quando eu cheguei lá, estava o Tom acalmando o Piazzola, que estava à beira de um ataque de nervos: "O Chico é assim mesmo, ele fica jogando futebol" (risos). Ele falando de um jeito tal, que aí o Piazzola, vindo do Tom... ele aceitou.
Sabiá e Ligia
Luiz Roberto - Como é que foi Sabiá ? A letra é sua inteirinha?
Chico Buarque - A letra é minha.
Luiz Roberto - Eu ouvi dizer que, quando vocês estavam fazendo a música, você viajou, e que o Tom completou os últimos versos.
Chico Buarque - Não, essa história é a seguinte: eu fiz a letra, terminei a letra - e quando eu viajei, ou um pouco antes de viajar, o Tom achou que tinha que aumentar a letra , e eu ou não tive tempo, ou porque viajei, ou porque não concordei, não aumentei a letra - e dei a letra por terminada ali. Quando eu terminei a letra, ele achou que era insuficiente porque a música repete outras vezes, ele achou que pedia mais uma letra, e eu achei que não pedia. E aí ele fez à minha revelia, na minha ausência, um pedaço de letra, que depois sumiu.
Luiz Roberto - Você lembra?
Chico Buarque - "Que a nova vida já vai chegar", uma coisa assim "que a solidão vai se acabar", você lembra disso?
Luiz Roberto - Tinha esquecido, agora que você está falando me veio à memória.
Chico Buarque - Isso ele acrescentou depois, eu não aceitei muito essa.
Luiz Roberto - Houve até alguma gravação em que entraram esses versos.
Chico Buarque - Sim, chegou a ser gravado, essa é a parte dele que ele resolveu (fazer), mas depois acho que ele voltou atrás, porque mais adiante cantou mil vezes a música e nunca mais cantou esse pedaço.
Luiz Roberto - Exato...
Chico Buarque - Eu nem falei nada pra ele, fiquei um pouco assim, né... porque não era o combinado.
Ligia
Luiz Roberto - Chico, como é que foi "Ligia", porque tem duas versões, tem "olhos morenos", tem "olhos castanhos"...
Chico Buarque - Olhos morenos. Mas "Ligia" é o seguinte....
Luiz Roberto - Você fez alguma destas versões?
Chico Buarque - "Ligia" é o seguinte: a letra é do Tom. Eu não assino a parceria - na verdade ele me entregou a letra bem adiantada, e eu terminei, ou eu mexi, ou ele me pediu para refazer alguma coisa, e eu dei uma mexidinha na letra.
Mas pelo menos metade da letra era dele, e naquela época, eu estava cheio de problemas com a censura, e gravei um disco só de outros autores. O Caetano fez uma música para mim, o Gil fez uma música pra mim, eu gravei uma música só minha com o pseudônimo de Julinho da Adelaide, e gravei o "Ligia" só com a assinatura do Tom.
Luiz Roberto - Sei.
Chico Buarque - E o Tom falou: "Não, você é parceiro, e tal". Primeiro, porque a letra meio que deu uma consertada, e depois, por motivos técnicos de não querer ter meu nome em uma música daquele disco, e por uma questão de justiça, mais tarde, ele falou: "Tem um dedo do Chico nessa letra". Mas eu não assino essa música.
E ficou parecendo que era minha também, porque eu fui o primeiro a gravar, nesse disco que se chama "Sinal fechado".
Luiz Roberto - Que modificações você fez?
Chico Buarque - Esse começo é todo Tom, a graça toda... "Eu nunca sonhei com você, nunca fui ao cinema, não gosto de samba, não vou a Ipanema, não gosto de chuva, nem gosto de sol"... isso tudo é coisa do Tom. Eu fiz uma coisa segura: "E quando eu lhe telefonei, ...foi engano, seu nome eu não sei..." Aí tem o meu dedo. Mas quando ele me entregou, a letra já estava bastante adiantada.
Bate boca
O caso do "Bate boca", essa música inédita, até agora eu não sei o que eu faço, porque vou sentir falta do Tom implicar comigo, quando fizer alguma letra, entende... porque o Paulinho (Jobim) falou: - Mas você não vai fazer o "Bate boca" ?, e tal...
Quando ele me deu a fita do "Bate boca", a letra estava quase toda pronta. Eu disse: "Tom, faz você essa letra"... E ele: "Não, você tem que terminar, tem que dar um jeito na letra."
Luiz Roberto - Ah, o Tom já tinha feito um esboço dessa letra?
Chico Buarque - Tinha, naqueles cadernos em que ele escrevia, e cada vez que ele cantava, ele dizia umas coisas: (cantarola) "Você não quiz, você não diz, você não é..."
Eu lembro dele cantando com vários pedaços de letras, e eu disse: "Tom, é só você juntar... pede para alguém organizar essa letra para você, que ela está pronta..." E aí ele ficava me provocando para terminar a letra, mas eu não mexi nela.
É engraçado... porque com o Tom eu tive esse tipo de problema que nunca tive com nenhum outro parceiro, mas hoje, ele não estando aqui...
Luiz Roberto - Você sente falta.
Chico Buarque - Eu digo, um cara para implicar com minha letra, para mexer, para recusar, para... ele fazia isso porque ele era danado - eu lembro de "Sabiá", a polêmica do "Sabiá" no feminino...
Luiz Roberto - Uma sabiá...
Chico Buarque - Ele falava: é bom "uma sabiá", porque é linguagem de caçador... caçador não fala um sabiá, fala uma sabiá, uma gambá... e depois, ele gravou "O meu sabiá". (risos)
Ele cantava: "Minha sabiá... o meu sabiá..." O Tom era muito engraçado e eu morria de rir com ele.
Talvez isto escrito pareça uma briga, mas era impossível brigar porque eu achava graça nessas implicâncias dele... era uma coisa de birra meio infantil, então eu achava graça daquele homenzarrão implicando com "Mandei subir meu piano na mangueira" ... (risos)... porque eu sabia que era uma coisa de pirraça, de birra mesmo, e era muito engraçado isso nele.
No tempo do "Retrato branco e preto", ainda havia aquela cerimônia, e se ele tivesse falado qualquer coisa, eu ficaria arrasado - e talvez percebendo isso, ele nunca falou nada, ele aceitou como era...
E mais adiante sempre houve uma intimidade, um certo conflito. Vai ver que é por isso que o Vinicius deixou de...
Luiz Roberto - Vinicius passou o abacaxi para você...(risos)
Chico Buarque - Passou esse abacaxi... vai ver que foi...
I hate music!
O Tom era muito ligado em letra, em literatura. Ele dizia: - Sou um literato... "I hate music!"
Luiz Roberto - Ele dizia isso?
Chico Buarque - Ele gostava de dizer isso. Era difícil falar de música com o Tom... eu falava de todos os assuntos, menos de música.
Luiz Roberto - Eu nunca consegui falar sobre música com o Tom por mais de dez minutos.
Chico Buarque - Pois é, ele não gostava de falar de música... eu nunca vi ele falando de acordes, por exemplo, e também não falava de política.
Luiz Roberto - Política ele detestava...
Chico Buarque - Detestava. E adorava literatura - ele era capaz de recitar trechos inteiros de Guimarães Rosa, poemas de Drummond, T. S. Eliot, "Terra desolada", textos inteiros que ele sabia de cor. Então, ele tinha muita ligação com a parte literária das canções.
Chico tenta reconstruir Tom a seu lado.
CAPÍTULO IV - Eu te Amo
Chico Buarque - Na verdade eu não tocava músicas do Tom. Nunca toquei, porque ele me passava a música no piano, a gente gravava a fitinha, e eu levava pra casa e fazia a letra.
Luiz Roberto - E o Tom gostava muito das suas músicas, mas gostava demais. Dizia: "Pois é, Luiz, você sabe, o Chico tem essa música aqui, ouve só!" E aí ele tocava, sabia todas as suas músicas. Sempre que eu estive com o Tom e que havia um piano por perto ele tocava música sua. A "Modinha", por exemplo, ele adorava.
Chico Buarque - O Tom sempre foi muito generoso e amoroso comigo. Ele também gostava de algumas das minhas primeiras músicas, como "Ela Desatinou", "A sua lembrança me dói tanto" ...
Bororó: "Ele toca mas não grava"
Chico Buarque - Ele tinha isso com muitas músicas de outros compositores também, ele era atento. Só no fim é que ele começou ficar já meio enfastiado, intoxicado de música. Ele dizia "I hate music", mas por outro lado, o tempo todo ele ouvia muita gente nova, e antiga também, o Bororó, o Custódio Mesquita, e tal. E gostava muito do Ary Barroso.
Luiz Roberto - Tocava várias do Bororó sem errar uma nota.
Chico Buarque - Um dia eu encontrei o Bororó num escritório de direitos autorais, e eu não o conhecia. Falei: "Bororó, que coincidência, muito prazer, Chico Buarque, e tal ! Você sabe que ontem, (e era verdade) - ontem à noite eu estive na casa do Tom, e ele ficou tocando músicas suas ?" E então o Bororó respondeu: "Ele toca mais não grava". (risos)
Chico Buarque - E o Bororó é famoso pelo mal humor... Depois o Tom acabou gravando uma música dele.
Luiz Roberto - Deve ter sido "Curare", que o Tom gostava muito.
Meu Maestro Soberano
Luiz Roberto - Que coisa bonita você chamar o Tom de "Meu Maestro Soberano", naquela sua música.
Chico Buarque - Quando eu fiz essa música, em homenagem ao Tom antes de tudo - homenagem à música brasileira, mas através do Tom - eu pedi para fazerem uma cópia em CD só dessa música e mandei para ele. Eu não queria chatear o Tom, sabendo que ele não estava muito afim de ouvir música nova, e deixei um recado assim: "Tom, ouça só uma vez essa música, é uma música só !" (risadas). E ele ouviu e ficou tão contente, tão tocado.
E mais tarde até gravou a música comigo num especial de televisão. Foi uma das últimas vezes que eu estive com ele. Ele ficou todo feliz.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro
Luiz Roberto - Chico, eu quero que esta nossa entrevista se chame "Meu Maestro Soberano".
Chico Buarque - Eu adoro que você coloque esse nome. No Jardim Botânico tem uma árvore grandona, enorme, chamada Sumaúma ou coisa parecida, de que ele gostava muito, que ele abraçava. Puseram lá uma placa: "Maestro Soberano - Tom Jobim". E depois ele deu ao último disco dele o nome de Antonio Brasileiro, que é como eu o chamo nessa música.
Luiz Roberto - Essa sua letra me toca profundamente.
Chico Buarque - E era uma brincadeira com ele o tempo todo, ele tinha um pouco essa mania: "O meu pai era gaúcho, o meu avô era de Leme, em São Paulo, o meu bisavô era cearense, e eu sou até primo de Vinícius".
Aí eu comecei essa letra lembrando: "O meu pai era paulista, meu avô pernambucano..." e desembocou nele.
O Tão
Chico Buarque - Eu chamava o Tom de Tão, e ele falava: "O pessoal na roça me chama de Tão, lá em Poço Fundo."
Luiz Roberto - O (Leo) Peracchi também o chamava de Tão. "Porque o Tão é um bom menino, o Tão faz umas músicas bonitas."
Imagina
Chico Buarque - O Tom dizia que era difícil fazer letra para Imagina, porque a música tinha sido composta como instrumental. Era quase impossível botar letra naquelas notinhas todas - na verdade, não era adequada para letra. Mas a gente estava fazendo a trilha de um filme, e eu resolvi fazer a letra pra essa música. E era dificil mesmo, mas consegui fazer. Ele estava em Nova York quando recebeu essa letra, e mandou um telegrama dizendo: " It's very exquisite !" Mas no fim, ele gostou muito do resultado.
Luiz Roberto - É uma bela letra, música lindíssima. Depois veio "Anos Dourados" - e o "Piano na Mangueira" foi a última que você fez para o Tom. Contam as más línguas que você demorou para fazer a letra de "Anos Dourados".
Chico Buarque - É verdade, atrasei, mas eu não sou muito rápido não. "Anos Dourados" era pra ser tema de uma mini série com o mesmo nome, e entrou sem letra porque a letra não ficou pronta. Depois que a mini série saiu do ar, é que a letra apareceu.(risos)
Luiz Roberto - Valeu a pena esperar, sem dúvida.
Chico Buarque - (brincando) A mini série é que foi precipitada...
Olhando por cima do ombro
Luiz Roberto - O que é o Tom para você ? O que ele representa ? Na música, como pessoa, como amigo?
Chico Buarque - Para mim como artista criador é um buraco, uma falha muito grande, a ausência do Tom. Agora que eu estou voltando a fazer música depois de uns dois anos, eu procuro ressuscitar um pouco o Tom ao meu lado...
Às vezes eu tenho a impressão de que ele ainda está por aí, de que ele não vai me abandonar.
Eu disse num momento de emoção: "Tudo que eu faço é para o Tom", e realmente isso saiu de forma impensada, mas é uma verdade. Tem um poema de João Cabral (de Melo Neto) que fala numa pessoa que estaria por cima do seu ombro, vendo o que você está escrevendo - o Tom é muito isso. Muitas coisas que eu escrevi, músicas que eu fiz, eu tinha a impressão, ou gostaria, que o Tom estivesse por cima do meu ombro vendo aquilo, aprovando ou não. Mesmo porque já mais pro fim da vida o Tom não tinha mais muita paciência para ouvir coisas novas, e eu já não tinha muita esperança, já não tinha muito desejo ou intenção de mostrar música nova pro Tom, mas a existência dele ali valia como uma referência. Eu pensava: se o Tom tivesse paciência de ouvir essa música, ele gostaria. Com a ausência dele você tem uma noção mais clara do que ele representava.
Chico Buarque: um artista soberano.
Visite o site do Clube do Tom: www.nortemag.com/tom
Semana Chico Buarque
Pra começar, pedimos ao Chico para falar sobre a música popular e por que é tão expressiva no Brasil?
Olha, eu, como estou dentro da música, nem me sinto muito à vontade de fazer uma comparação desse tipo.
Fora daqui, na Europa, nos Estados Unidos, a música brasileira, a música popular brasileira tem consumo. Ela goza de um conceito muito alto. Eu não poderia comparar com outras artes para não ficar indelicado. Mas se chegou até a um casamento feliz, como aliás, eu tenho impressão que só acontece nos Estados Unidos e em Cuba. O casamento, quer dizer, a mestiçagem que gera a música brasileira, que é semelhante à mestiçagem que gera o jazz e toda música caribenha. O casamento entre a música e a letra, a formação européia dos nossos letristas, isso vem de muito tempo. A formação européia dos nossos melodistas, mas basicamente o ritmo. Os ritmos brasileiros é que dão um cunho muito especial à música popular. Acontece, como eu disse, aqui como lá nos Estados Unidos, como no Caribe. Você não vê esse mesmo casamento, essa mesma harmonia em músicas onde há menos presença do negro. Nos países andinos, por exemplo, tem a música popular, mas, ao nível internacional, ela não tem o pique que tem a música brasileira.
Na música brasileira esse elemento negro é fundamental. E a forma como ele entra, como ele se casa com os outros elementos que compõem a música. Eu vejo por aí.
No Brasil, a música popular... se você quiser considerar a música como música pura, vai levar desvantagem em relação à música mais elaborada, à música de vanguarda, à música erudita, porque recolhe elementos dessa música e assimila esses elementos, e produz junto com a letra, que também não é uma poesia, produz uma obra de arte única.
Eu não sei se as pessoas, tanto os criadores como os críticos, têm consciência disso. É uma opinião minha, pessoal. Em relação ao meu trabalho e de outros compositores, sempre falam muito nisso: "Ah, precisa publicar as letras e tal." Eu resisti sempre a isto porque me parecia sempre que era mutilar o resultado final que é a procura desse casamento entre música e letra.
Esse casamento já está na tradição da música brasileira. Na música brasileira dos anos 30, 40, aquela que eu ouvia quando era garoto, nos anos 50 com Dorival Caymi, sem falar em Noel Rosa, Ari Barroso, isso já existia. Tanto assim que eu acho que o pai da minha geração é o Vinícius de Moraes, o poeta do nosso pai é o Vinícius, que a certa altura renunciou um pouco à poesia erudita e foi fazer música popular, e foi muito criticado por isso. Mas, eu acho que ele tinha essa visão, não estava renunciando a uma coisa maior em troca de uma coisa menor. Não, estava, simplesmente, se dedicando a uma outra tarefa, tarefa não é a palavra boa, mas a outra arte.
Chico fala agora de suas primeiras preferências musicais.
Engraçado, eu fui descobrir Dolores Duran, o samba-canção, essa coisa toda, não exatamente na época que isso fazia muito sucesso. Eu nem gostava tanto assim, não. Eu gostava mais que tudo da música americana.
E gostava da música brasileira... gostava de música de carnaval, gostava de ritmo. Era um garoto. Queria pular, queria dançar. Então, o samba-canção e muito bolero que tocava nos anos 50 não me dizia muito não. Eu fui recuperar isso um pouco mais tarde, porque... até harmonicamente têm coisas muito interessantes nessas músicas, nas canções dos anos 50. O próprio Tom Jobim, que eu não conhecia, fui conhecer o Tom a partir da bossa-nova. Mas a época dele pré bossa-nova também é muito interessante. Mas a mim não dizia grande coisa não. Eu adorava rock, adorava Elvis Presley.
Na música brasileira eu gostava, sobretudo, das músicas de carnaval, das marchinhas e dos sambas de carnaval. Porque naquela época tinha isso, as músicas de carnaval tocavam só na época do carnaval, depois o que se tocava era isso, samba-canção e bolero. Havia um contraste muito grande entre o que se executava em rádio entre dezembro e o carnaval. A partir daí, a quaresma era uma quaresma musical mesmo. Você só ouvia canções lentas.
A seguir Chico fala de seus compositores prediletos.
Noel Rosa, sem dúvida, Ismael, Wilson Batista, Geraldo Pereira. Em outra linha: Custódio Mesquita, Ari Barroso e outros que estou me esquecendo agora.
Conheço, por exemplo, muitos críticos que sempre te alinharam mais ao lado do Noel e nem sei se de tua parte ou da parte do próprio Ismael Silva muita gente te... você mesmo indicava o Ismael como uma das maiores influências. Tinha alguma?
Não, o que havia era uma (riso), uma tentativa até de dizer: olha também do Ismael, porque eu fiquei muito marcado como uma espécie de um novo Noel, até porque havia algumas coisas. Havia até citações. Eu citava Noel no samba A Rita. Eu fiz algumas canções à maneira de Noel. Claro que Noel me marcou muito.
Mas eu queria dizer: também tem o Ismael. Eu gosto tanto de Ismael quanto de Noel. Mas eu não posso negar que Noel, pra mim, representou uma influência mais forte até do que o Ismael. Mas eu queria fazer justiça: Ismael estava aí vivo e esquecido. Ismael eu conheci muito, era um grande personagem. Noel era uma lenda pra mim.
Conviver mesmo eu não diria. Porque a vida que eu levava, a chamada roda-viva, pra cima e pra baixo. Eu me encontrava com eles muito naqueles programas da TV Record que juntava essa gente. Eu convivi bastante com o Ciro Monteiro, com o Ismael. Mas principalmente com o Ciro Monteiro. Aí entram motivos extra-musicais. A gente ia junto pro Maracanã. Ele era flamenguista, eu era tricolor. Motivos gastronômicos também, porque tinha um feijão que a mulher dele fazia, a Lu, que era uma maravilha. Ele tinha isso de reunir muita gente na casa dele. Vinícius era muito amigo dele também. Com o Ciro eu convivi bastante. Os outros não. Eu cruzava muito com Ataulfo Alves, que era outra antiga admiração minha. Tenho músicas feitas a la Ataulfo, pelo menos uma claramente, que é Quem te viu, quem te vê. A gente se cruzava nos bastidores do Teatro Record.
Influências
Chico fala sobre sua relação com o poeta Vinícius de Moraes.
Eu tinha já um carinho pessoal por ele. Mas isso não interferiu tanto. Eu conheci Vinícius quando eu era criança. Mas eu passei a ser fã de Vinícius a partir da bossa-nova. Foi aí que eu me interessei... Eu não lia muita poesia. Acho que eu não conhecia o poeta Vinícius de Moraes. Eu conhecia o boêmio e compositor Vinícius de Moraes, amigo lá de casa, e a partir de Chega de saudade passei a conhecer. A bossa-nova foi que desencadeou a minha paixão pela música popular e a paixão da minha geração inteira. É um ponto comum de referência de todos nós. É João Gilberto, é Tom Jobim e é Vinícius. Virou uma página mesmo. Foi a partir daí que eu comecei a me interessar pelo violão e querer fazer música mesmo. Eu gostava muito de musica. Mas eu seria talvez um arquiteto que gostasse de música.
Conheci João acho que em Nova Yorque. Depois ele voltou pro Brasil e aí tive mais contato com ele. O João vive um pouco isolado e eu respeito esse isolamento dele. Ele gravou Retrato em branco e preto bem mais tarde. Não faz tanto tempo. Há menos de 10 anos. Acho que já faz dez anos que eu não vejo o João Gilberto.
Chico fala sobra a possível influência dos Beatles.
Era, mas não tanto. Eu conversei isso outro dia com o Djavan, que é pouco anos mais novo que eu, apesar daquela cara de garoto, não é tão mais novo assim. Os Beatles pra ele representaram o que a bossa-nova foi pra mim. Existe uma idade, 15, 16 anos, quando você está aberto pras novidades musicais. Quando apareceram os Beatles eu já estava fazendo minha música. É claro que eu gosto dos Beatles, mas não teve o mesmo impacto que teve pra mim a bossa-nova. Ela me pegou veia, no momento certo, na idade exata da definição até profissional minha. Foi João Gilberto, foi a bossa-nova. Os Beatles já me pegaram dentro do bonde. Eu já estava fazendo música.
Chico fala agora sobre a presença da música estrangeira no Brasil e do fértil período da bossa-nova.
Nos anos 50 eu ouvia, sobretudo, música estrangeira, e gostava de música estrangeira. Você não pode recriminar o jovem de hoje por gostar de rock. E não poderia fazer isso porque eu só gostava de rock até o aparecimento da bossa-nova. Agora, também não foi de graça que apareceu a bossa-nova. Não por coincidência, bossa-nova apareceu num momento em que estavam germinando o Cinema Novo, os novos movimentos de teatro no Brasil, a arquitetura de Oscar Niemeyer, Brasília. Foi numa época em que havia uma euforia, um sentimento, não vou dizer ufanista porque essa palavra foi descaracterizada mais tarde, mas havia um sentimento nacional de orgulho bastante forte. Você era brasileiro e gostava de ser brasileiro, e queria construir uma nação. Isso foi abafado mais tarde, por motivos que todo mundo conhece. Vai ser difícil, hoje, forçar, através de um decreto-lei, de uma proteção de mercado, criar o mesmo espírito que resultou no aparecimento da bossa-nova e dos outros movimentos de que eu falei em todos os setores da cultura brasileira.
Chico fala agora da dificuldade do trabalho após 64 e de suas esperanças.
A partir de 64 a cultura brasileira esteve cerceada. Houve dificuldades em dar continuidade aos projetos. Os movimentos eram encarados com suspeitas. Acho que está na hora de aparecer gente nova. Inclusive porque tem gente com muito talento, às vezes desperdiçado, querendo fazer coisas. Eu tenho esperança, é claro, não sou pessimista. Tenho quase a certeza que mais cedo ou mais tarde essa página toda da bossa-nova vai ser uma página viradíssima. A bossa-nova existe até hoje. Volta e meia ela renasce porque ainda é uma música moderna. Foi criada em cinqüenta e poucos. Eu fico torcendo pra bossa-nova ser uma coisa do passado mesmo.
Antecipamos a solução de um problema que era esdrúxulo: a ausência de relações diplomáticas entre Brasil e Cuba. São dois países muito ligados atavicamente, culturalmente. Os mesmos escravos que foram dar na Bahia foram dar em Havana. Isso gera uma miscigenação muito parecida. E gera uma simpatia imediata entre os dois povos. Havia motivos políticos até pra eu me manifestar por isso, porque havia uma perseguição a tudo que dissesse respeito a Cuba. Mas a minha aproximação foi mais até com os artistas do que outra coisa. Havia a necessidade de se conhecer a cultura cubana, mesmo porque eles também tinham muito interesse pela cultura brasileira e havia essa barreira intransponível, ou quase. Eles conheciam tudo via Paris. Conheciam os discos de música brasileira que eram editados em Paris. Essas coletâneas misturando fulano e fulano. Chegava lá ele sabiam mais ou menos quem era quem, não sabiam exatamente.
Era uma barreira danada. E vice-versa. As relações foram cortadas em 64 e a visão que se tinha da música cubana aqui remontava àquela época. Era o cha-cha-cha. Não se conhecia nada do que foi feito depois. Eu acho que ajudei a trazer essa música pra cá. Não só a música. Depois houve um intercâmbio muito rico em termos de teatro, de cinema. Hoje em dia a cultura cubana é muito conhecida aqui.
Perguntamos ao Chico sobre as canções feitas de encomenda para alguns intérpretes.
É você tem que partir de alguma coisa. É um velho tema: o papel em branco..." O que que eu vou escrever?
Pra que que eu vou escrever? Se você tem pelo menos "pra quem que eu vou escrever", isso já ajuda. "Vou compor uma música pra GAL." É estimulante. Sou apaixonado por ela. É uma cantora maravilhosa. Aliás, tenho que fazer uma música pra ela nesses dias. Você acabou de me lembrar que eu tenho que terminar a música. Pensando na maneira dela cantar, isso sempre ajuda, estimula. Como é que eu vejo a Gal? Eu sinto a Gal tão claramente aqui, na minha cabeça, que eu sei que tem uma música com cara de Gal. Mas não sei te traduzir.
A Nara mais de uma vez até me ajudou um pouco mais. A Nara me encomendava temas. Pelo menos uma vez ela encomendou. Por exemplo: Com açúcar, com afeto foi uma canção que eu fiz pra ela sob encomenda. Ela pediu: "Eu quero uma canção que fala que a mulher sofre, a mulher espera o marido etc. e tal." Eu fiz pra Nara e pro tema exato que ela pediu. Uma canção sob encomenda mesmo. Mas, normalmente, não acontece isso não. As cantoras deixam a gente à vontade. O que ajuda e não ajuda.
A Bethânia é a mesma coisa que a Gal. Quer dizer, inteiramente diferente, mas eu também sei o que que é uma canção pra Bethânia. A Bethânia tem uma coisa teatral. Eu fiz muitas músicas para teatro, as famosas canções no feminino que eu fazia pra determinados personagens. Mas o personagem, às vezes, pra mim, não era tão claro quanto quem iria cantar. Então, às vezes, eu pensava no ator ou na atriz que iria cantar. Mas, às vezes, a atriz que iria cantar, iria cantar só teatro, porque não era uma cantora profissional. Então, misturava, na minha cabeça, a encomenda do personagem, a atriz e a cantora que eu gostaria que gravasse aquela música. Então saíram canções como Folhetim, que tinha a cara de Gal, que servia pro personagem, mas que eu já compus pensando que a Gal iria cantar lindamente; Olhos nos olhos, que não foi pra teatro nem encomenda pra ela, mas quando eu terminei eu falei: "Essa música tem a cara da Maria Bethânia."
Pedimos, a seguir, para o Chico falar sobre a versão de Cauby para Bastidores.
Bastidores eu fiz pra minha irmã Cristina.
Mas ele encarnou.
É. Ele encarnou. Eu lembro que eu estava pra viajar e um jornalista amigo meu, Tarso de Castro, me pediu uma música para um disco do Cauby que ele estava produzindo. Eu disse: "Não tenho nenhuma música nova. O que eu tenho é isso aqui, que a Cristina gravou. Se ele quiser gravar..." Mas o disco dele atropelou, acabou saindo antes e ele encarnou, como você disse. Ficou sendo a música do Cauby.
Quando chegava na hora do disco, muita vezes eu não tinha o material pra completar um disco. E então eu era obrigado a pegar de volta canções que eu tinha dado. Por exemplo, Olhos nos olhos eu gravei num disco meu; O meu guri eu gravei, regravei na verdade nos meus discos. Isso não responde a um projeto. Tenho a música, eu dou. Fulano está gravando, eu não estou gravando, eu dou pro cantor gravar. Eu só seguro pra mim, quando estou, realmente, em cima da gravação. Durante os dois três meses em que eu estou gravando um disco eu tenho que ser um pouco egoísta. Aquela músicas que eu compus ali, são pra mim, eu vou gravar no meu disco, são pra mim, e eu não dou pra ninguém. Senão meu disco só sai com regravação, com repeteco. E eu tenho a impressão que as pessoas compram o meu disco pensando no compositor. Eu ainda sou considerado um compositor que canta as suas músicas. E é natural que as pessoas esperem encontrar músicas inéditas.
Eu não posso dizer que eu me apresente em público com naturalidade. Tenho muito a sensação de super-exposição. Eu tenho a impressão, a impressão não, eu tenho certeza de que os grandes intérpretes usam uma espécie de uma máscara. Eles são intérpretes. Na hora que ele estão no palco eles são personagens. Eu cantei com Bethânia durante cinco meses no Canecão. É impressionante a transformação da Bethânia quando ela entrava em cena. Eu estava com ela até cinco minutos antes no camarim e era uma pessoa. Daí a pouco ela encarnava o personagem e entrava. E eu não. Eu levava pro palco os meus problemas todos. Era uma extensão de quem estava no camarim pouco antes.
A seguir, Chico comenta a nova mulher dos anos 70 e sua produção para teatro.
Nos anos 70 a mulher deu um salto incrível em direção a sua própria liberdade. Quando a Nara me pediu uma canção em 66, era da mulher submissa, não é à toa. Mais tarde a mulher começou a sair e vieram os movimentos feministas etc. Mas eu acho que essas canções são mais conseqüência do meu trabalho pra teatro, onde por algum motivo as mulheres sempre foram muito fortes. Desde a Joana que a Bibi Ferreira fazia no Gota d´água, até as personagens de Calabar. Calabar é a história de Calabar contada, na verdade, pela sua mulher, sua viúva, que é a grande personagem da peça. Na Ópera do malandro a Teresinha é a personagem que dá a volta na história. As mulheres são muito fortes nesse meu trabalho pra teatro. E eu compus para essas personagens femininas. Então era natural que as canções refletissem essa força da mulher, da mulher independente.
Caso Calabar 1973.
O episódio foi bem significativo do período que a gente estava vivendo. Aconteceu o seguinte: havia uma censura prévia (parece uma coisa tão distante: uma censura prévia). Você mandava o texto pra ser examinado pela censura federal. Esse texto era aprovado ou reprovado, ou aprovado com cortes. Ele foi aprovado com cortes. Alguns palavrões aqui, uma coisa ali, que a gente não podia levar ao palco. O resto estava aprovado. Quer dizer: sinal verde para montagem da peça. Então, nos reunimos, o Ruy Guerra, que é meu parceiro na peça e eu, mais o Fernando Torres, produzimos a peça. O espetáculo estava pronto. A estréia marcada. Aí tinha a segunda censura, a censura ao espetáculo, que é pra conferir se o que está em cena corresponde ao que foi aprovado no papel. Ou seja, ver se estão respeitando os cortes, se os palavrões foram realmente cortados, se não há um nu proibido, enfim, essas coisas que não eram possíveis na época.
A estréia é marcada. O ensaio geral pra censura é marcado e a censura não foi assistir ao espetáculo. Não foi, adiou, adiou...não foi, não foi, não foi... e aconteceu o quê? Chegou uma hora em que não havia como manter aquela produção em pé, então, falimos. Eles não proibiram. Eles obrigaram os produtores a jogar a toalha. A gente recorreu e meses mais tarde ela foi proibida pelo general Bandeira, que era o chefe do serviço de censura. Ele era superior ao chefe que tinha aprovado anteriormente. A peça foi proibida dessa forma esdrúxula, e foi proibida a divulgação da proibição na imprensa. E a palavra Calabar foi proibida na imprensa.
O resultado é que a gente não podia dizer que a peça havia sido proibida, ou falida. O disco que se chamava Chico canta Calabar teve o nome Calabar proibido. Então retiraram as capas que estavam impressas e que tinham um muro pixado com Calabar, e publicaram capas brancas mantendo Chico canta. A capa era a mesma do livro, mas com álbum que abria e tinha fotos dentro. Uma capa toda incrementada, muito bonita. E foi isso: foi uma proibição branca.
Como eram feitas as proibições da censura?
Havia proibição de músicas integralmente, e havia proibição de palavras dentro do texto. Ou você era obrigado a mudar essas palavras ou simplesmente não podia pronunciá-las. Você podia optar. Em algumas músicas eu desisti. Outras eu troquei palavras. Não só em Calabar como em outras músicas desse período. Por exemplo, em Partido alto, onde estava brasileiro, eu botei batuqueiro, onde estava titica eu botei coisica. Ou, então você cortava simplesmente a palavra. Ou como no disco ao vivo com Caetano na Bahia, o recurso foi aumentar os aplausos na hora das palavras proibidas. Atrás da porta tinha: "me agarrei nos seus cabelos, nos teus pêlos". Pêlos foram proibidos. Já a Elis quando gravou eu mudei para no teu peito. Já, aí, eu não podia mudar porque eu tinha cantado. Por um descuido eu cantei a letra correta no dia do show. Então o quê que a gente fez no disco? Aumentou o volume dos aplausos. Na hora dos teus pêlos sobe um aplauso assim, ah!!!!
Como era o esquema de funcionamento da censura para liberar as músicas?
A censura prévia que valia pra teatro valia para letras de músicas também. Antes de gravar qualquer música tinha que mandar a letra pra censura federal. E espera até a volta dessa letra, com carimbo e assinatura do chefe de censura. O que, aliás, provocava problemas graves porque gerava uma burocracia muito grandes, atrasos... E às vezes não era nem implicância. As letras se perdiam no meio do caminho. Os produtores ficavam desesperados. Era um atraso de vida danado.
É evidente que, uma vez proibido, ficava marcado. Eu e outros autores que tinhamos uma ou outra música proibida, ficávamos numa espécie de index da censura. Então a música que chegava com o meu nome chamava a atenção. E eu comecei a sofrer uns cortes bastante arbitrários. Tinha uma música que eu fiz pro Mário Reis e que não era nada, era brincadeira, e eles proibiram alegando que era uma ofensa à mulher brasileira. Chamava-se Bolsa de amores. Era uma brincadeira que eu fiz com o Mário Reis porque ele gostava muito jogar na bolsa, tinha mania dessas coisas... Era a época em que só se falava em bolsa...
Tem dupla leitura. Caberia no Naji Nahas hoje, pela letra que eu li...
Poderia até caber no Naji Nahas hoje, mas eu não estava prevendo isso não.
É que naquela época tudo tinha outro sentido...
As pessoas atribuíam às vezes outros sentidos que eu mesmo não tinha atribuído. Era uma brincadeira pro Mários Reis, sem nenhuma implicação política, mesmo porque o Mário era uma pessoa absolutamente distanciada da política. Ele ficou tão revoltado com esse caso... Ele morava no Copacabana Palace, e vivia com os grã-finos. Ele ia pra esses lugares, ele cantava a música nos cabeleireiros, pra madames...
Enfim, aí eu senti que a barra estava pesada e aí falei: vamos experimentar com outro nome que pode ser que melhore. E realmente melhorou. As três primeiras músicas que eu mandei, onde eu assinava como Julinho da Adelaide, passaram. Se fossem com o meu nome, provavelmente, não passariam. Foi um artifício que funcionou durante pouco tempo. Depois ficou meio marcado, porque só se gravava esse tal de Julinho da Adelaide, e começou a correr a suspeita de que o Julinho da Adelaide seria um pseudônimo, até que o Jornal do Brasil publicou uma matéria falando sobre a censura e divulgou a verdade: que o Julinho da Adelaide era realmente um pseudônimo.
O quê você mais gosta da obra do Caetano?
Eu gosto de tudo que o Caetano faz. Não tem o que eu gosto mais. Inclusive, porque ele continua fazendo e me surpreendo. Tenho uma relação pessoal com ele muito boa. Sempre tive.
O que que você acha que tem de mais diferente dele?
Eu sou inteiramente diferente dele. Por isso mesmo que a gente se entende bem. Essa história desse Fla-Flu que se criou... Eu até comentei com ele esses dias... é uma coisa artificial. Vai ser difícil me jogar contra ele. Apesar dos esforços que são feitos nesse sentido continuamente. Mas eu acho bobagem esperar que eu faça as músicas do Caetano ou que o Caetano faça as minhas músicas. Acho bom que ele faça as dele e que eu faça as minhas, que têm até uma origem comum, como eu disse no começo. A nossa formação é comum: a bossa-nova. Mas a cabeça dele é.... da minha. Eu me entendo com ele e acho que a minha música se entende com a dele também.
O que você acha que mais aproxima vocês, além da relação pessoal?
Eu não diria que é a música não. Diria o tempo. A gente tem uma história comum. Nós começamos juntos. E na relação pessoal é difícil você separar isso. Nós temos muita história vivida juntos. Essa geração toda, com Caetano, com Gil, com Milton, com Edu. Tem tanta coisa em comum que quando a gente se encontra não tem muito o que falar não.
Em 1979, num ensaio intitulado O minuto e o milênio, registrado no recém lançado songbook de Chico pela Companhia das letras, o crítico e músico José Miguel Wisnick dizia: "As correspondências, afinidades e diferenças entre Chico e Caetano precisam ser acompanhadas de perto. Não é a toa que, freqüentemente, um é jogado contra o outro. Sabe-se que são, realmente, duas forças. No entanto, temos a mania maldita de só enfrentar a complexidade da cultura brasileira na base da exclusão: de Emilinha ou Marlene, a Mário de Andrade ou Oswald de Andrade, e daí, a Chico Buarque ou Caetano Veloso."
Autocrítica
Para começar este quinto programa da semana Chico Buarque, pedimos ao Chico para falar sobre seu início de carreira.
Esses primeiros discos que eu gravava,(vou confessar uma coisa) eu gravava entre um show e outro. Eu fazia muito show. Durante onze anos não fiz outra coisa senão cantar e às vezes em condições precárias pelo Brasil a fora. Hoje em dia você tem todo um aparato que te permite mil comodidades. Naquele tempo era difícil. Às vezes eu chegava num lugar, sozinho, com o violão e um microfone só, e auto-falantes daqueles do tempo do onça. Hoje em dia é mais fácil. Eu fazia show pelo Brasil inteiro e entrava no estúdio os arranjos já estavam feitos, já estavam gravados, eu chegava lá, botava minha voz em cima. Hoje quando vou gravar um disco me dedico só a gravar o disco. Então eu estou lá trabalhando junto com arranjador, fazendo o que eu quero. Hoje eu assino inteiramente. Naquele tempo não. E ia conhecer a capa dum disco (aliás, umas capas horrorosas) quando já estavam impressas, prontas. Não posso nem culpar tanto a gravadora, porque era um pouco displicência minha também. Porque eu estava viajando, porque eu estava fazendo show pra cima e pra baixo e não era muito cuidadoso com relação aos discos. Esse ano andei trabalhando em cima desse songbook, o que me dá uma perspectiva do que foi meu trabalho esse tempo todo. Eu comecei a perceber coisas que na época eu não percebi. Eu estava fazendo as coisas sem perceber o que estava fazendo. Eu tenho a impressão que eu gravava esses discos sem a menor idéia que vinte anos depois eu iria ter que falar sobre eles. Eram produtos inteiramente descartáveis.
Chico aceita nossa proposta e analisa sua carreira através de seus próprios discos.
Eu tenho três discos que são praticamente iguais. São discos que reúnem as músicas que eu fiz ainda quase não profissionalmente. Eu era um estudante de arquitetura que fazia música e tomava cachaça. No meu terceiro disco tem músicas que eu já tinha composto na época do meu primeiro disco. Um disco é continuação do outro. São de uma fase (hoje eu falo de carreira), mas na época eu não tinha a menor idéia de que estava criando pra mim uma profissão, uma carreira. Era uma brincadeira. Uma extensão da minha vida de estudante.
Chico continua avaliando sua obra.
Já o quarto disco é um disco complicado, porque eu gravei na Itália, eu morava na Itália. É o disco mais irregular que eu tenho. Eu gravei esse disco, que chama-se Chico Buarque de Hollanda nº 4, quando eu morava na Itália. Eu mandei as fitas com as canções pro Brasil. Aqui no Brasil foram gravados os arranjos todos, as bases. O produtor, que se chamava Manuel Berimbau, voltou pra Itália com essas bases e eu coloquei a voz em cima. Eu não podia voltar pro Brasil, ou não devia voltar pro Brasil. Compus as músicas também a toque de caixa porque eu tinha que gravar, eu estava morando na Itália e vivendo com uma certa dificuldade. Esse disco é um disco de transição. É o disco da minha maturidade, não como compositor, mas como ser humano. Eu estava morando na Itália, com problemas pra voltar pro Brasil, com uma filha pequena... Virei um homem. Eu era moleque. Virei um homem e não sabia o que dizer. Então, as músicas estavam com um pé ali e outro aqui. Um pé no Brasil e outro na Itália. E eu sem saber exatamente o que ia fazer da minha vida: Ah! Bom...vou ser compositor? Vou viver disso... vou ter que encarar isso a sério... vou ter que encarar a vida a sério. Uma série de circunstâncias me levaram a isso. A estar morando fora do Brasil e estar casado e com uma filha, e a ter que pensar pra valer na vida. Eu tive dificuldade. São as músicas mais arrancadas a fórceps que eu tenho. Essa fitinha que eu falei que mandei pra cá, o Manuel Barenbein, que eu chamava de Manuel Berimbau, ficou lá, eu me lembro, durante uns quinze dias em Roma, sentado diante de mim a dois metros de distância, e eu terminando a música e dizendo: espera aí Manuel, estou terminando aqui essa música... Tem músicas que eu terminei nas coxas porque eu tinha que gravar esse disco. Tinha obrigação profissional de gravar esse disco senão... Eu tinha assinado contrato com a gravadora. Esse contrato profissional foi que me permitiu através de um adiantamento continuar vivendo na Itália, porque eu não tinha condições financeiras de me sustentar na Itália. Então eu tinha que cumprir esse contrato. Tinha que gravar as músicas pra pagar o dinheiro que eu tinha pedido emprestado. A história é essa. É um disco feito por necessidade. Os outros três discos anteriores são desnecessários (ri). Eu precisei passar por isso pra chegar ao disco seguinte, que é Construção, que já é um disco maduro como compositor. Aqui é um disco em que eu estou maduro como homem, como ser humano. Pera aí. Sou gente grande. Tenho uma filha pra criar. Acabou a brincadeira. Mas eu não sabia ainda como exprimir essa perplexidade.
Tua idéia seria os três primeiros discos, depois o Chico 4, gravado na Itália, e a partir de Contrução você entrou no teu padrão.
Eu não sei se daqui a vinte anos, quando eu olhar pra trás, eu não vou ter outra visão do que eu estou fazendo hoje, do que eu fiz há pouco tempo atrás. A gente não tem essa perspectiva. Eu fui obrigado a fazer essa revisão e entender o que se passava comigo há vinte e cinco anos, que foi quando eu comecei, há vintes anos, que foi quando eu gravei esse disco na Itália. Consegui entender isso agora.
Perguntei, a seguir, sobre um possível alívio de produção, a partir do disco branco, com ilustração de Elifas Andreatto. Como era um momento de conflito com a gravadora, ele discordou.
Parecia que aquele disco branco marcava já um Chico mais sereno...
Já vejo diferente. Vejo um disco bastante angustiado. Sem dúvida, isso que você está dizendo, agora, é outra história. Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde Construção até Meus caros amigos, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto... eu nem acho que eu faça música de protesto... mas existem músicas aqui que se referem imediatamente à realidade que eu estava vivendo, à realidade política do país. Até o disco da samambaia, que já é o disco que respira, o disco onde as músicas censuradas aparecem de novo. Não havia mais a luta contra a censura. Enfim, a luta contra a censura, pela liberdade de expressão, está muito presente nesses cinco discos dos anos 70. São discos com a cara dos anos 70. Construção, Quando o Carnaval Chegar, Caetano e Chico ao vivo, Calabar, que nem se chamou Calabar, ficou sendo só Chico Canta, Sinal fechado, onde eu canto só músicas de outros compositores, e Meus caros amigos. Disco por disco, você vai ver isso. Fica bastante claro que a partir de 78 minha música está respirando melhor.
Processo de criação.
Não existe um processo. Se houvesse me facilitava muito a vida. Às vezes eu tenho vontade de fazer, tenho a música encomendada, ou mesmo pra eu fazer um disco, e a coisa não aparece com tanta facilidade. A gente vai acabar chegando na história da encomenda. De repente, eu consigo trabalhar mais sob pressão. De onde vem eu não sei te dizer. Normalmente elas vêm em série. Uma puxa a outra. Há períodos em que não acontece nada. Posso passar 4, 5, 6 meses sem compor uma única canção. Tentando e não conseguindo. Já desistindo de tentar. Já pensando que não dá mais pé. Pensando que tem que partir pra outra. Quando eu comecei a gravar tinha na gaveta 40 músicas. Gravei meu primeiro disco, gravei o segundo e ainda gravei o terceiro com resto de músicas que estavam na gaveta. Há aquele entusiasmo juvenil, quando não se tem nenhuma autocrítica. Vai dizendo qualquer coisa. Mais adiante começam as dificuldades porque você não quer se repetir. Os caminhos começam a ficar mais estreitos. Você sabe exatamente o que não quer fazer. O que você quer fazer, às vezes, a gente perde de vista.
Quando eu aceito uma encomenda, assim como quando eu assino contrato pra gravar um disco, eu assino com a consciência de que estou blefando, que estou assinado um cheque sem fundo, porque eu não sei de onde é que eu vou tirar aquilo. Isso mais adiante vai me criar problemas. "Por que que fui aceitar tal encomenda? Por que que eu fui aceitar fazer esse disco? Por quê que eu fui aceitar escrever pra essa peça?" Mas tem funcionado. É claro que isso gera uma angústia muito grande. Uma insegurança. Você sofre.
Perguntamos ao Chico se essa paúra da encomenda, no fundo não é proposital. Se isso não torna a coisa mais quente.
Realmente se você me pedir uma música pro seu programa de rádio do ano que vem eu vou dizer: "OK. Pode deixar." Quando chegar uma semana antes eu vou lembrar: "Ih! Eu tenho que terminar essa música." Você perguntou pelo processo de criação, pra mim é um mistério. Eu não sei porque que existe isso. Eu não gostaria de ficar me criando essas angústias. Trabalhar em cima da hora não é nem saudável, porque quando você vai trabalhar vira a noite, se desgasta. Se eu pudesse ter uma disciplina de trabalho, uma organização de vida que me permitisse fazer as músicas uma por mês, direitinho, guardar ali no escaninho e amanhã apresentar, entregar sempre no prazo, seria formidável, acho. Mas não é assim. Não sei trabalhar assim.
E quando as composições não são sozinhas, são composições em parceria. Eu vi que na estante da sua casa você tem fitinhas com músicas. São músicas tuas ou de outros compositores?
Eu guardo músicas minhas que ficaram incompletas e que eu posso mais tarde retomar, como já fiz. Agora, mais do que tudo o que eu tenho lá é acervo imenso de outros compositores. Quando eu comecei a fazer letras pra outros autores... no começo eu não fazia. Depois comecei a fazer, pro Tom, uma coisa ou outra. Depois comecei a incrementar esse tipo de trabalho que é um trabalho bastante diferente do trabalho de música e letras. É outra coisa. Outro departamento. Talvez até por uma certa carência de letristas, porque a gente tem muito mais músicos do que letristas, e um pouco talvez pra suprir a falta de Vinicius. Eu herdei vários parceiros do Vinicius. O próprio Tom, Francis Hime, Edu, tinham o Vinicius como seu principal letrista... Toquinho... Então eu fiquei sendo o letrista dessa gente e de outros. Eu comecei a gostar. Eu gosto de fazer letras. Eu recebo muita encomenda. Não é tudo que eu consigo fazer. Também não é fazer porque gosta ou não gosta. Aí entra outro mistério. Você não consegue às vezes encaixar uma letra. É difícil. Tudo é difícil.
Chico fala agora sobre seu trabalho como letrista.
Você tem que entrar na cabeça do compositor. Tentar adivinhar. Se você fosse ele, o que você estaria dizendo com aquela música. Às vezes você adora uma música... eu tenho músicas lindíssimas do próprio Tom, do Piazzola, do Baden Powel, que eu não consegui fazer letra. Eu faço questão de respeitar cada nota do meu parceiro. Faço exatamente como ele quer. O fato de eu fazer música ajuda, evidentemente, porque eu fico conhecendo melhor o som das palavras, a musicalidade das palavras. Se não soubesse música eu não saberia fazer letras pra música. Mas eu respeito cada nota musical que o parceiro me manda.
O tema agora são os parceiros do Chico. Adivinhe quem é o primeiro.
O Tom é o que mais interfere. O Tom, às vezes, entrega a música, já com uma idéia do que ele quer como letra. Então, às vezes, isso cria dificuldades. Agora mesmo tem uma, que se chama Bate-boca. Ele já me entregou a música com a letra quase toda pronta. Eu falo: "Tom, essa letra você mesmo vai terminar." Mas ele quer que eu mexa ali, pra ele remexer, por sua vez. O Tom é um caso muito especial porque ele é, além de tudo, um grande letrista. Eu digo pra ele: "Tom, você é o seu melhor letrista." E ainda tem mais um agravante: eu não consegui me libertar do culto ao Tom, que é muito forte desde Chega de saudades. Eu tenho intimidade com o Tom de sentar com ele lá na Plataforma, onde ele está almoçando sempre, e conversar com ele como um amigo. Mas quando chega a coisa profissional eu fico um pouco intimidado, além de ele não me ajudar (risos), ele me intimida. Ele não me ajuda por isso, porque eu fico intimidado. "Poxa!! Fazer uma música pra Tom!!"
Chico fala agora sobre Francis Hime.
Acho que o Francis nunca escreveu uma letra. Aí é o contrário do Tom. Ele não me dá nem sugestão. Nem título nem nada. Deixa comigo e está lá... em aberto.
Chico continua falando sobre seus parceiros musicais (Milton).
Cada música tem uma história. Cada parceiro tem uma história. Quando faço eu música pro Milton, eu quero fazer com a cara do Milton. As músicas que eu fiz pro Miltom, foram pro Milton cantar. Procurei fazer uma letra que eu achasse com cara de Milton Nascimento cantar.
SIVUCA
Cada música tem uma história. Eu tenho uma parceria com o Sivuca que é engraçada. Ele fez a música, que ficou se chamando João e Maria. Ele mandou uma fita com uma música que ele compôs em 1944, por aí. Eu falei: "Mas isso foi quando eu nasci." A música tinha a minha idade. Quando eu fui fazer, a letra me remeteu obrigatoriamente pra um tema infantil. A letra saiu com cara de música infantil porque, simplesmente, na fitinha, ele dizia: "Fiz essa música em 47." Aí pensei: "Mas eu criança...". e me levou pra aquilo. Cada parceria é uma história. Cada parceiro é uma história.
Trabalho de dança e de teatro com Edu Lobo.
O Edu é diferente porque quase todas as músicas que eu fiz com ele, senão todas, foram compostas pra projetos. Pra peças de teatros e dois balés, O grande circo místico e Dança da meia-lua, do Teatro Guaíra. Então, tanto ele quando faz a música e me manda, como eu quando faço a letra, nós temos um objetivo: fazer a música pra um determinado tema, personagem. Não é em aberto como é com Francis. O que apareceu desses trabalhos, em disco, é a parte das canções. E tem todo um trabalho dele que não foi gravado porque há pouco interesse por música instrumental no Brasil hoje, mas é um trabalho muito bonito. O desenvolvimento dessas canções instrumentais é uma coisa preciosa. Ele tinha idéia de lançar em disco, mas estava difícil. Não há muito interesse por música instrumental.
Trilhas para filmes.
No caso do Cacá, Joana Francesa, ele me mostrou o roteiro. Eu li e gostei muito. E eu tinha que compor a música antes dele filmar porque a Jeanne Moreau ia cantar a canção-tema no filme. E em Quando o carnaval chegar foi a mesma coisa. Mas, normalmente, essas músicas entram quando o filme já está pronto. Eu vou compor em cima das imagens que eu assisto em banda dupla ou na moviola. É o caso do próprio Cacá, em Bye, bye, Brasil; do Bruno bsarreto, em Dona Flor e seus dois maridos, Miguelzinho Farias em República dos assassinos. Normalmente eu faço em cima das imagens.
Como é que é a tua vida hoje? Você continua tendo tempo pra ouvir?
Tenho. Agora eu estou saindo do estúdio. Praticamente saí há um mês. Fiquei durante quatro meses sem ouvir nada. Mesmo porque você tem medo até da interferência de fora. Então não vai ao cinema, não ouve música, não vai ao teatro, não faz nada disso. Agora eu vou entrar num período de alimentação. Aí vou ouvir coisa que eu deixei de ouvir ou ouvi com menos cuidado na época do lançamento. Vou ouvir isso tudo. Faço questão de ouvir. Faço questão de me informar.
Hoje, seu tempo de lazer ou profissional é um tempo mais de leitura?
Depende da época. Em período de eleição eu leio os jornais de cabo a rabo. Leio tudo. Leio todos os jornais. Vou à banca comprar jornais de outras cidades, de outros Estados. Tem épocas que eu leio desbragadamente, um livro atrás do outro. Depois fico um tempo sem ler. Mas geralmente no período em que não estou criando.
Perguntamos a seguir ao Chico se a celebridade o incomoda.
Não. Não me incomoda. Eu não assumo ares de celebridade nem ando por aí vestido de celebridade. Ando por aí normalmente pela rua. Ando um pouco depressa pra não ter que ser interrompido. Mas convivo naturalmente com isso.
Mas quando você viaja pra fora você se sente mais livre?
Eu confesso que às vezes eu gosto de dar um pulinho... Vou a Paris. Gosto muito de andar pela ruas e não ser reconhecido, ninguém perguntar nada. Às vezes preciso desse descanso. Também de ser tratado normalmente, como um ser humano comum. Aqui sempre tem aquela coisa....te fazem muita festa. Faz falta você dar um pulo aí fora e às vezes ser maltratado por aquele motorista de táxi ou aquele cara do café que joga aquela xícara de qualquer jeito....Você sente o maior prazer. "Opa!!! Sou anônimo."
Chico segue falando sobre sua rotina de vida.
Eu gosto muito de andar. Eu sou um andarilho contumaz. No Rio, apesar da ladeiras, eu ando bastante. Mas me param muito na rua e oferecem carona, pensando que eu estou com o carro quebrado. Ninguém anda nessa cidade! "Olha o Chico!!! O que está fazendo aí?" "Eu tô andando." As pessoas ficam com pena de mim subindo a ladeira e tal... Eu ando, se puder, duas, três horas seguidas. Adoro cidades. Adoro entrar num buraco e me perder num bairro. Isso aqui fica um pouco difícil.
Lá fora você faz mais isso?
Faço sem parar. Só gasto sapato. Aqui eu faço também. Eu procuro não me incomodar. Como eu disse, não saio por aí com ares de celebridade.
A seguir, Chico fala sobre morar no exterior.
Com a Itália, mais especificamente com Roma, eu tenho mais intimidade. Eu morei lá dois anos quando era criança e morei um ano e meio agora adulto. É uma cidade que eu domino perfeitamente. Conheço meus cantos. Minhas querências. Gosto de Paris também. Mas pra morar fora, nunca!
Aí perguntamos ao Chico qual é o país dos seus sonhos.
Eu sonho um Brasil onde todo mundo tenha satisfeitas as suas necessidades básicas. Isso me incomoda profundamente. A miséria nas ruas me incomoda profundamente. A falta de oportunidade de trabalhar, de estudar, de ter acesso à saúde. É um país incompleto enquanto não resolver isso. Enquanto não resolver a questão básica. Isso me incomoda porque é um absurdo um país como o Brasil estar no estágio que está. Também acho, e isso não é novidade, que a solução para o Brasil tem que ser uma solução brasileira. A gente não vai importar modelo nenhum. Quando eu falava de Cuba, e continuo falando, é um país tropical que resolveu seus problemas básicos. Então, a partir daí tem muita coisa pra ser discutida. Mas em primeiro lugar, todo mundo tem que er acesso à educação, à saúde, à moradia, transporte, enfim, viver dignamente. Eu estou falando de Cuba porque é um exemplo latino-americano. A Europa tem outra história. E a história do Brasil é a nossa história. A gente vai ter que resolver isso à nossa maneira. Não estou querendo importar nem o modelo social-democrata da Europa, nem o modelo socialista cubano. Eu não sou político, não sou candidato a nada, mas sonho com isso.
Sobre o futuro que queremos. Ele descarta a existência de modelos ideais.
O que me assusta é que o Brasil não tem nada em termos satisfação de necessidades básicas... não chega aos pés nem da Europa Ocidental, nem da Oriental. Quando ficam falando da ditadura, da falta de liberdade lá fora, eles colocam isso como empecilho pra luta pela justiça social no Brasil, isso é que me deixa um pouco irritado. Vamos resolver os problemas básicos daqui! Assustar com essa história do comunismo não cola mais. Muito menos agora. Vai-se caminhar pro socialismo, se for o caso, tendo em vista o socialismo democrático, que pra mim é o sistema ideal. Durante a época da ditadura se falava sempre no comunismo como sendo um monstro que come criancinhas, e se falava isso como justificativa para não se lutar por nada. A greve era sempre considerada subversiva e tentavam assustar as pessoas com o fantasma do comunismo. Não é por aí! A gente não podia deixar de lutar porque o comunismo devora criancinhas.
Iniciamos agora a última hora da semana Chico Buarque. Continuamos conversando sobre a vida.
Você já falou que gostaria que as condições básicas de vida fossem preenchidas para a maioria da população. Mas o que você acredita que vá acontecer nesse tempo?
Isso virá mais cedo ou mais tarde. Por bem ou por mal. Porque não é possível que continue assim. Não sou eu que estou achando. Isso salta aos olhos. A desigualdade social, a violência que isso gera. A gente vive nas cidades com uma série de muros de Berlim. Eu mesmo, vivo num condomínio, onde quem está fora não entra e quem está dentro não sai.
É a história da gafieira.
É a história da gafieira. Está se criando isso no Rio de Janeiro, São Paulo... são uns núcleos de riqueza cercados de miséria. Isso vai ter que ser resolvido, mais cedo ou mais tarde. Tomara que mais cedo e tomara que por bem!
Vamos entrar agora num terreno de dificílimo acesso: o ato de criar.
Humberto Werneck: Um dia eu cheguei na casa dele e ele falou: "Olha tem uma coisa aqui que você vai gostar." E me mostrou uma fita. E nessa fita que ele me mostrou ele está tentando arrumar, dar uma forma final a um refrão do samba Dr. Getúlio, que ele tinha feito com o Edu Lobo pra peça de mesmo nome, do Ferreira Gullar e do Dias Gomes. Então você vai ouvindo aquele refrão. Ele cantando e tocando violão, e de repente você percebe. Daquela música nasce uma outra. Feita um galho. Mas é um galho de uma outra árvore. Com uma emoção extraordinária, eu percebi que era o Vai passar. Que estava começando a nascer aquela coisa muito informe, aquela coisa meio fetal ainda, mas já se percebia a música ali. Foi uma experiência absolutamente emocionante pra mim. Você percebia que ele ia tocando aquele pedacinho de música, caía outra vez no refrão do Dr. Getúlio, voltava pro Vai passar, ainda sem letra, sem nada. Eu percebia ele se acercando da música como se a música estivesse pronta fora dele e ele estivesse tentando pegar aquilo com a mão.
Essa história não terminou aí. O Chico explica a nova idéia.
Eu tinha até o registro de eu fazendo essa música. Eu estava terminando uma música com o Edu e comecei a ter idéia desse samba. Comecei a ter a idéia musical e algumas pinceladas do que eu queria como letra. Foi na época daquela euforia das diretas. Eu imaginei que podia se fazer um samba composto a vinte mãos. Juntei lá em casa um dia uma porção de amigos e mostrei o samba como estava sendo feito. A música não estava pronta. Tinha um problema, que eu não conseguia chegar ao tom original. A música ia modulando e eu não conseguia voltar. E foi o Francis que, no fim, virou meu parceiro, concertou a melodia. Aí começamos a cantar. É claro que foi uma bebedeira e não saiu letra nenhuma. Eu acabei chegando à conclusão de que a música só pode ser feita no máximo por duas pessoas. A não ser esses sambas de carnaval. Cada um começou a dar um palpite mas não saiu nada. Era uma idéia bonita. Fiquei depois um ano com ela parada e falei: "Um dia vou fazer ainda." Aí desisti e acabei retomando um ano depois e terminei sozinho a letra.
Só agora Chico tem editado o seu songbook. O nome é Letra e música, editado pela Companhia das Letras, em dois volumes, com histórias, letras e partituras. O texto do primeiro volume é de Humberto Werneck, e é ele quem faz um balanço do trabalho.
Humberto Werneck: Uma coisa que me agrada muito de ter feito esse trabalho é ter podido devolver ao Chico uma série de memórias dele mesmo. Ouvindo mais de 50 pessoas, como a mãe, irmãs, colegas de ofício como Caetano, Gil, Milton Nascimento, Tom Jobim, a colegas de faculdade, de colégio, pessoas que testemunharam episódios diferentes da trajetória dele, eu recolhi muita coisa de que o Chico não se lembrava mais. Vou dar um exemplo: ele, numa certa altura, na época da jovem guarda, se divertia muito fazendo uns rocks. Pra tirar um sarro em cima da jovem guarda, pra rir um pouco daquilo, bem dentro do espírito moleque dele. Eu consegui reconstituir, com o Toquinho, algumas passagens dessas letras. À medida em que eu ia fazendo os capítulos eu ia mandando pro Chico. Não pra que ele avalisasse, ou desse o nihil obstat. Mas pra que ele ajudasse a filtrar algumas incorreções. A minha esperança era que ele viesse a acrescentar, como fez, algumas coisas. Eu percebi que ele se divertiu muito.
E a vida também, com o passar do tempo, a vida vai mudando. Suas filhas estão crescendo. Uma filha já casou. Pode ser que mais dia menos dia você seja avô. Com a possibilidade de ser avô, você prevê de novo uma possibilidade de um disco infantil?
É engraçada essa história de disco infantil. Na época eu tive uma dificuldade muito grande pra lançar esse disco (Saltimbancos) porque não havia o menor interesse por parte das gravadoras em lançar um disco infantil. Eu batalhei esse disco e praticamente fiz sozinho. Eu só fiz esse disco porque eu tinha um contrato com a gravadora que permitia tomar algumas liberdades. Eles não tinham interesse em lançar esse disco. Hoje em dia acho que há um excesso de música infantil. Descobriram a criança como mercado comprador de disco. Isso me incomoda um pouquinho. Então, eu não tenho muita vontade de gravar um disco infantil. Agora, se você me ameaça com essa perspectiva de ser avô, talvez o avô, daqui a uns tempos, ceda sentimentalmente ao apelo e componha pra criança de novo.
Quais são teus planos?
Autobiografia, com certeza, não. Dirigir um filme, também não. O que eu sinto no momento é uma total ausência de planos. Terminei esse disco. Depois veio a questão da eleição e eu tirei um tempo. Não tenho a menor idéia do que eu vou fazer. Não tenho essa rotina. Até gostaria de ter, já falei, talvez fosse mais saudável. Mas não. Eu estou com aquela folha de papel branco na frente agora pra fazer qualquer coisa, que não vai ser uma autobiografia, mas pode ser um disco novo, pode ser uma peça de teatro, um livro, qualquer coisa. Não estou com plano nenhum pela frente.
Entrevista com Chico Buarque
Quais foram os tipos de música que mais marcaram o início de sua carreira musical?
Chico - Musicalmente, minha influência vem muito do rádio que eu ouvia na infância, principalmente música brasileira, mas também música americana, um pouco de jazz, alguma coisa de música francesa, principalmente alguns letristas como Brassens e Jacques Brel, música italiana, que na época eu tocava, os próprios boleros de Lucho Gatica... Tudo isso faz parte da minha formação musical. Agora, fundamental, pra mim, foi a entrada em cena da bossa-nova, quando eu realmente comecei a tocar violão e tentar fazer música. Eu compunha musiquinha no colégio e aquela coisa toda, muito de brincadeira, mas com a bossa-nova eu comecei a tomar contato com o instrumento e tentar fazer harmonias parecidas. Tentava imitar as harmonias do Tom Jobim, a maneira de cantar do João Gilberto... A influência é muito vasta, muito confusa até. Agora determinante mesmo pra minha formação como profissional foi a bossa-nova.
Houve alguma influência do movimento tropicalista na sua produção musical?
Chico - O tropicalismo assumiu e assimilou bastante rapidamente, por exemplo, a guitarra elétrica, coisas que até então eram consideradas sacrílegas - era um sacrilégio usar guitarra elétrica no samba. E ao nível de comportamento também, aquela influência dos Beatles e tal. Eu, de certa forma, não remo contra a corrente a vida inteira, mas, por temperamento, por natureza, eu resisto um pouco aos modismos e à penetração da música estrangeira aqui no Brasil, porque ela entra de forma maciça e ao cabo dos anos acaba realmente se integrando na música brasileira. Por exemplo, a bossa-nova se diz que tinha influências do jazz e tinha. Eu já peguei o bonde andando. Já peguei a música com harmonia mais sofisticada, mais tarde fui obrigado a introduzir nas minhas músicas os instrumentos eletrônicos - nas gravações, porque eu continuo sendo um compositor de pau e o meu violão é aquele violão careta mesmo, onde apreendi a fazer música e até hoje faço. É claro que de lá pra cá houve uma evolução muito grande na minha música, na medida em que eu fui não só tomando aulas teóricas como fui tomando uma intimidade muito maior com o meu instrumento. Hoje eu conheço o violão bastante, eu procuro harmonias, eu me divirto muito com isso, eu crio. Tenho uma preocupação na construção harmônica que eu não tinha nas primeiras músicas que, apesar da influência da bossa-nova, eram harmonias quase simplórias, era um pastiche porque eu queria fazer bossa-nova mas não sabia. Hoje eu tenho um caminho meu, eu sei o que estou fazendo com o meu instrumento. Em outras palavras, sou menos intuitivo do que era antes.
E essa sua mais recente ligação com a música cubana, a que se deve? Há muita semelhança entre as músicas cubana e brasileira?
Chico - A música cubana e a música brasileira sempre caminharam juntas, ou melhor, sempre trilharam caminhos paralelos. Se tomarmos conhecimento da música cubana é claro que ela é diferente da brasileira, mas as origens são as mesmas, a mestiçagem é a mesma. Como eles tem lá a rumba ou som que lá fora ficou sendo conhecido - comercializado - como salsa, aquele ritmo dançante corresponde um pouco ao samba no Brasil. Por exemplo, nos anos 50 eles tiveram um movimento chamado "filin", do inglês sentimento, que se formos ver, é muito parecido com o samba-canção: Dolores Duran, as harmonias de Johnny Alf. Era uma coisa bem sofisticada, bastante próxima do samba-canção. Mais tarde também a bossa-nova influenciou os cubanos. Essa questão da entrada dos instrumentos eletrônicos via Brasil chegou a Cuba. É um fato curioso: na época o diretor do ICAIC, o Instituto do Cinema Cubano, esteve no Brasil, por volta de 69. Ele era muito amigo dos cineastas todos e levou uma quantidade de discos brasileiros pra lá. E nessa época estava se formando um grupo que se chamava: Grupo de Experimentação Sonora, que estudava teoria pra fazer música para cinema. O ICAIC foi fundado no ano da Revolução. O cinema cubano já estava bastante evoluído e a música continuava um pouco aquilo: era o cha-cha-cha, a rumba, o som. E essa geração que se formou pra fazer música pra cinema é a geração que se conhece hoje como a Nova Trova do Silvio Rodriguez e do Pablo Milanés. Há uma série de coincidências e hoje eles têm a música deles, essa influência já é longínqua, mas eles têm um parentesco conosco. Por exemplo "Pequeña serenata diurna" do Silvio Rodriguez e uma homenagem explícita à bossa-nova na criação dele, é uma bossa-nova cubana.
A partir do seu disco "Pelas tabelas" parece haver uma preocupação bem maior com os arranjos de sua música. Como foi que isso aconteceu?
Chico - Nos primeiros discos as músicas passavam do violão para o arranjador, que criava o seu arranjo. Hoje em dia eu continuo precisando do arranjador, mas faço questão de acompanhar no estúdio cada passo da gravação; cada acorde meu eu quero que seja respeitado e ele é respeitado. E não é desde agora, já em discos anteriores, com o Francis Hime, ele transpunha pro piano os mesmos acordes que eu tinha criado no violão. Já a partir do penúltimo disco, esse que tem o "Pelas tabelas", eu participei mesmo da produção do disco ao lado dos produtores: o Homero Ferreira no caso dos dois discos, naquele primeiro com Chico Batera e agora com o Carlinhos Vergueiro co-produzindo. Acompanhei todo o trabalho, na escolha dos músicos também eu dava palpite. Não encontrava o prato feito como era antigamente: eu entregava a música e depois ia botar a voz lá adiante; tinha um lapso no meio do caminho que eu não acompanhava e agora não, eu faço questão, tomei gosto pelo estúdio. Antigamente eu fazia discos e outras coisas ao mesmo tempo, por exemplo shows, e hoje não. No caso atual, estive gravando durante quatro meses, normalmente gravando e compondo ao mesmo tempo, e fazendo somente isso.
Houve, ao que nos parece, uma acentuada mudança na sua interpretação a partir do show Caetano e Chico Juntos. Como se deu essa mudança?
Chico - Em primeiro lugar tem a ver com o Caetano, porque como foi um show em dupla e o tom do Caetano é mais agudo que o meu, eu era obrigado a soltar mais a voz. Ao lado disso está a entrada dos instrumentos eletrônicos - porque antigamente eu estava fazendo show e, de repente, era só eu e o violão, muitas vezes eu com o violão e mais o Toquinho também com o violão acústico. A partir dos anos 70 era obrigatório, já de cara, o baixo elétrico, porque ninguém mais carregava aquele trambolho de cima pra baixo, e também a guitarra elétrica. Já não havia mais aquela coisa intimista da bossa-nova e eu, que cantava querendo imitar João Gilberto e aquele som todo acústico, era obrigado a soltar mais a minha voz, em função do acompanhamento que era todo mais gritante, mais estridente. Fui atingindo outros níveis que eu normalmente não ousava, fui soltando mais a voz.
No disco "Sinal Fechado" você praticamente só interpreta canções de outros compositores. Isso se deve unicamente à censura da época ou não?
Chico - Era uma idéia que já existia, não foi uma emergência. Foi também uma emergência porque foi um ano especialmente difícil em termos de censura, eu não tinha material liberado para fazer um disco. Daí a idéia de fazer um disco com música dos outros. Um pouquinho pra me afirmar como cantor, já que era muito contestada essa afirmação. Eu já há muito tempo pensava: "Ah! Um dia eu vou gravar um disco como cantor." Porque eu gosto de cantar música dos outros, sempre gostei. Agora, tem esse lado mesmo circunstancial, pra preencher um vazio, eu não tinha material, a única música que eu tinha liberada na época era com pseudônimo, era o Julinho da Adelaide que eu assinava. Então, juntei as duas coisas e gravei esse disco, "Sinal Fechado".
Logo no início de sua carreira você foi considerado como sendo a "única unanimidade nacional", unanimidade essa que não durou muito, a se julgar pela crítica que, já em 68, passou a tratá-lo de forma bastante severa. Como é que você vê essa questão?
Chico - Essa questão da unanimidade é muito perigosa porque quando se afirma que fulano de tal é uma "unanimidade nacional", no mesmo momento deixa de ser, porque vem alguém que logo toma a iniciativa e diz: "Ah! Eu não acho." Na época da "Banda" eu era um garoto de 21 anos que não despertava realmente nenhuma controvérsia maior. Era uma coisa inocente e, principalmente, nem eu mesmo me posicionava profissionalmente, eu era um amador, um estudante de arquitetura que cantava sem maiores ambições. Não representava perigo para coisa alguma, para ninguém, e era facilmente assimilado, acho que é lógico: a pessoa está aparecendo, tímida com aquele violãozinho, não havia assim tanto motivo para despertar uma oposição mais forte.
Qual foi a primeira música que você gravou?
Chico - "Pedro Pedreiro", em 65. "Pedro Pedreiro" ainda era resquício do movimento que havia da chamada resistência, que foi logo depois de 64, quando veio aquela onda toda do "Opinião", da oposição que se fazia dentro dos teatros, na música popular, já que noutros campos a oposição foi abortada, calada e então ela se transferiu das fábricas, da praça pública e do Congresso para as artes: o teatro, o cinema, e a música. Agora, essas coisas se desgastam sozinhas, porque quando vira moda é um perigo, acontece isso, esses movimentos são sempre pendulares. Quando compus a "Banda" eu me lembro que - pra não dizer que havia unanimidade - havia, sim, uma discreta condenação por parte da esquerda que ainda insistia em ouvir o grito de "Opinião", o grito de um "Carcará" e tal. A Nara Leão, aliás, me acompanhou nesse movimento porque ela também já estava um pouco cansada dessa tal música de protesto que se fazia então e que não passava das portas do teatro e que no fim das contas era ineficaz. A "Banda" era uma retomada do lirismo, proposital mesmo, porque eu não era tão inocente assim quanto parecia. Eu tinha um passado, também discreto porque eu era muito garoto, de luta estudantil. Eu já estava na faculdade, sem ser militante, porque eu era mais anárquico do que seria até de se imaginar hoje, brincava muito, mas o golpe de 64 me feriu bastante. É claro que com o tempo eu, de repente, me vi na "roda-viva" mesmo. E a peça, um pouco mais do que a música "Roda-viva", era uma espécie de desabafo, uma afirmação de onde eu estava me metendo sem ter percebido, eu já não podia mais levar adiante, a vida inteira, a careta do menino de 21 anos que cantava a "Banda". Já não era mais a minha realidade e isso chocou as pessoas que esperavam que fosse só o lirismo - a gente não é só uma coisa. Existe sempre a tendência a catalogar: fulano é assim, fulano é assado. E depois, hoje, eu acabo tendo que lutar contra a imagem oposta, como sendo aquele guerreiro que também não sou. Nós somos contraditórios e a música é abrangente, não tem filiação partidária, acho que ela corre mais livre do que isso. Eu, pessoalmente, como cidadão, posso ter filiação partidária se quiser, posso assumir posições políticas até rígidas se for o caso, até radicais. Mas isso não deve, a não ser em momentos extremos da nossa vida política - e nós passamos por alguns momentos assim - interferir na minha criação artística. Hoje, por exemplo, eu me sinto livre pra criar, independentemente da situação do país que continua sendo calamitosa. Mas não sou eu quem vai conduzir uma reforma agrária, não sou eu quem vai produzir um reforma ou uma revolução social. Eu posso como cidadão opinar. Agora, minha música tem uma identificação com o povo brasileiro, com a cultura brasileira, isso é importante, a identidade cultural brasileira, e disso eu não abro mão.
Até que ponto o público interfere na sua produção?
Chico - Eu tenho pouco contato com o público, faz dez anos que eu não tenho contato com o público e isso me distingue de outros artistas, talvez. Eu trabalho dentro do estúdio, de casa pro estúdio. A receptividade do público à minha música não é mais imediata, leva um certo tempo. Isso me descompromissa um pouquinho com o êxito imediato de uma canção, o que pode ser bom, o que pode ser ruim também; é uma faca de dois gumes. Pode, de certa forma, me afastar desse público, ao mesmo tempo também me libera de um compromisso, eu fico mais solto. É uma coisa que eu penso bastante: até que ponto é um prejuízo ou não. Antigamente eu compunha uma música, às vezes no meio de uma temporada de shows, quando eu estava empolgado, e no dia seguinte já cantava essa música pro público, apresentava: "Olha, em primeira mão, saidinha do forno." Isso era vivo. Hoje não, eu faço shows por acaso, não tenho feito show meu propriamente, não tenho uma agenda de shows. É claro que isso interfere na minha criação, mas não sei se pode interferir pro bem ou pro mal, eu estou disposto a correr esse risco.
E a crítica, ela interfere?
Chico - A questão da crítica já até suscitou várias polêmicas e mal-entendidos e muitas vezes tenho que ficar repetindo a mesma coisa: eu acho a crítica que se faz no Brasil paupérrima, acho podre, o que não quer dizer que eu não goste da crítica. Eu gosto de crítica, por isso que eu estou dizendo que ela é ruim. Meu pai, inclusive, foi crítico literário. Há críticos formidáveis; no campo da música popular há poucos, há alguns que realmente gostam de música. Agora, a maioria ou está ali porque não tem outro espaço pra ocupar, ou tem um espaço muito pequeno e não tem tempo de desenvolver suas idéias. Na verdade a crítica me incomoda pouco, às vezes irrita um pouco quando o tom é muito agressivo e pessoal; isso acontece também, mas corresponde a andar na rua e alguém te xingar a mãe sem motivo nenhum aparente, ou te atirar uma pedra. Eu não sou insensível a isso, mas não interfere no meu trabalho criativo de forma alguma porque não me acrescenta nada.
Na década de 70 você teve muitos problemas com a censura; qual foi a repercussão disso na sua produção?
Chico - A censura interferiu não só diretamente, interferiu também indiretamente na medida em que já se estava condicionado a certas palavras que não se podia dizer porque já se sabia que era gastar tinta à toa. Então se exercia auto-censura, isso eu nunca neguei porque se não era dar murro em ponta de faca, ou então sair de vítima: "Olha aí, mais uma música censurada." O que não era bem o tipo de trabalho que eu estava querendo fazer. Eu queria ter minhas músicas aprovadas e, evidentemente, às vezes tinha vontade de dizer algumas coisas, então eu dizia por vias oblíquas. Isso interferiu na minha criação sim, interferiram às vezes também os cortes que eles faziam. Quando eles eram muito benevolentes, eles sugeriam cortes em algumas letras, então eu refazia alguns versos; às vezes eles não cortavam a música inteira, ou cortavam mas subordinando a uma nova apreciação, a alguns cortes que eles apontavam. Às vezes não, era sumário, cortavam a música inteira e pronto.
Uma dessas canções sumariamente censuradas parece ter sido "Tanto mar". Qual e a história dessa música?
Chico - Há músicas que não pretendem ser eternas, são crônicas de um determinado momento. Eu não acho que toda minha produção musical seja assim, mas realmente há canções que eu fiz para um determinado momento. É evidente que "Tanto mar" foi feita logo após a Revolução dos Cravos, naquele entusiasmo do 25 de abril de 74. Eu, aliás, passei por lá, por acaso, dias depois, me contagiei e fiz a música. Quando fui gravar aqui no Brasil, ela foi vetada integralmente. A música saiu sem letra, eu tocava no Canecão e tinha uma flauta que fazia o solo. Mas sobre essa base eu gravei essa letra que foi lançada no disco em Portugal, a versão cantada de "Tanto mar". Três ou quatro anos depois a letra foi liberada, mas eu já não estava mais tão entusiasmado com a Revolução dos Cravos. Então fiz uma releitura, reescrevi dizendo assim: "a semente está aí, aquela semente de 74 continua" "n'algum canto de jardim". Mas eu já não estava mais naquele clima todo de euforia que estava em cima do lance quando a música foi composta, como um repórter de um momento histórico.
Outra canção feita para um determinado momento foi "Angélica", que você dedicou a Zuzu Angel após sua morte em 76. Por que você fez essa música? Você a conheceu?
Chico - Eu conheci muito a Zuzu. Ela foi uma mulher que durante anos depois da morte do filho não fez outra coisa senão se dedicar a denunciar os assassinos do filho, a reivindicar o direito de saber aonde é que estava o corpo dele. Ela ia de porta em porta mesmo. E lá em casa ela ia com muita freqüência, como em outras casas também. Ela sabia, inclusive, das ameaças que pairavam sobre ela e dizia que tinha certeza que se alguma coisa acontecesse com ela a culpa seria dos mesmos assassinos do filho, que ela citava nominalmente. Na manhã do dia em que aconteceu o acidente com ela, ela tinha estado lá em casa e deixado as camisetas que ela fazia, gravadas com aqueles anjinhos que era a marca dela, para as minhas três filhas. Aquilo me chocou muito. Ela passava em casa quase semanalmente, mostrando os relatórios todos do trabalho que ela estava fazendo aqui e nos Estados Unidos - porque afinal, o pai do Stuart era americano - então ela tinha contato com senadores americanos, inclusive alguns dos quais me lembro até hoje, como o Frank Church, o Mondale, que era um dos senadores com quem ela contava - nunca contou com o Reagan, evidentemente... Ela tinha, inclusive, na lista dela, uma relação das posições políticas dos senadores e tinha até alguns "ultraconservatives" (ultra-conservadores) que por se tratar de um filho de cidadão americano, eram simpáticos ao clamor de mãe dessa mulher. Ela chegou a entregar a documentação ao Kissinger pessoalmente, se não me engano, no Hotel Sheraton, quando ele esteve aqui. Clandestinamente ela furou o bloqueio e, um pouco depois, lhe entregou uma pasta com os documentos todos que ela tinha e distribuía entre as pessoas em que confiava, gostava. Ela morreu um pouco depois disso.
Há alguns estudos sobre os diferentes momentos da sua produção artística. Como é que você definiria seu trabalho atual?
Chico - A definição do meu trabalho, a classificação em fases é mais fácil pra uma pessoa que está de fora fazer do que pra mim. Eu posso até concordar à distância, por exemplo, a fase do lirismo dos primeiros tempos, hoje eu tenho uma distância crítica - autocrítica - pra poder concordar. Eu não tenho muita idéia do que estou fazendo hoje não. Eu tenho uma idéia concreta do trabalho em si, mas não dentro de uma trajetória. Posso falar do que estou fazendo, mas quase à parte de todo o resto, porque pra mim é uma coisa à parte. Mais tarde, daqui a dez anos, talvez, olhando eu identifique isso melhor.... Eu agora, mais do que nunca, estou fazendo um trabalho musical. No caso do "Malandro", de aprimoramento musical mesmo. No caso do "Corsário "é diferente porque eu só fiz as letras. E nesses dois discos, não é novidade pra mim, mas eu mergulhei no trabalho feito sob pressão, sob encomenda pra determinadas situações: pra teatro e cinema. Foi um trabalho intenso porque eu de repente me vi às voltas com dois trabalhos e pouco tempo pra realizá-los, e eu não pude brincar em serviço. "O Malandro", como é uma adaptação da peça e a peça é minha, e a adaptação também é minha junto com o Ruy Guerra e o Orlando Senna, eu mesmo me encomendei esses trabalhos. "O Corsário" já é diferente porque o roteiro é do Boal e as músicas do Edu. No caso do "Malandro", acho que muita coisa vai ser entendida com o filme. Não é um disco de trilha porque eu acho que as canções funcionam independentemente do filme, que eu não conheço ainda - no momento que o Ruy estava rodando o filme eu estava no estúdio de gravação. Eu tenho muita esperança, tenho muita confiança nesse trabalho e acho que as músicas vão se completar com as imagens do filme.
O que você está achando da crítica que se tem feito aos seus dois últimos discos?
Chico - Os discos foram lançados agora e eu ainda não sei como é que eles vão repercutir. A gente está sempre enfrentando uma barreira difícil de execução, de divulgação, porque, de certa forma, são discos que vão um pouco contra a corrente atual. Eu já disse várias vezes que não tenho nada contra o rock, mas não faço ou quase não faço rock e acho que deveria existir alternativas pra uma batida e um som padronizado que a gente ouve no rádio. Eu tenho dificuldade até em colocar minhas músicas no rádio. Agora, a crítica de certa forma recebeu bem esses trabalhos, com a exceção de São Paulo, onde sofri um ataque violento, ou levei um susto, num órgão de imprensa paulista. Mas depois ficou explicado, porque apareceu uma carta apoiando essa crítica, dizendo que eu estava apoiando o PSDB - e o crítico tinha toda razão porque eu estava mesmo. Aliás a crítica não falava propriamente do disco, falava de mim pessoalmente como uma pessoa que já era. Eu já fora várias vezes, já nasci tendo sido. Aliás, um amigo meu, espírita, por coincidência disse que eu tenho a alma muito velha, mas disse que isso é bom, que já passou por muitas coisas e então não padece tanto, me protege um pouco. Agora essa explicação do leitor me ajudou a entender a crítica. Eu queria lembrar só uma coisa: entendo que exista essa confusão entre o artista e sua obra, eu não vou dizer que eu mesmo - mas eu não sou crítico - seja isento. Eu tendo a antipatizar um pouco com o Frank Sinatra, por exemplo, mas no fundo, se eu fosse crítico, eu teria que reconhecer que ele é ou foi um grande cantor. Isso aconteceu algum tempo atrás quando se começou aquela coisa da Abertura. Houve uma onda muito forte contra o grupo baiano, que estava um pouco reticente. O Caetano e o Gil, que não estavam apoiando explicitamente alguns movimentos. Na época, eu me lembro que meu nome foi muito usado pela imprensa em contraponto à posição dos baianos, como sendo, eu sim, um lutador. E eu tomei a iniciativa de desautorizar esse tipo de comparação, mesmo porque uma coisa não tem nada a ver com a outra: se o Caetano e o Gil não quiserem participar da abertura política, é um direito que lhes cabe, não se pode misturar isso com a crítica. E aconteceu isso, os shows de Caetano e o Gil eram esculhambados, e eu notava, o que é muito claro, que os dois artistas, pra citar os dois casos mais extremos, eram odiados pela crítica porque não estavam de acordo com a onda editorial do jornal. Os jornais estavam respirando aquela coisa do fim da censura que a eles, editores, interessava, evidentemente, e agora mudou o quadro. Eu só queria lembrar que se as pessoas não simpatizam, e eu acredito que muitas pessoas não simpatizem com minhas posições políticas por esse ou aquele motivo - com meu apoio a Fernando Henrique em São Paulo isso ficou muito agudo, muito mais do que aqui no Rio, do que em qualquer outro lugar - e eu preferiria que eles não misturassem as coisas, porque meus discos, nem o "Corsário" nem o "Malandro", eles não têm nada a ver com o PSDB nem com o Fernando Henrique, pelo amor de Deus. Eu entendo que isso aconteça, mas é mais uma falha da crítica de uma maneira geral e que é causada ou por incompetência, ou por desonestidade, ou por subserviência. Uma vez eu denunciei isso aqui no Rio num órgão de imprensa carioca. Eu disse: "Bom, eu não sou bobo nem idiota, eu imagino que tenha alguém lá em cima que não tenha muita simpatia por mim, porque eu vejo notas contra mim em toda parte, até na coluna de futebol...'' Não é brincadeira, na coluna de futebol aparecia: "Chico Buarque não foi à preliminar do Maracanã, e foi bom porque ele não passa a bola pra ninguém, ele é o dono da bola..." Numa época em que eu saía na crítica de culinária - eu não estou exagerando -, saía que eu tinha sido visto na fila de filme pornô, na coluna social, em toda parte. E eu dizia: "Ou a redação inteira está contra mim, o que eu não acredito, ou então jornalistas menos independentes estão querendo agradar alguém lá em cima." É o que está acontecendo com esse órgão de imprensa paulista, infelizmente. Porque, inclusive, eu fiz assinatura na época da votação das Diretas, porque foi o jornal que, por interesse ou não, tomou a frente das eleições diretas. Durante aquele tempo em que ele usava aquela tarja amarela eu tive a assinatura, quando ela terminou eu dei graças a Deus, por que já não era o jornal que eu tinha assinado. Em São Paulo o fato de eu ter apoiado o Fernando Henrique me causou prejuízos sérios, não só junto à Juventude janista, que é um perigo sempre, como frente a um segmento dos chamados petistas. E eu estranho muito porque tenho grandes amigos petistas, meu pai era petista, Antonio Candido é um grande amigo meu e é petista, Hélio Pellegrini... Eu estou falando dos dois porque nós viajamos agora pra Cuba e conversamos muito sobre isso. E eu volta e meia me queixo com meus amigos petistas - tenho muitos com quem jogo futebol -, e eles falam: "Ah, mas esses são os maus petistas." Mas tem muito mau petista por aí... Eu não sou petista porque não sou filiado a partido nenhum. Mas sempre simpatizei, desde o início, com a formação do PT, sempre tive ótimas relações com o Lula, mas os meus intelectuais não são esses que misturam as coisas, eles são outros, é outro tipo de PT. Além disso, eu também disse em entrevista - não sei se saiu - que, se fosse o caso, em São Paulo de apoiar, o Suplicy pra ganhar do Jânio, eu apoiaria, iria à praça pública - se ele tivesse chance de ganhar. Apoiei Fernando Henrique porque o considero mais preparado que Suplicy, mas fora isso ele era o candidato que tinha condições de bater o Jânio. Eu sustento e vou até o fim com isso. Se os petistas não gostarem, paciência. Eu sou muito transigente com as pessoas e com os partidos. Detesto intransigência. Minha única intransigência é com a intransigência. Eu entendo até que as pessoas se comportem assim e tudo bem, eles que continuem com o trabalho deles. Meu trabalho está aí e eu estou feliz com ele.
Desde "Com Açúcar, com Afeto", em 67, você vem fazendo muitas canções sobre a mulher. De onde vem essa preocupação?
Chico - "Com Açúcar, com Afeto" foi uma encomenda da Nara, ela me pediu. Na verdade tinha a ver com uma coisa que se fazia antigamente e que tinha sido abandonada, como "Camisa amarela'' do Ari Barroso. Talvez por falta de compositoras mulheres, porque a gente tem poucas. Temos muito mais compositores que compositoras. Eu acho que as mulheres têm que tomar consciência e assumir o papel delas. Eu quero é que surjam mais compositoras, se não eu vou ter que ficar me travestindo a vida inteira. "Com Açúcar, com Afeto" foi logo no início da carreira, depois o que veio não foi por outro motivo senão o fato de estar fazendo música para personagens, de estar ligado a cinema e a teatro, escrevendo para teatro e fazendo música para cinema. Tenho necessidade de me colocar na psicologia de personagens diferentes e, entre eles, mulheres. Não só mulheres, marginais, operários, etc. Eu tenho que tentar pensar como essas pessoas. Assim como eu escrevo o diálogo do filme, como em 0 Malandro, e como escrevi o diálogo de outras peças, por exemplo, a mulher fala e eu tenho que dizer: "muito obrigada, tenho que tentar raciocinar como essa mulher. Não acho que seja nada muito complexo. É um motivo prosaico, de necessidade profissional. Agora, a gente vai aprendendo, se especializando, e hoje eu gosto mais dos personagens femininos das minhas peças. Talvez eu os trabalhe melhor do que os masculinos.
Você sempre trabalhou com teatro e cinema. De onde vem a sua ligação com essas outras artes?
Chico - O movimento de música se apresentava muito em São Paulo, onde havia, talvez, um público maior do que o do Rio e onde fervia o teatro. A gente se reunia ali no Bar Redondo, em frente ao Teatro de Arena, onde a gente se topava o tempo todo: os atores de teatro, o pessoal de cinema e o de música. É dessa época, por exemplo, o "Deus e o diabo na terra do Sol", em que a participação do Sérgio Ricardo no filme do Glauber foi importantíssima; o "Arena conta Zumbi - o Edu com o Guarnieri e o Boal, etc. Havia uma interligação entre as artes muito maior do que hoje. O meu primeiro trabalho, ainda como estudante, foi pra teatro: fiz a música pra "Morte e Vida Severina", poema do João Cabral; trabalhei junto com os atores, viajei com eles pra Nancy. Tenho ligação com teatro e cinema tão forte quanto com a música; mais com teatro, talvez, do que com cinema. Este veio mais tarde e agora, talvez, eu comece a tomar mais gosto. Essa experiência com o Ruy pode vir a ser uma grande experiência. Eu já participei de outros musicais brasileiros, mas, por um ou outro motivo, não foram experiências inteiramente bem sucedidas. Eu participei como ator de "Garota de Ipanema", filme do Leon Hirzman; de "Quando o Carnaval Chegar"; participei como roteirista do "Para Viver um Grande Amor"; e agora como argumentista, roteirista, dialoguista e músico de "Ópera do Malandro". Além disso fiz músicas para uma infinidade de filmes. Já nem lembro agora: vários filmes do Cacá, como "Bye Bye Brasil", "Joana Francesa"; de "República dos Assassinos" do Miguelzinho Faria; de "Dona Flor e seus Dois Maridos", do Bruno Barreto... Minha ligação com cinema e teatro é muito forte, e acho que vai continuar. Tenho vontade de escrever uma peça de teatro, coisa que eu não faço há muito tempo. Nem sei se é exatamente um musical, acho que a música vai acabar aparecendo, como apareceu em "Gota d'água", que ficou com a cara mas não era um musical; tinha algumas músicas, mas era um texto mesmo. Estou sentindo falta de parar um pouquinho e escrever um texto novo.
Quais foram os motivos que o levaram a escrever, junto com Paulo Pontes, a peça "Gota d'água"?
Chico - Na época em que o Paulo Pontes me chamou pra escrever a "Gota d'água" com ele, a palavra no teatro estava relegada a um ultíssimo plano, por mil motivos óbvios - a situação que se vivia e tal. O que se fazia mais era expressão corporal, e o texto nacional não era quase encenado no Brasil. E o Paulo Pontes teve a intenção de, com a peça, ressuscitar o teatro nacional como texto, e me chamou pra essa parceria exatamente por isso. Ele queria que eu desse um polimento poético ao texto que ele ia escrever. Na verdade a idéia original era do Vianinha, que já tinha feito uma readaptação da "Medéia" de Eurípedes pra televisão, um Caso Especial e pretendia fazer o mesmo para teatro. Depois da morte do Vianinha o Paulo Pontes me procurou com essa idéia da retomada do texto no panorama do teatro, que tinha ficado parada no meio do caminho.
De onde surgiu seu interesse por obras infantis?!
Chico - Isso foi por causa das minhas filhas; é evidente que eu não tinha nenhuma preocupação pedagógica anterior, nem mesmo uma ligação maior com crianças. Só fui ter mesmo quando minhas filhas começaram - não a nascer, porque eu não me dou bem com bebê, não -, mas a se manifestar, quando surgiu a necessidade de conversar com as crianças em casa. "Chapeuzinho Amarelo" foi bem isso. É uma estorinha que eu contava pra minha filha dormir. Depois eu dei uma forma mais literária pra publicar o livro. São estórias que eu conto até hoje pra essa filha que tem dez anos, a última que ainda ouve minhas estórias, e que de vez em quando me chama pra botar pra dormir e contar estórias; aí eu invento estórias que me vêm a cabeça. "Saltimbancos" era isso também. Na verdade foi só uma versão que eu fiz, uma adaptação do texto e de um disco italiano, numa época em que não havia uma produção específica para crianças aqui no Brasil. Engraçado porque hoje em dia existe uma produção voltada pro mercado infantil muito grande e na época era um descrédito total. Eu só consegui lançar esse disco porque esse meu amigo e parceiro, Sergio Bardotti, me cedeu um fonograma com a base toda, a orquestração, tudo de graça. E eu trouxe o pacote aqui pra Polygram, da qual eu era contratado, e disse: "Olha e só chamar quatro cantores que a gente produz esse disco." E eles: "Ah! Tudo bem." Pra fazer uma gracinha pra mim, pra não contrariar o artista, pro artista não ficar zangado, deixaram que eu gravasse esse disco e no fim foi gravado com Miúcha, Nara, o Magro e o Rui, quatro cantores e o coro; a produção mais barata do mundo e a venda até que foi surpreendente pra época. Acho que vendeu cem mil discos. Porque havia somente aqueles discos com as versões do João de Barro, o Braguinha, aquelas velhas versões do Chapeuzinho Vermelho de músicas americanas, naqueles disquinhos coloridos.
Arte popular só com o povo no poder
Quem trouxe o Chico para este jornal foi um amigo. Amigo dele, principalmente, meu e de vocês, certamente: um patife chamado Tarso de Castro. Não sei se vocês lembram, mas o primeiro Folhetim já tinha uma história com o Chico. Era uma partida de futebol de salão: o Chico na defesa, porque ele não joga no ataque. Quer dizer, jogar ele joga, mas prefere a defesa. O que não o impede, jogando, de ser ataque. Coisas do Chico. Depois, o mesmo Tarso perpetrou um Chico Cio da terra. Isso mais adiante, tendo ocorrido aí nesse meio tempo um Folhetim 8 com Chico Olhos nos olhos, e que não teve nada a ver com Tarso. Agora que passamos, sem o Tarso, do número 100 (ele nunca gostou de números redondos, até gostaria mas isso é outra história), o Chico está de volta botando água no feijão. Pra coisa ficar completa duma vez. Vamos dizer que essa coisa é a questão democrática, para ficar claro. Vocês aí engrossem o caldo como se deve quando se recebem amigos.
O Chico falou, no começo, numa sala da gravadora.
E continuou na sala da casa dele, no alto da Gávea. Aproveitem, que não é sempre que se tem uma feijoada completa.
Folhetim - A gente podia começar falando do que está acontecendo, quer dizer, fora todos os feriados... das pessoas falando de partidos, procurando espaços políticos. O Chico Buarque falando como criador, não apenas como cidadão.
CHICO - Tem horas que essas duas coisas se misturam. Acho que esse não é o momento para se misturar as duas coisas, inclusive de ficar cobrando do artista uma postura como cidadão, porque esse momento é adiantado ou atrasado. Aconteceu muito, de 68 a 74 principalmente. Havia um vazio político profundo no país inteiro. As opções que se apresentavam eram muito pobres para interessar o jovem, as pessoas que gostariam de estar participando de alguma forma da sociedade. Então, é evidente que nesse período qualquer palco virava uma tribuna, mesmo não querendo o sujeito estava lá assumindo uma posição.
O tempo todo, a cada momento, a cada canção e a cada entrevista. Agora, acho que chegou um pouco a hora do artista. Estou falando do meu ponto de vista pessoal, passar um pouquinho dessa função, porque na realidade esse artista não está preparado para responder com muita nitidez a uma questão mais profunda. Num momento em que eu transfiro em termos de popularidade meu prestígio pessoal para um candidato a senador, a deputado, essa é a posição política mais clara que eu posso assumir. Apoiei fulano, então ele vai falar por mim. A posição de fulano é a que eu apoio. Em 72, por exemplo, não existia isso, as pessoas votavam nulo, não tinham por que falar se preocupando com discussão política. Eu andava pelo interior fazendo show com estudantes e mesmo a grande maioria deles, a discussão mais profunda que travavam era se a maconha do Ceará era melhor que a do Maranhão. Não ia muito além disso. Eu, lá, cantava Construção, Deus lhe pague e aquilo tinha uma função política efetiva, tenho consciência que tinha. Depois de um certo tempo, aí já não me satisfazia mais esse papel, porque parecia que eu estava jogando com um baralho falso, estava continuando a transformar um palco numa tribuna quando na verdade os problemas nacionais pra valer já podem ser discutidos, principalmente a partir do momento em que a imprensa começou a ser menos censurada. A grande mudança foi essa. Eu sou uma pessoa de oposição, não tenho simpatia nenhuma pelo governo... mas esse governo abriu a imprensa, e não abriu porque é bonzinho, foi forçado a abrir, mudou tudo no País.
Folhetim - Um dos jeitos mais fáceis de chamar a atenção das pessoas para o Fernando Henrique Cardoso era dizendo que você o apoiava para o Senado...
CHICO - É, isso ainda é o resto dessa deficiência que está aí. Se existisse liberdade para valer não precisava realmente usar o nome dos artistas para promover fulano. As pessoas saberiam que... sei de casos de pessoas que na boca da urna votaram no candidato de Chico Buarque, da Regina Duarte, existe isso. O ideal seria que elas soubessem por que fulano é candidato de fulano. Não simplesmente uma credibilidade que você tenha. Sem lei Falcão, sem cacete a quatro o povo realmente estaria votando nesses candidatos e saberia por quê.
Folhetim - Falando na censura, você acha que acabou a marcação? Quer dizer, censuraram a música que você fez para as Frenéticas, ao mesmo tempo em que liberaram outras, antigas.
CHICO - É, Mambordel. É claro que a libertação dessas três que estão no último disco foi uma coisa muito pensada. Foi uma jogada, e muito bem bolada porque eu não podia reclamar, porque liberaram as músicas. O máximo que eu podia fazer era não gravar em sinal de protesto. Eu soube da libertação pelo jornal. Isso é muito maior que o rancor de um ou outro censor. Isso existiu em tempos, não só com relação a mim mas a outros compositores e gente de teatro, Plínio Marcos, por exemplo.
Folhetim - Com ele continua.
CHICO - Continua, em teatro ainda há centenas de peças proibidas. É claro que a liberação de uma peça de teatro tem menos repercussão que a liberação de uma música de um compositor popular.
Folhetim - Você sabe por quê censuraram essa música para as Frenéticas?
CHICO - Digo sinceramente, nunca tive muita idéia porque estavam censurando. Às vezes liberam música que a gente pensa que vai ser proibida. O Mambordel deve ser atentatório à moral e aos bons costumes. Essa música foi feita para um filme que afinal não se fez, mas fiz para uma situação do filme em que as prostitutas conseguiam enxotar o dono do bordel - é uma fábula - o grande gigolô delas, e diziam: "Foi proclamada a república nesse bordel." E termina assim: Ao povo nossas carícias, ao povo "nossas carências, as nossas delícias e as nossas doenças."
Folhetim - Faça um balanço dessa sua luta com a censura.
CHICO - Não foi uma luta pessoal, mas em alguns momentos ela assumiu aspectos pessoais. Eu era pessoalmente incomodado, quase semanalmente. Em cada lugar que eu ia, era obrigado a comparecer ao Deops. Isso quando estava fazendo show, aqui no Rio eu era chamado regularmente ao Deops. É claro que isso foi me afetando pessoalmente e eu reagia às vezes até de uma maneira menos racional. No aspecto geral essa picuinha não pesa nada. Aí a discussão é outra: é a gente fazer um balanço do prejuízo que a censura representou para nossa cultura esse tempo todo.
Folhetim - Isso mesmo. O que fizeram deste País?
CHICO - Liberarem essas músicas (do disco) não significa absolutamente nada. O prejuízo não foi maior pra mim nem pra ninguém, foi para a arte nesse País mesmo. Eu acredito que o público que assiste a uma peça de teatro que tenha alguma ousadia, alguma contribuição, saia desse mesmo espetáculo enriquecido, é um dado a mais para a cabeça desse público. Isso significa que no mês seguinte, quando voltar ao teatro, ele vai querer uma acréscimo a essa sua informação ou emoção. Então o autor é obrigado e desafiado a estar sempre criando mais e melhor. Isso durante um ano representa já um salto cultural de todo o País, durante dez anos é realmente o que se chama desenvolvimento cultural de um país. O contrário é emburrecimento. O público que deixa de assistir as peças, não viu Rasga coração, do Vianinha, por exemplo, perdeu com isso. Os autores dramaturgos também perderam, porque não são obrigados a fazer uma coisa melhor que aquilo, e vão ficando parados no mesmo lugar, emburrecendo com as moscas em volta. Aí chega um cara qualquer e diz assim: em Portugal, depois de 50 anos, abriram as gavetas e não tinha nada... É, evidente, depois de um certo tempo ninguém fica escrevendo coisas maravilhosas pra botar na gaveta. Ele tem necessidade de exibir seu trabalho, de ter o reconhecimento ou o repúdio do público, ele precisa desse diálogo e o público também. Se não houver esse diálogo morre. Isso vale para teatro, para cinema, para música, para todas as áreas. Tenho certeza que se não tivesse havido essa censura toda, a música brasileira estaria muito melhor, eu estaria um compositor melhor do que sou, haveria muita gente nova, muito mais do que há hoje.
Folhetim - Muita coisa mudou no Brasil na relação do jovem com o poder.
CHICO - A gente, pelo menos, tinha a ilusão ou a certeza de estar de certa forma participando da Nação. E o jovem participava: através de sua atividade estudantil ou de outra, ele tinha consciência de que estava participando. Hoje, o máximo que ele pode almejar é um bom emprego quando sair da faculdade. A coisa foi colocada toda em termos de competição e nada mais. Estou falando de classe média , da minha classe, porque se você for olhar em volta as opções são trágicas. E ninguém garante nada, essa pequena abertura que houve pode ser retirada amanhã de manhã. A única vantagem que tem é eu estar falando essas coisas e saber que elas vão ser publicadas no jornal. Aí há um salto, se você comparar isso com 73, quando proibiram Calabar e proibiram a imprensa de falar no assunto, aí realmente era o buraco, aí não tem saída. Pelo menos a gente já está podendo falar dessas coisas, já é um progresso. Esses anos todos da ditadura do Médici é que foram uma das coisas mais pobres.
Folhetim - Não pode ter sido pura falta de talento você, por exemplo, não ter continuadores.
CHICO - Evidente que não, não acho que faço parte de uma geração privilegiada pela natureza, pelos astros... Outro dia apareceu um americano aí querendo fazer uma reportagem sobre os jovens arquitetos brasileiros. Eu falei com um arquiteto dos seus 37, 38 anos que disse que acabou entrando ele na reportagem, ele e os colegas. São os garotos prodígio de 15 anos atrás. A pergunta que vocês me fazem é bem essa mesmo: fizeram deste País... Durante esses anos o jovem foi uma pessoa conduzida por todos os meios de comunicação e por todo o sistema que esta aí a ser uma pessoa desprovida de ideal, de criatividade. Quero deixar muito claro que se não tem aparecido muita gente depois da minha geração é simplesmente porque as dificuldades são muito maiores do que eram antes. São dificuldades que inibem qualquer talento. Tenho a certeza de que se fosse dez anos mais moço, não seria um compositor, ou seria medíocre, frustrado ou desconhecido.
Folhetim - Nesse teu último disco tem muita música cubana. Resultado da viagem que você fez no começo do ano?
CHICO - É, e também tem muita música que canto com Milton no disco dele. Na verdade, enquanto estive lá trabalhei tanto, fiz tanta coisa em tão pouco tempo, que só fiquei com uma vontade danada de voltar e realmente vou voltar. Naqueles vinte dias fiz um show de música brasileira e música cubana, isso envolveu ensaios e o diabo. Fizeram um documentário comigo que, aliás, esta sendo exibido lá agora, outro dia recebi uma crítica. O que mais tocava a gente era a semelhança que existe entre os povos em todos os aspectos dos seus costumes e a paisagem também, que é o Nordeste brasileiro igualzinho. Lá, cada vez que me perguntavam sobre Cuba eu estava sempre falando do Brasil, tava ficando até chato: me perguntam sobre Cuba eu respondo sobre o Brasil. A gente tinha até uma brincadeira, todo cubano que aparecia tinha um igual no Brasil: olha fulano! Tem coisa demais: no humor, na música, no ritmo, no calor - e de repente tudo é diferente. Chocante não existir consumo, consumismo, não existir propaganda de produtos. Minha mulher foi comprar um creme hidratante e deram um potinho com um negócio marrom dentro. Ela acostumada com Ponds, Helena Rubinstein, olhou aquilo sem rótulo, sem nada, com um aspecto meio feio e perguntou: não tem outro? (risos). A senhora não quer creme hidratante? É isso. Depois usou, deu ótimo resultado, mas você está viciado por aquele apelo... Se eu for falar de Cuba não paro mais. Até quando cheguei lá e dei uma entrevista, saiu uma frase assim: "Aqui em Cuba vejo o Brasil que nós sonhamos..." Depois soube que essa mesma frase foi dita por um famoso político brasileiro que está aí, aliás na Arena...
Folhetim - Mas e a presença soviética, incomoda?
CHICO - É claro que lá você vê muito russo, búlgaro, romeno. Você cruza com aqueles russos, uma coisa que não têm nada a ver com a paisagem, fica assim meio exótico. Aqueles caras de gravata e tal, você entra no hotel e vê os caras, mas vai aqui no Sheraton e vê: você vai encontrar uma quantidade de americanos muito maior.
Folhetim - Durante a campanha eleitoral você apoiou alguns candidatos e tal, mas você fez muito mais do que isso. Você ressuscitou a paródia, naqueles jingles para o Fernando Henrique, o Audálio Dantas, etc... A paródia, que é uma coisa que se fazia antigamente...
CHICO - Você falou nisso e lembrei, nesse tempo também se usava muito músicas de carnaval: Lata d'água na cabeça. Chora doutor e por aí. Essas músicas são da minha infância, dos anos 50, lembro que cantava esse tipo de música que desapareceu. A música de protesto brasileira é uma música alegre, ao contrário do que se ouve por aí afora. Tanto que talvez uma das minhas únicas músicas que pode ser chamada de protesto, o que no Brasil é um palavrão, compositor de protesto é um insulto incrível é Apesar de você, que é alegre, um pouco com a idéia dessas músicas antigas de carnaval. Foi engraçado que no caso do Modesto da Silveira, candidato aqui Rio, mas ia fazer até uma gravaçãozinha para tocar nesses altos-falantes e eu falei: aí precisa ver essa coisa de direito autoral. "A música é a melodia do Sacarolha do Zé da Zilda e da Zilda do Zé. O Zé da Zilda já morreu, aí foram procurar a Zilda, que mora longe. Foram pedir licença e dar um dinheirinho. Foi bom porque ela não tá bem de vida. Ficou contentíssima e disse que ia votar para esse candidato. Esse negócio de direito autoral é bom falar também: hoje, comparando com três anos atrás, o sistema tá moralizado na medida em que o compositor recebe pela música que efetivamente toca nas rádios e nos lugares públicos, enquanto que antigamente prevalecia o critério misterioso. Mas em contrapartida, o sujeito que fez sucesso no passado hoje não vê um tostão e o autor de música sertaneja também não. Porque a arrecadação é feita com base em algumas emissoras do Rio, São Paulo e algumas capitais. Então eu, por exemplo, que sou beneficiado com isso, recebo muito mais do que recebia antes. Mas outro dia peguei um táxi e o motorista disse: sou seu colega. Disse o nome dele, eu não tava localizando, mas era parceiro do João do Vale em Carcará! Essa foi uma das poucas músicas dele que fizeram sucesso em São Paulo, Rio, mas ele tem uma porção de músicas sertanejas, especialidade dele, que tocam no interior. Perguntei, então como é que ficou agora? Ficou muito pior... Motorista de táxi, né? E autor de Carcará. As coisas no Brasil são assim: ou oito ou oitenta.
Folhetim - E o que vocês podem fazer para corrigir isso?
CHICO - Eu não faço parte, só digo que a Sombrás teve uma participação ativa na mudança, que em princípio foi pra melhor, mas ao mesmo tempo estou falando isso aqui porque não tenho onde falar. A Sombrás pegou fogo, quem faz parte do conselho de direitos autorais é o Roberto Carlos e o Fernando Lobo, das pessoas que conheço eles é que têm que levar adiante. Então precisa ficar falando nos jornais. E preciso levar em conta esse aspecto, principalmente de gente que foi roubada durante todo esse tempo, até quando mudou o sistema, e agora pelo menos deveria ser indenizada pelo que aconteceu até então.
Folhetim - Quando você diz que é um artista classe média, você está se colocando a dúvida de como chegar ao povo? Queríamos saber se é isso, ou se você pensa em outra coisa.
CHICO - O que quero dizer é o seguinte: há cada vez mais um abismo entre a produção intelectual e o grande povo. Quando chega o general Geisel e prova com números que aumentou o consumo de eletrodomésticos etc. e tal, me parece uma coisa inteiramente furada. Porque eu, uma pessoa beneficiada pela má distribuição de renda, aqui em casa tenho quatro aparelhos de televisão. Dois não funcionam, mas tenho, dá pra consertar amanhã..... Então, hoje não é difícil uma pessoa ter dois, três carros. O consumo está cada vez mais concentrado. No mercado da música, a mesma coisa: meus discos hoje vendem muito mais que antes. Para os produtos mais sofisticados, realmente existe um mercado cada vez maior, isso é verdade. Basta ver os cigarros que são lançados todos os dias com filtro de ouro, filtro platinado, para essa mesma parcela da população.
Folhetim - Mas num momento em que começam a acontecer algumas coisas a nível político, mesmo que poucas, o que pode mudar nessa relação povo - classe média?
CHICO - É evidente que a gente luta por uma abertura democrática. É o que a gente quer para essa pequena parcela pequena do público que atingimos, para que pelo menos essa parcela receba o trabalho da gente integralmente e que essa liberação permita maiores ousadias e uma criação mais forte. Mas acredito que dentro do sistema capitalista essa questão da arte popular está comprometida. Eu aqui tenho uma ressalva porque acho que no momento o que há de mais importante mesmo para colocar é a questão democrática. À parte disso eu tenho outras convicções que quero ter a liberdade de colocar a cada entrevista ou a cada canção ou a cada peça de teatro, para ser ouvida, para ser julgada... Não estou querendo dizer que sou o dono da verdade, pelo contrário, estou sempre dizendo que não sou. Agora, quero ter a liberdade de manifestar minha opinião pessoal e, como já disse nesta entrevista, hoje existe a vantagem de poder dizer alguma coisa na imprensa. Na verdade, a arte só é popular na medida em que ela tende a estar aliada ao governo, e o governo seja popular na medida em que esteja ligado ao povo. Eu só acredito em arte popular num país em que o povo esteja no governo.
Folhetim - Você acredita no Estado?
CHICO - Eu defendo o povo no poder... o Estado enquanto povo no poder. Aí a arte é popular, senão será sempre uma arte de elite, sempre foi. E claro que é muito mais importante dar pão para o povo, mas de repente você pode através da arte comunicar a esse povo a importância que ele tem para poder reivindicar o básico. Isso aconteceu em Cuba. Tá acontecendo em Moçambique, mas é inteiramente diferente do que está acontecendo aqui. O sistema que existe aí procura desviar a arte a seu gosto, contra os interesses populares.
Folhetim - Você é um sujeito meio inatacável, até parece uma exceção. Você se sente assim?
CHICO - Não, isso não é verdade. Sempre que eu leio uma coisa assim é um pretexto para dar uma paulada e o cara ainda sair com fama de corajoso.
Folhetim - Mas, quem fala mal de você?
CHICO - Volta e meia falam. Realmente não falam muito porque, na verdade, a única resposta que a gente pode dar a essa marcação é o trabalho mesmo. Não adianta eu ficar aqui me queixando, a gente tem que responder com trabalho. Quando saí do Brasil e fiquei um ano e meio fora, o que li na imprensa, me mandavam aqueles recortes, era assim: de cocô para baixo, e eu não podia responder porque não adianta responder. Eu não fico mandando cartas a jornais, porque também teria ocupado meu tempo todo com isso. Eu pessoalmente não tenho nenhuma admiração pessoal por mim, mas pelo meu trabalho eu tenho... porque quando nada, nada, eu vivo pra isso. Então as pessoas usam um pouco isso, de chamar o Midas, como se fosse uma coisa meio mágica ou uma coisa intocável. Não é, isso é resultado de trabalho, eu estou produzindo constantemente, mas se eu produzir uma coisa muito ruim, podem falar mal, é uma porcaria e vão falar mal. Porque é isso que a gente vê, esse País tá virando um poço de ressentimento. A gente vê de repente Milton Nascimento, era considerado inatacável, era considerado um mito, tinha até trocadilho... E tem oitenta por cento das pessoas que acham Milton maravilhoso e vinte que não acham, mas que não têm coragem de dizer porque vai pegar mal e tal. Aí um dia, numa apresentação no festival de jazz, não sei o que, essas pessoas que estavam com esse ressentimento guardado há muito tempo botam para fora esse negócio de uma maneira selvagem. Isso já aconteceu comigo, com os baianos todos, com o Milton. Tem críticos que não conheço, não vejo, mas que possivelmente estão com as pedras na mão prontos para atirar. A crítica aqui no Brasil é uma coisa muito provinciana, funciona muito a ligação pessoal. A gente conhece os críticos, eles conhecem as armas e quando se dão bem , se falam, almoçam juntos. Quando não se dão, já se sabe que vai ter um pau no dia seguinte. Eu até procuro evitar um pouco esse contato porque até fica parecendo que a gente tá querendo angariar votos...
Folhetim - O artista, em todo caso, é sempre uma coisa maior. Porque o crítico está sempre na periferia, em volta do artista, do trabalho do artista. É como um sujeito que está fora tentando entrar.
CHICO - Esse negócio todo tem a ver com o fato da imprensa exagerar o papel do artista. Eu tenho a tendência de ficar diminuindo, de repente fico achando que essa música toda, esse trabalho que está sendo feito, na verdade, diante do que há de importante a se fazer por aí, é uma porcaria, uma titica, principalmente quando há essa coisa de ficar dando entrevista, de ficar falando de mim. Parece que vou não me convencendo, e achando que tudo é uma grande bobagem.
Folhetim - Como você se vê hoje? Você acabou virando uma das figuras mais importantes da cultura brasileira.
CHICO - Não sei não, não me vejo como figura, imagem, essa coisa toda. Acordo bem comigo quando estou criando, quando estou trabalhando. Se na véspera fiz uma linda música eu acordo cheio, orgulhoso, contente, me achando muito bom. Mas isso passa com o tempo. Agora, por exemplo, já estou meio desligado do meu disco. Logo depois da gravação eu ouvia muito e ficava contente. Minha peça de teatro passei um mês indo lá diariamente... já não vou há quase dois meses. É uma coisa muito volúvel. De repente estou indo toda a noite e depois me recuso a ir. Não quero ficar comendo aquela coisa requentada, me satisfazendo com um negócio que já fiz, que já não interessa mais para mim. Já fico querendo fazer uma coisa nova e aí me sinto um pouco angustiado e impotente.
Folhetim - Como você compõe? Tem uma história de que você compõe na cama...
CHICO - Eu só componho com violão e só componho sozinho. Aliás, a maioria das minhas músicas faço sozinho. Parceria é outra coisa. Agora, a idéia de uma canção pode acontecer a qualquer momento em qualquer lugar, tomando banho já tive várias idéias. Aí você se enxuga depressa, põe o calção, corre, pega o violão pra ver se continua a idéia com a música. Eu não escrevo uma letra, até mesmo uma música pode pintar debaixo d'água, uma idéia qualquer, uma transação que depois de pegar o instrumento vai mudar, vai ser inteiramente alterada. No fim o que deu início a tudo vai sumir, muitas vezes some.
Folhetim - A bebida tem alguma coisa a ver com essas idéias?
CHICO - Uisquinho, essas coisas assim são um pouco vagabundagem... Se eu estiver um pouco alto não faço nada bem. Ligo álcool, sim, à apresentações em público, aí é indispensável, mas não tem nada a ver com a criação. Inclusive, às vezes a gente tem idéias assim que acha que são brilhantes e no dia seguinte acorda e vê que não presta pra nada. Já aconteceu de idéias aparecerem em sonhos, idéias que pareceram alucinação e no fim são boas. Mas em geral trabalho sóbrio, sério, disciplinado.
Folhetim - Tem alguma coisa em você ligada à tristeza. Seu último disco tem músicas alegres, mas tem um fio meio triste.
CHICO - Você acha? Com aquela cara e tudo, rindo na capa?
Folhetim - E talvez seja o mais alegre dos discos que você fez até hoje.
CHICO - As coisas também andaram muito amarguradas durante muito tempo. Um disco como Construção, como Calabar, Chico Canta - são discos muito pesados, amargurados... Agora tá na hora de descontar um pouquinho isso. Acho importante estar alegre, otimista.
Folhetim - Você está?
CHICO - Procuro estar, né? Procuro mas talvez seja pra compensar. Pelo menos hoje a gente já tem a perspectiva do otimismo. Otimismo indireto, por tabela.
Folhetim - Mas quando você começou com Olê olá, Pedro pedreiro, não tinha esse peso no País e são todas músicas tristíssimas.
CHICO - Não, não concordo... você está querendo saber se eu sou uma pessoa triste?
Folhetim - Não, você é bem-humorado até.
CHICO - É, acho que sou... até nos momentos mais graves não perdi o bom humor. Perdi a esportiva uma vez ou outra, mas o bom humor de vez em quando, aí em dose cavalar. O humor acho importante segurar... enquanto existir humor.
Folhetim - E as mulheres nas tuas músicas?
CHICO - O que que tem?
Folhetim - Fala delas...
CHICO - Eu fico muito orgulhoso porque muitas vezes as mulheres, me dizem que eu interpretei o pensamento delas, o sentimento delas, o sentimento principalmente. Eu fico muito contente, e é uma coisa parente do dia em que me chamaram no Sindicato da Construção Civil de Minas Gerais, em Belo Horizonte, e me deram um prêmio, essa pá que está ali, por causa de Construção. A gente fica satisfeito... é claro que existe uma coisa que comove a gente o tempo todo. A crítica mais reacionária diz assim: esse sujeito é um burguês, não tem o direito de falar em nome do povo, falar do operário. E uma crítica desagradável, só que parte da burguesia. Os críticos são burgueses tanto quanto eu. No dia em que uma pessoa do povo me desautorizar de falar em nome dela, de falar dos problemas do povo, aí vou realmente me sentir frustrado, vou ser obrigado a dar a mão à palmatória. Então, enquanto as mulheres, eu estava fazendo um paralelo, disserem que interpreto bem com o sentimento delas, inclusive cantando no feminino, compondo no feminino, vou me sentir nesse direito.
Folhetim - Nenhuma feminista te chamou de machão?
CHICO - Isso eu acho uma bobagem. Tenho uma amiga feminista, a Rose Marie Muraro, que acha que estou de acordo com as teses do movimento feminista. Não sou contra o feminismo, mas acho que de vez em quando elas falam um montão de bobagens.
Folhetim - Tipo o que, por exemplo.
CHICO - Há muito tempo, quando não existia o movimento feminista, talvez seja uma das coisas comigo que me lembro mais em São Paulo, houve quem fez pregações nos bares da moda contra Com açúcar, com afeto, dizendo que eu colocava a mulher como sendo uma submissa. Eu respondo: realmente a mulher é submissa, é isso tudo, o machismo existe e se eu disser que não existe estou sendo machista, porque estou querendo escamotear uma realidade. Eu estou colocando uma situação, não estou de acordo com ela, a mesma situação estou colocando pelo canto de Pedro pedreiro... O homem é pobre, se eu disser que ele é rico aí vou estar sendo fascista. Isso aconteceu quando fiz aquela música Partido alto, que dizia "Deus me fez um cara pobre, desdentado e feio pele e osso simplesmente, quase sem recheio...." Me disseram na censura que essa música era uma ofensa ao povo brasileiro. Eu não acho que ela deve ser isso não. Se disser que o pobre é bonito e rico um coitadinho, é a mesma coisa que dizer que a mulher é forte e o homem um pobre coitado. Ah, outra coisa que andaram falando também é por causa de Mulheres de Atenas... Aí eu fico preocupado com a capacidade crítica das pessoas. Aliás, é uma música feita para uma peça, tem aquela coisa, mas achei que era bastante claro que estava dizendo uma coisa com um refrão que era contradito o tempo todo pela letra da música, tipo outra música que está proibida e que fiz pro Calabar, "vence na vida quem diz sim", e o tempo todo repete o refrão. Mas se forem me chamar de positivista por causa disso, aí é absurdo. Pô, a música toda diz "não mirem-se nas mulheres"... agora pra ter graça tem que botar " mirem-se no exemplo", pra vocês verem o que vai acontecer...
Folhetim - Continuando mulheres, tem aquela história de que mulher que não gosta do Chico e não tem vontade de ter filhos tem alguma coisa anormal...
CHICO - Não acho que tenha essa imagem não. Não sou símbolo sexual, digo sinceramente. Se eu fosse, tava contente.... Sou até uma pessoa desajeitada, um pouco inábil com as mãos, que funcionam de um jeito esquisito. Não estou, também querendo fazer contrapropaganda das minhas qualidades... mas não acredito que seja não. Me acho é engraçado por causa dessas mãos que o Toquinho diz que não têm nada a ver com o resto do corpo. Parecem de outra pessoa. Toquinho goza muito, aliás mostra fotografias e diz: a mão tá sempre numa posição absurda. E eu, quando me vejo num filme andando, acho uma coisa meio desengonçada.
Folhetim - Mas aí você está embromando...
CHICO - Não... eu diria. Aí, é claro, entra outra coisa: eu fico me protegendo, me resguardando um pouco. Não das mulheres, mas de um modo geral das pessoas. Tinha um tempo de televisão, TV Record e tal, que eu tinha fobia de público, de muita gente. Agora estou mais tranqüilo, mas tenho dificuldade de transar com uma pessoa que não conheça. Eu tenho aqueles amigos, uma coisa assim meio fechada, e fora isso sempre me parece uma invasão, aí nisso é claro que dança homem, mulher, tudo é a mesma coisa... Eu fico com medo de ouvir uma coisa desagradável. Eu sou uma pessoa muito exposta e sou muito sensível a críticas pessoais. Lembro de quando escrevi Fazenda modelo, um livro de que gostava muito. As pessoas chegavam, diziam "li seu livro" e eu pedia: pára aí, não fala nada. "Não, mas gos..."eu pedia por favor para não dizer nada. Eu estava muito tenso em relação àquele trabalho.
Folhetim - Mas você até que anda mais relax.
CHICO - Já estou muito melhor nesse sentido. Mas eu fico com medo de estar carregando... no fim, quando eu for ler esta entrevista vou falar assim: ih, que exagero. Então meu estado de espírito é um hoje, amanhã a entrevista seria inteiramente diferente. O que estou mostrando, de qualquer maneira, é um lado meu... e não é mentiroso.
Folhetim - Você se preocupa muito com sua imagem?
CHICO - Com a minha imagem, de jeito nenhum... parecia que eu tava dizendo isso?
Folhetim - Não, é outra coisa. É que um sujeito na condição em que você está tem a vida muito devassada, as pessoas querem saber coisas e tem toda uma vida sua que não é a que as pessoas conhecem.
CHICO - É, só tem uma vida... A conversa que sai nos jornais, de um modo geral aí já é uma imagem que existe, que eu não criei. De alguma forma contribuí para criar, mas não foi no sentido proposital. Eu também não fiquei desmentindo as coisas. Então às vezes pintam coisas incríveis.
Folhetim - Por exemplo.
CHICO - Um dia uma moça do jornal "O Dia" veio me entrevistar e ela estava um pouco acanhada. É um jornal muito popular no Rio, mas nunca tinha me entrevistado. Ela achava que eu não tava me sentindo bem. Ela disse que soube que eu era muito agressivo e que uma vez bati numa repórter. Então isso é uma coisa que tá ocorrendo na redação desse jornal, onde provavelmente ninguém me conhece: que eu seja agressivo, o que não sou, e que eu tenha batido numa mulher, o que também é um pouco demais. As coisas aí também vão correndo, correndo e ficam cristalizadas. Aí me preocupa. Sou uma pessoa com uma série de defeitos e vulnerabilidades, mas mentira me irrita muito.
Folhetim - Você não é de briga...
CHICO - Não, sou de paz. Talvez por ser uma pessoa muito calma, sou até considerado por alguns amigos como excessivamente indulgente, de fechar os olhos para as sacanagens. Tem horas que vem a explosão, mas sempre na defesa.
Folhetim - Você não joga no ataque?
CHICO - No ataque só no futebol, no resto tô aqui na defesa. Por isso tudo tô falando: uma pessoa muito exposta, com uma posição bastante clara diante de tudo, eu sou odiado por muita gente... e tem uma hora em que as pessoas também não conseguem conter esse ódio e vêm pra cima. Se vêm com mentira e se encontra na rua, aí tem briga. Mas não sou briguento, sou paciente. Por exemplo, eu odeio os fascistas, odeio de uma maneira abstrata. Concretamente, se vir um fascista na minha frente, não vou falar com ele, vou virar a cara. Se ele falar comigo delicadamente, alguma coisa vou responder. Se você for brigar com todo fascista que tem por aqui, vai ficar louco...
Folhetim - Você cantou Cálice antes da liberação?
CHICO - Em alguns casos, circuitos universitários, Nordeste, Rio, São Paulo. A gente tinha que mandar o título das músicas pra censura antes de um show. Então, Cálice a gente mandava com o nome de Pai. Pai é aprovado e aí eu ia: "Pai afasta de mim este cálice". Isso não acontecia no Rio ou em São Paulo. Acontecia em Piracicaba... Em alguns lugares diziam: Pai! Essa música não está aprovada pela censura... Outros aprovavam.
Folhetim - Que outras coisas você fazia para driblar a censura?
CHICO - Teve uma época que minha criatividade estava mais voltada pra isso do que propriamente para a música. Mas tenho medo de ficar contando essas coisas porque amanhã a censura volta mais brava ainda. Em todo caso, a gente tem que inventar outros recursos mesmo... Um deles era... não, esse não vou contar não, esse vale ainda, posso usar outras vezes. Um que não dá mais é pseudônimo. Depois da história do Julinho da Adelaide começaram a exigir junto com o nome do autor o CPF, a carteira de identidade etc. Nesse tempo o camarim estava infestado de policiais, então o pseudônimo de músicas só dava pra usar com as músicas desconhecidas, caso contrário você saía do palco direto pro camburão.
Folhetim - Nos momentos mais difíceis, de repressão mais violenta, você quando era preso tinha certeza de...
CHICO - Ah, isso nunca tirei da cabeça, o fato de que a minha popularidade era meu guarda-costas. Eu sabia que nunca seria um Vlado. Tinha certeza de que gozava de uma certa cobertura e até brinquei com isso naquela música do Julinho de Adelaide: "Você mãe gosta de mim mas sua filha gosta..." Aconteceu de eu ser detido por agentes da segurança e no elevador o cara pedir um autógrafo pra filha dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo da delegacia... Enfrentei grosseria, mas sempre tive a garantia que não iam me tocar. Normalmente ia com essa certeza e com uma obrigação: já que tenho essa cobertura, posso ir mais longe que outras pessoas, se não for.... ah sim, estou sendo fraco, covarde, canalha. Tentava descobrir a medida: posso ir até aqui e mais também é bobagem. Não havia nenhum sentimento heróico nisso e isso até uma ofensa diante de tanta gente que apanhou tanto, que morreu, que até hoje está sofrendo por causa de uma luta mais conseqüente e mais concreta e mais séria.
Folhetim - Mais séria por quê?
CHICO - Aí entra um pouco aquele negócio de achar que ficar fazendo música não é suficientemente sério. Eu tenho um pouco essa tendência, o que me consola é que eu tenho consciência da importância da música e da cultura de uma maneira geral. Mas quando começam a colocar isso num nível exacerbado eu tenho que reagir. Lendo entrevistas que o Oscar Niemeyer dá eu me identifico muito, ele diz a mesma coisa da arquitetura dele e eu não sou nada perto de Oscar Niemeyer, que eu conheço e perto dele me sinto inibidíssimo e me sinto pequeno. Ele acha que a arquitetura não vale nada diante da imensidão dos problemas deste País. Então, o que vou achar da minha música? Esse é um lado. Por outro, de repente, estou falando a mesma coisa que fala quem acha que cultura é frescura ou caso de polícia...
Folhetim - Ou então na posição dos que acham que só vale aquela política militante.
CHICO - Evidentemente. Dentro de um certo tipo de cabeça aí, que se pensa de esquerda, cinema é frescura. Mas a gente vê aí grande parte da população desse mundo inteiro que não tem sequer noção do que seja a dignidade humana e do que seja a possibilidade de satisfazer suas necessidades básicas, e então a arte pode ser um veículo. Posso falar de Cuba: lá eu vi o povo participando, se sentir participando. Isso vi com "estes olhos que a terra um dia há de comer".
Folhetim - Você também não é tão atacado porque é de uma família, digamos, de linhagem, enquanto Caetano e Gil são dois sujeitos do interior da Bahia.
CHICO - Isso é inseparável. No caso do Gil, então, existe um componente racial muito forte... aquele mulato que chama de mulato pernóstico, com aquela ousadia do Gil, já falei pra ele, ele tem aquelas narinas que são agressivas e tal, que pesa muito. Esse pessoal que fica pichando os baianos o tempo todo e se esquece muito disso. Eu, quando fui detido em 68, depois do AI-5, me perguntaram o que eu estava fazendo na passeata dos cem mil ao lado daquele crioulo sujo chamado Gilberto Gil. Então, sei que se houver outro 68 (toc, toc, toc) a gente bate na madeira e não acredito que haja, nessa hora eu vou estar talvez mais protegido do que Gilberto Gil, que é chamado de alienado por aí. Vou ser mais protegido do que Caetano Veloso, porque os trejeitos dele agridem um certo tipo de cabeça. Mais protegido que Nei Matogrosso. Não estou muito no fim da lista não, eles se incomodam comigo. Mas com um certo respeito e onde pinta o ódio e mais um ressentimento paternalista, como quem tá falando com uma pessoa que traiu a sua classe. Eles não entendem realmente como você, fulano de tal, como nome, sobrenome, de olhos verdes e que torce pro Fluminense, como é que está do outro lado. Eles compreendem que um crioulo, que uma bicha esteja do outro lado, e não admitem muito que eu esteja.
Transcrição da fita da entrevista gravada em setembro de 1974
Última Hora- Não ia fotografar?
Julinho da Adelaide - O que?
UH - Você tá com duas cicatrizes?
(Referindo-se ao episódio em que Sérgio Ricardo, tendo sido vaiado durante a apresentação de sua canção Beto bom de bola, num dos festivais de MPB, atirou o violão contra a platéia.)
JA - Não, pegou assim, o cabo pegou assim aqui e a caixa desse outro lado.
UH - Quer dizer que você é um sujeito marcado pela música popular brasileira? (risos)
JA - Sou marcado pela música popular brasileira. Foi aí que eu despertei para a música, inclusive foi nesse momento que eu despertei para a música popular.
UH - Certo. Ô Julinho, é essa 2ª vez que você... Essa primeira vez que você veio para São Paulo, você estava passeando. Só.
JA - Tava. Eu, inclusive,não tinha vocação nenhuma musical, foi...
UH - Como foi?
JA - Aí que eu despertei realmente para a música popular.
UH - Como é que você veio? Veio de ônibus, trem, como foi?
JA - Vim de ônibus.
UH - Nessa época, você estava construindo casa na Gávea?
JA - Não, isso é um pouco de confusão que estão fazendo. Quem está construindo casa na Gávea é meu irmão Leonel.
UH - Leonel?
JA - É.
UH - Mas o...
JA - Meu irmão e procurador.
UH - Certo. Depois a gente fala do Leonel... Mas, Julinho é essa a 2ª vez que você está em São Paulo. Você está aqui profissionalmente? Eu soube que você está com 3 músicas novas aí, você tá pra...
JA - Três não, têm muito mais de três! Devo dizer isso. Agora, não tenho culpa se pessoas pedem sempre as mesmas. As pessoas pedem, em geral, o Chama o ladrão, o Jorge maravilha e O milagre, são as 3 que pedem mais. Agora têm muito mais músicas que isso. Olha, o Chama o ladrão teve um problema com a censura e O Milagre teve também. Inclusive, eu queria dizer que eu não quero criar nenhum conflito com a censura, entende? Porque eu tenho, através do Leonel, um diálogo muito bom com eles, entende?
UH - O Leonel faz o quê?
JA - Eu entendo que.. O Leonel é meu procurador, é ele que quebra todos os galhos, em todos os sentidos, entende?
UH - Mas ele tem... Qual a profissão dele?
JA - Na carteira, é comerciário, mas ele não exerce muito a profissão de comerciário. Ele trabalha mais mesmo como meu procurador e tem assim boas relações. Ele vive disso. Inclusive tem boas relações com a polícia. Então com relação à censura eu tenho essa posição. Eu acho bobagem a pessoa falar que a censura prejudica, quando eu acho que o negócio é fazer samba, tem que fazer muito samba mesmo, entende? Eu faço muito samba, quer dizer, faço vários por dia mesmo. Tanto que o sujeito que trabalha lá, o trabalho dele é censurar música, eu respeito muito o trabalho do cara, quer dizer, ele terminou o dia... quantas músicas você censurou hoje? Ele fala: 7. O cara que disser 17, por exemplo, vai ser promovido logo. Eu também, meu trabalho é fazer samba, quantos samba você fez hoje? Oito, nove? No dia que eu faço dez vou dormir em paz com a minha consciência, entende? Cada um no seu ramo.
UH - Mas você realmente faz oito, dez sambas por dia?
JA - Faço e faço samba duplex também.
UH - Espera aí, antes de falar sobre samba duplex, por que você só foi descoberto agora, por que só agora que estão cantando suas músicas?
JA - Porque eu, relativamente há pouco tempo que estou fazendo mesmo, profissionalmente. E estou divulgando, e tem um grande problema... O autor jovem tem um grande problema: eu andei em todas as empresas e não consegui nada.
UH - Sei...
JA - É claro que minha voz não é muito boa. Eu não sou cantor. Hoje em dia, quase todos os compositores são cantores, entende? Eles que defendem o material, a matéria-prima deles, eles que se lançam. Eu não posso fazer isso, tenho que procurar. Tenho que procurar as fábricas. Aí o sujeito me empurra pro outro. Um dia, eu fui parar na Phillips e acabei no departamento gráfico, (risos) eu fui de porta em porta..."Não, você fala com o fulano... Isso lá no Rio, na Phillips.
UH - Sei. Agora esse negócio...
JA - Cheguei até a falar com Roberto Menescal, autor do Barquinho.
UH - ...da cicatriz te grila muito também, não é?
JA - Embora eu não seja cantor, um dia, pretendo gravar um disco. Você vê, gente que canta bem como Chico Buarque, o Vinícius de Moraes, o Antonio Carlos Jobim, essa gente toda canta também, entende? A minha voz não é muito boa. Outro dia, eu vi o disco do Nelson Cavaquinho, ele é mais rouco do que eu. E grava um disco. Eu posso até gravar um disco um dia, entende? Aí a minha foto vai atrapalhar a vendagem do disco, não é? É claro que eu não vou botar na capa do disco a minha foto. Mas se já estiver a minha foto ligada a minha pessoa, amanhã, sei lá, menininhas dessas bonitas aí da Rua Augusta e tal que... podem comprar pensando que é um sujeito bonito e vende mais o disco, acho, não é? Pelo menos com a minha cara ligada a minha pessoa vende menos. Então, é melhor não ter cara do que ter a cara que eu tenho.
UH - Não vamos nem discutir isso...
JA - Eu fico meio nervoso quando falo nisso, eu fico meio nervoso, viu?
UH - Não. Aí é um problema pessoal, a gente não vai forçar. O Bosco pode inclusive...
JA - Quem?
UH - O Bosco, o fotógrafo, ele vai entender isso, não tem problema nenhum.
JA - Se quiser tirar, tira de costas ou então tira do meu irmão Leonel, é claro. O Leonel já se ofereceu, inclusive, para se eu fizer um disco ele aparecer na capa. (risos) O Leonel é um quebra galho.
UH - O Leonel está aqui com você, agora?
JA - Não, ele me mandou... porque disse que leu nos jornais, o Leonel lê muitos jornais.
UH - O que ele está fazendo aqui?
JA - Aqui em São Paulo, tem muita casa de samba, uma coisa que lá no Rio não tem. Lá tinha uma só. Era o Sucata. Mas um show já montado e não podia entrar e cantar no meio. E aqui parece que as pessoas podem chegar e... Eu não sei porque cheguei agora, eu quero até pedir um conselho, quais são as casas melhores. Vou lá e vou pedir minha vez pra cantar, já avisando antes e pedindo desculpas que não sou bom cantor, mas acho que tenho muita música, já fiz uma chegando aqui hoje.
UH - Você já fez música e a letra?
JA - Faço tudo junto. É claro que eu faço samba duplex. E quase todos são duplex.
UH - Samba, duplex, o que que é?
JA - São sambas que você pode mudar, entende? Por exemplo, esse que eu fiz agora pode mudar... é sobre o problema da meningite que o Leonel falou que tinha isso aí. Falou: "Olha, vai para lá e cuidado com a meningite". Ele me explicou o que significava, porque eu não leio muito jornal. Ele é que lê mais. Aí eu fiz o samba no meio do caminho que diz assim: "Eu fui para São Paulo com a Judite, só saí de lá com meningite." Agora, do jeito que é feito a música, dá pra cantar.... porque eu sei que tem umas propagandas de vir para São Paulo nos fins-de-semana e tal. Eu não quero prejudicar ninguém. Pode dar problema isso. Se der problema: "Eu fui para São Paulo com meningite e sai de lá com a Judite", Inclusive, fica como se São Paulo tivesse curado a meningite.
UH - A Judite é paulista?
JA - Não, o samba é duplex. Se eu tivesse chegado com a Judite, cheguei de algum lugar, da Bahia, pode ser que ela seja baiana. Se eu tivesse chegado com a baiana e saísse com a Judite, então a Judite é paulista. O samba é duplex. Inclusive eu faço adaptação de samba. Tenho umas idéias pra contar agora para o Vinícius de Morais, que admiro muito.
UH - Você vai gravar com ele?
JA - Não, eu não conheço ele pessoalmente. Estou procurando um contato com ele, porque eu fiz uma adaptação daquele samba dele: "Formosa" que fica assim "China nacionalista". Quer dizer, eu já estou com bastante tarimba nesse negócio.
UH - Julinho, você lê muitos jornais?
JA - Não, só que o Leonel manda ler... Agora, em geral, ele já dá o serviço todo em vez de mandar ler. Porque sou o criador, entende? Se eu ficar o tempo todo lendo, não vou poder me expressar bem.
UH - O Leonel é uma figura importante em sua vida?
JA - Acho que devo tudo na minha carreira... Bom, devo a criação. Devo minha vida à duas pessoas. À minha mãe, Adelaide, à qual devo inclusive o meu nome. Meu sobrenome é Oliveira, mas Oliveira todo mundo é. Então eu sou da Adelaide, que aqui pode não ser muito conhecida, mas no Rio é. E devo ao Leonel, que me orienta agora, na minha carreira.
UH - Fala um pouco da Adelaide.
JA -Adelaide foi a pessoa que me orientou a vida inteira, entende?
UH - Existe um boato, que li numa revista, que Adelaide teria sido uma das mulheres do Vinícius? Desculpe (risos).
JA - Não se pode falar assim da minha mãe (risos). Minha mãe é muito honesta. Ela casou mais de uma vez, mas casou sempre. Quando ela viajou para a Alemanha, casou com um luterano. O Leonel é luterano por causa disso, loiro e luterano. Inclusive agora ele alisou o cabelo e está dizendo que é parecido com esse Robert Redford (risos). Mas ele não é muito parecido, não, que o nariz dele é igual o da minha mãe. É grossão, assim.
UH - Mas é loiro?
JA - Loiro sarará. Aquele negócio, parecido assim com o Ademir da Guia. É bem parecido. Tipo físico do Ademir da Guia, só que agora ele alisou o cabelo e está achando que é artista de cinema. A minha mãe casou com esse alemão. Ela esteve na Europa com a Brasiliana. Ela era casada na igreja Católica Apostólica Romana, na igreja Católica Brasileira, na Luterana e tem mais 3 casamentos aí. Eu sou filho da Igreja Católica Brasileira.
UH - Você é filho do primeiro casamento?
JA - Não, do terceiro.
UH - Como a gente não sabe nada da sua mãe, então se ela foi com a Brasiliana, ela é mulata mesmo?
JA - Mulata retinta. Quase preta, quase sangue puro.
UH - Mas e essa sua cor mais clara?
JA - É que meu pai, eu não cheguei a conhecer, entende? Ele morreu pouco depois de eu nascer (risos).
UH - Ele fazia o quê?
JA - Meu pai? (pena, hesitação) Meu pai trabalhava em jornal (risos). Era copy-desk (risos). Naquele tempo...
UH - Então quer dizer que você já teve uma origem um pouco mais cultural, você teve uma certa informação?
JA - Sempre tive muitos livros, apesar de morar sempre em favela. Não tenho nenhuma vergonha disso, de ter sido criado em favela, porque tem muita favela lá que é melhor do que essas coisas que estão construindo agora no Rio, que são casas de tijolo e cimento armado, mas eu não trocava a favela onde eu me criei por esses empreendimentos que estão fazendo. Eu vi até um anúncio, no intervalo daquela novela "O Espigão", eles anunciam muito esses novos apartamentos, sala e quarto... Eu fui ver um porque o Leonel disse que tinha um dinheirinho para mim que talvez desse. Fui ver, um quartinho menor que o barraco onde eu me criei...
UH - Então já está pintando um dinheirinho?
JA - Diz o Leonel que sim. Eu ainda não pus a mão nesse dinheiro porque o Leonel tem procuração minha para fazer tudo. Ele acha que não é bom pegar o dinheiro e fazer logo alguma coisa. É melhor empregar e ele empregou meu dinheiro. E parece que o dinheiro já vai dar agora um dividendo, uma coisa assim...
UH - Mas, e aquela casa que você está construindo lá na Barra? É com dinheiro de vendagem?
JA - Não sou eu que construí... Quem comprou um terreno na Barra foi o Leonel e vai construir uma casa lá. Mas isso é problema do Leonel, ele tem os bicos dele por fora. Leonel tem participação nos meus lucros e ele faz com o dinheiro dele o que ele bem entende.
UH - Julinho, essa transposição do anonimato... Aqui em São Paulo não, que você está chegando aqui agora, você teve só um incidente aqui, mas lá no Rio você é muito conhecido, pelo menos no Degrau, no Antônio's.... Como é que foi essa transposição do anonimato - com o devido respeito - da favela para as colunas sociais, colunas de música? Quem é que te deu essa força? Porque é muito difícil para compositor novo.
JA - Isso eu devo ao Leonel, porque ele é muito ligado ao pessoal do Rio de Janeiro, Zózimo Barroso do Amaral, que trabalha no Jornal do Brasil. Ele é ligadíssimo. É como se fossem irmãos. Tem amigo que é dono de jornal, já falou de muita gente que ele é amigo... do Doc... Ele me promove, me promove muito. Ele é um cara 100%. Vocês precisam conhecer ele.
UH - Eu te conheço recentemente, e, convenhamos, você é uma figura pouco conhecida no Brasil.
JA - Ainda sou, infelizmente, mas eu confio em Deus e que com a ajuda dele e a do Leonel eu...
UH - Você não seria uma criação da imprensa carioca? Como você entende isso?
JA - Por algum tempo eu fiquei magoado com isso...
UH - Seu pai foi um copy-desk de jornal. Você acha que está sendo lançado pela imprensa carioca, que tem repercussão nacional? Como você se sente?
JA - Claro que a imprensa ajuda muito, mas eu tenho o meu trabalho também. Eu vim aqui para mostrar o meu trabalho, não é badalação só. Esse negócio de badalação de jornal, não dá dinheiro a ninguém. Não dá camisa a ninguém. Minha primeira música vai ser gravada agora, finalmente! Só agora, mas eu tenho feito, em média, de quatro a cinco músicas por dia. Com essa primeira música, acho que vai ser um grande empurrão que vou receber na minha carreira. E, daqui por diante, acho que todo mundo se interessa em gravar música do Julinho da Adelaide.
UH - Quem já cantou música tua até agora, ou já gravou?
JA - O Chico Buarque cantou num show que ele fez no Rio. E, aliás, foi muito bom. Leonel diz que daí que deu mais dinheiro porque teve dinheiro de SBAT e tal
UH - Qual?
JA - O Jorge maravilha. E o MPB-4, a Nara Leão. Eu entreguei outras músicas aí, mas não sei se estão cantando. Pra uma porção de gente: Tim Maia, Ângela Maria, vários estilos inclusive, entende? Não sei se estão cantando também, não tenho controle, o Leonel que sabe.
UH - Estou curioso pra saber o seguinte: o nome Julinho da Adelaide começou a se projetar, é inegável isso...
JA - Você quer saber da onde vem o nome?
UH - Eu estou preocupado em saber se você realmente tem uma produção muito boa ou se você está se utilizando do Chico Buarque, do MPB-4, Tim Maia e todo esse pessoal pra quem você mandou música, para se projetar...
JA - Desculpe, mas como já disse antes, eu não sou cantor. Eu preciso dos cantores para lançar o meu nome. Acho que é um interesse recíproco. Eu não devo nada a ele e ele também não. Ele tá faturando em cima do meu nome e eu estou faturando em cima do dele. Acho que isso é normal. Não acho que seja ético da minha parte. Eu sou pragmático.
UH - Julinho, aqui em São Paulo, o pouco que se sabe de você são histórias mirabolantes, inclusive o Chico Buarque - não sei se você soube - em um show falou que Julinho era figura das crônicas policiais que passou para as crônicas sociais. Ele tem (Prata corrige) Você tem, realmente, um passado que o denigra...
JA - Eu sou muito tímido, você pode perceber que eu sou tímido. O Leonel, com essa história dele ser procurador, é uma pessoa muito descontraída e ele faz muitas coisas, inclusive "impensadas", e quando vão perguntar o nome dele, ele diz (ri) que tem procuração minha. Então, é justo que eu pague as coisas boas e ruins que ele faz (risos). Às vezes ele faz coisas ruins. E depois não acontecem muitas coisas com ele, porque quando o sujeito tem relações muito boas na polícia, coisa que eu não tenho...
UH - Coisas ruins, como? Por exemplo?
JA - Ah! Ele faz muita bagunça, entende? Esses negócios de forró...
UH - Ele já foi preso alguma vez?
JA - Já. Algumas vezes. Eu conto isso, inclusive num samba: Chama o ladrão.
UH - Eu quero lembrar o seguinte: à medida que você mesmo disse que é muito pragmático, esse negócio de carregar o nome da mãe, não é uma jogada oportunista da sua parte para sensibilizar uma faixa do público?
JA - Não, de jeito nenhum. Mais uma vez eu queria repetir que não sou aético. Eu me chamo Julinho da Adelaide porque todo mundo só me chama assim lá no morro. Minha mãe é mais famosa do que eu, lá no Rio. Ainda é! (Alterado) Minha mãe é séria!
UH - O que é que ela fez?
JA - (quase gritando) Vou te contar o que ela fez! Ela estava no primeiro elenco do Orfeu Negro. Foi amiga íntima de Vinícius de Moraes, Antonio Carlos Jobim e Oscar Niemeyer. E fazia o cenário do.... (perde-se um pouco) Não... o Haroldo Costa. Ela conheceu intimamente o Oscar, tanto é que há cinco, seis anos atrás, eles moravam na Favela da Rocinha e quando começaram a erguer o Hotel Nacional ela dizia pra mim: "Está vendo filho? Está vendo Julinho? É homenagem do Oscar para mim." Inclusive, brotou uma porção de homenagens na Barra e ela lembra dele assim, entende? É claro que ela está mais velhinha agora e ela falando isso, eu estou sabendo que não é homenagem do Oscar Niemeyer pra ela. O Oscar talvez nem se lembre dela. Mas ela viajou com a Brasiliana, casou com o luterano, não é pouca coisa, não! Aprendeu a fazer caçulé, e a feijoada branca dela, no morro, é conhecidíssima,. Então eu fiquei sendo o Julinho. Qual Julinho?, Julinho da Adelaide. Não sou o Julinho de Oliveira.
UH - Você está consciente de que está faturando a sua mãe com esse negócio de Julinho da Adelaide. Tanto que o Leonel não se chama Leonel da Adelaide...
JA - Leonel é Leonel Kuntz. (Confusão. Todos falam ao mesmo tempo)
UH - Pode ser que doravante a sua mãe seja conhecida como Adelaide do Julinho (risos)
JA - Não tenho nada contra isso.
UH - A Adelaide mora com você ainda?
JA - Eu não tenho moradia muito fixa, mas, sempre que posso, passo uma noite com ela.
UH - Mas você mora aonde, atualmente, no Rio?
JA - Atualmente eu estou morando na Selva de Pedra. O Leonel alugou um apartamento para mim.
UH - Está dando um dinheirinho?
JA - Está dando para comer e...
UH - Morar na Selva de Pedra?
JA - ,É morar na Selva de Pedra e pegar ônibus pra São Paulo.
UH - O que é Selva de Pedra?
JA - Selva de Pedra é um conjunto que fizeram lá no Rio. Iam fazer um parque, quando derrubaram a favela do Pinto. Eu tenho origens lá, inclusive já morei na Favela do Pinto.
UH - Você nasceu em que favela?
JA - Eu nasci na favela da Rocinha, mudei para várias favelas. Tenho mais raízes na favela da Rocinha, mas também tenho na favela do Pinto. E hoje eu moro lá, que não deixa de ser uma volta as raízes. Destruíram a favela do Pinto, no fizeram muito bem. Iam fazer um jardim lá. Depois mudaram de idéia e fizeram uma Selva de Pedra, que são vários prédios com janelas pequenas, mas perto da praia.
UH - Você mora sozinho, sem tua mãe?
JA - Lá, eu moro sozinho.
UH - E a Adelaide, como é que está?
JA - A Adelaide está muito bem, fazendo aquele feijão dela, cada vez melhor.
UH - Pra fora?
JA - Pra fora como?
UH - Ela...
JA - Ela tem um quiosque, não é? A casa dela, uma vez por semana, enche de gente e o pessoal...
UH - Tua mãe é do Rio mesmo?
JA - É, é carioca.
UH - Neta de escravos, não é?
JA - É. Ela conheceu a avó dela e a mãe dela foi beneficiada com a Lei do Ventre Livre. A gente tem uma gratidão muito grande com José Bonifácio.
UH - O que você acha dessa música feita aqui no asfalto sobre a música do morro? Você acha que é autêntico?
JA - Olha, eu não quero me comprometer, eu sei que aqui em São Paulo estão fazendo muito samba. Eu não posso dizer para vocês que não é boa música, se não, a entrevista pode sair e eu vou ficar muito mal com meus colegas aqui e é capaz que eu nem arranje emprego. Só vou dizer que prefiro a música autêntica.
UH - O que é música autêntica?
JA - É música da favela feita na favela, música da cidade, feita... por exemplo, eu gosto muito do Charles Mingus.
UH - Mas qual a relação do Charles Mingus com a música da favela?
JA - Charles Mingus é Americano, então ele faz música americana, entende? Esse negócio de morar aqui e fazer música de outro lugar, eu não gosto. Agora, eu gosto também. Às vezes são boas...
UH - Essa é a segunda vez que você vêm pra São Paulo?
JA - Em São Paulo é a 2ª vez. Encontrei muito mudada. De 67, 68. pra cá, quando eu vim pro Festival.
UH - Esse Festival foi interesse musical ou você estava...
JA - Não, eu mandei... Claro, foi quando eu despertei para a música... mas antes de despertar, eu fiz umas músicas... mas não havia despertado pra música. Eu fazia quase que como se a minha mão fizesse e eu não soubesse delas. Quando eu tomei aquela pancada na cara (risos)... Eu rio mas eu fico muito nervoso com esse negócio de novo.
UH - Como foi o seu contato com o Chico, com o Vinícius, com o Tim Maia?
UH - O Chico, principalmente, está divulgando sobremaneira.
JA -. Isso é o seguinte: há um ano atrás eu estava trabalhando na fábrica lá no Rio de Janeiro, no Alto Boa Vista, na Phonogram. Na fábrica, entende? Prensagem de disco e tal. E lá eles tem um time que aos sábados joga contra compositores, contra essa gente assim. Eu estava sempre nessa pelada. E aí que fui conhecendo esse pessoal. Fiquei conhecendo o Silvio César, Maestro Erlon Chaves, Paulo Sérgio Valle, uma porção de artistas...E o Chico Buarque, e o MPB 4.
UH - Mas como é que foi? Você chegou para o Chico e mostrou a música, deu uma fita, cantou para ele?
JA - Eu não falei direto com ele, falei antes com um dos integrantes do conjunto vocal MPB-4. Foi justamente quando eu estava entrando na área e, sabe aquele baixinho, o Rui? Me deu uma porrada por trás. O juiz não deu pênalti. E na hora que eu estava caído no chão, ele foi legal: "desculpa". Eu aproveitei que ele tinha puxado conversa comigo (risos) e daí: "eu sou compositor"(mais risos). Ele não deu muita bola, mas o contato já tava feito, e como eu trabalhei na fábrica e tem prensagem de disco, consegui prensar um acetato, camaradagem do pessoal lá. Eu prensei um acetato com duas músicas, com "Jorge maravilha" e "Chama o ladrão". Aí parece que gostaram e mostraram pro Chico Buarque. Depois eu fiz "O milagre" e achei que era melhor ainda, para mim é a música mais forte. Gravei de novo no acetato para eles. Parece que a Nara Leão se interessou pelo "Chama o ladrão" mas aí houve um problema com a música.
UH - Há um problema, Julinho, sem querer dedar ninguém, que o Chico tem cantado essa música e tem dado a entender que a música é dele. Ele fala de você como se fosse uma figura mitológica, mas no fundo parece que é dele. Acho que você tinha que tomar uma certa providência.
JA - Olha eu não sei... Esse pessoal que têm nome feito pode fazer muita coisa, não adianta eu ficar aqui reclamando desse pessoal. Como disse, sou pragmático. Eu preciso dele, ele precisa de mim. Não adianta você me dizer isso, parece que está me colocando contra ele. No dia em que eu for conhecido e famoso talvez eu faça dele a mesma coisa, entende? As pessoas tem que tirar proveito do que lhe cai na mão. O Leonel que me disse isso.
UH - Agora, eu queria que você se definisse. A expressão "pragmático" foi utilizada o tempo todo. Faça uma definição de você.
JA - Não sei. Pra falar a verdade, o Leonel que mandou eu dizer que sou pragmático (risos). Quando perguntassem alguma coisa, o que eu achava disso ou daquilo, coisa mais complicada, entende? O que que você acha da censura? Pragmático?. Ele falou outra também, ecumênico (risos). Isso foi a propósito da versão que fiz pro negócio da China.
UH - Eu não sei disso.
JA - Eu não contei da "Formosa" que eu mudei a letra pra China nacionalista? Disse que quando perguntarem se você gosta da China ou de Cuba? Se falarem, se você gosta de Cuba, você fala: que é pragmático e ecumênico. Se não, você se mete em complicação. Então eu digo, mas não posso definir exatamente a expressão: sou pragmático. (Acho que essa foi uma definição pragmática) (risos).
UH - Assim encerrou a entrevista, mas prossigamos.
JA - Hein, Quem deu a revista?
UH - Você encerrou, mas prossigamos...
JA - Só não quero ficar muito tempo aqui, porque tenho que fazer a ronda da noite, agora.
UH - Você vai aonde?
JA - Eu quero, inclusive, um roteiro de vocês, porque eu tô aí pronto pra...
UH - Fala Avenida Ibirapuera.
JA - Fala o quê?
UH - Fala Avenida Ibirapuera.
JA - Avenida Ibirapuera. (risos)
UH - Na Avenida Ibirapuera tem boas Casas de Samba, você vai se dar bem.
JA - É lá que é a boca, é?
UH - É lá.
JA - Então é para lá que eu vou. Fala com um taxi aí... Avenida Ibirapuera?
UH - Eles conhecem, não tem problema nenhum.
JA - E qual a melhor casa? Eles pagam bem?
UH - Tem o Bambu, o Sambão.
JA - O Leonel só me deu um nome, foi um tal de Catedral do Samba, é lá também?
UH - A Catedral não, Catedral é samba de Benito de Paula. Conhece?
JA - Conheço.
UH - O que você acha?
JA - Eu acho legal (risos). Acho que todo mundo deve fazer o que pode, o que sabe. Eles dão chance aos novos? Ou tem que ter contrato?
UH - Não.
JA - Vou falar a verdade do que eu quero. Eu quero entrar num lugar desse, cantar um samba meu e se possível arrebatar o pessoal. Aí o dono da casa vem lá e.... como eu vi num filme...
UH - Porque o Leonel não veio? Ele tá sempre com você ou te dá as dicas?
JA - Às vezes ele dá as dicas e me manda pro lugar. Ele não sai do Rio porque tem muitos afazeres lá.
UH - Mas ô Julinho, com o maior respeito a você e sua família, o que eu ouço falar do Leonel é que ele é um tremendo mau caráter, que ele não paga conta, pede aval...
JA - (irritado) Bom eu... Se vocês estiverem querendo me irritar... Acabei de falar... Vocês são de jornal, meu pai foi de jornal, eu não quero me irritar com ninguém. É meu irmão, se você quiser falar isso...
UH - Tem uma história... deixa só eu completar, um parêntesis só, Julinho. Tem uma história que ele alugou um apartamento lá onde era a favela do Pinto e depois mudou do Rio. O compromisso caiu em cima de você, ele sumiu, tem umas histórias assim... Não sei, não sei se é boato, mas corre. Corre à boca pequena.
JA - É normal.
UH - A respeito de ... de.... de...Leonel...(gagueja. ESQUECE O NOME DO IRMÃO) tudo é possível.
JA - Eu quero ver você dizer isso na frente dele. Eu não vou te responder, diga a ele (risos, confusão). Eu devo tudo ao meu irmão.
UH - Você não acha um, problema?
JA - Irmão a gente só tem um, apesar de ter vários. Mas cada um é único para mim.
UH - Como apesar de ter vários?
JA - Eu tenho outros irmãos que eu não vejo, quase. Mas eu estou mais ligado ao Leonel, estou ligado não só afetivamente, mas profissionalmente. Devo tudo da minha carreira ao Leonel. Ou você acha que não?
UH - Não sei, estou te conhecendo hoje. Estou dizendo o que ouço falar.
JA - Certo! Você está me conhecendo porque o Leonel me mandou para cá.
UH - Foi.
JA - E eu dando a minha primeira entrevista para um jornal de São Paulo. No Rio dei muitas entrevistas, viu?
UH - Eu sei, pra onde?
JA - Dei pra Notícia, pra Última Hora do Rio de Janeiro, e dei uma para Manchete, que até agora não saiu, mas deve sair daqui a pouco.
UH - Julinho, eu só levantei esse problema, porque o Leonel é um... inclusive você poderia corrigir isso, se defender, porque falam que ele assina contrato com e você não aparece, e que ele está vivendo, atualmente, em função do teu nome. Inclusive, ele já está dizendo: sou Leonel da Adelaide, coisa que ele nunca disse.
JA - Leonel Kuntz. (Começa a enrolar um pouco a língua) Ele não é Leonel da Adelaide porque ele saiu cedo de casa. Ele não era conhecido como Leonel da Adelaide, era Leonel. Tem gente que pensa que ele é meu primo, um parente próximo ou um amigo que vai lá de vez em quando. Outro dia, veio um cara e disse que tinha feito um contrato leonino comigo (risos). Isso é trocadilho, porque o cara chama Leonel e o contrato leonino. E só porque ele ganha 50%. E dizem que os empresários normalmente têm 20 só. Aqui no Brasil, porque diz que lá fora tem dez. Agora, ele não é só um empresário. Se fosse só um empresário, tá legal, ganhava 20%. Ele não é meu empresário. Ele é meu conselheiro e meu irmão, entende? Então, a gente divide irmamente as partes. Acho justo isso. E tem mais, ele ainda aplica nos mercados de capitais os meus lucros.
UH - Julinho, uma pergunta de ordem econômica. Vocês que estão no Rio de Janeiro, onde o mercado de música é muito maior, por que você está agora em São Paulo tentando...
JA - Não, o mercado da música não é maior no Rio. Pelo que me informaram, pro tipo de música que eu faço, São Paulo está muito melhor agora. Aliás, casa de samba, no Rio não tem, entende?
UH - Você é mais um cantor da noite do que um compositor? É isso?
JA - É como eu disse para você. Para falar a verdade eu tenho bastante autocrítica, eu não sou bom cantor. Então eu só posso cantar depois da meia-noite (risos). Porque lá pras oito ou nove horas, horário de teatro, ninguém me atura, não. Não canto muito bem. Mas depois da meia-noite, como todo mundo canta, está todo mundo mais alegre, as pessoas nas mesas cantam. Eu sou um cara que canta no microfone como se estivesse cantando na mesa. Agora, o que eu estou vendendo ali não é minha voz, é meu material, minhas composições. Eu sou compositor.
UH - Aqui em São Paulo você não fez nenhum show, ainda?
JA - Não, se eu tiver sorte, começo hoje. (risos)
UH - No Rio você não tem promoções, não é?
JA - No Rio eu já fiz promoções naquelas noites de samba de opinião, segunda-feira, já apresentei lá. Mas não pagam, entende? Lá é mais pra prestígio, ganhei muito prestígio com isso. A gente canta em troca do prestígio. Agora, eu acho que já tenho um certo prestígio.
UH - Você está achando que seu nome está crescendo aqui?
JA - O Leonel disse que estavam falando muito em mim aqui, quando mandou eu vir.
UH - Realmente estão.
JA - A prova é que vocês estão aí. Jornalistas me entrevistando aqui. Não fui eu que fui até a redação do jornal, como era antigamente.
UH - Agora, você acha que essa facilidade de adaptação da tua música ao gosto do momento, que existe e você reconhece, não te aproxima assim de Dom e Ravel, por exemplo, na música brasileira? Apesar de pobre, assim completamente diferente....
JA - Não... Eu admiro essa dupla, Dom e Ravel, pela oportunidade que eles aproveitaram em determinado momento de fazer uma música determinada. E é mais ou menos esse tipo de trabalho que eu faço.
UH - Já que você está na vanguarda nesse sentido de adaptação ao gosto da sociedade brasileira hoje, o que eu acho muito importante... você não acha que tem uma influência direta de Dom e Ravel?
JA - Não citaria só eles. Tem muita gente boa está fazendo esse trabalho agora, e acho isso uma coisa muita boa. É um trabalho quase parente do "jingle" e parente do samba-crônica, samba que o sujeito lê no jornal e no dia seguinte tem um negócio oportuno, tem um assunto fervendo. Aquele samba que talvez não vai se eternizar, mas que no momento...
UH - O samba pragmático, o que você está fazendo. Por exemplo a TV Globo não se interessou ainda em publicar nenhuma novela, usar como tema esse seu alto sentido pragmático?
JA - Eu fui contatado, já estive lá nos corredores da TV Globo. Um dia vi até o Boni.
UH - Falou com quem?
JA - Falei com um rapaz lá que eu não sei o nome. Disse que era Walter. Mas não sei o sobrenome, nem sei bem qual é a função dele lá.
UH - Você acha válido ou você teria qualquer tipo de objeção? Você acha válido? Acho que essa é a palavra certa.
JA - Acho que tudo é válido, desde que a gente esteja fazendo, entende? Desde que a gente esteja criando. O importante é criar, não é mesmo? (confusão) Eu faço qualquer coisa, entende? Faço até para novela se me pedirem. E acho que vou fazer muito bem.
UH - Julinho, você estudou até que ano?
JA - Eu fiz até o 1º ginásial.
UH - Primeiro. Parou por quê?
JA - Depois eu fui tomar aula particular.... na escola da vida! (risos)
UH - Mas enfim e daí?
JA - E daí que eu sei ler e escrever e acho que me exprimo muito bem. Você não está me entendo?
UH - Mas as suas músicas, das seis que eu conheço, denotam uma certa cultura, assim não de vivência, mas uma cultura geral, daonde teria vindo?
UH - Você incorpora uma série de coisas que realmente não são normais em pessoas assim do teu nível
JA - Eu tenho explicação para isso: a minha origem. Vamos dizer, eu tenho parceiros pela vida. (risos)
UH - Seu pai é copy-desk?
JA - Meu pai é copy-desk, então eu faço copy-desk do cotidiano do morro (risos). Vamos dizer assim. Muitas das músicas que eu faço são...
UH - Interessante não é, porque você não mora mais no morro.
JA - Mas eu vou sempre lá, porque eu tenho que voltar às raízes. Apesar de eu estar nas minhas raíze, porque eu estou em cima da favela do Pinto, como eu disse pra vocês, pelo menos uma vez por semana eu durmo na casa da minha mãe, na Rocinha, na casa da Adelaide.
UH - Você está com quantos anos?
JA - Vinte e cinco.
UH - Teu nome inteiro como é?
JA - Tem gente que me chama de Gato. Mas não é verdade não.
UH - Teu nome todo como é?
JA - Julio César de Oliveira.
UH - ... você tem uma figura assim bem popular, uma figura física; você acredita que poderia fazer uma experiência de androginia? Você acha que daria pé? Nunca pensou nisso? Acha interessante o movimento andrógino brasileiro? Te interessa?
JA - É esse negócio de Secos e Molhados, não é? Olha meu amigo, não (risos) Com todo respeito, eu não ia fazer uma coisas dessas. Eu acho aquilo uma viadagem, entende? Agora, eu respeito o trabalho deles.(risos) Eu respeito o trabalho deles. (risos) como eu respeito todo mundo. Como já disse antes. Mas eu não ia fazer uma coisa daquelas, não (risos)
UH - Mas por quê? É um problema de formação cultural, familiar ou é apenas um pragmatismo?
JA - Bom, aí é que tá... me entenda... se me dessem um cachê muito bom na TV Globo para fazer um número musical que tivesse que ficar com o corpo pintado, bom, então aí talvez eu fosse pragmático, entende? Mas assim falando de fora... A experiência que ensina à gente muita coisa, não é? Eu estou falando sem experiência porque eu nunca tive uma experiência andrógina, entende?
UH - Eu só perguntei isso, porque o Caetano Veloso, você deve conhecer, obviamente...
JA - Conheço e admiro muito.
UH - Caetano Veloso, num show que está em cartaz aqui em São Paulo, ele fica o tempo todo passando a mão no cabelo e tem brinco na orelha esquerda. Você usa esses recursos?
JA - Não, não uso brinco, não senhor, de jeito nenhum. E nem passo a mão no cabelo, porque o meu cabelo do jeito que é, pode passar a mão quanto quiser que ele fica... já é difícil é passar a mão dentro (risos). só passa por fora.
UH - Me falaram uma coisa, tudo que eu sei de você é o que me falaram...
JA - Porque eu sou muito falado e realmente eu acho isso muito bom. É bom sinal. O Leonel me disse: isso mesmo: está todo mundo falando de você.
UH - O Leonel deu uma entrevista para a rádio Marconi.
JA - É mesmo? Quando? Aqui em São Paulo?
UH - É, há duas semanas atrás. Perguntaram para ele se o Julinho seria a favor ou contra o black power. Aí ele contou uma história do Julinho, que antigamente, quando o Julinho tinha uns 15, 16 anos, ele alisava o cabelo. E depois quando começou o black power ele começou a alisar o cabelo, é verdade isso? Você teve uma fase assim de ocidentalização no cabelo?
JA - Tive sim, agora ele não está black power, ele está...
UH - Normal.
JA - Pragmático, desculpe abusar... (risos)
UH - Agora eu queria que você desse nota de zero a dez a três pessoas: Nara Leão, Ibraim Sued e Gerald Ford.
JA - Dez para todos. Alguns com louvor, outros...
UH - Garrincha?
JA - Garrincha.... Garrincha eu não dou nota dez pra ele...Se bem que ele é casado com a Elza Sores, amanhã ela pode querer gravar um samba meu (risos), é bom a gente estar sempre... É isso que eu falei: Nara Leão vai gravar um samba meu, O Gerald Ford, o presidente, nota 10. Ele pode fazer um arranjo muito bom. O Ibraim Sued pode dar uma nota a meu respeito, não é? Nota 10. Agora, não publica isso que eu estou falando, as explicações das notas que estou dando não. Só põe as notas.
UH - Outra figura. Wilson Simonal.
JA - Nota 10.
UH - Eu estou achando você muito condescendente.
JA - Como?
UH - Você me perdoe, não me leve a mal, mas você não me parece ter uma posição política definida. Você me parece muito preocupado em colocar sua música no mercado...
JA - Você vai me obrigar a dizer que eu sou pragmático de novo (risos). Eu não só sou pragmático como sou descontraído, entende? Você está querendo me contrair, me deixar...
UH - Em absoluto. Não, de maneira nenhuma.
UH - Ainda dentro daquela linha do nosso amigo aqui eu vou te pedir pra você dar notas pra três personalidades, Sabu...
JA - Sabu morreu, não é? Eu não achava ele muito bom ator, não. Nota quatro.
UH - Ainda mais agora, morto. (risos)
UH - Golbery
JA - Golbery, nota dez.
UH - Caetano Veloso
JA - Caetano Veloso, nota dez.
UH - Perfeito
JA - Eu não sou como aquela moça da televisão que dá 10 pra todo mundo. Você viu que pro Sabu eu dei nota 4. Eu lembro de ter visto um filme dele do tapete voador, negócio do tapete mágico e tal, do gênio da lâmpada, e eu não achei ele muito bom ator não.
UH - A gente só tem visto você pessoalmente, nunca na televisão, por quê?
JA - Eu sou cantor de rádio, esse é um problema que já falei antes. O problema da fotografia - eu não posso... Eu tenho uma imagem a preservar (risos). É uma imagem que não deve aparecer a preservar. Eu tenho uma falta de imagem a preservar (risos). Eu tenho esse probleminha... tem Pitanguy pra essas coisas. Por enquanto, não dá. Se eu colocar umas quatro ou cinco músicas de sucesso eu faço... Então fica aqui um alô ao Pitanguy: se por acaso pintar alguma coisa e quiser fazer um trabalho de solidariedade... ou se a ordem dos músicos financiar... não sei... a idéia fica lançada... pode haver um show em benefício... eu não vou pedir nada...
UH - Julinho, você gostaria de dizer o que para esse pessoal todo?
JA - (alto) Aquele abraço pro povo paulistano.
UH - Antes disso, Julinho. É que a gente está com um jornal aqui, eu te trouxe três exemplares pra você dar uma olhada
JA - Logo três?
UH - Você gostou, né? A gente tem uma liberdade para dizer o que quiser. Então, o grupo Frias está lhe oferecendo uma página para você dizer o que quiser. O que o Julinho da Adelaide quer dizer hoje, quer passar hoje? Agosto 74? O que você quer dizer? Não, eu não digo uma mensagem assim. Pragmático, mas nem tanto.
JA - Mas não entendi. Uma página inteira para dizer o quê?
UH - É que eu tenho uma página inteira para a matéria. Fala o que você quiser, pedir asfalto na favela, pedir ao Leonel que tire o alisamento do cabelo... para ser mais honesto com você.
JA - Não, eu não tenho queixa nenhuma de ninguém. Como eu falei. Eu estou chegando aqui em São Paulo, eu quero mandar aquele abraço pro povo paulistano. E se alguém ler, imagino que vá ler a sua coluna, me disseram que ela é muito lida. Qual o jornal, mesmo? (risos)
UH - Diário de Notícias.
JA - Diário de Notícias é muito lido aqui em São Paulo. O Leonel disse mesmo que era o mais lido. Então, se alguém se interessar, alguém que tem uma casa de samba, eu estou aí.
UH - Você está em que hotel?
JA - Eu não estou em hotel, eu cheguei agora, estou aqui, como você está me vendo, aqui na...
UH - Na redação.
JA - Na redação. Eu não quis dizer que vim à redação, eu não conheço nenhum jornal. Isso eu não sei como é que você vai resolver. Porque fica meio chato o artista que vai à redação.
UH - Não, todo mundo honesto faz isso. Você não deve se envergonhar... (confusão)
JA - Então, eu tive uma idéia... Aproveitando o fato do meu pai ter sido copy-desk e de eu ter esse vínculo muito estreito com a imprensa, diga na sua entrevista que, se alguém se interessar pelo meu concurso, entende, pelo meu trabalho nessas casas de samba, pra enviar para qualquer redação de jornal, que eu recebo (risos).
UH - Mas no fundo no fundo, seja pragmático, faça uma frase nessa linha. Pra despedida
JA - Com é? Seja pragmático? (Confusão)
UH - O Caetano Veloso, dando numa entrevista, num jornal de São Paulo, disse, pessoalmente, que, pra ele, a censura não tem causado grandes problemas. Você poderia dizer a mesma coisa de você?
JA - Eu disse isso no começo da entrevista. Vou repetir. Eu digo abertamente tudo. Não tenho pêlos na língua. Disse tudo no começo da entrevista. É que você... o senhor não estava aqui. Eu disse mesmo, entende? E....
UH - Eu gostaria que o senhor respondesse a pergunta dele...
JA - Já disse tudo.
UH - Esqueceu... (risos)...
UH - Pelo seguinte. Eu não sei se você sabe, Julinho, mas a censura hoje, isso na minha parca opinião, ela tem, eu não diria tesourado, mas ela tem bloqueado o trabalho criativo dos criadores. Frase bonita, não? (risos). Eu quero saber se essa mesma censura - que tem, inclusive, perturbado um colega teu, um rapaz que eu acho que tá dando uma força pra você, que é o Chico Buarque de Hollanda - se ela tem também te prejudicado. Porque uma das história que Leonel divulgou na Rádio Marconi é que você teria já uma música proibida e pelo fato (inclusive eu acho que Leonel foi um pouco sacana com você, ele falou que bastou você ter uma música proibida, você começou a construir uma casa no bairro da Tijuca), então eu queria saber se você realmente tem alguma coisa proibida, algum problema com a censura.
JA - Eu tenho, já te falei que tenho, mas eu tenho mais diálogo do que problema. Cada vez que surge um problema, para isso que eu fiz o samba duplex, que eu pretendo, inclusive, patentear, porque é uma idéia minha que se puder patentear, eu não sei como que é esse negócio de patente. ... E depois eu acho que quem faz um samba, faz dez. Se proíbem um... Então é o tal negócio. O rapaz que trabalha na censura é um homem, pai de família e tem que trabalhar, (todos falam) como eu. Ele está lá cumprindo seu trabalho. Se ele parar de proibir, vai perder o emprego, porque fica um trabalho inútil. Assim como se eu parar de fazer samba, eu deixo de ser sambista. Então, o censurador deixa de ser censor quando ele parar de proibir. Então, vamos nos unir, né, num grande abraço. Então, o censor censura e a gente faz música e o censor censura e a gente faz música. (todos falam)
UH - ...se o Julinho tem consciência de que isso pode realmente inaugurar até uma vanguarda no Brasil. Esse samba duplex, que eu acho que é uma obra aberta, que é o samba que o ouvinte completa em casa. Você tem uma oportunidade de atingir uma faixa muito grande de ouvintes... É um samba que dá várias leituras, em qualquer nível.
JA - Não, aí é diferente. O samba duplex não se propõe isso. Não uma obra aberta. É uma obra aberta até passar pelo filtro. Quer dizer, ele é duplex, quando eu componho. Quando chega nos canais competentes, o samba assume uma das duas versões. Se eu pudesse, eu faria samba duplex de um lado e outro. Tem que agradar gregos e troianos. Quem me falou isso foi o Leonel (risos). Então eu tenho que fazer em primeiro lugar para gregos e troianos, depois vai ver se o censor é grego ou é troiano e vê o quê que ele acha bom. Porque muitas vezes eu não sei mesmo se devo falar a favor ou contra a meningite. Eu sou contra a meningite, mas eu devo dizer que a meningite está brava aqui em São Paulo, porque é um fato que parece que é real, ou devo dizer que a meningite não está brava aqui em São Paulo? Então eu faço samba duplex. Um dizendo que a meningite está terrível, está uma péssima epidemia grassando por aí. (Cantarola). Eu fui pra São Paulo com a Judite, saí de lá com meningite, ou Eu fui pra São Paulo com a meningite e saí com a Judite. Quer dizer, pra secretaria de sáude, tudo bem tudo bag, a secretaria da saúde pode inclusive se basear nisso pra, se não curar a meningite, pelo menos pra fazer um slogan, né? Eu fui pra São Paulo com a meningite e saí com Judite. Ao mesmo tempo se ele quiser alertar a população contra o perigo da meningite, ela vai usar o outro. Aí que eu tenho que ver se o sujeito, na hora, é a favor da meningite ou contra.
UH - E ao mesmo tempo, se no próprio filtro for bloqueada as duas versões, sobre a mesma base melódica, você acredita que é válido ainda criar, sempre existe...
JA - Você está lançando o samba triplex, né? É aquele que a terceira letra fala de futebol (risos), de um jogo que termina empatado (mais risos), que é um samba que eu tenho em que cabem todas as letras. (risos), que conta uma história de futebol que termina empatado. E tem muito gol dos dois lados pra não dizer que é só retranca. É 4 a 4 que termina o jogo, se não for 5 a 5.
UH - Eu tenho a impressão que o samba duplex vai ser muito bem recebido no seio da família brasileira.
UH - Você está interessado apenas em fazer música para boate, para shows, ou você quer tentar teatro, cinema? Ou coisas paralelas?
JA - Coisas paralelas. Todas as paralelas interessam. Música para novela, música para teatro, música pra cinema, para boate, música para teatro, música música, entende?.
UH - Julinho, eu queria que você cantasse, pra encerrar, uma quadrinha do samba do ladrão.
JA - (Cantarola. Pára no fim da primeira parte. Se perde.) É que é uma musica que precisa de violão. Precisa da harmonia pra acompanhar. A segunda parte é muito romântica e diz assim... Não, deixa eu cantar a segunda parte (cantarola)
UH - Põe em palavras
JA - O pedaço todo da letra? Pra falar a verdade não tá pronta.. (diz um pedaço da letra)
UH - Só para encerrar, você tem alguma coisa para dizer?
JA - Aquele abraço ao povo paulistano (risos), um abraço amplo, descontraído, aético e pragmático, aético não.
UH - Você gosta de São Paulo?
JA - Gosto demais de São Paulo. Todos falam
O samba duplex e pragmático de Julinho da Adelaide
Nos bares do Rio de Janeiro, nas praias badaladas, na favela da Rocinha e mesmo na casa de alguns milionários e ainda em algumas delegacias de polícia, Julio Cesar Botelho de Oliveira talvez não seja muito conhecido. Mas Julinho da Adelaide é figura das mais notórias, simpáticas e comentadas do momento. Não se admite mais uma festa ou rodada de samba sem a presença de Julinho da Adelaide.
Seu nome passou das crônicas policiais para as sociais quando cantores famosos começaram a se interessar pelo seu samba. Chico Buarque gravou Jorge Maravilha, o MPB-4, O milagre e Nara Leão deverá gravar uma música nova.
Como começou a ficar conhecido em São Paulo, esteve aqui no começo da semana para tentar mostrar o seu trabalho nas casas de samba. Não lhe deram muita chance. Três dias depois encontrei em cima da minha mesa um bilhete assinado por Julinho e que terminava assim: "e como a barra não está dando por aqui, eu e Leonel vamos amanhã para Portugal. Parece que a barra lá tá melhor pru meu samba". Junto ao bilhete a fotografia de sua mãe, nos áureos tempos do Orfeu Negro, no Teatro Municipal do Rio.
Julinho da Adelaide - Eu não estou acostumado com o clima de São Paulo. Devo dizer que esta é a segunda vez que venho. A primeira vez faz muito tempo, foi na época dos festivais. Inclusive, tenho um fato interessante para contar: eu estava na platéia quando o Sergio Ricardo jogou aquele violão. Acertou aqui, ó.
Mário Prata - Esta cicatriz é do violão?
JA - É. Inclusive eu pedi para não fotografar, por isso.
MP - Mas são duas cicatrizes.
Chico Buarque - É que pegou o cabo aqui e a caixa aqui deste outro lado. Eu tenho a pele quelóide, entende?
MP - Quer dizer que você é um sujeito marcado pela música popular brasileira?
JA - Sou. Foi aí que eu despertei para a música, inclusive. Eu não tinha ainda muita vocação musical. Quer dizer, eu já tinha feito a letra do Juca que o Chico Buarque de Hollanda gravou. Juca foi autuado em flagrante, como meliante, lembra? Foi um caso que aconteceu comigo. Mas foi no festival mesmo que eu despertei. Eu vim de ônibus.
MP - Nesta época, você ainda não estava nem pensando em construir casa na Gávea, não é?
JA - Não, isto é um pouco de confusão que estão fazendo. Quem está construindo é meu irmão, o Leonel. Meu irmão é procurador.
MP - E esta segunda vinda a São Paulo? Você está aqui profissionalmente? Eu soube que você está com três músicas novas.
JA - Três não, tenho muito mais que três, devo dizer isso. Não tenho culpa se as pessoas pedem sempre as mesmas. Em geral pedem Chama o Ladrão, Jorge Maravilha e O Milagre. Mas eu tenho muito mais músicas. Chama o Ladrão teve um problema com a Censura e O Milagre teve também. Eu queria, inclusive, aproveitar e dizer que eu não quero criar nenhum problema com a Censura, porque, através do Leonel, eu tenho um diálogo muito bom com eles, entende? O Leonel sendo meu procurador, me quebra todos os galhos em todos os sentidos.
MP - Qual a profissão do Leonel?
JA - Na carteira tá comerciário, mas ele não exerce a profissão não. Ele trabalha mais como meu procurador, tem boas relações e tal. Tem, inclusive, boas relações na polícia. Então, em relação à Censura, eu tenho esta posição: eu acho bobagem as pessoas falarem que a Censura prejudica, quando eu acho que o negócio de fazer samba, tem que se fazer muito samba. Eu faço muito samba, entende? Faço vários por dia, mesmo. O sujeito que trabalha lá, o trabalho dele é censurar música. Eu respeito muito o trabalho do cara. Quando termina o dia, perguntam: quantas músicas você censurou hoje? O meu trabalho é fazer música. Quantos sambas você fez hoje? Oito, nove. O dia que eu faço dez eu vou dormir em paz com a minha consciência. Cada um no seu ramo.
MP - Mas você realmente faz oito ou nove sambas por dia?
JA - Faço. E faço samba duplex, também.
MP - Antes de falar sobre samba duplex, por que você só foi descoberto agora? Porque só agora que estão cantando as suas músicas?
JA - Porque eu estou profissionalmente na jogada tem pouco tempo. O autor jovem é difícil, meu. Eu, por exemplo, andei em todas as fábricas e não consegui nada. É claro que minha voz não é muito boa pra cantar. Eu não sou cantor e hoje em dia todos os compositores são cantores. Eles que defendam a matéria-prima deles. Eu não posso fazer isto, então tenho que procurar as fábricas. Mas ficavam me empurrando de um cara pra outro. Um dia, na Phillips, eu acabei no Departamento Gráfico, lá no Rio. Fui de porta em porta. Cheguei até a falar com o Roberto Menescal, autor do Barquinho, conhece?
MP - E estas cicatrizes, atrapalham muito?
JA - Embora eu não seja cantor, um dia eu pretendo gravar um disco. Você vê, gente que não canta bem como o Chico Buarque, o Vinícius de Moraes, o Antonio Carlos Jobim, estão cantando. Quer dizer,a minha voz não é muito boa mas outro dia eu ouvi o disco do Nelson Cavaquinho e ele é mais rouco do que eu e gravou um disco. Eu posso ter que gravar um dia, entende? Aí a minha foto vai atrapalhar a vendagem do disco, não é? É claro que eu não vou pôr na capa a minha foto. Assim, uma destas menininhas bonitas da Rua Augusta pode comprar pensando que é um sujeito bonito e vende mais o disco, não é? Com a minha cara eu acho que vai vender menos. Então, é melhor não ter a cara do que ter a cara que eu tenho.
MP - Não vamos falar nisto.
JA - Eu fico muito nervoso quando eu falo nisto. Se quiser, tira a fotografia de costas. Ou então tira do meu irmão. O Leonel se ofereceu, inclusive, para aparecer na capa, se um dia eu fizer um disco.
MP - O Leonel está com você aqui em São Paulo?
JA - Não. Vem amanhã. Ele me mandou porque disse que leu nos jornais - ele lê muito jornal - que aqui em São Paulo tem muita casa de samba, que lá no Rio não tem. Lá só tinha uma, o Sucata, mas era um show já montado e que não podia entrar e cantar no meio. Aqui, me parece, as pessoas podem chegar e pedir a vez para cantar. Vou lá e já vou logo avisando antes para me desculparem por não ser um bom cantor. Tenho muita música para mostrar. Fiz uma chegando aqui, hoje.
MP - Você faz a música e a letra, junto?
JA - Faço tudo junto, claro. É claro que eu faço samba duplex. Quase todos os meus sambas são duplex.
"Minha mãe casou mais de uma vez, mas casou sempre"
MP - Samba duplex o que é?
JA - São sambas que você pode mudar. Este que eu fiz agora você pode mudar. É sobre o problema da meningite, porque o Leonel me avisou: vai para casa de samba, mas cuidado com a meningite. Me explicou o que era, porque eu não leio muito jornal. Aí eu fiz o samba pelo caminho que diz assim: "eu fui para São Paulo com a Judith e só saí de lá com a meningite". Eu sei que tem agora umas propagandas de vir pra São Paulo nos fins-de-semana e eu não quero prejudicar ninguém. Então, se der problema, eu mudo "eu fui para São Paulo com a meningite e só saí de lá com a Judith". Fica, inclusive, como se São Paulo tivesse curado a minha meningite. Faço também adaptações de sambas antigos. Eu tenho umas idéias para o Vinícius de Moraes, que eu admiro muito, aliás.
MP - Você conhece ele?
JA - Pessoalmente, não. Eu estou procurando um contato com ele porque eu fiz uma adaptação daquele samba dele, Formosa, conhece? Mudei pra China Nacionalista. Já estou com bastante tarimba neste negócio.
MP - Mas você diz que não lê jornal, como é este negócio de China Nacionalista?
JA - Eu leio só o que o Leonel manda. Ele já dá o serviço todo, entende? Se eu ficar o tempo todo lendo, eu acho que eu não vou poder me expressar bem. Eu sou um criador, entende?
MP - Quer dizer que o Leonel é uma figura importante na sua vida?
JA - Eu devo toda a minha carreira e minha vida a duas pessoas. A minha mãe Adelaide, a quem devo inclusive o meu nome - meu sobrenome é Oliveira, mas Oliveira todo mundo é. Então eu sou Da Adelaide. Aqui ela pode não ser muito conhecida, mas no Rio é, e muito. E devo ao Leonel que é quem me orienta agora a minha carreira.
MP - Fala um pouco da Adelaide.
JA - Adelaide foi a pessoa que me orientou a minha vida inteira.
MP - Existe um boato de que ela teria sido uma das mulheres do Vinícius.
JA - Eu não posso falar assim da minha mãe, não é? "Uma das mulheres do Vinícius", o que é isto? Em todo o caso, que ela conheceu o Vinícius, conheceu. A minha mãe é uma mulher muito honesta. Ela casou mais de uma vez, mas casou sempre, viu? Quando ela viajou para a Alemanha, ela casou com um luterano. O Leonel é luterano por causa disto. É loiro e é luterano. Ele agora alisou o cabelo e está dizendo que ele é parecido com este tal de Roberto Redford. Mas ele não é muito parecido, não. O nariz dele é igual ao da minha mãe, grossão. Ele é loiro sarará, sabe? Parecido, fisicamente, com o Ademir da Guia. Só que agora alisou o cabelo e tá achando que é artista de cinema.
MP - E a Adelaide?
JA - Mamãe esteve lá na Europa, com a Brasiliana. Ela é casada na Igreja Católica Apostólica Romana, na igreja Católica Brasileira, é casada na Igreja Luterana e tem mais uns três casamentos aí. Eu sou filho da Igreja Católica Brasileira.
MP - Do primeiro casamento?
JA - Terceiro.
MP - Se a sua mãe foi com a Brasiliana, ela é mulata mesmo?
JA - Mulata retinta, quase preta. Quase sangue puro.
MP - Mas e você com esta cor mais clara?
JA - Meu pai, que eu não cheguei a conhecer. Ele morreu pouco depois de eu nascer. O nome dele era F. Botelho. Este F. nem minha mãe sabe o que é.
MP - Ele fazia o quê?
JA - Meu pai? Meu pai trabalhava em jornal. Era copydesk, naquele tempo.
MP - Então você teve uma origem assim já um pouco cultural. Você recebeu uma certa formação.
JA - Eu sempre tive muitos livros, apesar de morar na favela. Mas eu não tenho nenhuma vergonha disto. Tem muita favela lá no Rio que é melhor que estas coisas que estão fazendo agora. Se bem que eu aluguei um cantinho pra escritório da firma que tenho com o Leonel. Eu vi até um anúncio agora, no intervalo daquela novela, o "Espigão", onde eles anunciam muito estes novos apartamentos de sala e quarto. Menor que o barraco onde me criei, entende?
MP - Quer dizer que já está pintando um dinheirinho?
JA - Diz o Leonel que sim. Eu ainda não pus a mão neste dinheiro porque o Leonel acha que não é legal pegar o dinheiro e fazer alguma coisa agora. É melhor empregar, entende? E ele empregou. Parece que o dinheiro já vai dar uns dividendos. É isso, né?
"O Chico Buarque está faturando em cima do meu nome"
MP - E aquela casa que você está fazendo lá na Barra? É com dinheiro da vendagem?
JA - Não sou eu que estou construindo. Quem comprou um terreno lá foi o Leonel e vai construir uma casa agora. Mas isto é problema dele. Ele tem os bicos por fora, além da participação nos meus lucros.
MP - Aqui em São Paulo ainda não, mas no Rio você é muito conhecido. No Degrau, no Antonio's, no Final do Leblon. Como é que se deu esta transposição da favela para as colunas sociais e de músicas? Quem é que te deu esta força?
JA - Isso eu devo ao Leonel. Ele é muito ligado ao pessoal do Rio. O Zózimo Barroso do Amaral é como se fosse irmão dele, do Jornal do Brasil. O Carlos Imperial, da revista Amiga. Ele vive me falando dos amigos dele de jornais. Tem muita gente aí que é amigo dele. Bloch, um negócio assim. Então, eles me promovem. O Leonel é um cara cem por cento. Você precisa conhecer ele.
MP - Mas mesmo assim você ainda é uma figura pouco conhecida no Brasil.
JA - Ainda sou, devo confessar isto. Confio em Deus que, com a ajuda Dele e do Leonel eu vou chegar lá.
MP - Você não seria uma criação da imprensa carioca? Como é que você vê isto?
JA - Por algum tempo eu fiquei meio magoado com isto.
MP - Seu pai foi um copydesk no Rio. Você não estaria sendo lançado pela imprensa carioca que tem penetração nacional?
JA - É claro que a imprensa carioca me ajuda muito, mas eu tenho o meu trabalho. Eu vim aqui para mostrar o meu trabalho, entende? Não é só badalação, não. Este negócio de só badalação em jornal não dá camisa a ninguém, já me dizia o Leonel. Tem que se fazer as coisas. Eu vou lançar o meu primeiro compacto duplo que vai ser gravado agora, finalmente. Eu tenho feito uma média de cinco a seis sambas por dia. Com este trabalho eu acho que vou levar um grande empurrão na minha carreira e daí por diante eu acho que todo mundo vai se interessar em gravar música do Julinho da Adelaide.
MP - Quem é que está cantando música sua, hoje, Julinho?
JA - O Chico Buarque cantou num show que ele fez no Rio. Foi muito bom porque deu dinheiro na SBAT, o Jorge Maravilha. Tem também o MPB-4 e a Nara Leão. Eu entreguei umas outras músicas aí, que eu não sei se estão cantando, pra uma porção de gente. Eu tenho vários estilos, sabe? Mandei música para o Tim Maia, para a Angela Maria. Não sei se estão cantando porque eu não tenho muito controle. O Leonel que sabe.
MP - Mas você tem realmente uma produção muito boa ou está se utilizando de nomes como Chico e MPB-4?
JA - Mas, ô cara, escuta. Você vai me desculpar, mas eu já disse que não sou cantor. Eu preciso dos cantores pra lançar meu nome, entende? O Chico Buarque eu não devo nada a ele e nem ele deve nada a mim. Ele tá faturando em cima do meu nome e eu estou faturando em cima do nome dele. Acho que isto é normal. Não acho que seja aético da minha parte, entende? Eu sou é pragmático.
MP - Aético?
JA - Parece que a origem desta palavra é luterana.
MP - Julinho, aqui em São Paulo, o pouco que se sabe de você são histórias mirabolantes. O próprio Chico falou no show dele, não sei se você sabe, que você é uma figura das crônicas policiais que passou para as crônicas sociais. O seu passado...
JA - Vou lhe explicar isto. Eu sou muito tímido, conforme você deve ter percebido, e o Leonel, com esta história dele ser procurador e sendo uma pessoa descontraída, muitas vezes ele faz coisas impensadas. E aí, quando vão perguntar o nome dele, ele diz: Julinho da Adelaide. Só porque tem procuração minha. Então, é justo que eu pague pelas coisas boas e ruins que ele faz. E olha que não acontece muita coisa ruim com ele porque ele tem relações muito boas na polícia.
"Adelaide era amiga íntima do Vinícius, do Jobim e do Oscar Niemeyer"
MP - E você já foi preso?
JA - Algumas vezes. Eu conto isto, inclusive, no samba Chama o ladrão.
MP - Na medida que você mesmo diz que é muito pragmático, este negócio de carregar o nome da mãe não é uma jogada oportunista da sua parte? Pra sensibilizar uma parte do público?
JA - Não, de maneira nenhuma. Eu me chamo Julinho da Adelaide porque todo mundo só me chama assim lá no morro. Acontece que a minha mãe é mais famosa do que eu lá no Rio. Ainda é. Minha mãe é célebre. Eu vou te contar o que ela já fez. Minha mãe estava no primeiro elenco do Orfeu Negro. Foi amiga íntima de Vinícius de Moraes, Antonio Carlos Jobim e Oscar Niemeyer, que fazia o cenário do Orfeu no Municipal. Do Haroldo Costa, também. Ela conheceu mais intimamente o Oscar. Tanto é que há cinco ou seis anos atrás a gente morava ali na Favela da Rocinha quando começaram a erguer o Hotel Nacional. Aquele redondo. Mamãe dizia pra mim: "Tá vendo, filho? Tá vendo, Julinho? Aquilo é homenagem do Oscar para mim." Inclusive agora botaram uma porção de homenagens na Barra. Ela lembra dele muito bem. É claro que ela está mais velha agora e não pode receber muita homenagem. Eu estou sabendo que não é homenagem do Oscar Niemeyer pra ela, mas não vou tirar esta ilusão dela, né? É bonito ela ficar pensando assim. Mamãe tem muita imaginação. Mas continuando, depois ela viajou com a Brasiliana, casou com o luterano, foi presa na fronteira do Tibet por causa de um monge, aprendeu a fazer cassulé e a feijoada branca. O feijão branco dela é conhecido lá no morro. Então todo mundo perguntava assim: qual Julinho? O Julinho da Adelaide.
MP - Mas a própria imprensa carioca está achando que você está usando o nome da sua mãe para se promover. Tanto é que o Leonel não se chama Leonel da Adelaide.
JA - Leonel Kuntis. Mas pode ser que daqui uns tempos a Adelaide passe a ser a Adelaide do Julinho. Não tenho nada contra isto.
MP - Como vai ela?
JA - Mamãe está muito bem. Fazendo aquele feijão cada vez melhor. Ela tem um quiosque. A casa dela, uma vez por semana, enche de gente.
MP - Ela é neta de escravos, não é?
JA - Neta de escravos. A mãe dela foi beneficiada pela Lei do Ventre Livre. A gente tem uma gratidão muito grande pelo José Bonifácio, o Moço.
MP - Como foi o seu primeiro contato com o Chico?
JA - EU trabalhava na Phillips. Na fábrica, lá no Alto da Boa Vista, na Phonogram, na prensagem de disco. Lá eles tinham um time que dia de sábado jogava contra os compositores, contra esta gente assim, e eu estava sempre nesta pelada e fui conhecendo o pessoal. Fiquei conhecendo o Silvio Cesar, fiquei conhecendo o Maestro Erlon Chaves, fiquei conhecendo o Paulo Sérgio Valle.
MP - Mas, como foi? Você chegou para o Chico e mostrou a música, deu uma fita, cantou para ele, como é que foi?
JA - Não, eu não falei direto com ele. Falei antes com um rapaz integrante do conjunto vocal MPB-4. Eu estava entrando na área e aquele mais baixinho, gordinho, chamado Rui, me deu uma pancada por trás e o juiz não deu pênalti. Na hora que eu estava caindo no chão ele foi legal. Me pediu desculpas. Eu aproveitei que ele tinha puxado conversa e falei: eu sou compositor. Ele não deu muita bola e ainda marcou o gol. Mas, como eu tenho amizade e o primeiro contato já estava feito, eu consegui prensar um acetato por camaradagem do pessoal da Phonogram. Este acetato tinha duas músicas, o Jorge Maravilha e Chama o Ladrão. Parece que eles gostaram, mostraram para o Chico e cada um gravou uma.
MP - O Chico tem cantado a sua música e tem dado a entender que a música é dele. Ele se refere a você como se você fosse uma figura mitológica.
JA - Não sei, rapaz. Este pessoal que tem o nome feito, pode fazer muita coisa e não adianta eu ficar aqui reclamando, entende? Como eu já disse, eu sou pragmático. Eu preciso dele e ele de mim. Então eu não vou me colocar contra ele como você está querendo. Talvez o dia que eu for mais conhecido eu faça a mesma coisa. As pessoas têm que tirar proveito do que lhe cai nas mãos, não é? O Leonel que me disse isso.
MP - Eu queria que você se definisse, já que usa tanto a expressão pragmática.
JA - Eu não sei. Pra falar a verdade, o Leonel que mandou eu dizer que eu sou pragmático. Quando perguntassem coisa mais complicada, pra dizer isto. Por exemplo: "O que você acha da Censura?" Sou pragmático. Ele falou ecumênico, também. Disse que quando me perguntassem o que eu acho de Cuba, para eu responder que sou pragmático e ecumênico. Senão eu me meteria em complicações. Mas eu não posso definir exatamente como eu sou. Eu sou pragmático, pô!
© Copyright Chico Buarque - Todos os direitos reservados