Notas sobre Cotidiano
Por Humberto Werneck
Letra
Como qualquer artista, Chico não tem as chaves de sua criação. Quando fez a letra de João e Maria, de Sivuca por exemplo, não entendeu o que ele mesmo tinha querido dizer com o verso "e o meu cavalo só falava inglês"; levou o enigma a Francis Hime, que arriscou: "Eu acho que é um cavalo muito educado." São imponderáveis, também, as circunstâncias em que brota uma canção. Cotidiano veio debaixo do chuveiro - a idéia, por sorte, não escapou pelo ralo, como freqüentemente acontece se não é anotada na hora. O velho Francisco nasceu de um sonho com uma preta velha que contava uma história num fundo de cozinha e pedia com a voz cava e arrastada: "Fecha a porta! Fecha a porta!". A preta velha sumiu no processo, mas o clima do sonho marcou a canção.
Não raro, Chico acorda no meio da noite e faz anotações às pressas. "Tem idéia que tira você da cama", conta. O problema é constatar, no dia seguinte, que aquela idéia genial não era tão boa assim - na maioria dos casos, segundo ele, são coisas imprestáveis. Ou então verificar que os garranchos são ilegíveis. A partir do natal de 1988, quando ganhou da família um computador (escolhido sob a orientação do escritor Rubem Fonseca, sogro de sua filha Silvia), Chico vem armazenando as anotações em disquetes. "Assim elas não se perdem e fica mais fácil de consultar", explica.
© Copyright Humberto Werneck, Gol de letras, em Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989