Nota sobre Dr. Getúlio
Por Humberto Werneck
Letra
No mais resguardado isolamento, Chico trabalha num cômodo espaçoso de sua casa, misto de biblioteca, escritório e sala de estar, que chama de estúdio. Se a composicăo é só sua, em geral letra e melodia nascem juntas - ŕs vezes, em "enxurradas", como ele diz. "Quando começa, desembesta." Na esteira de Deus lhe pague veio Construçăo, Brejo da cruz desencalhou Suburbano coraçăo, encalacrada havia muitos anos. Como năo escreve música com suficiente desembaraço, Chico usa um pequeno gravador para fazer seus rascunhos sonoros, em fitas que vai guardando.
Um desses cassetes, pelo menos, contém uma preciosidade: o registro do momento exato em que surgiu o samba Vai passar, em 1983. Chico trabalhava no samba-enredo Dr. Getúlio, feito em parceria com Edu Lobo para o musical de mesmo nome. Letra e música estavam prontas, faltando apenas acertar o refrăo. De repente, em meio aos compassos de Dr. Getúlio, começou a insinuar-se um outro samba; Chico se pôs a persegui-lo, ora com o violăo, ora apenas com a voz, resvalando aqui e ali de volta ao refrăo do musical - até finalmente encontrar:
Ai que vida boa, olerę
Ai que vida boa, olará
Năo foi além disso naquele dia. Uma segunda fita, gravada algum tempo depois, documenta o que Chico considera o auge de sua "ilusăo coletivista": a tentativa de fazer daquele esboço um samba de vários parceiros. Para isso reuniu em casa um grupo de compositores - Edu Lobo, Fagner, Francis Hime, Joăo Bosco, Carlinhos Vergueiro, Joăo Nogueira -, depois de um jogo do Politheama. Bem que tentaram, mas năo deu certo: daquele berreiro năo saiu um verso que prestasse. Nem tudo, porém foi esforço perdido: Francis, ao piano, conseguiu dar um jeito na melodia, cujo tom subia, subia e năo voltava mais. Mas ainda năo foi dessa vez que Vai passar ficou pronta. Posta de lado, Chico só a resgatou no ano seguinte, ao reunir material para um novo LP. Mostrou entăo aquele samba ao produtor Homero Ferreira, seu ex-cunhado, e ao arranjador Cristóvăo Bastos, que ficaram entusiasmados. Ali mesmo, no estúdio, a letra foi terminada.
© Copyright Humberto Werneck, Gol de letras, em Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989