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LETRA

Levantados do chão

Levantados do chão

Como então? Desgarrados da terra?
Como assim? Levantados do chão?
Como embaixo dos pés uma terra
Como água escorrendo da mão?

Como em sonho correr numa estrada?
Deslizando no mesmo lugar?
Como em sonho perder a passada
E no oco da Terra tombar?

Como então? Desgarrados da terra?
Como assim? Levantados do chão?
Ou na planta dos pés uma terra
Como água na palma da mão?

Habitar uma lama sem fundo?
Como em cama de pó se deitar?
Num balanço de rede sem rede
Ver o mundo de pernas pro ar?

Como assim? Levitante colono?
Pasto aéreo? Celeste curral?
Um rebanho nas nuvens? Mas como?
Boi alado? Alazão sideral?

Que esquisita lavoura! Mas como?
Um arado no espaço? Será?
Choverá que laranja? Que pomo?
Gomo? Sumo? Granizo? Maná?


1997 © - Marola Edições Musicais Ltda.
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Milton Nascimento/Chico Buarque

ENCONTRADA NO

ÁLBUM

Terra

Terra

1997

CURIOSIDADES

Escrita para o Livro Terra.


Nota sobre Levantados do chão
Por Adélia Bezerra de Meneses

     Letra 
As armas da ironia
Canção de Chico Buarque comenta desenraizamento dos sem-terra
ADÉLIA BEZERRA DE MENESES
especial para a Folha
''Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira.''
José Saramago no livro ''Levantado do Chão''

Também do chão pode levantar-se uma canção, eu diria, parodiando Saramago, uma canção que diga da falta de chão, da falta de terra para quem dela viveria, da sua carência, o oco e do desarrazoado que isso representa. É esse o assunto de ''Levantados do chão'', a mais recente canção de Chico Buarque, tematizando os ''sem-terra'', constante do CD que acompanha o livro de fotografias de Sebastião Salgado, ''Terra'', lançado pela Companhia das Letras no dia 17 de abril, às vésperas do aniversário do massacre em Eldorado dos Carajás: também do chão pode levantar-se uma bandeira.
Estruturada formalmente por interrogações reiteradas, que expressam velada indignação e recusa, a letra dessa canção coloca, em sua radicalidade, a questão do desarraigamento, do desenraizamento, do ''desassentamento'' e do seu absurdo. Há que se meditar sobre o valor afetivo de uma entonação interrogativa. Perguntar é estranhar, recusar, impugnar: questionar. É não aceitar algo como um dado de fato.
O estranhamento sustentado se decompõe em perguntas - calmas invectivas - que vão do acúmulo de advérbios interrogativos (''Como então?'', ''Como assim?'', ''Mas como?''), passando pela aposição de frases nominais interrogativas (''Desgarrados da terra?'', ''Levantados do chão?'') à seqüência final de termos isolados que, escandidos pelo sinal de interrogação, apontam para o seu avesso: ''Gomo? Sumo? Granizo? Maná?'' No entanto, se o tom é quase meditativo (''Como embaixo dos pés uma terra/ Como água escorrendo da mão''), a emoção não é menos contida, engendrando frases escandidas, curtas, numa gradação de compassada ironia.
Num único caso - ''Que esquisita lavoura!' - se sobrepõe à interrogação a exclamação, apontando para sua origem comum: ''ironia''. Com efeito, é essa a figura de estilo dominante nesta canção. E sabemos o quanto a ironia é linguagem de denúncia e de não-adesão, é linguagem de resistência. ''Ironia'': do grego ''eironein'' = ação de interrogar, fingindo ignorância, ou que diz menos do que aquilo que se pensa. Forma privilegiada do exercício da crítica social, no avesso da duplicação das ideologias dominantes, a ironia é arma de combate. Nessa ''ação de interrogar, fingindo ignorância'' se chega, inevitavelmente, ao cômico de algumas imagens, concentradas sobretudo nas duas últimas estrofes: ''boi alado'', ''levitante colono'', ''celeste curral'', ''rebanho nas nuvens'' etc.
Da mesma maneira que os ''sem-terra'' são seres humanos definidos pela negativa, nomeados por aquilo de que carecem fundamentalmente, nesta canção a terra e/ou o chão, quando comparecem, estão sempre acoplados a algo que os nega: ''desgarrados'' da terra, ''levantados'' do chão, terra ''como água escorrendo'', ''oco'' da terra, lama ''sem fundo''. O termo, presente nominalmente, é desvirtuado: o que sobressai é a privação.
Penso nos filósofos pré-socráticos, em sua classificação dos elementos primordiais do universo: terra, água, ar e fogo. Pois bem, nesse texto sobre a falta da TERRA, as demais matérias fundamentais vão, perturbadamente, assumir o seu lugar, substituindo-a. É assim que, por volta da metade da canção, as imagens falarão de ÁGUA em vez de terra (''como água escorrendo da mão'', ''como água na palma da mão''); mas, depois de uma transição em que a água se mistura à terra (''lama sem fundo''), passa-se ao ''ar''.
A partir da quarta estrofe, instaura-se esse elemento, também inicialmente misturado à terra faltante, em forma de ''pó'': ''Como em cama de pó se deitar'' (verso 14). A falta de apoio, de concretude, de solidez, de fundamento - que só a terra, a mais concreta e a única sólida dentre as matérias fundamentais, poderia propiciar - regerá a orquestração das imagens, até o fim. É importante observar que já antes o ''ar'' estava presente, por meio da alusão à queda ''no oco da terra'' (verso 8). Mas será sobretudo a partir do verso 15 que, à falta da terra, o ''ar'' se imporá como imagética fundamental (1). E aí se desdobrarão as metáforas que traduzem a carência aguda, absoluta, de qualquer fundamento sólido: ''Num balanço de rede sem rede/ Ver o mundo de pernas pro ar''.
A imagem é rica e condensada: não só porque diz da ausência de apoio, mas porque, num outro plano, alude à falta de ''fundamento ético'' para a situação, configurando um mundo ''de pernas pro ar'', mundo às avessas, dolorosamente anômalo, aético, injusto. E, a partir daí, se desatará a ironia: ''Como assim? Levitante colono?/ Pasto aéreo? Celeste curral?/ Um rebanho nas nuvens? Mas como?/ Boi alado? Alazão sideral?'' (2).
Anomalia, desacerto, desconcerto. O homem do campo não tem terra. O desajuste da sociedade se revela no nível da linguagem, contamina as palavras, leva à incongruência das imagens, que remetem ao absurdo. O desenraizamento fere fundo: ''Que esquisita lavoura! Mas como?/ Um arado no espaço? Será?/ Choverá que laranja? Que pomo?/ Gomo? Sumo? Granizo? Maná?''.
Com ''maná'' - alusão ao alimento caído dos céus, e não brotando da terra, fruto do trabalho do homem - a inversão irônica está completa.
Falei que essa canção que tematiza a terra, ou melhor, a sua falta, opera com os elementos primordiais do universo, as matérias fundamentais: a terra, presente mesmo por sua ausência; a água e o ar, que perversamente ocupam o seu lugar. E o fogo? Saindo do universo dos filósofos físicos e caindo na realidade dura e crua dos conflitos de terra, do massacre em Eldorado dos Carajás, dos conflitos no Pontal do Paranapanema, da UDR, dos grileiros e ruralistas, das ameaças que pairam sinistras, da Marcha dos Sem-Terra e do susto suspenso com que a cada dia abrimos os jornais, o fogo, num trocadilho de mau gosto, mas dolorosamente na linha dum horizonte possível e temido, bem, o FOGO é o risco.
Finalmente, algo que ficou faltando, nessa análise da letra de ''Levantados do chão''. Refiro-me às duas referências oníricas da segunda estrofe, falando de esforço baldado e impotência - e que remetem a sonhos de angústia, ou melhor, ao pesadelo no qual não se consegue avançar, ou em que se cai, num tombo abissal: ''Como em sonho correr numa estrada/ Deslizando no mesmo lugar/ Como em sonho perder a passada/ E no oco da terra tombar''.
A geração que tinha por volta de 20 anos na década de 60, quando empunhava com paixão e veemência a bandeira da ''reforma agrária'', identifica-se sobremaneira com esse pesadelo de paralisia e impotência. Será que também na geração dos nossos filhos o Brasil vai ''perder a passada''?
Notas:
1. É evidente que aludo aqui a Gaston Bachelard e a seus estudos sobre a imaginação poética, regida pelos quatro elementos fundamentais.
2. Importa observar que esse topos do ar substituindo a terra, quando se trata de propriedades rurais, tem uma tradição na literatura brasileira que remonta a Carlos Drummond de Andrade. Indagado sobre de onde vem o título ''Fazendeiro do ar'' de um de seus livros, eis a resposta que ele dá: ''Os meus antepassados, inclusive meu bisavô, meu avô e meu pai, foram todos fazendeiros em Minas: quando chegou a minha vez, a fazenda havia acabado. Assim, sem terra, considero-me fazendeiro do ar... daí o título.'' ("Fortuna crítica de Carlos Drummond de Andrade", Civilização Brasileira, 2ª ed., 1978)".

Adélia Bezerra de Meneses é professora de teoria literária e literatura comparada na USP e autora, entre outros, de ''Desenho mágico - poesia e política em Chico Buarque'' (Hucitec) e ''Do poder da palavra - ensaios de literatura e psicanálise'' (Duas Cidades).

Fonte: Adélia Bezerra de Meneses, Folha de São Paulo

Chico Buarque

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Em 58 anos de carreira, compôs centenas de canções, aqui apresentadas por título, data, compostas em parcerias, versões e adaptações, compostas para teatro, cinema e aquelas que só aparecem em discos de outros intérpretes. Suas músicas foram gravadas em cerca de 40 álbuns, organizados por data, projetos, discos solo, gravações ao vivo, coletâneas e discos de outros intérpretes dedicados a ele. A obra completa do artista é uma das maiores riquezas que a cultura brasileira produziu até hoje.

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