Nota sobre Tempo e artista
Por Adélia Bezerra de Meneses
Letra
O artista e o tempo
Adélia Bezerra de Meneses
Na letra e na melodia de uma canção sobre o tempo, podemos discernir vários aspectos da sua natureza e entrever alguns dos seus mistérios.
"O velho cantor subindo ao palco apenas abre a voz, e o temo canta."
Os comemorados 50 anos de Chico Buarque, no ano passado, estão longe de fazer dele um "velho cantor." No entanto, ele é um compositor que, inegavelmente, atingiu a maturidade. E é significativo que em seu último disco, Paratodos, haja uma canção que tematiza o tempo (e que em mais de um nível o figura) - uma das mais belas produções da MPB, "Tempo e Artista".
Trata-se de um caso - paradigmático - em que não se pode separar texto e melodia, sob pena de mutilação. A letra, aqui, desvinculada da música, desgarrada do canto, não dá conta de transmitir a riqueza toda que essa canção carrega. A melodia também, sabemos, é produtora de significados: daí a necessidade de cantar, para que a canção se revele em sua plena medida. No entanto, assumindo as limitações da falta de formação musical, vou abordá-la privilegiadamente enquanto "letra", tentando ser atenta à sua dimensão de palavra cantada. Mesmo sem conhecimento musical, há coisas que saltam aos ouvidos - por exemplo, procedimentos que mimetizariam a idéia de um tempo medido, escandido: o caráter recorrente, como pendular, eu diria, da melodia: a sugestão de um quase que tic-tac de relógio, etc.
Tempo e Artista é uma canção que - não fosse esse o seu título! - expressa a relação do artista com o tempo: um poema da maturidade que, na obra de Chico Buarque, situa-se de um ângulo totalmente outro ao abordar essa categoria fundante da existência humana. "Tempo" aqui não é mais a roda-viva que dispersa, agita e destrói, o tempo/vento, lufada impetuosa que tudo leva "para lá"1, mas é o tempo que, identificado à experiência viva do próprio artista, age por ele e nele. Muito mais que o tempo de Roda-viva (1968), é ao "tempo da delicadeza" de Todo o Sentimento 2 que ele se religa:
"Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez"
Somente a maturidade poderia abrigar essa dimensão, a da reparação.
Tão mais como voragem, vórtice, acarretando destruição e derrelição, aqui o tempo se apresenta na sua dimensão construtora, poiética, um tempo que matura, sazona, madura - o vinho e os homens.
Assumindo seu papel de artífice, sua potência criadora, é o tempo o artista. Ele é pintor, escultor, cantor, bailarino, dramaturgo, músico. Nas várias artes aqui convocadas, o artista se oferece como suporte para uma ação do Outro: apresenta-se como tela: deixa-se modelar, empresta-lhe a garganta, cede-lhe o dorso: é porta-voz.
"Em relação à música, eu sou um autor muito mais passivo do que na Literatura. É evidente que sou um músico intuitivo e não sou um escritor intuitivo"- diz Chico Buarque numa entrevista a Augusto Massi.3 A idéia de "passividade" do artista em relação às instâncias criadoras remete à concepção platônica da inspiração poética, que vê o poeta como um ser entusiasmado (de en + theós = com um deus dentro de si), e por cuja boca fala o daimon, fala a divindade. Há no artista um momento de ação (poiésis vem do verbo poiéo = fazer) e um momento de deixar agir. E aqui quem age é o tempo; é ele o sujeito (sujeito gramatical) da quase a totalidade dos verbos do poema: é a estrela; obra a sua arte; modela o artista; põe rugas; arrebata a garganta do cantor; canta; dança; é o Autor do drama; e, finalmente, alcança a glória. Significativo é que, na última estrofe, tempo e artista sejam sujeitos do mesmo verbo: alcançar. O tempo alcança a glória, e o artista, o infinito. Essa superposição de sujeitos leva a uma sorte de identificação entre eles.
Com efeito, trata-se de um engrandecimento do tempo e de sua obra. De um lado, uma espécie de metáfora da maturidade, daquilo que a experiência trama e condensa; de outro, no nível mítico, o tempo se apresenta como imagem divinizada, figuração de um princípio primordial de criação, assemelhando-se ao tempo órfico dos gregos. A cosmogonia órfica conta que na origem havia uma potência primordial, Chronos, o tempo, que engendra um ovo cósmico que, abrindo-se em dois, dará origem ao céu e à terra, e faz aparecer Phanes ou Eros.4 Na origem de tudo, antes do ovo, está o Tempo. Imortal e imperecível, esse tempo sacralizado é o do mito: tempo cíclico, do eterno retorno, em que a eternidade é representada pela serpente que morde a própria cauda 5 - o que, no poema, é figurado não apenas pelo "eterno retorno" das rimas, das recorrências de sons, de fonemas, de imagens, de ritmo, mas também pela retomada do primeiro verso no final, fechando um ciclo.
De todas as artes, a música é a mais fulcralmente articulada ao Tempo. Essa canção traduz a relação muito específica - e muito visceral - que um compositor - que é também poeta e cantor - mantém com o tempo. A música ocorre no tempo. É a arte por excelência ligada à categoria temporal - enquanto a arquitetura, por exemplo, vincula-se ao espaço. Discriminadas das artes espaciais (arquitetura, escultura, pintura), as artes temporais (música, dança, cinema) falam de sucessão, movimento, seqüência, mudança. Assim, não é por acaso que, das cinco estrofes da canção, três digam respeito à música: a última, que apresenta o artista "num concerto"; a estrofe central (e central em mais de um sentido!), em que o tempo veste a pele do artista e arrebata-lhe a garganta; e a primeira estrofe, que não delimita a especificidade do artista, mas circunscreve-o ao campo das artes temporais - literalmente, das artes "em que o tempo é a grande estrela".
No entanto, a característica de músico impor-se-á depois que tivermos conhecido a canção toda: "... devemos entender a experiência de um acontecimento, tal como uma dança ou uma peça musical, pela interação das impressões que deixou em nós", diz Rudolf Arnheim.6 Assim, na nossa canção, após a termos ouvido inteira, fica inequívoco, a posteriori, de que artista especificamente se trataria, na primeira estrofe.
Mas música (assim como poesia) não é mera seqüência de sons: implica, basicamente, ritmo. É criação de um sistema, de um mundo, "em que os sons se respondem", para se usar uma imagem baudelairiana; um sistema de correspondências, de recorrências, um universo. O "ritmo poético", diz Octávio Paz num texto seminal sobre a analogia, "não é senão a manifestação do ritmo universal: tudo se corresponde porque tudo é ritmo".7
Ritmo, do grego rythmós, significa etimologicamente movimento regular das ondas, movimento das vagas. Daí: movimento regrado e mensurado; medida, cadência - diz o Dicionário Bailly. É significativo que esse substantivo grego tenha a mesma raiz do reo (= correr), um verbo referido à natureza do curso da água: escoar, passar, fluir. Platão, no Teeteto, fala de "todas as coisas passando e sem cessar levadas pelo curso do tempo" - e o verbo que utiliza é réo. Tal etimologia do ritmo, enquanto "movimento regular das ondas" é extremamente expressiva: onda é a água que "corre", mas volta: fluxo e refluxo. Não se trata de uma imagem matemática, de um rígido parâmetro de mensuração "científico", como uma régua, mas de uma metáfora orgânica, dinâmica do mundo da natureza.
Pois bem, nesse poema o ritmo é muito marcado; e a maneira de cantar intensifica sobremaneira a presença do metro, a existência da mensuração: o canto é feito silabando, dividindo em sílabas métricas, reafirmando tônicas, marcando a métrica:
"I-ma-gi-no o ar-tis-ta num-an-fi-tea-tro"
É exatamente significativo que, numa canção sobre o tempo - e a experiência que temos do tempo humano é de fluxo contínuo, infinita deriva, eterno correr - o poeta necessite segmentá-lo, escandi-lo, mensurá-lo - como que para melhor poder administrá-lo, para não se deixar atropelar por ele.
Um jeito de a gente não se deixar engolir pelo tempo-fluxo, não se deixar devorar pelo tempo irreversível que corre incoercivelmente, é segmentá-lo em medidas recorrentes: o ano, o mês, a semana, o dia, a hora, o minuto, o segundo. Segmentar o tempo para não se deixar dominar totalmente por ele. Mas essa não é uma segmentação aleatória: obedece ao ritmo cósmico, ao ritmo dos astros do universo: um dia (24 horas) é o tempo que a terra leva para um giro em torno do seu próprio eixo (criando o dia e a noite); a semana corresponde a uma das quatro fases da lua; um ano é o tempo que a terra leva para revolucionar em torno do sol, criando as quatro estações, etc., etc.
A existência humana, condicionada pelo tempo, encontra-se assim referida à ordem cósmica. Rotação da terra, translação do sol, são os parâmetros que os humanos usam para medir o tempo: critérios astronômicos de medida. A natureza é cíclica: o dia se sucede à noite, o inverno ao verão, os astros têm sua órbita (orbis= círculo). Há uma periodicidade cósmica na revolução dos astros: esse período, esse intervalo é a medida usada pelos homens.
"Tempo", assim, está ligado aos astros. É por isso que, tanto na primeira quanto na última estrofe, o termo "estrela" tem que ser lido na sua múltipla (e condensada) valência: é certo que estrela diz respeito a "pessoa que brilha" - sobretudo nas artes cênicas, ou similares (cinema, teatro, espetáculos musicais); mas aí se infiltra, inequívoca, a idéia de estrela enquanto corpo celeste, astro, cujo curso circular é parâmetro da mensuração do tempo humano.
No entanto, o ritmo, esse elemento fundamental da categoria tempo, não tem somente uma dimensão cósmica: ele participa também da ordem biológica. Pois o ser humano é submetido a ritmos na vida de seu corpo. Não apenas a mulher, com a periodicidade lunar influenciando seu ciclo mensal, regendo humores e tempo de gestação ("nove luas", dizem os antigos para o tempo de uma gravidez); estou me referindo àquilo que é comum aos dois sexos, e fundante no processo vital: a respiração, com seu movimento de expansão/retração, dos processos de inspiração e expiração; o pulsar do coração, o latejar do sangue nas veias; o movimento ondeante do desejo. É por isso que a música nos pega tão visceralmente: o ritmo tem seu paradigma na esfera orgânica. Há um poder encantatório do ritmo, induzindo a sensações sinestésicas. Que sirvam de exemplos, para se ficar no âmbito brasileiro, as técnicas de obtenção de um estado de êxtase, na dança dos índios guarani, com o efeito inebriante do seu tambor, ou o batuque do candomblé, nas cerimônias em que baixa o santo; ou os festivais de música da juventude. Assim, o ritmo ecoa um movimento cósmico, uma pulsação biológica, um latejar de pulsões. Pois bem: o ritmo muito marcado de Tempo e Artista, a maneira pela qual a canção é cantada, como que silabando, escandindo as sílabas poéticas, compassando isocronicamente, converte-se numa maneira de convocar o aspecto temporal do poema: é um modo de atrair a atenção sobre - parodiando Alfredo Bosi "o ser e o tempo da poesia". Esse canto sobre o tempo é feito marcando as divisões sonoras do verso, cadenciando, numa dicção quase ritualística.
Cantar assim é uma espécie de "atualização" do tempo na poesia, uma homenagem ao tempo - quase que, como fez Caetano Veloso, uma "Oração ao Tempo". Com efeito, diz Caetano, o tempo fica "ainda mais vivo/ao som do(s) eu estribilho".
Que me seja permitido comentar uma canção de Chico à luz de uma canção de Caetano. Caetano também, "seresteiro, poeta e cantor", compôs uma belíssima canção dedicada ao tempo, em fins da década de 70. Aqui também o tempo, "compositor de destinos", "tambor de todos os ritmos", é circular - e divinizado:
"És um senhor tão bonito
Quanto a casa do meu filho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo, tempo, tempo, tempo.
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo
Entro num acordo contigo
Tempo.
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo
Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo
Ouve o que te digo
Tempo
Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo
Quando o tempo for propício
Tempo.
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo
O que usaremos pra isso
Fica guardado
Tempo
Apenas contigo e migo
Tempo
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo
Não serei nem terás sido
Tempo
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo
Em outro nível de vínculo
Tempo
Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo.
É uma canção que testemunha as ligações entre Tempo e Poesia.
Se eu não consigo me assenhorear do tempo, se ele, infinita deriva, escoar contínuo das horas e dos séculos, fluir incessante dos minutos da minha vida, impele-me para a velhice e para a morte, que me seja dado ao menos criar um universo - um poema - em que eu posso "administrar" esse tempo: escandi-lo, metrificá-lo, por-lhe medida, contá-lo; provocar retornos, reincidências, num certo sentido, domesticá-lo. Os recursos da poesia, a versificacão (verso = aquilo que volta), o ritmo e a métrica, as rimas, os ecos internos, marcando o retorno de mesmos sons ou de sons semelhantes, criam um certo apaziguamento, um pouso-repouso nesse devir infinito. O tempo humano - incoerente, irreversível, fragmentado - torna-se com o poema um ciclo reconstruído em sua totalidade. Pois há algo de Totalidade, de Uno, no limite da aspiração do poema.
Que é o poema senão uma tentativa humana - bem sucedida - de, vencer a voragem infinita do tempo, criando esse universo "em que os sons se respondem", num sistema de recorrências, um todo em que as reiterações (sonoras, rítmicas, imagéticas, semânticas, prosódicas) me defendem do desconhecido, dão-me guarida frente ao que é incessantemente novo? Que é o poema senão um sistema em que me é permitido reconhecer - uma vez que, para falarmos como Arnheim, a repetição cria um "princípio de reconhecimento", e que o poema também tem sua "órbita"?
A poesia é, assim, talvez a mais patética (e fecunda) das tentativas humanas de vencer o tempo, de construir um mundo (analógico), em que eu me sinto protegida da derrelição, da decadência irreversível que leva à morte. Contra a finitude inexorável da existência, a criação de algo que contrapõe à mudança a permanência. "O tempo é a dimensão da mudança",8 diz Arnheim; daí se pode inferir que todo movimento no sentido das recorrências, da repetição, das reiterações pode então ser considerado como um esforço de enfrentar esse aspecto do tempo, de freá-lo; um desejo de retorno. Permanência x Mudança: não é isso que subjaz ao ritmo?
"Será que a forma poética responde, inconscientemente, a algum princípio vital, à energia que se move perpetuamente em ondas, à Natureza que recomeça perpetuamente o dia depois da noite, a primavera depois do inverno, a lua nova depois da minguante, a semente depois do fruto? "O tempo" da forma verbal reproduzirá em si o eterno retorno do mesmo, que o pensamento e a História partem e crêem superar?"- pergunta-se Alfredo Bosi em O Ser e o Tempo da Poesia.
Mas além desse tempo criador, órfico e primordial, tempo cíclico do eterno retorno (figurado pela serpente que morde a própria cauda, e aqui. representado pelo último verso encostado no primeiro) - além desse tempo mítico, nessa canção o tempo se faz presente também em sua outra dimensão: de agente de envelhecimento e de finitude, traduzidos em tremor, rugas, velhice e exaustão - índices da sua passagem, com o corolário inevitável de degradação e decrepitude. É o tempo que "modela o artista ao seu feitio" (e a gente sabe, com nossa experiência de humanos, o que esse senhor faz quando "modela a seu feitio" uma pessoa); é o tempo que "põe rugas ao redor da boca como contrapesos de um sorriso"; que transforma o cantor em "velho", o bailarino em "exausto", que torna o ator "trêmulo". É esse o tempo dos homens, de uma perspectiva não mítica, mas histórica: é essa a nossa vivência do tempo que carrega seu preço em velhice morte. Não há como escapar disso, quando os homens meditam sobre sua própria existência. Concomitante à tentativa da poesia de estancar o fluxo do tempo, vivendo o eterno retorno do mundo da analogia, com a mesma intensidade o poema apresenta os signos do correr do tempo. E isso significa, aqui, perda, degradação.
Aponta-se um paradoxo nessa canção, duas concepções em tensão. Instaura-se uma dialética entre o tempo cíclico, potência primordial, princípio criador do eterno retorno, e tempo linear e irreversível, agente da finitude.
Mas essas contradições na figuração do tempo que esse poema apresenta têm para nós, que participamos da civilização ocidental, um lastro cultural. Carregamos a dupla herança do tempo cíclico da filosofia grega 10, de um lado, e do tempo linear e irreversível do monoteísmo judaico, do outro. Do tempo cíclico do mito, sob o signo de Odisseu, que parte de Ítaca e que volta para Ítaca, ao fim de sua odisséia; e do tempo histórico, sob o signo de Abraão, que parte de sua cidade, Ur, na Caldéia, rumo à Terra Prometida, sem retorno inaugurando o movimento irreversível da história. Imbricam-se, dialeticamente, duas visões, duas vivências do tempo.
Auerbach, em seu estupendo ensaio "A Cicatriz de Ulisses" 11 empreende uma caracterização - a partir da leitura estilística - das civilizações grega e hebraica, respectivamente, através da análise de um trecho de Homero e de um texto bíblico. E ele compara Abraão a Odisseu. E entre as muitas diferenças que traça entre as duas culturas, uma diz respeito à questão da passagem do tempo, e das alterações, dos desenvolvimentos que o tempo acarreta. Os heróis homéricos, extremamente bem descritos, não apresentam em geral, qualquer desenvolvimento, "e a história de suas vidas fica estabelecida univocamente" - a ponto de, na sua maioria aparecerem com uma idade pré-fixada. Odisseu, por exemplo, saiu de Ítaca para a guerra de Tróia: ao voltar vinte anos depois, é o mesmo guapo rapaz que partira (envelhecido artificialmente, por alguns momentos, como uma estratégia para não ter seu reconhecimento antecipado); e encontra Penélope na flor da idade, cobiçada por um bando de pretendentes, com nada de sua beleza esmaecida: é esse o tempo do mito. No mundo bíblico, que não se propõe como mítico, mas como histórico, as personagens que de início foram apresentadas jovens, diz Auerbach, (como Davi, no frescor de sua adolescência) vão envelhecendo, alterando-se, e são mostradas por vezes até a extrema decadência física, descendo a detalhes nos "sintomas" da velhice: "O rei Davi estava velho, com idade avançada; por mais que lhe pusessem cobertas, não conseguia se aquecer." - diz o texto bíblico 12. Velhos duramente envelhecidos, moldados, trabalhados ("modelados", dirá Chico Buarque) pelo tempo. Será necessário repetirmos, com Arnheim, que "o tempo é a dimensão da mudança"?13
Em Tempo e Artista de Chico Buarque articulam-se dialeticamente duas concepções de tempo, "conciliadas" como nossa vivência (pessoal/cultural); fazemos a experiência humana da velhice e da decadência inexoráveis, que o tempo, traz e a da aspiração humana pela permanência, que a arte propicia. Não por acaso, ao fim da canção, o tempo alcança a glória, e o artista - velho, trêmulo, exausto, não importa - alcança o infinito.
Não é Bachelard 14 que desenvolve a idéia de que o instante poético é uma "relação harmônica entre dois contrários"?
Fonte: Percurso - Revista de Psicanálise nº15 - 1985
Adélia Bezerra de Meneses é professora de Teoria Literária da USP e da UNICAMP, e autora, entre outros livros, de Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque (Hucitec, 1982) e Do Poder da Palavra - Ensaios de Literatura e Psicanálise (Duas Cidades, 1995). Este texto foi originalmente uma conferência no Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, realizado na USP em 1994.
1. Cf. Roda Viva "(...)A gente quer ter voz ativa/No nosso destino mandar/Mas eis que chega a roda viva/E carrega o destino pra lá/Roda mundo, roda-gigante/Roda-moinho, roda pião/O tempo rodou num instante/Nas voltas do meu coração."
2. "Preciso não dormir/Até se consumar/O tempo/Da gente./Preciso conduzir/Um tempo de te amar/Te amando devagar/E urgentemente"
3. Folha de São Paulo, 09/01/04
4. Cf. Vernant, Mithe et Pensée ches les grecs, Paris Maspero, 1966. p. 69 e Zaidman/Pantel: La religion grecque, Paris, Armand Colin, 1991 (2ª ed.)
5. Cf Vernant, op. cit.. p. 70
6. Rudolf Arnheim, Arte y percepción visual, Buenos Aires, Eudeba, 1962.
7. Octávio Paz, "Analogia y Ironia" in Los hijos del limo, Barcelona, Seix Barral, 2ª ed., 1974, p. 133
8. Rudolf Arnheim, op. cit.
9. O Ser e o Tempo da Poesia, São Paulo, Cultrix/EDUSP, 1977, p. 117
10. E Chico Buarque parece ser, sim, como está em "Choro Bandido" (também do disco Paratodos) o poeta que "fala grego com a (nossa) imaginação"...
11. Erich Auerbach, Mimesis, São Paulo, EDUSP/Perspectiva, trad. George Sperber, 1971
12. Cf. 1, Reis 1:1
13. Rudolf Arnheim, Arte y percepción visual, op. cit.
14. Gaston Bachelard: O Direito de Sonhar, São Paulo, Bertrand/Brasil, 1991, p. 194.