Nota sobre A voz do dono e o dono da voz
Por Humberto Werneck
Letra
Das mãos do pai, Chico recebeu um exemplar do Dicionário analógico da língua portuguesa, do goiano Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, com a informação certeira de que a obra lhe seria muito útil. Tanto tem sido que Chico cuidou de tê-la em duplicata — carregou o volume, em mau estado (é de 1950), para o seu apartamento parisiense e comprou outro para ter à mão no Rio de Janeiro. Os dicionários, aliás, vêm a ser uma de suas saudáveis obsessões, ao lado de variadas obras de referência — e foi essa paixão que o levou, certa vez, a ir fundo no esclarecimento de um suposto erro numa letra, apontado por um admirador que era fã, também, da ortodoxia gramatical.
Quem conta é o paulista Wagner Homem, responsável pelo website do compositor e provavelmente a mais copiosa fonte de informações sobre ele, sua obra e sua carreira. No final de 1998, durante os ensaios para o show As cidades, Wagner — "Kxorrão", como é por todos tratado — esteve com o amigo no Rio e lhe falou de um e-mail que tinha recebido, no qual um professor, "todo formal, chamando o Chico de senhor", questionava um verso de "A voz do dono e o dono da voz": em vez de "se vós não sereis minha” , o bom português não mandava escrever "se vós não fordes minha"?, questionava o remetente. "Chico coçou a orelha, num gesto muito seu, e arriscou uma ou duas explicações, sem muita convicção, tanto que não me convenceu", conta o Kxorrão. "Brinquei com ele, disse que ia responder ao cara que o dono da voz, além de arrogante, era ignorante."
No final da temporada, pelo menos seis meses depois dessa conversa, Chico ligou insistentemente para Wagner e, como não conseguiu falar com ele, deixou recado na secretária eletrônica: "Kxorro, sobre aquele negócio da 'Voz do dono e o dono da voz', ouça aqui" — e leu uma informação do dicionário Caldas Aulete, para concluir, de alma lavada: "Portanto, eu estava certo!". A história, acredita o amigo, "deve ter ficado em algum lugar prioritário da memória do Chico, esperando acabar a turnê, e resolver essa questão seguramente foi uma das primeiras coisas que ele fez depois de descansar um pouquinho".
(O autor de "A voz do dono e o dono da voz" também se lembra do episódio, mas diz que o dicionário apenas corroborou a explicação que deu ao Kxorrão já no primeiro momento, e que este julgou inconvincente. "Eu dizia que o 'se', no caso, não era condicional, mas uma constatação desesperançada, equivalente a um 'já que', ou seja: se você não será minha, não será de mais ninguém." E acrescenta: "Mas não faz mal, a versão do Kxorrão é melhor do que a minha")
© Copyright Humberto Werneck, em Chico Buarque: Tantas Palavras, Cia da Letras, 1989