Nota sobre Pedaço de mim
Análise literária de Maria Helena Sansão Fontes
Letra
"Pedaço de mim" aprofunda a questão da continuidade perdida, através de sextetos cuja simetria aponta para o cuidado na elaboração formal do poema, tanto mais que a melodia, repetindo-se por igual nas cinco estrofes, permite um tom quase declamatório aos versos:
O poema revela o apelo do eu-poético através da função conativa da linguagem, marcada pela interjeição que inicia os dois primeiros versos de cada estrofe e pela repetição do primeiro verso. A dor causada pela brusca separação dos corpos é assinalada pelos versos reveladores da passividade do emissor, onde a gradação dos verbos no particípio enfatiza o sentimento de castração involuntária:
"Metade afastada de mim"
"Metade exilada de mim"
"Metade arrancada de mim"
"Metade amputada de mim"
Esse apelo reiterado configura a insistência do eu-lírico em que a separação se estenda ao aspecto espiritual. É o que se observa nos terceiros versos das quatro primeiras estrofes, marcados pelo imperativo "Leva", seguido de expressões que conotam características abstratas e subjetivas do amante, contrapondo-se aos elementos fisicos:
"Leva o teu olhar"
"Leva os teus sinais"
"Leva o vulto teu"
"Leva o que há de ti"
A essa contundente despedida, acrescentam-se, nos três últimos versos de cada estrofe, comparações entre o sentimento da saudade e elementos representativos da dor e do sacrifício: "tormento", "esquecimento", "se entrevar".
A dor da separação compara-se tanto a elementos abstratos, como na terceira estrofe, na imagem que marca a oposição morte/nascimento: "Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu", como a elementos fisicos: "Que a saudade dói latejada/ É assim como uma fisgada/ No membro que já perdi"(quarta estrofe).
O lamento cadenciado do poema-canção culmina com o apelo final que configura a entrega do ser que não se quer mutilado e em lugar da separação, presente nas estrofes anteriores, existe a fusão propiciada pela morte: "Leva os olhos meus/ Que a saudade é o pior castigo/ E eu não quero levar comigo/ a mortalha do amor/ Adeus"
Sem fantasia - Masculino e feminino em Chico Buarque
Maria Helena Sansão Fontes - Editora Graphia, 1999