Notas sobre Tem mais samba
Por Humberto Werneck
Letra
O personagem principal, Chico Buarque de Hollanda, já não se lembra da história. Mas o publicitário Luiz Vergueiro, que dela participou, conservou-a em detalhes na memória. Ele era o produtor de um musical, Balanço de Orfeu, e a estréia, no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo, estava marcada para o dia 7 de dezembro de 1964. Dois dias antes, impaciente, Luiz esperava pela música que havia encomendado a seu amigo Chico e da qual, em boa medida, dependeria o sucesso da noitada. A primeira parte do show, Na onda do balanço, seria como um diálogo entre a Bossa Nova e a nascente Jovem Guarda, na qual muitos viam inquietante ameaça à música brasileira. De um lado, o jovem cantor Taiguara, de outro, uma cantora que acabaria não seguindo carreira, Claudia Gennari. Ele "engajado", ela "alienada", conforme o imperioso jargão da época. No final, previsivelmente, triunfaria a Bossa Nova - e, para que não pairasse dúvida, a moral da história seria resumida numa canção, a tal encomendada a Chico, a ser cantada por todos os participantes do espetáculo.
Pelas sete da noite daquela quarta-feira, aparece o compositor. Um desastre, constatou Luiz Vergueiro: a música (que se perdeu ali mesmo, para sempre) não era ruim, mas não servia - não passava a mensagem pretendida. Isso foi dito a Chico, que saiu furioso. No dia seguinte, véspera da estréia, às dez da manhã, o produtor o vê chegar outra vez, "com os olhos vermelhos pela noite em claro e um tremendo bafo de cana'' - e uma canção ainda quentinha no violão. Era Tem mais samba, que muitos anos mais tarde Chico escolheria para ser o marco zero de sua obra, e que poderia ser tomada, também, como ilustração de uma das constantes em seu trabalho: a criação por encomenda (aquela foi a primeira), contra o relógio mas nunca em prejuízo da beleza e do prazer de criar.
© Copyright Humberto Werneck in Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989